Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
887/13.7 PBFAR.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
NATUREZA DA INFRACÇÃO
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Estando o arguido acusado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º1, 145.º, n.º1, al. a) e 132.º, n.º2, al. b), todos do Código Penal, que reveste a natureza de crime público, a desistência da queixa apresentada pela ofendida, antes do julgamento, irreleva para efeitos de extinção do procedimento criminal por tal ilícito.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:

I

[1] No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 887/13.7 PBFAR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, o Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A., imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, alínea b), todos do Código Penal [cfr. fls. 67 a 71].

[2] A ofendida, B. (subsequentemente à dedução da acusação pública) veio desistir da queixa que oportunamente apresentou [cfr. fls. 78].

[3] Remetidos os autos a julgamento, nos termos prevenidos nos artigos 311º, 312º e 313º, do Código de Processo Penal, pora admissibilidade da desistência de queixa consubstancia uma questão prévia impeditiva do conhecimento do mérito da causa, porquanto retira a legitimidade ao Ministério Público para prosseguir com o procedimento criminal contra o arguidoe o Tribunal de 1ª instância entender que o mencionado crime de ofensa à integridade física qualificada reveste natureza semi-pública, foi determinado que “se proceda à notificação do arguido, nos termos do disposto no artigo 51º, nº 3 do Código de Processo Penal” [cfr. fls. 84 e 85].

[4] Notificado o arguido e não deduzindo oposição à aludida desistência de queixa, em 17.02.2014, pelo Tribunal foi proferido o seguinte despacho:

“Nos presentes autos foi deduzida acusação contra o arguido A. imputando-lhe factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. a) e 2 do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea b) do mesmo código.

Depois de deduzida acusação veio a queixosa manifestar já não pretender procedimento criminal contra o arguido.

O Ministério Público pronunciou-se pela não homologação da desistência por considerar que se trata de um crime de natureza pública.

Notificado o arguido, nos termos do disposto no artigo 51.º, n.º 3 do C.P.P., o mesmo não se opôs à desistência.

Cumpre apreciar e decidir.

Na redacção do Código Penal anterior à revisão operada em 2007, a jurisprudência era quase unânime que o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto no artigo 146.º do Código Penal, era um crime de natureza pública.

Todavia, com a reforma do Código Penal, em 2007, o legislador introduziu uma profunda reforma no que respeita ao crime de ofensa à integridade física.

Antes da entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, dispunha o artigo 146.º do Código Penal que:

“1 - Se as ofensas previstas nos artigos 143.º, 144.º ou 145.º forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”.

E dispunha o artigo 147.º do mesmo código que:
“A pena aplicável à ofensa à integridade física é especialmente atenuada quando se verificarem as circunstâncias previstas no artigo 133.º”.

Actualmente, dispõe o artigo 145.º do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4.09 que:

“1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:

a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;
b) Com pena de prisão de três a doze anos no caso do artigo 144.º

2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”.

E dispõe o artigo 146.º do mesmo código que:

Se as ofensas à integridade física forem produzidas nas circunstâncias previstas no artigo 133.º, o agente é punido:

a) Com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa no caso do artigo 143.º;

b) Com pena de prisão de seis meses a quatro anos no caso do artigo 144.º”.

A revisão do Código Penal de 2007 eliminou do âmbito da qualificação as ofensas à integridade física agravadas pelo resultado, restringindo-a às ofensas à integridade física simples e grave, porque se entendeu que não era possível proceder à qualificação das ofensas à integridade física negligentes com base nas circunstâncias previstas no artigo 132.º - neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 369/370.

Da actual técnica legislativa tem que se concluir que a remissão efectuada pelos artigos 145.º e 146.º para os artigos 143.º e 144.º, todos do Código Penal é uma remissão para todo o regime legal desses preceitos, incluindo o n.º 2 do artigo 143.º que prevê que o procedimento criminal depende de queixa.

Não se entendendo assim, e porque o artigo 146.º do Código Penal, na sua actual redacção, também não prevê expressamente que o procedimento criminal depende de queixa, teríamos de concluir que o crime de ofensa à integridade física privilegiada, menos gravoso em termos de culpa que o tipo base do 143.º, também é um crime público, o que não se compreende.

Com efeito, sustentando-se que o tipo do artigo 145º do Código Penal deve se encarado com plena autonomia em relação aos artigos 143º e 144º que o antecedem, é forçoso efectuar idêntico raciocínio em relação ao artigo 146º do Código Penal (ofensa à integridade física privilegiada), cujas condutas típicas se encontram igualmente previstas nos artigos 143º e 144º apenas sobrevindo, em relação a cada um destes tipos criminais, uma alteração da pena motivada por circunstâncias relacionadas com a culpa (exactamente como acontece ao nível do artigo 145º).

Defendendo-se que o critério para determinar a natureza do crime (nomeadamente a sua natureza semi-pública ou pública) resulta do facto de, na norma que o prevê, se encontrar ou não estabelecido que o procedimento criminal depende de queixa, idêntico tratamento terão que merecer as normas dos artigos 145º e 146º, face ao absoluto paralelismo da sua construção (conduta típica definida nos artigos 143º, 144º e estatuição de uma pena diferente daquela que nestes se encontra em função de circunstâncias - num caso qual no outro atenuativas — ligadas à culpa).

Nessa medida, ter-se-ia, por razões de lógica e coerência, que afirmar que, tal como quando estão em causa ofensas à integridade física qualificadas, também o procedimento criminal relativo a ofensas à integridade física privilegiada não depende de queixa.

Ora, a alternativa a este raciocínio terá que passar por recolher a definição da natureza do crime no tipo de ilícito que esteja na sua base, decorrendo então a dependência ou não de queixa daquilo que estiver estabelecido nos artigos 143º e 144º, só que, neste caso, o raciocínio que se efectue a propósito do artigo 146º do Código Penal, ter-se-á também que efectuar perante os casos integráveis no artigo 145º do mesmo código.

Em apoio deste entendimento, há que ter em consideração que noutros tipos criminais qualificados constantes do Código Penal (como o furto qualificado previsto e punido no artigo 204º, o abuso de confiança previsto e punido no artigo 205º, nº 4, o dano qualificado, previsto e punido no artigo 213º ou a burla qualificada previsto e punida no artigo 218º) é possível concluir pela sua natureza pública, com base na simples falta de menção à necessidade de queixa, pois aí são elementos ligados à ilicitude, e não à culpa, que determinam a agravação das penas que se encontram previstas nos tipos simples. Ou seja, o tipo de ilícito subjacente a estes crimes qualificados não é o mesmo de tais crimes na sua versão simples (diferentemente do que sucede com o artigo 145° do Código Penal, cujo tipo de ilícito se encontra definido nos artigos 143º e 144º que o antecedem); o que explica que a sua natureza não possa ser obtida por mera referência ao tipo de ilícito dos crimes na sua versão não qualificada.

Assim, a natureza do crime de ofensa à integridade física qualificada há-de ser encontrada com base no ilícito em que se enquadram as ofensas causadas. Com efeito, dependendo o crime previsto no artigo 145º do Código Penal da construção efectuada nos artigos 143º e 144º do mesmo código, apondo-lhes apenas um elemento decorrente da sua produção em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou previsibilidade do agente (ou seja, circunstâncias relacionadas com a culpa), entende-se que a menção à necessidade ou desnecessidade de queixa deve ser encontrada nos ilícitos base inscritos nos artigos 143º e 144º do Código Penal.

Como tal, por se considerar ser o mais consentâneo com a unidade do sistema jurídico-penal, tem vindo a ser entendimento deste tribunal que desde a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4.09, a remissão que os artigos 145.º e 146.º fazem para os artigos 143.º e 144.º do Código Penal é uma remissão para todas os números desse artigo e, como tal, no caso da alínea a) do n.º 1 do artigo 145.º do Código Penal, deve ser admitida a desistência de queixa.

Pelo exposto, atendendo à natureza semi-pública do crime em causa nos autos e que não houve oposição do arguido, decide o Tribunal, homologar a desistência de queixa apresentada, e, em consequência, declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido A. pelos factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, al. a), com referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, nos termos dos artigos 113º e 116º do Código Penal e artigo 51º do Código de Processo Penal.

Sem custas para o arguido – artigo 513.º do Código de Processo Penal.
Notifique.
Transitado, arquive”. [cfr. fls. 89 a 94].

[5] Inconformado com o despacho/decisão do Tribunal, acima transcrito, dele recorreu o Digno Magistrado do Ministério Público [cfr. fls. 100 a 110], extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

“1- A Mma Juiz a quo homologou uma desistência de queixa relativamente à prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada do Código Penal.

2- A Mma Juiz efectuou tal homologação por considerar que após a revisão do Código Penal de 2007, o crime mencionado passou a ser de natureza semi-pública.

3- O Ministério Público entende que o crime de ofensa à integridade física qualificada tem natureza pública, elo que não poderia ter sido homologada a desistência de queixa.

4- O crime de ameaça agravada p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 153º, nº1 e 155º, nº1 do Código Penal é um crime de natureza pública.

5- As alíneas constantes no artigo 155º, nº1 do Código Penal são praticamente coincidentes com as situações previstas nas alíneas c), l) e m) do artigo 132º, nº2 do mesmo código, o que tem como consequência a qualificação das ofensas à integridade física simples nos termos do artigo 145º, nº2 do Código Penal.

6- Do ponto de vista sistemático não teria muita lógica que o crime de ameaça agravado fosse de natureza pública e o crime de ofensa à integridade física qualifica fosse considerado como de natureza semi-pública, quando praticamente todas as circunstâncias qualificativas são coincidentes entre os dois tipos de crime.

7- O legislador optou pela natureza pública dos crimes qualificados, designadamente quanto aos crimes de furto qualificado, burla qualificada ou dano qualificado.

8- No âmbito do direito penal português, a regra é a de que os crimes possuem natureza pública e não semi-pública, em virtude do princípio da oficialidade ter primazia entre nós.

9- Os tipos de crimes que protegem bens fundamentais da comunidade e não meros interesses individuais têm natureza pública.

10- Em 2007, o legislador assumiu de forma clara que a violência entre cônjuges e companheiros não se trata de uma mera questão individual, mas um problema que interessa a toda a comunidade, tendo consagrado tal opção em várias normas do Código Penal.

11- A jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que o crime de ofensa à integridade física qualificada é um crime de natureza pública.

12- A acusação deveria ter sido recebida e designada data para a realização de audiência de julgamento, uma vez que o Ministério Público tinha legitimidade para o exercício da acção penal nos termos do artigo 48º do Código de Processo Penal, uma vez que atenta a natureza do crime de ofensa à integridade física qualificada o mesmo não admite desistência de queixa.

13- A Meritíssima Juiz interpretou erradamente o artigo 145º do Código Penal, pelo que violou o preceito referido e os constantes dos artigos 48º e 311º, nº1 do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser revogado o despacho que homologou a desistência do crime de ofensa à integridade física qualificada e substituído por outro que designe data para a realização do julgamento.

Contudo, V.Exas. farão como sempre Justiça”.

[6] Admitido o recurso interposto [cfr fls. 111] e notificados os devidos sujeitos processuais, não foi oferecido articulado de resposta.

[7] Remetidos os autos a esta Relação, sem que tivesse sido feito uso do preceituado no artigo 414º, nº 4, do Código de Processo Penal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, alegando, em síntese, que “(…) não vemos como a Reforma de 2007 do Código Penal possa ter mudado o entendimento de que o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145º do Código Penal, tenha deixado de ter natureza pública, conforme entendimento dominante da jurisprudência , pelo que sufragamos inteiramente o doutamente expendido pelo Magistrado recorrente”.

Em consequência, opina no sentido de que o recurso merece provimento, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, recebendo a acusação pública deduzida, designe data para realização do julgamento.

[8] Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta.

Foi efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais.
Foi realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II
Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância é a seguinte:

(i) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de direito, ao homologar a desistência de queixa apresentada pela respectiva titular, porquanto o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, na sua actual versão [conferida pela Lei nº 59/2007, de 04.09, entrada em vigor em 15.09.2007], por que o arguido se encontra acusado, reveste natureza pública, e não, como ali foi entendido, natureza semi-pública.

III

Já se deixou supra editado o despacho/decisão recorrido – (cfr. ponto I [4] do presente aresto).

Ressalvado o devido respeito por diferente opinião, sobre a questão suscitada à apreciação deste Tribunal ad quem, já a jurisprudência se pronunciou, abundantemente e de forma que se nos afigura não poder deixar de ser considerada pacífica, ainda que a propósito de tipos legais de crime diversos do que constitui o objecto da presente acção penal, como sejam os crimes de ameaça (artigo 153º, do Código Penal) e de coacção (artigo 154º, do Código Penal) e o respectivo tipo agravado/qualificado (artigo 155º, do Código Penal).

Porque assim, porque a similitude das questões de direito e o argumentário usado na decisão recorrida se encontra, na jurisprudência, amplamente estudado, dispensamo-nos de acrescida argumentação, começando por repristinar, pela sua acuidade ao caso em apreço, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 16.09.2010, no processo nº 96/08.7 BBJA-A.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre., que ademais sufragamos in totum.

Ali pode-se ler:
“(…)

2.1. - Em sede de teoria do tipo penal, refere-se a propósito da formação de classes ou formas de tipos, as figuras dogmáticas dos crimes fundamentais e crimes modificados (qualificados ou privilegiados), que integram grupos [[1] introdução nossa da nota de pé de página: Como refere o Prof. F. Dias, «No sentido de corresponder pelo melhor às exigências do princípio da legalidade, nomeadamente de descrever de uma forma o mais precisa e estrita possível de comportamentos típicos e as formas de lesão ou colocação em perigo dos bens jurídicos, o legislador faz uso de técnicas que resultam na criação de grupos de tipos de crime …” – Cfr Direito penal. Parte Geral. Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora 2007 p. 313] constituídos por disposições penais que têm por objecto a protecção de um bem jurídico determinado. a) Nas palavras de F. Dias [[2] introdução nossa da nota de pé de página: Idem], «Os crimes fundamentais contêm o tipo objectivo de ilícito na sua forma mais simples, constituem, por assim dizer, o mínimo denominador comum da forma delitiva, conformam o tipo–base cujos elementos vão pressupostos nos tipos qualificados e privilegiados. Frequentemente, na verdade, o legislador, partindo do crime fundamental, acrescenta-lhe elementos, respeitantes à ilicitude ou/e à culpa, que agravam (crimes qualificados) ou atenuam (crimes privilegiados) a pena prevista no crime fundamental.».

Parece ser este pelo menos o núcleo comum ou indiscutível das noções [[3] introdução nossa da nota de pé de página: Para outros desenvolvimentos sobre esta matéria, podem ver-se entre os autores alemães, Roxin (Derecho Penal. parte General. Tomo I (trad da 2ª ed. alemã), Civitas, Madrid-2003 p. 338 (nº 131) e Jakobs (Derecho Penal. Parte General, 2ªed. corrigida, Marcial Pons, Madrid-1997, p. 216 (nº 96)] de crime fundamental e crime modificado que se ajusta ao nosso direito penal positivo. Os tipos qualificados e privilegiados resultam de circunstâncias respeitantes ao tipo de ilícito ou tipo de culpa, que alteram para mais ou para menos a moldura penal prevista para o crime fundamental.
(…)
Uma análise mais pormenorizada das formas que a criação de tipos modificados assume no nosso C. Penal, por um lado, e do modo de expressão ou revelação da natureza dos crimes (pública, semi-pública ou particular em sentido estrito), por outro, permite confirmar a conclusão de que da diversidade de técnica legislativa seguida em casos como o art. 204º e no art. 155º não podem tirar-se ilações sobre a natureza pública ou particular do crime. [sublinhado nosso]

2.2. - Na verdade, no que respeita à formação de tipos agravados ou privilegiados são utilizadas técnicas legislativas distintas no Código Penal sem que essa diversidade corresponda a realidades dogmaticamente distintas.

Desde logo, o legislador penal prevê as circunstâncias modificativas no mesmo artigo em que acolhe o tipo base, como sucede, v.g., com os referidos artigos 205º, 219º ou 221º.

Noutros casos cria um artigo próprio no C. Penal, adoptando, no entanto, soluções com algumas diferenças entre si, quer quanto à sua designação (conforme a epígrafe), quer quanto à unidade ou pluralidade de crimes fundamentais a que se reporta, quer ainda quanto ao modo como procede à modificação da moldura legal, pois na maioria das vezes cria nova moldura penal e noutras limita-se a estabelecer a agravação proporcional dos respectivos limites (1/3, 1/2, etc).

A modalidade mais linear é aquela em que o tipo agravado ou atenuado dá origem a um artigo próprio do C. Penal cuja epígrafe é composta pela designação do crime fundamental aditada (no que aos crimes qualificados respeita) das expressões, qualificado (v.g. arts 132º e 204º ou 145º), agravado (v.g. 141º) ou grave (v.g.144º). Já quanto aos crimes privilegiados se verifica uniformidade terminológica pois, salvo erro ou omissão, o C. Penal apenas adita à designação do crime fundamental a expressão privilegiado (v.g. art.133º e 146º).

Noutros casos, o legislador penal limita-se a epigrafar o artigo com as expressões, agravação ou agravação pelo resultado, normalmente quando o artigo se refere a mais que um crime da mesma secção, quer respeite a diferentes crimes fundamentais quer a formas modificadas de um mesmo tipo-base – cfr. arts 177º, 184º, 229-A, 343º ou 361º (para além do art. 155º do C. Penal […]) e 147º ou 285º. Quanto aos crimes privilegiados o legislador usa por vezes a expressão atenuação especial, como sucede no art. 364º.

Ainda nos casos em que cria um artigo próprio para acolher o crime qualificado, por vezes a epígrafe é constituída pela designação do tipo base (ou parte dela) e por um qualificativo que indica tratar-se de um tipo agravado. É o que sucede com o crime de poluição com perigo comum (art. 280º) ou o crime de participação em motim armado (art. 303º).

Em todas estas situações, como referido, estamos perante crimes modificados (qualificados ou privilegiados) uma vez que os respectivos tipos penais foram formados a partir do acrescento ao tipo fundamental de circunstâncias relativas ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa que modificam, agravando ou atenuando, a moldura penal do tipo-base.

2.3. - No que respeita ao modo como no C. Penal se atribui aos crimes natureza pública, semi-pública ou particular em sentido estrito e às conclusões a retirar daí para a questão de interpretação que nos ocupa, importa considerar com alguma autonomia dois aspectos desta matéria.

a) Em primeiro lugar importa lembrar que, como é por demais sabido, no que concerne à promoção do processo penal prevalece entre nós o princípio da oficialidade, de acordo com o qual o MP, enquanto titular da acção penal, pode e deve dar início ao procedimento criminal sempre que tenha notícia de uma infracção de natureza criminal, independentemente da vontade de qualquer outro sujeito ou entidade.

Não é assim, porém, relativamente a todos os crimes, sendo crescente o número de casos em que o poder/dever de o MP iniciar ou prosseguir com o processo criminal depende de queixa (crimes semi-públicos) ou de acusação particular (crimes particulares) de alguma das pessoas a quem a lei penal atribui o respectivo direito.

b) Por outro lado, sendo regra a promoção oficiosa (cfr art. 48º do CPP), quando se trate de crime público o artigo da lei substantiva que tenha por objecto a formação de um tipo penal [[5] introdução nossa da nota de pé de página: Como refere Wessels, “ Quase todas as disposições da Parte especial do C. Penal têm como objecto a formação de tipos penais …”. cfr arts 250º nº6, 161º nº3 e 206º, do C. Penal - cfr Derecho Penal, Parte General.Ediciones Depalma, Buenos Aires-1980, p. 32. Entre nós, serão normas desprovidas dessa característica as que se limitem a definir a natureza pública ou privada do crime como é, precisamente o caso dos artigos 177º ou 188º, ou outras que apenas regulem aspectos determinados da punibilidade ou da medida da punição, sem integrar o tipo - base ou agravado – cfr arts 250º nº6, 161º nº3 e 206º, do C. Penal.] nada dispõe e só nos casos em que a legitimidade do MP depende de queixa ou acusação particular a lei penal substantiva estabelece expressamente tal exigência.

A parte geral do C. Penal não estabelece regras sobre a fixação legislativa da natureza dos crimes, mas resulta da análise da parte especial que o carácter semi-público ou particular da infracção pode ser expresso num dos números do artigo que tipifica o crime ou em artigo que, autonomamente, estabelece o regime aplicável a diversos crimes de uma mesma secção, coexistindo ou não, neste último caso, com norma relativa à agravação de mais que um tipo fundamental – v.g. arts 178º (crimes sexuais), 188º (honra) e 207ª (acusação particulares - crimes contra a propriedade). Em todo o caso, não resulta minimamente do C. Penal que os artigos com a epígrafe “Agravação” sempre devam coexistir com preceito específico que defina a natureza dos crimes abrangidos, não podendo dizer-se que quando não exista artigo específico a natureza do crime é determinada pelos correspondentes tipos-base. [sublinhado nosso]

Nos casos em que o C. Penal acolhe grupos de crimes constituídos pelo crime base ou fundamental e por formas derivadas - privilegiadas ou agravadas - desse mesmo crime em que não existe artigo específico a regular o procedimento criminal, são duas as soluções seguidas pelo legislador penal:

- O mesmo artigo tipifica o crime base e as suas formas agravadas ou privilegiadas e a exigência de procedimento criminal respeita apenas aos números e/ou alíneas anteriores do mesmo artigo (v.g. arts. 205º- abuso de confiança, 219º- burla relativa a seguros - ou 226º - usura -, do C. Penal);

- O tipo fundamental e as formas derivadas dão origem a diferentes artigos da parte especial e vale para cada um deles a regra não escrita aludida, segundo a qual se o artigo respectivo nada disser sobre a natureza do crime o mesmo tem natureza pública, tendo o crime natureza semi-pública ou particular se o artigo correspondente expressar a exigência de procedimento criminal ou de acusação particular, respectivamente.

É assim, paradigmaticamente, o que sucede com o tipo fundamental de furto que é um crime semi-público (203º) e o tipo qualificado previsto no art. 204º, que tem natureza pública, mas também na relação entre aquele tipo fundamental e o crime particular previsto no art. 207º, aplicável ainda ao crime de abuso de confiança, cujo tipo fundamental tem igualmente natureza semi-pública (cfr art. 205º n1 C. Penal).

Em qualquer dos casos, tem natureza pública o tipo de crime (fundamental ou derivado) previsto em artigo do C. Penal que não contenha norma sobre o procedimento criminal, nem se encontre abrangido por norma remissiva ou por artigo que estabeleça o regime aplicável a diversos crimes. [sublinhado nosso]

No que respeita às hipóteses em que o C. Penal prevê norma específica sobre a natureza de um conjunto maior ou menor de crimes previstos na mesma secção (v.g. arts 178º e 188º, do C. Penal) a caracterização dogmática dos tipos agravados relacionados com eles (arts 177º e 184º) não se altera, apesar de a natureza pública ou particular dos crimes fundamentais e dos crimes modificados abrangidos ter que resultar da interpretação dos termos do artigo que regula a natureza dos crimes e das suas relações, quer com os tipos-base, quer com os tipos modificados.

Também nestas hipóteses o legislador não prevê um modelo único. No art. 178º a natureza pública ou semi-pública de cada um dos crimes é expressa sem referência ao artigo que prevê os tipos agravados (177º) - o que bem se compreende dados os diferentes regimes ali previstos - mas no art. 188º a solução é tecnicamente diferente. Pretendendo tratar unitariamente os casos abrangidos pela agravação do art. 184º, o legislador refere-se-lhe expressamente como artigo autónomo ao reger sobre a natureza semi-pública ou particular dos crimes por ele abrangidos.

Na verdade, se dúvidas restassem sobre a caracterização dogmática dos tipos abrangidos por artigos da parte especial como os art.s 184º, 177º … ou 155º, cuja epígrafe comum é “Agravação”, como tipos agravados, no mesmo plano dos tipos como os previstos no art. 204º, 132º ou 218º, entre outros, em que todas as agravações respeitam ao mesmo tipo base, o art. 188º afastá-las-ia.

Este preceito claramente toma como tipos distintos entre si os tipos – base acolhidos nos arts 180º, 181º e 183º, por um lado, e os respectivos crimes agravados contidos no art. 184º, pois o art, 188º refere-se unitariamente a este mesmo preceito para atribuir natureza semi-pública aos respectivos crimes qualificados, enquanto os tipos-base têm natureza particular em sentido estrito, por mera exclusão de partes.
(…).”.

Como também se afirma, e igualmente se sufraga, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15.05.2012, proferido no processo nº 16/11.1 GAMAC.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre “(…) De forma muito simples, pode dizer-se que há crimes cuja perseguição está dependente de queixa, outros de queixa e de acusação particular e outros em que a lei nada exige.

Os primeiros são os denominados crimes semipúblicos, os segundos crimes particulares e os últimos crimes públicos.

Relativamente aos primeiros, para que o Ministério Público, titular da ação penal, tenha legitimidade para iniciar a investigação criminal, é necessário que o ofendido ou pessoa(s) a quem e lei confira legitimidade para tal, apresente queixa – artigo 49.º do Código de Processo Penal.

Quanto aos crimes particulares, a legitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal também está dependente de queixa do ofendido ou de quem para tal tenha legitimidade mas, para além disso, aquele tem que constituir-se assistente e deduzir acusação particular – artigo 50.º do Código de Processo Penal.

Por fim e relativamente aos crimes públicos, o Ministério Público, por sua iniciativa, tem legitimidade para promover a ação penal.

No artigo 116.º do Código Penal, que se reporta, também, à desistência da queixa diz-se, no n.º 2, que «O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.»

De onde decorre que a desistência de queixa, sem oposição do arguido, só tem por efeito extinguir o procedimento criminal nos casos em que lei condicione a promoção deste à apresentação daquela.

Relativamente aos crimes de natureza procedimental pública, a desistência de queixa não produz o efeito de extinguir o procedimento criminal.
(…)
Temos como certa a opção por técnica legislativa que consiste em colocar a menção de que “o procedimento criminal depende de queixa” após a definição do tipo base e antes do qualificado, ou então em artigo autónomo quando pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie. E não vislumbramos razão para suspeitar ou concluir que tal procedimento foi alterado na situação que nos ocupa [sublinhado nosso] (…).”.

Porque assim, mau grado os argumentos que constam do despacho recorrido poderem ser tentadores, no sentido de a eles se aderir face à multiplicidade de tipos modificados – qualificados ou privilegiados – que os crimes contra a integridade física conhecem na nossa lei penal – v. g. “Capítulo III” do Código Penal –, somos do entendimento, na senda do que supra se deixou explanado que não pode ser, nem será, como afirmado na decisão recorrida, ser a circunstância qualificadora ou privilegiadora do tipo-base, quando (e apenas) ligada ao tipo de culpa, que definirá e decidirá da natureza pública, semi-pública ou particular do tipo modificado, qualificado ou privilegiado, sendo certo que o entendimento pressuposto na decisão recorrida de que as circunstâncias prevenidas no artigo 132º, nº 2, do Código Penal são todas elas referentes ao tipo de culpa está longe de ser consensual na doutrina e até na jurisprudência.

E também não colhe o argumento, em jeito de desabafo de desconforto, expendido na decisão recorrida, para o facto de o crime de ofensa à integridade física privilegiada, p. e p. no artigo 146º, não admitir desistência de queixa e revestir natureza pública. Mutatis mutandis, há aqui uma escolha legislativa que não competirá ao intérprete e/ou ao aplicador da lei alterar por com ela não concordar - v.g. artigo 9º, do Código Civil.

Em consequência de tudo o que se deixa expendido, deve pois o despacho/decisão recorrido ser revogado e substituído por outro que, desatendendo a desistência de queixa apresentada pela ofendida, receba a acusação pública deduzida e designe data para realização da audiência de julgamento, prosseguindo os demais termos do processo.

IV
Não há lugar a tributação – cfr. artigos 513º, nº 1 e 522º, do Código de Processo Penal.
V
Decisão
Nestes termos, acordam em:

A)– Conceder provimento ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho/decisão recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe data para realização da audiência de julgamento, prosseguindo os demais termos do processo;

B) – Não serem devidas custas.
[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora, 11 de Novembro de 2014

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

Fernando Paiva Gomes Monteiro Pina