Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
| Processo: |
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| Relator: | MARTINHO CARDOSO | ||
| Descritores: | HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA NEGLIGÊNCIA MÉDICA | ||
| Data do Acordão: | 11/06/2018 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | I - O tipo legal descrito no art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal (homicídio por negligência), tanto pode ser preenchido por acção como por omissão, desde que, neste último caso, se possa afirmar em relação ao agente a existência de um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado. II - O eixo estruturante dos delitos omissivos é a ideia fundamental de que a protecção do bem jurídico em perigo depende de uma prestação positiva de determinada pessoa e que a sociedade confia nessa intervenção activa. III - Para que se possa responsabilizar um médico por homicídio (ou por ofensa à integridade física) por negligência, é necessário que ele tenha violado o dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia, criando, deste modo, um perigo não permitido que se concretizou no resultado. Mas para que o agente seja punível por negligência não é suficiente que viole o cuidado objectivamente imposto – é necessário ainda que não afaste o perigo ou evite o resultado desde que aquele se apresente como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável. IV - O tipo de culpa negligente reside na atitude descuidada ou leviana revelada pelo agente e que fundamenta o seu facto e, aí, nas qualidades desvaliosas da pessoa que no facto se exprimem. V - A obrigação do médico é uma “obrigação de meios” e não de “resultado”, exigindo-se-lhe, de um lado, todo o esforço possível adequado a obter tais resultados, se a própria cura ou melhoria forem clinicamente possíveis e, de outro lado, todo o cuidado necessário a evitar a produção da lesão à saúde ou à vida do paciente, lesão que se pode traduzir num agravamento da já existente. | ||
| Decisão Texto Integral: | I Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: Nos presentes autos, acima identificados, do Juízo de Instrução Criminal de Portimão, da Comarca de Faro, as arguidas MM e EE foram acusadas da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos art.º 15.º al.ª a) e 137.º, n.º 1, do Código Penal. Porém, as arguidas requereram abertura de instrução, finda a qual foi proferido despacho de não pronúncia em relação a ambas. # Inconformados com o assim decidido, os assistentes FF e PP interpuseram o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões: A) A fls. 2 da Decisão Recorrida, o Senhor Juiz "a quo" escreveu: «a noção operatória indiciação suficiente exige, no nosso modo de ver, como seu pressuposto de afirmação positiva, um lastro operatório apto para renovação em audiência de julgamento e apto para, como sua consequência, se considerar muito elevada a probabilidade condenação das Arguidas por factos que constituem um crime, Cf. artigos 32° n.°s 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e artigo 283°, n.° 2 do Código Processo Penal.» B) O que o referido preceito do C. P. Penal refere é que se consideram "suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança". A lei não sustenta que seja necessário, para que tais indícios sejam suficientes que deles resulte a probabilidade muito elevada de condenação. C) Ao professar tal entendimento quanto à consistência e verosimilhança dos indícios, para aferir da possibilidade de dedução de Acusação ou de Pronúncia, o Senhor Juiz "a quo" interpretou e aplicou erradamente ao caso em apreço, o disposto no n.° 2 do artigo 283° do C. P. Penal, D) O Senhor Juiz Recorrido, a págs. 23 e 25 da Decisão Instrutória, considerou e bem, estarem indiciados com suficiência os 23 factos que referiu, os quais, em seu entender, porém, «não são bastantes para preencherem o tipo de ilícito objectivo, o tipo de ilícito subjectivo e a imputação objectiva do resultado morte e, desse modo, poderem sustentar a assacada autoria de um crime de homicídio por negligência». E) Ao contrário, não considerou suficientemente indiciados os factos constantes dos n.°s 20 a 25 da Acusação, F) E, relativamente ao facto vertido no n.° 19 do libelo acusatório, só em parte o considerou indiciado. G) Excluído o facto referido no n.º 23 da Acusação, que os ora Recorrentes concordam que não se deve considerar indiciado, H) Já relativamente aos demais, vertidos nos art.°s 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26 e 27 do libelo acusatório, os ora Recorrentes consideram que, ao não terem sido considerados como suficientemente indiciados pelo Senhor Juiz recorrido, este errou, de facto, na apreciação da prova recolhida no inquérito. 1) Ao julgar pela forma descrita, estão os ora Recorrentes convictos que o Senhor Juiz errou no julgamento de facto e que tal erro, não obstante ter dado e bem, como suficientemente indiciados os factos que descreveu as fls. 23 e 25 da sua Decisão Instrutória, J) Se radicou na circunstância de, em primeiro lugar, não ter valorado devidamente o facto de AA ter tido alta pelas 17h16 do dia 24 de Fevereiro de 2013 e ter falecido pelas 6h31 do dia seguinte, 25 de Fevereiro de 2013. K) Na verdade, o referido AA foi encontrado sem vida no interior da sua habitação pelas 06h31 do dia 25 de Fevereiro de 2013, ou seja, decorridas mais de 13 horas sobre aquela em que lhe foi concedida alta médica. L) Esse período de 13 horas, subsequente à alta que, indevida e precocemente, lhe foi concedida pela Arguida MM, conforme o próprio Senhor Juiz Recorrido reconhece, M) Teria sido mais do que suficiente para o evacuar para o Hospital Distrital de Faro, que dista cerca de 70 Km do CHBA - Unidade Hospitalar de Portimão, a fim de realizar exames complementares de diagnosticado, visando esclarecer as razões da dor que se mantinha, N) O que resulta do processo clínico do mesmo, em que a referida arguida consignou, pelas 17h15 do dia 24 de Fevereiro de 2013, «que o estado do paciente se mantinha inalterado» O) E para ser transferido para a unidade de referência hospitalar em Lisboa na área da cirurgia cardio-toráxica e cardio-vascular a fim de ser intervencionado à aorta justa cardíaca. P) Isto é, mesmo desconsiderando que o referido AA permaneceu mais de 26 horas internado no CHBA, haja sido evacuado para o Hospital Distrital de Faro, Q) O que se impunha perante a incapacidade das Arguidas diagnosticarem a causa da dor que apresentava, não obstante a subida progressiva da troponina e da PCR e o resultado das Radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de se tratar de uma cólica renal, R) Será curial concluir que, em vez de ter sido dado alta a AA, o mesmo, embora tardiamente, deveria ter sido evacuado para este hospital, sendo previsível que durante essas 13 horas teria havido tempo para o transferir para o hospital de Faro, (não demorando mais do que uma hora tal viagem), para neste hospital realizar exames complementares de diagnóstico, para o que não seriam necessárias mais do que 2 horas e para, na sequência desses exames, ser transferido de ambulância para Lisboa, no que se despenderia cerca de 3 horas. S) Ou seja, AA poderia ter dado entrada no Hospital de Santa Maria ou de Santa Marta, em Lisboa, por exemplo, a fim de ser intervencionado à aorta por volta das 24 h do dia 24 de Fevereiro de 2013, isto é, cerca de 6 horas antes daquela em que se verificou o seu decesso. T) Esta possibilidade não foi sequer considerada pelo Senhor Juiz Recorrido, o que constitui uma omissão grave do seu processo intelectual na avaliação das circunstâncias de tempo, modo e lugar que rodearam a morte de AA, U) À qual, o mesmo estaria condenado, no entendimento do Senhor Juiz "a quo", porque já contava com 78 anos de idade, porque residia no Algarve, encontrando-se a unidade de referência hospitalar em Lisboa... V) O Senhor Juiz "a quo" errou ainda no seu julgamento de facto, ao não ter considerado expressamente indiciado o facto de AA ainda sofrer da dor que o levou a pedir e a procurar assistência médica no CHBA, no momento em que lhe foi dada alta. W) O facto de AA estar calmo, consciente e orientado, conforme consta dos vários registos dos Enfermeiros, não significa que não se mantivesse com a dor precordial com irradiação dorsal. X) O Senhor Juiz errou, obviamente, ao ter concluído que AA já não tinha a dor precordial que o levou ao hospital, só por estar calmo, consciente e orientado. Y) Mas também errou e de forma clamorosa, ao referir que não há mais referência a tal dor no processo clínico de AA a não ser aquela que foi efectuada no momento da triagem pela senhora Enfermeira e, quando muito, pela Arguida MM também nesse primeiro momento. Z) Na verdade, é esta médica que, ao dar alta a AA, pelas 17h15 do dia 24 de Fevereiro de 2013, consignou no processo clínico deste que «o estado do paciente se mantinha inalterado», sendo de concluir, por isso, que o mesmo se mantinha com dor precordial com irradiação lombar. AA) Atento o atrás exposto, o Senhor Juiz "a quo" deveria ter dado expressamente como indiciado o seguinte facto: "no momento em que foi dada alta a AA, pela Arguida MM, este continuava a sofrer de dor precordial com irradiação à região dorsal". BB) Trata-se de uma omissão grave e que condicionou, de facto, o julgamento quanto à matéria de facto feito pelo Senhor Juiz Recorrido, erro esse que teve influência determinante na sua decisão de não pronúncia. CC) O Senhor Juiz comentando os factos narrados no artigo 16 do libelo acusatório, que até acabou por considerar suficientemente indiciado com algumas reticências, referiu: «não se narra neste facto, ou em qualquer outro, quais eram os valores de referência para a Troponina TH-S, nem tanto se consegue inferir das análises juntas aos autos que, a este propósito se quedam pela utilização de um asterisco que remete para a seguinte asserção "resultado fora do intervalo de referência". Mas fora quanto? Qual é o intervalo de referência utilizado no laboratório?». DD) Estas dúvidas do Senhor Juiz "a quo" revelam um espírito cartesiano verdadeiramente excessivo, até porque despreza os conhecimentos profissionais das Arguidas, as quais, sendo no seu próprio entendimento, médicas muito experientes e capazes, não podem desconhecer que os níveis normais de Troponina 1 cardíaca estão abaixo de 0,04 ng/l, o que é facto público e notório, porque publicado, designadamente na wikipédia - vd. Doc. 1 que se anexa. EE) As Senhoras médicas, Arguidas nos autos em referência, ao terem verificado, (se é que o fizeram), os níveis de Troponina TH-S que AA apresentava pelas 15h57 do dia 23 de Fevereiro de 2013, quando deu entrada no serviço de urgência do CHBA, só poderiam ter concluído que tais níveis indicavam dano cardíaco considerável, FF) Impondo-se accionar a via verde coronária que lhe foi atribuída aquando da sua admissão, ainda por cima, ao constatarem pelas 06h14 do dia 24 de Fevereiro que tais valores haviam subido para 35,1 ng/l e que pelas 15h42 do dia 24 de Fevereiro já atingiam o valor de 37,2 ng/l. GG) Esta subida brutal dos valores da Proteína C Reativa em pouco mais de 14 horas e que foram referenciados como resultados fora do intervalo de referência, indiciavam, sem qualquer margem para dúvida, um quadro inflamatório que podia sugerir que era resultante de aterosclerose ou de isquemia não sendo de desconsiderar a hipótese que poderia pronunciar risco de infarto do miocárdio, conforme resulta documentado no Doc. 2 que se anexa, publicado no wikipédia, o que torna tal facto público e notório. HH) Que o Senhor Juiz " a quo", que não é médico, manifeste tais dúvidas, percebe-se, mas o mesmo já não se aceita, relativamente às Arguidas, que são médicas experientes e que não podiam desconhecer que: a) queixando-se AA de uma dor precordial com irradiação dorsal, que se manteve até lhe ser dada alta; b) que os valores da Troponina em menos de 24 horas subiram de 26,0 ng/l para 37,2 ng/l c) e que os valores da PCR subiram, em cerca de 14 horas, de 1.3mg/l para 14.0mg/l, quando o valor de referência se situa entre os 0-5, só podiam concluir que algo de grave se estava a passar no sistema cardiovascular e circulatório de AA, d) até porque as ecografias abdominal, renal e vesical não confirmaram o diagnóstico inicial de cólica renal. e) Para além disso o electrocardiograma que foi feito a AA, pelas 15h25m, do dia 23 de Fevereiro de 2013, evidenciava visíveis alterações. II) Tendo o Senhor Juiz Recorrido considerado suficientemente indiciados os factos que se deixaram referenciados nas al.s a) a e) do n.° 48 das presentes alegações, excepção feita à parte final do referido na al. a), que, conforme já se deixou sustentado, também deveria ter sido considerado indiciado pelo Senhor Juiz "a quo", JJ) O mesmo, tendo em conta também o que considerou suficientemente indiciado, ou seja, que: «a) As arguidas não determinaram a transferência de AA para o Hospital de Faro e que b) As arguidas sabiam que o Hospital de Portimão não dispunha, ao fim de semana, de médico cardiologista», KK) Ao invés de se ter limitado a concluir como o fez, a fls. 19 que, «descartada a hipótese inicial (cólica renal) e mantendo-se a Troponina TH-S a subir (37,2ng/l) no dia 24/02, bem como, no mesmo dia a PCR também elevada, estamos em crer que se devia ter reavaliado a situação, voltado atrás, ao invés de ter sido concedida a alta pela Arguida MM» e que «a concessão da alta, no quadro fáctico referido, por parte da arguida MM foi precoce, isto é, foi concedida ainda antes da situação do Senhor AA ter sido devidamente esclarecida», LL) Deveria ter ido mais longe, a partir da constatação que também fez a fls. 19, de que, «afastada a possibilidade de cólica renal certo é que, no dia 24/02/2013, persistiam aqueles valores analíticos (troponina TH-S) a atingir o valor mais elevado dos até então registados e a PCR com o valor de 14.0 g/l que é superior ao valor de referência (0.0-5.0) que tinham aptidão para gerar a suspeita de qualquer coisa poder estar não bem no plano cardíaco». MM) Como se vê, é o próprio Senhor Juiz Recorrido que, face a tais circunstâncias até admite que qualquer coisa pudesse não estar bem no plano cardíaco e que, por isso, não se deveria ter dado alta a AA sem que a sua situação clínica tivesse sido devidamente esclarecida. NN) Paradoxalmente e contraditoriamente com tal conclusão, o Senhor Juiz "a quo", mais à frente e não obstante reconhecer como suficientemente indiciado que o Hospital de Portimão não dispunha, nesse fim de semana de 23 e 24 de Fevereiro de 2013, de médico cardiologista e que, não obstante isso, as Arguidas, conhecedoras de tais valores analíticos, de que o eletrocardiograma feito em 24 de Fevereiro apresentava visíveis alterações, do resultado da ecografia abdominal que não comprovava a possibilidade de cólica renal, OO) Concluiu que «não foi por ter sido indevidamente concedida a alta a AA pela arguida MM que a morte lhe sobreveio, PP) Razão, pela qual, não considerou suficientemente indiciados os factos vertidos nos n°s 22 e seguintes da Acusação Pública. QQ) Ao assim ter decidido, o Senhor Juiz "a quo" errou no julgamento de facto, o que, concomitantemente, o levou a cometer o erro de não pronunciar as Arguidas pelo crime de que as mesmas vinham acusadas. RR) Foi uma Senhora enfermeira que, a olho nu e com um senso clínico que se mostrou mais apurado que o das Senhoras médicas Arguidas, logo vislumbrou a hipótese séria de AA sofrer de uma patologia cardíaca grave que a levou a atribuir-lhe a prioridade laranja-muito urgente e a accionar a via verde coronária, SS) Que as referidas Arguidas nunca accionaram, tendo, a Arguida MM, ao ter dado alta a AA, emitido parecer médico favorável no sentido de ele ser encaminhado para Centro de Saúde não especificado!... TT) Nesta conformidade e tendo em conta a prova documental pericial e testemunhal recolhida no inquérito, entendem os ora Recorrentes que se devem considerar como suficientemente indiciados os seguintes factos: a) «No dia 23 de Fevereiro de 2013, pelas 15h09m, AA, com 78 anos de idade, deu entrada no Serviço de Urgência do CHBA - Unidade Hospitalar de Portimão (actualmente designado CHAlgarve de Portimão), por dor precordial com irradiação à região dorsal. b) Submetido à triagem de "Manchester", foi atribuída a AA a prioridade laranja - Muito urgente e accionada a via verde coronária. c) Aí foi assistido pela médica de Clínica Geral, a arguida MM, que deu conta que se tratava de "doente de 78 anos, sem antecedentes cardíacos, que iniciou dor torácica intensa, com irradiação para o dorso, que não agrava à pressão manual e nega sudorese", referindo ainda que AA se encontrava muito queixoso, principalmente na região lombal bilateral, irrequieto" e diagnosticado uma possível cólica renal. d) Na sequência desse diagnóstico inicial, a arguida MM pediu exames complementares de diagnóstico com carácter urgente, designadamente ecografias abdominal, renal e vesical, relatando, a propósito de informação clínica, o seguinte: "o doente refere desde ontem dor nos quadrantes abdominais superiores e lombal bilateral muito intensa, que não cedeu a Tramadol... Urina II com Proteínas 500 e hematuria lig." e) Ainda no dia 23 de Fevereiro de 2013, foi realizado o estudo ecográfico pelo Médico Radiologista, Dr. JB, resultando o seguinte relatório: "(...) mostrou fígado com dimensões normais, contornos regulares e textura homogénea. O parênquima é levemente mais reflectivo que o habitual, sugerindo infiltração esteatósica difusa. Não há dilatação das vias biliares intra ou extra-hepáticas. A vesícula biliar é alitiásica, sem sinais de colecistite aguda. Baço e pâncreas com normal morfologia, textura e dimensões. Os rins têm dimensões normais, contornos regulares e adequada diferenciação parenquimossinusal e espessura do parênquima. Não há sinais de litíase, nem uropatia obstrutiva. No rim direito identifica-se um quisto com 3,4cm, com um fino septo. A bexiga tem normal morfologia, apresentando-se em semirrepleção, sem aparentes anomalias parietais ou endoluminais. Ausência de derrame peritoneal. Não parece existir aumento de calibre da aorta abdominal, embora a sua visualização seja muito limitada pela interposição de gasosa digestiva"». f) Concomitantemente, na sequência de ter sido accionada a via verde coronária, foi efectuado, pelas 15h25m desse dia, electrocardiograma a AA, no qual são visíveis alterações. g) Acresce que, pelas 15h57, AA apresentava um índice de leucócitos de 12,1, tinha neutrofilía, o índice de troponina T-HS era de 26,0ng/L e, pelas 15:47 o registo da pressão arterial era de 125/74mmHg. h) Nessa ocasião, a arguida MM determinou que lhe fosse ministrado ácido acetilsalicílico 300 mg cápsulas LM, tramado/ 500 mg/1ml sol inj Fr 1 ml IM IV SC e metoclopramida 10 mg/2m1 Sol inj Fr IM IV. i) Pelas 19h43m, AA apresentava uma pressão arterial de 124/48mmHG e efectuadas novas análises ao sangue pelas 20h25 do dia 23 de Fevereiro de 2013, constatou-se que a troponina T-HS apresentava um índice de 24,8 ng/L. j) Cerca das 22h56m do sobredito dia, a arguida EE assumiu o doente e prescreveu-lhe Bromazepam e Ranitidina 50mg/2m1 Sol lnj Fr 2 ml Im IV, que foram administrados ao referido doente pelas 00h51m do dia 24 de Fevereiro de 2013. k) Assim, no dia 24 de Fevereiro de 2013, às 00h52m, 03h32m, 07,37m, 07,38m, AA possuía uma pressão arterial de 124/50mmHG, 125/75mmHG, 116/46mmHg e 132/62mmHG, respectivamente. 1) Entretanto, o Médico de Clínica Geral, Dr. MR prescreveu Butilescopolamina 20 mg/1m1 Sol inj Fr 1 ml IM IV SC (última toma pelas 5h33m do dia 24.02.2013). m) Pelas 6h14m do dia 24 de Fevereiro de 2013, foram colhidas novas amostras de sangue para análise, que demonstram que o paciente tinha uma Troponina T-HS de 35,1 ng/L e uma PCR de 14.0 ng/L quando é certo que o valor de referência é (0-5). n) Cerca das 8h 19m, do sobredito dia, a arguida MM assumiu o doente e prescreveu a toma, pelas 9h24m, de Polielectrol Sol lnj Fr 500 ml IV (última toma às 9h35m). o) Todavia, às 15h42m do dia 24 de Fevereiro de 2013, AA tinha uma Troponina T-HS de 37.2 ng/L e, pelas 16h30m, a pressão arterial ascendia a 153/65 mmHg, pese embora se apresentasse calmo, consciente e aparentemente orientado, eupneico e sem necessidade de O2 suplementar. p) Apesar do mencionado electrocardiograma apresentar alterações e o índice troponina de alta sensibilidade ter subido de 26 ng/L para 37,2 ng/L em cerca de 24 horas de internamento, a 24 de Fevereiro de 2013, pelas 17h15m e a PCR estar elevada, a arguida MM consignou no processo clínico de AA, como diagnóstico primário "dor abdominal generalizada (789.07) em investigação e que o estado do paciente se mantinha inalterado, q) Ou seja, que se mantinha com dor precordial com irradiação à região dorsal. r) No entanto, face a estes dados e não se confirmando o diagnóstico inicial de cólica renal, a arguida MM concedeu, pelas 17h 16m, alta clínica a AA, emitindo o parecer médico favorável no sentido de ser encaminhado para o Centro de Saúde não especificado. s) No dia 25 de Fevereiro de 2013, pelas 6h31m, AA foi encontrado sem vida, no interior da habitação sita na Quinta …, Alcantarilha, t) Sobrevindo a morte de AA, que foi devida a rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e arteriosclerose generalizada de que sofria. u) A leitura das radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de se tratar de uma cólica renal e da visualização do calibre da aorta abdominal ser muito limitada pela interposição de gasosa digestiva. v) As arguidas não determinaram a transferência de AA para o Hospital de Faro. w) As arguidas sabiam que o Hospital de Portimão não dispunha, ao fim de semana, de Médico Cardiologista. x) Ora, não obstante a dor precordial com irradiação dorsal sentida pelo AA, os resultados das referidas análises clínicas, a circunstância do primeiro electrocardiograma, efectuado, aquando da triagem do doente, apresentar alterações e lhe ter sido atribuída a via verde coronária, bem como o facto da leitura das radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de ser tratar de uma cólica renal e da visualização do calibre da aorta abdominal ser muito limitada pela interposição de gasosa digestiva, as arguidas MM e EE não efetuaram uma monitorização electrocardiográfica contínua do doente e não determinaram a realização de electrocardiogramas simples de 12 derivações, sempre que se registassem alterações, que sabiam e podiam ter efectuado a qualquer hora, nem determinaram a transferência de AA para o Hospital de Faro, a fim de ser submetido a exames complementares de diagnóstico, designadamente a uma radiografia do tórax, a um ecocardiograma ou a uma tomografia computadorizada do tórax, com o fito de esclarecer o diagnóstico, conduta a que estavam obrigadas e de que eram capazes. y) De facto, as arguidas sabiam que o Hospital de Portimão não dispunha, ao fim de semana, de técnico de cardiopneumologia ou de Médico Cardiologista que pudesse manusear os aparelhos de ultrassonografia e, desse modo, efectuar o exame imagiológico em ordem ao despiste de eventual situação de rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e aterosclerose generalizada grave de que sofria, designadamente um ecocardiograma ou então realizar uma tomografia computorizada do tórax. z) Mais sabiam as arguidas que podiam e deviam transferir o doente, ao qual tinha sido atribuído a via coronária verde, para o Hospital de Faro, a fim de realizar os competentes exames complementares de diagnóstico, bem como ser observado por Médico Cardiologista. aa) Desse modo, as arguidas não levaram a cabo os procedimentos técnicos adequados que as circunstâncias concretas impunham para se inteirarem das causas da dor precordial com irradiação para a zona dorsal, intensa e repentina, sentida por AA e, assim, ser este encaminhado para um Hospital Central para a realização de uma cirurgia cardio-toráxica. bb) Actuaram, portanto, com total falta de prudência e de cuidado, já que, ao invés de determinarem a transferência do doente para o Hospital de Faro, a fim de ser submetido a exames complementares de diagnóstico necessários, conduta que podiam e deviam ter adoptado, optaram por lhe ministrar analgésicos sem que tivessem diagnosticado cada um dos sobreditos sintomas. cc) Todavia, apesar de ser suposto terem previsto como possível a ocorrência de uma dissecção aórtica, agiram sem aceitar o resultado verificado. dd) As arguidas estavam cientes que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. » UU) Às presentes alegações os ora Recorrentes anexaram dois documentos, extraídos da wikipédia, para documentar quais são os valores de referência da Troponina 1 cardíaca e ainda para identificar o que é a proteína C Reactiva e quais as patologias que ela pode indiciar. VV) A junção de tais documentos funda-se na circunstância do Senhor Juiz recorrido, a fls. 13 da Decisão lnstrutória e relativamente aos níveis de Troponina referidos nas análises feitas a AA, ter afirmado desconhecer quais os valores de referência da Troponina. WW) Porque a maior parte da prova com base, na qual, se devem considerar indiciados tais factos, tem natureza documental e não é susceptível de ser contraditada em julgamento, entendem os ora Recorrentes que tais factos, muito provavelmente, serão dados como provados por sentença a proferir na sequência da audiência de julgamento. XX) Assim devendo acontecer, esse julgamento de facto, determinará, consequentemente, a condenação das Arguidas pela prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 15°, al. a) e 137°, n.° 1 do C. Penal, YY) Pois que, de tais factos resulta que, qualquer uma das Arguidas, confrontada com os factos descritos nas alíneas a) a e) do anterior n.° 56 e ainda com a circunstância do CHBA, no fim de semana de 23 e 24 de Fevereiro de 2013, não dispor de médico cardiologista, só tinha que evacuar AA para o Hospital de Faro, a fim de fazer exames cardiológicos complementares. ZZ) Essa era uma obrigação de qualquer uma das Arguidas, sobretudo, a partir do momento em que verificaram que os valores da Troponina e da PCR subiram exponencialmente, mantendo-se AA com a dor precordial com irradiação dorsal, tendo em conta ainda que o electrocardiograma feito a AA evidenciava visíveis alterações e que as ecografias abdominal, renal e vesical feitas ao mesmo não confirmaram o prognóstico inicial de cólica renal. AAA) Se nenhuma patologia nos órgãos da cavidade abdominal, tais ecografias revelaram, mantendo AA uma dor intensa com irradiação dorsal, é evidente que a origem da mesma só poderia ser de natureza cardíaca ou pulmonar. BBB) Tendo o electrocardiograma feito ao mesmo, pelas 15h25m do dia 23/02/2013, evidenciado visíveis alterações e apresentando a Troponina e a PCR, nessa altura, níveis elevadíssimos e que não podiam passar despercebidos a nenhumas das arguidas, qualquer uma delas, enquanto teve à sua responsabilidade o doente, só tinha que o evacuar para o Hospital Distrital de Faro, onde ao mesmo poderiam e seriam feitos exames complementares de diagnóstico. CCC) Qualquer das Arguidas limitou-se a prescrever a AA analgésicos e pensos gástricos, quando, mandaria o bom senso clínico de cada uma, que tivesse indagado da hipótese de tal dor se radicar em qualquer patologia cardíaca ou pulmonar. DDD) Se não tinham meios radiológicos para averiguar a ocorrência de qualquer patologia a nível cardiovascular, circulatório ou pulmonar, face aos valores revelados nas análise e à manutenção da dor, só tinham que o ter evacuado para o Hospital Distrital de Faro, o que não o fizeram. EEE) Ao terem omitido e incumprido esse seu dever de diligência médica, absolutamente exigível nas circunstâncias concretas do caso, qualquer uma das Arguidas impediu que, atempadamente, tivesse sido diagnosticada a dissecção da aorta justa cardíaca, ainda numa fase inicial e de pequeníssima dimensão, o que se comprova pelo facto de AA só ter falecido, decorridas mais de 36 horas sobre o momento em que sentiu a dor precordial, pela primeira vez. FFF) Na verdade, AA só faleceu por dissecção da aorta justa cardíaca porque qualquer uma das Arguidas, confrontada com a sua incapacidade para identificar a causa da dor precordial com irradiação dorsal que levou ao internamento do CHBA de AA, não o evacuou para o Hospital Distrital de Faro. GGG) Se tal tivesse acontecido, seguramente, que neste Hospital, o seu Serviço de Cardiologia, teria identificado a causa de tal dor e teria evacuado AA para o Hospital de Santa Maria ou de Santa Marta, em Lisboa, a fim de, em tempo útil e atempadamente, ser submetido a uma intervenção cirúrgica à aorta justa cardíaca, intervenção essa que, segundo o Perito Senhor Prof.º Doutor LB, teria cerca de 90% de ser realizada com êxito e de o doente sobreviver à mesma. HHH) Atento o atrás exposto e tendo em conta os factos que os ora Recorrentes consideram que esse Venerando Tribunal deverá considerar suficientemente indiciados, atentando na prova documental, pericial e testemunhal reunida no inquérito, será óbvio que existe um nexo de causalidade entre as condutas omissivas das Arguida que, de forma culposa e irresponsável não prestaram a assistência médica devida a AA, do que decorreu a morte deste. III) Para evitar tal morte ter-lhes-ia bastado evacuá-lo para o Hospital Distrital de Faro. JJJ) Porque é de presumir, ao menos, que as Arguidas tenham previsto como possível a ocorrência de uma dissecção aórtica, a verdade é que, independentemente de terem feito tal previsão, nada fizeram para prevenir o agravamento dessa dissecção e a consequência que dela resultaria para AA e que era a sua morte. KKK) As Arguidas, ao terem omitido o seu dever de diligência e assistência médica a esse a doente, que as circunstâncias concretas do caso impunham, não podiam desconhecer que tais omissões eram proibidas e punidas por lei penal, LLL) Razão, pela qual, devendo esse Venerando Tribunal considerar suficientemente indiciados os factos descritos no anterior n.° 72, também deverá, como consequência, revogar o despacho recorrido e pronunciar as Arguidas pela prática do crime de homicídio, por negligência, na pessoa de Alexandra Mourinho, o qual está previsto no artigos 15°, al. a) e 137, n.° 1 C. Penal. # O Digno Procurador do tribunal recorrido respondeu ao recurso no sentido de que o mesmo não merece provimento, pois que e em conclusão: 1. São elementos subjectivos do tipo-de-ilícito nos crimes negligentes o facto de o agente querer agir de certa forma (elemento positivo), sem que quisesse, no entanto, cometer o facto punível, pressupondo a previsibilidade do preenchimento do tipo (elemento negativo) - neste sentido, Santiago Mir Puig, in Derecho Penal, parte general, PPU, p. 230; 2. São elementos objectivos do tipo-de-ilícito dos crimes negligentes a violação de um dever objectivo de cuidado e a produção do resultado típico (nos crimes de resultado), surgindo o resultado como consequência da criação ou potenciação pelo agente de um risco proibido de ocorrência do resultado; 3. O resultado tem de constituir um facto subsumível a um tipo legal de crime, e tem ser imputável, segundo as regras da imputação do resultado à conduta (teoria da causalidade adequada ou da adequação), à violação do dever de cuidado pelo agente; 4. É ainda necessário que a actuação do agente seja culposa, ou que preencha um tipo-de-culpa. A culpa, em sentido jurídico-penal, é o ter que responder pela personalidade que fundamenta um facto ilícito-típico (Neste sentido, Figueiredo Dias, sumários de Direito Penal); 5. No caso, a responsabilidade médica supõe culpa por não ter sido usado o instrumental de conhecimentos e o esforço técnico que se pode esperar de qualquer médico numa certa época e lugar. 6. No que ao caso dos autos diz respeito, estamos em crer que, de acordo com os elementos constantes do processo, as arguidas, perante o quadro clínico do falecido, poderiam e deveriam ter agido de outro modo; 7. Segundo resulta de todos os pareceres científicos juntos aos autos, a alta clínica do paciente foi prematura, sendo que, as circunstâncias aconselhavam a realização de exames complementares para a correcta determinação do diagnóstico: 8. Assim, não temos grande dificuldade em admitir que as arguidas violaram um dever de cuidado que se lhes impunhas observar; Todavia, apesar disso, não foi possível demonstrar que o resultado morte (que veio a ocorrer) tenha sido uma consequência previsível, típica, normal, dessa violação e bem assim que o dever omitido era o adequado a evitar esse resultado. # Nesta Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso. Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II A propósito do assunto, expendeu a decisão de não pronúncia o seguinte, citada apenas nas partes que agora mais interessam ao caso: (…) I. Relatório. 1. Na sequência de despacho de acusação proferido pelo Ministério Público a fls. 453-459 que lhes imputa a prática, como autoras materiais, de um crime de homicídio por negligência, vieram as arguidas MM e EE requerer, respectivamente, a fls. 563 e s. e a fls. 617 e s., a abertura da instrução para, por via desta, obterem a prolação de um despacho de não pronúncia. 2. Declarada aberta a instrução, as arguidas prestaram declarações e realizou-se o debate instrutório. II. Saneamento. O Tribunal é competente. Inexistem excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer. III. Das finalidades da instrução. A instrução, quando requerida pelo sujeito processual arguido, visa a obtenção da comprovação judicial negativa da decisão de acusar, em ordem, ao invés, a obstar à prossecução dos autos, mediante a não submissão da causa a julgamento, vd. os artigos 286.º, n.º 1 e 287.º, n.º 1, al. a) e 2, ambos do Código de Processo Penal. Para tanto, haverá de, finda a fase da instrução, ser possível realizar um juízo de controlo negativo no que concerne à verificação dos pressupostos necessários à submissão da causa a julgamento. IV. Factualidade e discussão. Relevância e consequências. 1. Da factualidade. Discussão. Vamos aquilatar se os factos vertidos na acusação pública se podem ou não considerar suficientemente indiciados, levando em linha de conta tanto o plano probatório como a discordância manifestado nos requerimentos de abertura da instrução. 1.1. Previamente recordamos, que a noção operatória indiciação suficiente exige, no nosso modo de ver, como seu pressuposto de afirmação positiva, um lastro probatório apto (i) para renovação em audiência de julgamento e apto (ii) para, como sua consequência, se considerar muito elevada a probabilidade condenação das arguidas por factos que constituem um crime, cf. artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. A aptidão (i) do lastro probatório, como ilação, exige, por sua vez, uma actividade de indagação prévia que se desenvolve sobre vários, mas cumulativos, horizontes, como, por ex., a verificação do modo de aquisição da prova, o modo de produção da prova, a apreciação da sua validade e, bem ainda, sobre a sua capacidade (potencialidade), para a sustentação dos factos que indiciariamente convocam o crime. A aptidão do lastro probatório recolhido (ii) e a sua consequência sobre a elevada a probabilidade de condenação convoca, por sua vez, a elaboração de um juízo sobre o material probatório e sobre o «comportamento» deste em ambiente diverso e de contraditório amplo, como é a audiência de julgamento, juízo onde participam as garantias de defesa do arguido (nomeadamente a presunção de inocência e o in dúbio pro reo), juízo que só pode ser realizado positivamente quando se conclua que o lastro probatório tem características e força tais que irá «sobreviver nesse ambiente hostil», sem perda de «carga incriminatória» quer quanto aos factos, quer quanto a quem os praticou. Vale por dizer de outro jeito: tal juízo positivo está ancorado na legítima compressão das garantias de defesa, máxime da presunção de inocência e seus corolários, legitimidade essa que, por sua vez, por ser consequência da análise objectiva sobre o lastro probatório existente e seu comportamento futuro, torna constitucionalmente fundada a compressão das garantias de defesa e justificará a submissão da causa a julgamento. Sob este horizonte iniciamos a análise dos factos vertidos na acusação. 2. Discussão. Narra-se no artigo 1.º: «No dia 23 de Fevereiro de 2013, pelas 15h09m, AA, com 78 anos de idade, deu entrada no Serviço de Urgência do CHBA – Unidade Hospitalar de Portimão (actualmente, designado CHAlgarve de Portimão), com suspeita de dor precordial com irradiação à região dorsal». Trata-se de facto que se firma pelo exame do teor do relatório do episódio de urgência junto aos autos a fls. 44-47, com a seguinte ressalva: nesse documento não se utiliza a palavra “suspeita” e o uso desta poderá inculcar observação prévia. O Sr. AA foi conduzido à unidade hospitalar pelo seu filho e neto, cf. fls. 266 e s. fls. 272. Logo o facto ficará suficientemente indiciado nestes termos: «No dia 23 de Fevereiro de 2013, pelas 15h09m, AA, com 78 anos de idade, deu entrada no Serviço de Urgência do CHBA – Unidade Hospitalar de Portimão (actualmente, designado CHAlgarve de Portimão), por dor precordial com irradiação à região dorsal» No artigo 2.º do libelo consta: «Submetido à triagem de “Manchester”, foi atribuída a AA a prioridade laranja – Muito urgente e accionada a via verde coronária». Trata-se de facto que se firma pelo exame do teor do relatório do episódio de urgência junto aos autos a fls. 44-47. A triagem foi efectuada pela Sr.ª Enfermeira VC. Considero o facto suficientemente indiciado. Não se refere neste facto que, por ter sido accionada a via verde coronária, o Sr. AA realizou um ECG, cf. fls. 411 (cópia a fls. 175-176) o que vai ao encontro das declarações da arguida MM a fls. 341, mas isto mesmo vem mencionado no artigo 6.º da acusação. Narra-se no artigo 3.º: «Aí foi assistido pela médica de Clínica Geral, a arguida MM, que deu conta que se tratava de “doente de 78 anos, sem antecedentes cardíacos, que iniciou dor torácica intensa, com irradiação para o dorso, que não agrava à pressão manual e nega sudorese”, referindo ainda que AA se encontrava muito queixoso, principalmente na região lombal bilateral, irrequieto” e diagnosticando uma possível cólica renal». Este facto foi extraído do já referido relatório do episódio de urgência (fls. 44-47) pese embora aí não conste a palavra «diagnosticando» mas tão só a expressão interrogativa «Cólica renal??». Admitimos, todavia, que o «diagnosticando uma possível cólica renal» possa também ser lido como suspeitando, ou colocando a hipótese, de se tratar de uma cólica renal. A assistência ao doente é circunstância que se corrobora, também, por meio das declarações que a arguida prestou a fls. 340-343. Com a leitura referida, considero-o suficientemente indiciado. Prossegue a acusação com o artigo 4.º: «Na sequência desse diagnóstico inicial, a arguida MM pediu exames complementares de diagnóstico com carácter urgente, designadamente ecografias abdominal, renal e vesical, relatando, a propósito de informação clínica, o seguinte: “ o doente refere desde ontem dor nos quadrantes abdominais superiores e lombal bilateral muito intensa, que não cedeu a Tramadol ... Urina II com Proteínas 500 e hematuria lig.” Este facto está estribado relatório do episódio de urgência (fls. 44-47). Valem aqui as anteriores cautelas no que concerne à utilização e subsequente leitura da expressão «diagnóstico inicial». A realização dos exames complementares é precisamente para confirmar, ou não, a suspeita/hipótese inicial e estabelecer, ou não, um diagnóstico concreto. Com a leitura referida, considero-o suficientemente indiciado. No artigo 5.º do libelo consta: «Ainda no dia 23 de Fevereiro de 2013, foi realizado o estudo ecográfico pelo Médico Radiologista, Dr. JB, resultando o seguinte relatório: “(...) mostrou fígado com dimensões normais, contornos regulares e textura homogénea. O parênquima é levemente mais reflectivo que o habitual, sugerindo infiltração esteatósica difusa. Não há dilatação das vias biliares intra ou extra-hepáticas. A vesícula biliar é alitiásica, sem sinais de colecistite aguda. Baço e pâncreas com normal morfologia, textura e dimensões. Os rins têm dimensões normais, contornos regulares e adequada diferenciação parenquimossinusal e espessura do parênquima. Não há sinais de litíase, nem uropatia obstrutiva. No rim direito identifica-se um quisto com 3,4cm, com um fino septo. A bexiga tem normal morfologia, apresentando-se em semirrepleção, sem aparentes anomalias parietais ou endoluminais. Ausência de derrame peritoneal. Não parece existir aumento de calibre da aorta abdominal, embora a sua visualização seja muito limitada pela interposição de gasosa digestiva”». A realização do exame e o que nele se observou, um e outra descritos no facto, está assente no relatório junto aos autos a fls. 177. O facto considera-se suficientemente indiciado. Por sua vez, no artigo 6.º do libelo narra-se: «Concomitantemente, na sequência de ter sido accionada a via verde coronária, foi efectuado, pelas 15h25m desse dia, electrocardiograma a AA, no qual são visíveis alterações». Dando aqui por reproduzido que se referiu na parte final da análise ao facto n.º 2.º, com o intuito de fazer sobressair a cronologia dos actos relativos à assistência prestada no Hospital, a fonte para o facto em análise advém do exame do electrocardiograma junto a fls. 411. Todavia, no facto em análise não se referem quais são as alterações que se verificaram no electrocardiograma. Com esta nota, o facto indicia-se com suficiência. No artigo 7.º da acusação refere-se: «Acresce que, pelas 15h57, AA apresentava um índice de leucócitos de 12.1, tinha neutrofilia, o índice de troponina T-HS era de 26.0 ng/L e o registo da pressão arterial era de 125/74mmHg». Em relação aos valores dos leucócitos, de tropomina T-HS, ter neutrofilia, relativos ao dia 23/02/2013, pelas 15:57h, o facto está fundado no documento de fls. 180 e s. (análises ao sangue), concretamente a fls. 181 e 182. No que concerne à pressão arterial vale o relatório de urgência a fls. 45 onde consta que, pelas 15:47, o Sr. AA apresentava o valor de 125/74mmHg. O facto referido no artigo 7.º considera-se suficientemente indiciado nestes termos: «Acresce que, pelas 15h57, AA apresentava um índice de leucócitos de 12.1, tinha neutrofilia, o índice de troponina T-HS era de 26.0 ng/L e, pelas 15:47 o registo da pressão arterial era de 125/74mmHg». No artigo 8.º narra-se assim: «Nessa ocasião, a arguida MM determinou que lhe fosse ministrado ácido acetilsalicílico 300 mg cápsulas LM, tramadol 500 mg/1ml sol inj Fr 1 ml IM IV SC e metoclopramida 10 mg/2ml Sol inj Fr IM IV». Trata-se de facto que se considera suficientemente indiciado pelo exame conjugado do teor do relatório de urgência a fls. 46 (a administração do ácido acetilsalicílico logo pelas 15:31) com as declarações da arguida a fls. 342. No artigo 9.º do libelo aduz-se: «Pelas 19h43m, AA apresentava uma pressão arterial de 124/48mmHG e efectuadas novas análises ao sangue pelas 20h25 do dia 23 de Fevereiro de 2013, constatou-se que a troponina T-HS apresentava um índice de 24,8 ng/L». O facto está estribado no teor do relatório de urgência no que concerne à medição da pressão arterial (cf. fls. 45 v.º) e nas análises ao sangue (cf. fls. 216). O artigo 10.º tem o seguinte teor: «Cerca das 22h56m do sobredito dia, a arguida MM transferiu a responsabilidade médica para a Médica de Clínica Geral, a arguida EE, que então prescrevera Ranitidina 50mg/2ml Sol Inj Fr 2 ml IM IV, administrado ao referido doente pelas 00h51m do dia 24 de Fevereiro de 2013». O facto não pode considerar-se suficientemente indiciado em toda a sua plenitude de sentido sem mais ante os elementos que se indicam de seguida. Do relatório de urgência a fls. 46 apenas consta, sob o item «Transferência de responsabilidade médica», a recepção do doente pelas 22:56h do dia 23/02/2013. Das declarações da arguida EE (na instrução) infere-se que não houve qualquer transferência no sentido de um contacto pessoal entre ambas. O que se verificou foi a saída do turno da arguida MM e a entrada da arguida EE que, mais tarde, ao constatar no sistema informático, que o doente estava associado a um médico que já não estava ao serviço (refere-se à co-arguida MM que havia saído às 20:00h), «assumiu» o doente, cf. também fls. 393. Em conformidade não se indicia com suficiência que «cerca das 22h56m do sobredito dia, a arguida MM transferiu a responsabilidade médica para a Médica de Clínica Geral, a arguida EE». O facto considera-se suficientemente indiciado apenas assim: «Cerca das 22h56m do sobredito dia, a arguida a arguida EE assumiu o doente e prescreveu-lhe Bromazepam e Ranitidina 50mg/2ml Sol Inj Fr 2 ml IM IV, que foram administrados ao referido doente pelas 00h51m do dia 24 de Fevereiro de 2013». Prossegue a acusação no artigo 11.º: «Assim, no dia 24 de Fevereiro de 2013, às 00h52m, 03h32m, 07h37m, 07h38m, AA possuía uma pressão arterial de 124/50mmHG, 125/75mmHG, 116/46 mmHg e 132/62mmHG, respectivamente». Os valores da pressão arterial, bem como, a data e hora de cada um deles, mencionados no facto correspondem ao que se exara no relatório de urgência a fls. 45 v.º. O facto considera-se suficientemente indiciado. No artigo 12.º do libelo consta: «Entretanto, o Médico de Clínica Geral, Dr. MR já havia prescrito Bromazepam 1,5 mg Comprimido (última toma às 00h51m do dia 24.02.2013) e Butilescopolamina 20 mg/1ml Sol inj Fr 1 ml IM IV SC (última toma pelas 5h33m do dia 24.02.2013)». A fonte para este facto resume-se ao relatório de urgência junto a fls. 44 e s., máxime a fls. 45v.º, já que o referido clínico não foi ouvido no inquérito. Aliás, nem ele, nem qualquer outro médico (com excepção das arguidas), ou enfermeiro, foi ouvido no inquérito. O exame do relatório de urgência só permite considerar suficientemente indiciado a prescrição da «Butilescopolamina» que é um relaxante gastrointestinal para alívio da dor abdominal. Do mesmo relatório verifica-se que quem prescreveu o «Bromazepan» foi a arguida EE, cf. fls. 45v.º e 46. Assim, o facto só se considera suficientemente indiciado desta forma: «Entretanto, o Médico de Clínica Geral, Dr. MR prescreveu Butilescopolamina 20 mg/1ml Sol inj Fr 1 ml IM IV SC (última toma pelas 5h33m do dia 24.02.2013)» Narra-se no artigo 13.º da acusação: «Pelas 6h14m do dia 24 de Fevereiro de 2013, foram colhidas novas amostras de sangue para análise, que demonstram que o paciente tinha uma Troponina T-HS de 35,1 ng/L». É facto que se considera suficientemente indiciado em conformidade com o teor das análises juntas aos autos a fls. 179 (= fls. 217). No artigo 14.º da acusação refere-se: «Cerca das 8h19m, do sobredito dia, a arguida EE transferiu a responsabilidade médica novamente para a arguida MM, que prescreveu a toma, pelas 9h24m, de Polielectrol Sol Inj Fr 500 ml IV (última toma às 9h35m)». Valem aqui as considerações acima referidas sobre o «transferir a responsabilidade médica», cf. análise ao facto n.º 10 e relatório de urgência a fls. 45v.º e 46. Acresce que inexiste qualquer prova de um contacto pessoal entre as duas e destinado a concretizar a transferência. O máximo onde poderemos chegar, com os elementos de prova recolhidos nos autos, será que o turno da arguida EE findou e iniciou-se o correspondente turno da arguida MM que «assumiu» ou recebeu o doente no sistema informático pelas 8:19h do dia 24/02/2013. Em conformidade o facto só se considera suficientemente indiciado desta forma: «Cerca das 8h19m, do sobredito dia, a arguida MM assumiu o doente e prescreveu a toma, pelas 9h24m, de Polielectrol Sol Inj Fr 500 ml IV (última toma às 9h35m)». No artigo 15.º do libelo consta: «Todavia, às 15h42m do dia 24 de Fevereiro de 2013, AA tinha uma Troponina T-HS de 37.2 ng/L e, pelas 16h30m, a pressão arterial ascendia a 153/65 mmHg, pese embora se apresentasse aparentemente calmo, consciente e orientado, eupneico e sem necessidade de O2 suplementar, hemodinamicamente estável». No que concerne à data, hora e valor da Troponina T-HS que se referem no facto tanto resulta da leitura das análises juntas aos autos a fls. 178 (=fls. 218). Em relação à pressão arterial e respectiva hora tal funda-se no exame do relatório de urgência a fls. 45v.º. No mais, cerca das 16:30, AA apresentava-se «calmo, consciente e aparentemente orientado, eupneico e sem necessidade de O2 suplementar» como se infere da anotação exarada pela Sr.ª enfermeira VC a fls. 46v.º. O advérbio aparentemente refere-se ao orientado e não ao calmo como se narra no facto. A menção a «hemodinamicamente estável» que se efectua no facto em análise não diz respeito ao período horário nele referido. Essa menção é, isso sim, anotada pelo Sr. Enfermeiro MA pelas 00:51h de 24/02/2013, ou seja refere-se a momento temporal anterior ao que consta do facto, cf. fls. 46 v.º. Pelo exposto, o facto só pode considerar-se suficientemente indiciado nos seguintes termos: «Todavia, às 15h42m do dia 24 de Fevereiro de 2013, AA tinha uma Troponina T-HS de 37.2 ng/L e, pelas 16h30m, a pressão arterial ascendia a 153/65 mmHg, pese embora se apresentasse calmo, consciente e aparentemente orientado, eupneico e sem necessidade de O2 suplementar». No artigo 16.º do libelo consta: «Apesar do mencionado electrocardiograma apresentar alterações e o índice troponina de alta sensibilidade ter subido de 26 ng/L para 37,2 ng/L em cerca de 24 horas de internamento, a 24 de Fevereiro de 2013, pelas 17h15m, a arguida MM consignou no processo clínico de AA, como diagnóstico primário “dor abdominal generalizada (789.07) em investigação” e que o estado do paciente se mantinha inalterado». O electrocardiograma que se refere no facto é o que se mencionou já na análise ao artigo 6.º. Os valores da Troponina TH-S mencionados já foram analisados nos factos n.ºs 7.º (26,0ng/l) e 15.º (32,7ng/l). Da verificação das análises verifica-se que os valores da Troponina TH-S foram os seguintes: 26,0ng/l – 15:57 do dia 23/02; 24,8ng/l – 20:25 do dia 23/02; 35,1ng/l – 06:14 do dia 24/2; 37,2ng/l – 15:42 do dia 24/2. O demais que se narra no facto é o que se retira do relatório de urgência a fls. 46v.º. Todavia, adiante-se, não se narra neste facto, ou em qualquer outro, quais eram os valores de referência para a Troponina TH-S, nem tanto se consegue inferir das análises juntas aos autos que, a este propósito, se quedam pela utilização de um asterisco que remete para a seguinte asserção «resultado fora do intervalo de referência». Mas fora quanto? Qual é o intervalo de referência utilizado no laboratório? Sem prejuízo do exposto, o facto considera-se suficientemente indiciado pois ele funda-se no teor dos resultados das análises e do relatório de urgência a fls. 46v.º. Continua o libelo no artigo 17.º: «No entanto, face a estes dados e não se confirmando o diagnóstico inicial de cólica renal, a arguida MM concedeu, pelas 17h16m, alta clínica a AA, emitindo o parecer médico favorável no sentido de ser encaminhado para o Centro de Saúde não especificado». Trata-se de facto suficientemente indiciado. Com efeito, não se confirmara, até este momento, a suspeita sobre a possibilidade de o Sr. AA padecer de uma cólica renal, suspeita colocada inicialmente, cf. análise aos factos n.ºs. 3.º a 5.º. A narração do facto sustenta-se no teor do relatório de urgência a fls. 46v.º. No artigo 18.º narra-se a verificação da morte assim: «No dia 25 de Fevereiro de 2013, pelas 6h31m, a Equipa VMER do INEM-CODU, composta pela Médica Dra. RE e pela sua assistente CC, deslocaram-se à habitação sita na Quinta…, Alcantarilha, tendo então certificado o óbito de AA». Esta alegação está fundada no exame do auto de ocorrência de fls. 17-18 (dos militares da GNR) e de fls. 19 ( do Instituto de Nacional de Emergência Médica – Centro de Orientação de Doentes Urgentes – CODU). Portanto, o facto considera-se suficientemente indiciado com este teor: «No dia 25 de Fevereiro de 2013, pelas 6h31m, AA foi encontrado sem vida no interior da habitação sita na Quinta…, Alcantarilha». O artigo 19.º do libelo diz assim: «Sobrevindo, assim, a morte de AA por rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e aterosclerose generalizada grave de que sofria». Releva a este respeito o relatório de autópsia médico-legal junto a fls. 26-28, cujas conclusões são estas: «1. A morte de AA foi devida a rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e arteriosclerose generalizada de que sofria. 2. Esta pode ser causa de morte inesperada. 3. Não se observaram no cadáver de AA sinais de violência externa recente». Deste relatório podemos extrair três ilações: A primeira é a causa da morte foi a ruptura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e arteriosclerose generalizada de que sofria; A segunda e em decorrência: a morte não «sobreveio» em consequência de enfarte do miocárdio ou angina instável; A terceira também em decorrência: não pode dissociar-se a ruptura da aorta da cardiopatia dilatada e da arteriosclerose generalizada, patologias, estas, de que o falecido sofria, ainda que delas não tivesse conhecimento, ou, pelo menos não as referiu ante o teor do relatório de urgência, e que, pela sua natureza, só podem ser pré-existentes à deslocação de AA à unidade hospitalar no dia 23/02/2013. O facto considera-se suficientemente indiciado nestes termos: «A morte de AA foi devida a rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e arteriosclerose generalizada de que sofria». No artigo 20.º narra-se deste jeito «Ora, não obstante a dor precordial com irradiação dorsal sentida pelo ofendido, os resultados positivos das referidas análises clínicas, a circunstância do primeiro electrocardiograma, efectuado aquando da triagem do doente, apresentar alterações e lhe ter sido atribuída a via verde coronária, bem como o facto da leitura das radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de se tratar de uma cólica renal e da visualização do calibre da aorta abdominal ser muito limitada pela interposição de gasosa digestiva, as arguidas MM e EE não efectuaram uma monitorização electrocardiográfica contínua do doente e não determinaram a realização de electrocardiogramas simples de 12 derivações, sempre que se registassem alterações, que sabiam e podiam ter efectuado a qualquer hora, nem determinaram a transferência de AA para o Hospital de Faro, a fim de ser submetido a exames complementares de diagnóstico, designadamente a uma radiografia do tórax, a um ecocardiograma ou a uma tomografia computorizada do tórax, com o fito de esclarecer o diagnóstico, conduta a que estavam obrigadas e de que eram capazes». Importa determo-nos sobre este extenso facto. Em relação à dor precordial com irradiação dorsal sentida pelo ofendido, perguntamos: esta dor manteve-se? Ou sumiu? Voltou a manifestar-se após a triagem, isto é, durante o período em que AA permaneceu na unidade hospitalar? Que elementos nos autos permitem a resposta afirmativa a estas questões? Nenhuns. A única referência à dor precordial com irradiação dorsal é efectuada no momento da triagem pela Sr.ª Enfermeira e, quando muito, pela arguida MM também nesse primeiro momento. Subsequentemente não há qualquer registo, seja dos enfermeiros, seja de qualquer médico, sobre a referida dor, se reapareceu, se se manifestou. Pelo contrário, dos vários registos dos enfermeiros (cf. fls. 46 v.º) sobressai que o doente estava calmo, consciente, orientado. Quais são os resultados positivos das análises? Serão só os relativos à tropomina TH-S ou serão outros resultados que também constam nas análises e podem ser lidos como positivos? Em suma, o que é que se quer se quer dizer com resultados positivos? Se em facto algum da acusação se descreve, por exemplo, que o resultado de Z devia ser negativo mas veio a revelar-se positivo? Refere-se a asserção à troponina TH-S? Nesta conformidade alega-se em algum facto narrado na acusação que o resultado devia ser negativo? Alega-se em algum facto narrado na acusação que os valores de referência eram de X e nas análises surgiram, por ex., como X + 3, e por isso o resultado era positivo? Em que ficamos? Afinal, foi realizado só um electrocardiograma ou foram efectuados pelo menos mais dois de doze variações como se indicia a fls. 404 e referiram as arguidas a fls. 341-342 e a fls. 394? Curou-se de instar o hospital, na sequência do requerimento de fls. 401 e s., em face do um print do sistema informático a fls. 404, no sentido de apurar se foram, ou não, realizados estes electrocardiogramas? E se foram, que resultados apresentariam? E se, como referiu a arguida MM, tanto sucedeu e o último electrocardiograma não apresentasse alterações? Obviamente que sem estarem esclarecidos todos estes pressupostos de facto a conclusão implícita no facto fica inquinada. Mais, em que elemento de prova se sustenta que não foi efectuada monitorização electrocardiográfica contínua? Tanto foi perguntado às arguidas ou concretamente averiguado junto da unidade hospitalar? A resposta, à luz dos elementos recolhidos no inquérito, é negativa. Mais e porque seria a monitorização electrocardiográfica contínua necessária em decorrência do que se referiu, por ex., se o segundo electrocardiograma não apresentasse variações? Do facto em análise só é seguro até aqui, sem violação ostensiva das garantias de defesa das arguidas, que «a leitura das radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de se tratar de uma cólica renal e da visualização do calibre da aorta abdominal ser muito limitada pela interposição de gasosa digestiva». Afinal, o que deveriam ter feito as arguidas – cada uma durante o seu turno supõe-se apesar do plural utilizado na narração da acusação: (i) Devia(m) fazer a «monitorização electrocardiográfica contínua do doente e não determinaram a realização de electrocardiogramas simples de 12 derivações, sempre que se registassem alterações», mas registaram-se alterações? Em que elemento de prova sustenta a acusação esse «sempre que se registassem alterações»? Não sabemos. (ii) Ou antes, a(s) arguida(s) devia(m) «determinar a transferência de AA para o Hospital de Faro, a fim de ser submetido a exames complementares de diagnóstico, designadamente a uma radiografia do tórax, a um ecocardiograma ou a uma tomografia computorizada do tórax, com o fito de esclarecer o diagnóstico»? Em que ficamos? Se resulta dos autos, máxime, do relatório de urgência, que o doente não apresentava sudorese, não voltara a queixar-se da dor no peito, o quadro inflamatório persistia (PCR elevada), não existia qualquer registo de dificuldade em recolher a pulsação, nem dificuldade respiratória, porque seria evidente a necessidade de efectuar logo «uma radiografia do tórax», ou «um ecocardiograma» ou a «uma tomografia computorizada do tórax», e em alternativa? Afinal qual destes meios deveria ser utilizado com o fito de esclarecer o diagnóstico? Dito doutra forma e em articulação com o facto subsequente da acusação (artigo 21.º) com a sintomatologia apresentada pelo doente devia, qualquer uma das arguidas, suspeitar de uma eventual situação que apontasse para a eminência da rotura da aorta justa cardíaca? Porquê? É a esta questão que os factos narrados na acusação não permitem respondem. Em síntese do facto em análise só consideramos suficientemente indiciados estes segmentos: «A leitura das radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de se tratar de uma cólica renal e da visualização do calibre da aorta abdominal ser muito limitada pela interposição de gasosa digestiva». «As arguidas não determinaram a transferência de AA para o Hospital de Faro». O artigo 21.º diz assim: «De facto, as arguidas sabiam que o Hospital de Portimão não dispunha, ao fim-de-semana, de técnico de cardiopneumologia ou de Médico Cardiologista que pudesse manusear os aparelhos de ultrassonografia e, desse modo, efectuar o exame imagiológico em ordem ao despiste de eventual situação de rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e aterosclerose generalizada grave de que sofria, designadamente um ecocardiograma ou então realizar uma tomografia computorizada do tórax». Este facto pressupõe o conhecimento pelas arguidas da patologia que nele se refere, ou pelo menos, a verificação de uma suspeita sobre tanto, para cujo despiste seria necessária a intervenção de cardiologista. Como poderiam as arguidas suspeitar da cardiopatia dilatada e da aterosclerose generalizada grave de sofria o Sr. AA? Quando o próprio provavelmente nem delas teria conhecimento? Quando nem isso é claro nas declarações dos filhos? Quando de nenhuma dessas patologias existe indício descrito ou registado no relatório de urgência? Em leitura conjugada com as considerações realizadas no facto antecedente (n.º 20) considero suficientemente indiciado, até com base nas declarações das arguidas MM (fls. 342) e EE (fls. 396) apenas o seguinte: «As arguidas sabiam que o Hospital de Portimão não dispunha, ao fim-de-semana, de Médico Cardiologista». O artigo 23.º da acusação narra assim: «Ademais, as arguidas MM e EE, pese embora o diagnóstico inicial de cólica renal não se confirmar, do electrocardiograma apresentar alterações e das análises clínicas ostentarem um aumento gradual do índice de troponina de alta sensibilidade, também não solicitaram que AA fosse observado pelos especialistas de Medicina Interna, que estavam de escala ao Serviço de Urgência nos mencionados dias, como podiam e deviam, a fim de auxiliá-las a estabelecer o diagnóstico acertado e a determinar o tratamento adequado». Em que provas recolhidas no inquérito se funda esta atribuição, ou seja, a de as arguidas não solicitarem a intervenção dos especialistas de Medicina Interna que estariam de escala a fim de auxilia-las? Esta não resulta das declarações das arguidas. Pelo contrário, das declarações da arguida MM a fls. 342 infere-se o inverso (existiu contacto e discussão com um médico de medicina interna). Porém, foram ouvidos, no inquérito, os aludidos especialistas de medicina interna com o fito de tanto de conformar, ou não? Não, não foram. Inexistiu qualquer inquirição dos especialistas que estavam de escala nesse dia. Será que se alega o facto por tanto não constar do registo no sistema? Não pode ser essa circunstância a infirmar o que referiu a arguida MM ante o que, a esse respeito, logo se colhe das declarações prestadas por MC a fls. 375 e s., máxime, fls. 377. Assim, ante a ausência de prova que o sustente e à luz também das garantias de defesa das arguidas, o facto só pode considerar-se não suficientemente indiciado. Vejamos agora os factos remanescentes, que estão narrados nos artigos 22.º, 24.º, 25.º, 26.º e 27.º, que têm o seguinte teor: «Mais sabiam as arguidas que podiam e deviam transferir o doente, ao qual tinha sido atribuído a via coronária verde, para o Hospital de Faro, a fim de realizar os competentes exames complementares de diagnóstico, bem como ser observado por Médico Cardiologista» - artigo 22.º; «Desse modo, as arguidas não levaram a cabo os procedimentos técnicos adequados que as circunstâncias concretas impunham para se inteirarem das causas da dor precordial com irradiação para a zona dorsal, intensa e repentina, sentida por AA e, assim, ser este encaminhado para um Hospital Central para a realização de uma cirurgia cardio-toráxica» - artigo 24.º; «Actuaram, portanto, com total falta de prudência e de cuidado, já que, ao invés de determinarem a transferência do doente para o Hospital de Faro, a fim de ser submetido a exames complementares de diagnóstico necessários, conduta que podiam e deviam ter adoptado, optaram por lhe ministrar analgésicos e dar-lhe alta clínica, sem que tivessem diagnosticado a causa dos sobreditos sintomas» - artigo 25.º «Todavia, apesar de terem previsto como possível a ocorrência de uma dissecção aórtica, agiram sem aceitar o resultado verificado». Anota-se uma certa indefinição ou incerteza na articulação entre os factos vertidos nos artigos 22.º e 24.º. Afinal, as arguidas (sublinha-se o plural que se tem vindo a utilizar na narração da acusação) deviam ter enviado o Sr. AA para o Hospital de Faro «a fim de realizar os competentes exames complementares de diagnóstico, bem como ser observado por Médico Cardiologista» ou deviam tê-lo encaminhado para um Hospital Central? Bom, avançamos. Deste conjunto de factos importa ter atenção o seguinte: A alta não foi dada pelas arguidas como resulta do facto n.º 25. Quem deu alta ao Sr. AA, no dia 24/02/2013, foi a arguida MM. A arguida EE saiu de serviço anteriormente (concretamente ainda no início da manhã desse dia). Arguidas nos autos são apenas MM e EE, por acaso as mesmas que são referidas no item «Transferência de responsabilidade médica» no relatório de urgência, mas estas não foram as únicas médicas que, de acordo com o referido relatório, teriam observado ou prescrito medicamentos ao Sr. AA. Nesse relatório também consta a intervenção do Dr. MR. Foi este ouvido no inquérito? Não foi. A atribuição da via verde coronária foi efectuada pela Sr.ª Enfermeira na triagem. Não existe qualquer elemento nos autos que sustente a vinculação dos médicos a tal acto, pelo menos, no sentido de, em jeito automático, providenciarem a transferência do doente, como parece perpassar pelo facto n.º 22. No artigo 24.º refere-se que a dor foi, além de intensa, também «repentina» quando dos elementos recolhidos no inquérito tanto não se funda. Dito doutro jeito: não há sustentação para o «repentina». Ainda neste artigo 24.º faz-se referência ao encaminhamento para a realização de cirurgia cardio-toráxica. Mas perguntamos: O que é que indiciava a necessidade de tal cirurgia? Isto não o diz a factualidade vertida na acusação. Assim, aqui chegados o que se poderá inferir em relação às arguidas será, de jeito seguro, cremos, este conjunto de proposições: Nenhuma das arguidas durante o período (escala/turno) em que foi, como médica na urgência, responsável, à vez, pelo Sr. AA, conseguiu esclarecer a razão da dor precordial com irradiação à região dorsal que teria sido referida à entrada na unidade hospitalar; Essa dor não terá sido subsequentemente valorizada por o Sr. AA apresentar-se calmo, consciente, sem dificuldade respiratória, etc.; Porém, as análises revelavam a subida da Troponina TH-S (em qualquer dos turnos), bem como, de outros marcadores indiciadores de inflamação/infecção como foi o caso da PCR (proteína C reactiva) que subiu na colheita efectuada às 6:14h do dia 24/02 (cf. fls. 182). Ora, descartada a hipótese inicial (cólica renal) e mantendo-se a troponina TH-S a subir (37,2ng/l) no dia 24/02, bem como, no mesmo dia a PCR também elevada, estamos em crer que se deveria ter reavaliado a situação, voltado atrás, ao invés de ter sido concedida a alta pela arguida MM. Com efeito, afastada a possibilidade da cólica renal certo é que, no dia 24/02/2013, persistiam aqueles valores analíticos [troponina TH-S a atingir o valor mais elevado dos até então registados e a PCR com valor de 14,0mg/l que é superior ao valor de referência (0.0 – 5.0), cf. fls. 216 e 217 10,0mg/l) que tinham aptidão para gerar a suspeita de qualquer coisa poder estar não bem no plano cardíaco. Assim, a concessão da alta, no quadro fáctico referido, por parte da arguida MM foi precoce, isto é, foi concedida ainda antes de a situação do Sr. AA ter sido devidamente esclarecida e vão neste sentido tanto o Parecer do Colégio de Cardiologia da Ordem dos Médicos junto aos autos a fls. 263 e s., concretamente, as alíneas d) e e) do ponto 3 (fls. 264), como a peritagem da Inspecção Geral de Saúde a fls. 241 e s., máxime o último parágrafo do ponto 3 (fls. 250). Porém o que sobremaneira não pode considerar-se suficientemente indiciado – em face dos elementos que existiam (nomeadamente, a sintomatologia) – é o facto n.º 27.º, ou seja, que as arguidas «apesar de terem previsto como possível a ocorrência de uma dissecção aórtica, agiram sem aceitar o resultado verificado». Em que factos objectivos narrados na acusação se funda esta imputação? E em que elementos recolhidos estariam sustentados caso tais factos objectivos tivessem sido, de jeito congruente, narrados? Recolhe-se sinal oposto na consulta técnico-científica elaborada pela Prof. Doutora LS do Instituto de Medicina Legal junta a fls. 423 e s., onde se exara, no que ora releva, o seguinte: «No dia 23 de Fevereiro não havia indício clínico, pelos sintomas registados pelo médico, de rotura da aorta justa-cardíaca com hemopericárdio, de cardiopatia dilatada ou aterosclerose generalizada grave. Pelo que está registado, o doente não tinha sinais de insuficiência cardíaca nem antecedentes relatados que fizessem supor uma cardiopatia e a doença aterosclerótica não tem, directamente, estes sintomas agudos. A rotura da aorta pode ser consequência de doença aterosclerótica, como parece ter sido o caso. É uma situação clínica rara, de diagnóstico difícil, muitas vezes com sintomatologia atípica, pelo que raramente é colocada como uma das principais hipóteses de diagnóstico. No caso em apreço os sintomas não eram os mais típicos de rotura da aorta». Não temos qualquer razão objectiva para dissentir do relato da Exm.ª Perita. Atalhe-se, desde já, que ao contrário do que sucedeu com o pedido de elaboração de parecer à Inspecção Geral de Saúde (cf. fls. 198, 241-244 e 248-252) o pedido ao Instituto de Nacional de medicina Legal foi instruído, por duas vezes, com elementos recolhidos no inquérito (cf. fls. 198-199 e fls. 414), o que significa que antes de ser elaborado (e com vista à sua elaboração) dispôs a Exm.ª Perita de todos aqueles elementos, o que reforça a valia deste parecer no seu confronto com aquele outro realizado pelo IGAS, que dos mesmos não dispôs. Prosseguindo. Resulta do relatório de autópsia médico-legal que a morte do Sr. AA foi devida a «rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e aterosclerose generalizada grave de que sofria». Ora, além de a enunciação factual de natureza objectiva realizada na acusação pública já não ser clara do plano do nexo, isto é, da imputação objectiva do resultado verificado à(s) conduta(s) da(s) arguida(s), muito menos o é se levarmos em linha de conta a causa da morte. Podemos perguntar de outro jeito: Foi por ter sido indevidamente concedida a alta (nos termos atrás referidos) pela arguida MM que a morte sobreveio ou a morte poderia sobrevir ainda que tudo tivesse sido feito? Reúnem os autos elementos seguros que nos permitam concluir que o decesso do Sr. AA não ocorreria com grande probabilidade, tendo presente o quadro de saúde que o abalava? Importa perguntar, em síntese, – porque não nos podemos abstrair do «vai e vem» entre a questão de facto/questão de direito que o caso concreto problemático sempre acarreta –, se, nos presentes autos e em face da análise até aqui empreendida, podemos afirmar com razoável probabilidade que o resultado ocorrido ter-se-ia evitado (ou seja, não se teria produzido), se a(s) arguida(s) tivesse(m) procedido com o cuidado objectivamente exigível? Do parecer do Colégio de Cardiologia da Ordem dos Médicos, a fls. 264, transcreve-se o teor do ponto 3, al. f): «A dissecção e ruptura da aorta, causa da morte, é uma emergência médica com uma mortalidade muito elevada, sobretudo num centro a cerca de 300km de uma unidade hospitalar com cirurgia cardíaca, pelo que não se pode afirmar que o desfecho fosse diferente, ainda que o diagnóstico correcto tivesse sido realizado atempadamente». Da Consulta Técnico-científica elaborada no Instituto de Nacional de Medicina Legal, a fls. 425, transcreve-se, por sua vez, o teor do ponto 8: «O prognóstico de rotura da aorta, nomeadamente, nesta localização ascendente, é muito reservado e, frequentemente, o desfecho fatal. Trata-se de uma emergência cirúrgica e a taxa de mortalidade aumenta cerca de 1 a 2% por hora após o início dos sintomas (…). A mortalidade cirúrgica é, também, muito elevada, sobretudo após os 70 anos. O risco cirúrgico ronda os 10 a 15%. Assim, este doente teria, mesmo com um tratamento adequado e rápido, um prognóstico muito reservado». Infelizmente o Sr. AA já contava 78 anos e residia no Algarve… encontrando-se a unidade de referência hospitalar em Lisboa… Em face do exposto não podemos, sem violação ostensiva das garantias de defesa, nomeadamente as decorrentes do princípio da presunção de inocência e do in dúbio pro reo, com assento constitucional, cf. artigo 32.º, n.º 2, da Lei Fundamental, afirmar com razoável probabilidade que o resultado ocorrido ter-se-ia evitado (ou seja, não se teria produzido), se a(s) arguida(s) tivesse(m) procedido com o cuidado objectivamente exigível. Sobra a dúvida – que não se logra afastar – sobre se o infeliz resultado (a morte por rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e aterosclerose generalizada grave de que sofria o Sr. AA) não acabaria, na mesma, por se verificar. Ora, se assim é, então não podemos concluir de outra forma que não seja a de valorar, em benefício das arguidas, a dúvida, o que tem por consequência a impossibilidade de imputar objectivamente o resultado morte a qualquer acção ou omissão que constituísse uma violação do dever objectivo de cuidado. Donde em decorrência de tudo o exposto, também não se consideram suficientemente indiciados os factos vertidos nos artigos 22.º e seguintes da acusação pública. 3. Relevância. A acusação imputa às arguidas MM e EE a prática, como autoras materiais e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelos artigos 15.º, al. a) e 137.º, n.º 1, do Código Penal. O artigo 15.º, al. a), do Código Penal prescreve: «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização (...)». Por sua vez, dispõe o artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal: «1- Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa». Porém, os factos que se indiciaram com suficiência não são bastantes para preencherem as exigências do tipo de ilícito objectivo que se extrai da conjugação das duas referidas normas. Com efeito, apenas se indiciaram com suficiência os seguintes factos: «No dia 23 de Fevereiro de 2013, pelas 15h09m, AA, com 78 anos de idade, deu entrada no Serviço de Urgência do CHBA – Unidade Hospitalar de Portimão (actualmente, designado CHAlgarve de Portimão), por dor precordial com irradiação à região dorsal. Submetido à triagem de “Manchester”, foi atribuída a AA a prioridade laranja – Muito urgente e accionada a via verde coronária. Aí foi assistido pela médica de Clínica Geral, a arguida MM, que deu conta que se tratava de “doente de 78 anos, sem antecedentes cardíacos, que iniciou dor torácica intensa, com irradiação para o dorso, que não agrava à pressão manual e nega sudorese”, referindo ainda que AA se encontrava muito queixoso, principalmente na região lombal bilateral, irrequieto” e diagnosticando uma possível cólica renal. Na sequência desse diagnóstico inicial, a arguida MM pediu exames complementares de diagnóstico com carácter urgente, designadamente ecografias abdominal, renal e vesical, relatando, a propósito de informação clínica, o seguinte: “ o doente refere desde ontem dor nos quadrantes abdominais superiores e lombal bilateral muito intensa, que não cedeu a Tramadol ... Urina II com Proteínas 500 e hematuria lig.” Ainda no dia 23 de Fevereiro de 2013, foi realizado o estudo ecográfico pelo Médico Radiologista, Dr. JB, resultando o seguinte relatório: “(...) mostrou fígado com dimensões normais, contornos regulares e textura homogénea. O parênquima é levemente mais reflectivo que o habitual, sugerindo infiltração esteatósica difusa. Não há dilatação das vias biliares intra ou extra-hepáticas. A vesícula biliar é alitiásica, sem sinais de colecistite aguda. Baço e pâncreas com normal morfologia, textura e dimensões. Os rins têm dimensões normais, contornos regulares e adequada diferenciação parenquimossinusal e espessura do parênquima. Não há sinais de litíase, nem uropatia obstrutiva. No rim direito identifica-se um quisto com 3,4cm, com um fino septo. A bexiga tem normal morfologia, apresentando-se em semirrepleção, sem aparentes anomalias parietais ou endoluminais. Ausência de derrame peritoneal. Não parece existir aumento de calibre da aorta abdominal, embora a sua visualização seja muito limitada pela interposição de gasosa digestiva”». Concomitantemente, na sequência de ter sido accionada a via verde coronária, foi efectuado, pelas 15h25m desse dia, electrocardiograma a AA, no qual são visíveis alterações. Acresce que, pelas 15h57, AA apresentava um índice de leucócitos de 12.1, tinha neutrofilia, o índice de troponina T-HS era de 26.0 ng/L e, pelas 15:47 o registo da pressão arterial era de 125/74mmHg. Nessa ocasião, a arguida MM determinou que lhe fosse ministrado ácido acetilsalicílico 300 mg cápsulas LM, tramadol 500 mg/1ml sol inj Fr 1 ml IM IV SC e metoclopramida 10 mg/2ml Sol inj Fr IM IV. Pelas 19h43m, AA apresentava uma pressão arterial de 124/48mmHG e efectuadas novas análises ao sangue pelas 20h25 do dia 23 de Fevereiro de 2013, constatou-se que a troponina T-HS apresentava um índice de 24,8 ng/L. Cerca das 22h56m do sobredito dia, a arguida a arguida EE assumiu o doente e prescreveu-lhe Bromazepam e Ranitidina 50mg/2ml Sol Inj Fr 2 ml IM IV, que foram administrados ao referido doente pelas 00h51m do dia 24 de Fevereiro de 2013. Assim, no dia 24 de Fevereiro de 2013, às 00h52m, 03h32m, 07h37m, 07h38m, AA possuía uma pressão arterial de 124/50mmHG, 125/75mmHG, 116/46 mmHg e 132/62mmHG, respectivamente. Entretanto, o Médico de Clínica Geral, Dr. MR prescreveu Butilescopolamina 20 mg/1ml Sol inj Fr 1 ml IM IV SC (última toma pelas 5h33m do dia 24.02.2013). Pelas 6h14m do dia 24 de Fevereiro de 2013, foram colhidas novas amostras de sangue para análise, que demonstram que o paciente tinha uma Troponina T-HS de 35,1 ng/L. Cerca das 8h19m, do sobredito dia, a arguida MM assumiu o doente e prescreveu a toma, pelas 9h24m, de Polielectrol Sol Inj Fr 500 ml IV (última toma às 9h35m). Todavia, às 15h42m do dia 24 de Fevereiro de 2013, AA tinha uma Troponina T-HS de 37.2 ng/L e, pelas 16h30m, a pressão arterial ascendia a 153/65 mmHg, pese embora se apresentasse calmo, consciente e aparentemente orientado, eupneico e sem necessidade de O2 suplementar. Apesar do mencionado electrocardiograma apresentar alterações e o índice troponina de alta sensibilidade ter subido de 26 ng/L para 37,2 ng/L em cerca de 24 horas de internamento, a 24 de Fevereiro de 2013, pelas 17h15m, a arguida MM consignou no processo clínico de AA, como diagnóstico primário “dor abdominal generalizada (789.07) em investigação” e que o estado do paciente se mantinha inalterado. No entanto, face a estes dados e não se confirmando o diagnóstico inicial de cólica renal, a arguida MM concedeu, pelas 17h16m, alta clínica a AA, emitindo o parecer médico favorável no sentido de ser encaminhado para o Centro de Saúde não especificado. No dia 25 de Fevereiro de 2013, pelas 6h31m, AA foi encontrado sem vida, no interior da habitação sita na Quinta …, Alcantarilha. A morte de AA foi devida a rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e arteriosclerose generalizada de que sofria. A leitura das radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de se tratar de uma cólica renal e da visualização do calibre da aorta abdominal ser muito limitada pela interposição de gasosa digestiva. As arguidas não determinaram a transferência de AA para o Hospital de Faro. As arguidas sabiam que o Hospital de Portimão não dispunha, ao fim-de-semana, de Médico Cardiologista». Factos, estes, que não são bastantes para preencherem o tipo de ilícito objectivo, o tipo de ilícito subjectivo e a imputação objectiva do resultado morte e, desse modo, poderem sustentar a assacada autoria de um crime de homicídio por negligência. 4. Consequências. Em função da análise empreendida nos pontos antecedentes, obtém-se um juízo de controlo negativo sobre a decisão de acusar tomada pelo Ministério Público e, em conformidade, as arguidas não serão submetidas a julgamento, nos termos do artigo 308.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal, pela prática, como autoras materiais e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelos artigos 15.º, al. a) e 137.º, n.º 1, do Código Penal. V. Decisão. Por tudo o exposto, NÃO PRONUNCIO as arguidas MM e EE pela prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 15.º, al. a) e 137.º, n.º 1, ambos do Código Penal, que lhes foi imputado na acusação pública, ao abrigo do disposto no artigo 308.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal. Sem custas. Registe, notifique e oportunamente arquive. Portimão, 2017-10-13, (Pedro Frias, Juiz de Instrução Criminal) III De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer. De modo que a única questão em causa no presente recurso é a da existência ou não de indícios suficientes que justifiquem levar as arguidas a julgamento pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos art.º 15.º al.ª a) e 137.º, n.º 1, do Código Penal: Ora bem. Nos termos do n.° 1 do art.° 286.° do Código de Processo Penal, "a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento". E, nos termos do n.° 1 do art.° 308.° do mesmo diploma legal "se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia ". Na expressão do art.º 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança». A este respeito, escreveu em 1974 o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1.º, pág. 133, a respeito do Código de Processo Penal anterior, mas ainda com total utilidade para a compreensão do actual, que «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição» E adianta: «tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.» Também Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», vol. II, 3.ª edição, Verbo, 2.002, pág. 103-104, diz que por indiciação suficiente se deve entender «a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança». Trata-se da «probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal ... » E Luís Osório que «devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado» – «Comentário ao Código de Processo Penal Português», vol. IV, pág. 441. Também a jurisprudência vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, isto é, os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. (A tal respeito, cf.: acórdão da Relação de Coimbra de 10-4-85, Colectânea de Jurisprudência, 1985, II-81; acórdão da Relação de Coimbra de 31-3-93, Colectânea de Jurisprudência, 1993, II-66; acórdão da Relação do Porto de 12-2-97, Colectânea de Jurisprudência, 1997, I-263; acórdão da Relação do Porto de 13-11-74, sumariados no Boletim do Ministério da Justiça n.º 241, pág. 347; acórdão da Relação de Lisboa de 17-2-99, Colectânea de Jurisprudência, 1999, I-145). Ora retornando ao caso concreto dos autos, e ainda antes de começarmos a falar de se existem ou não indícios suficientes de terem as arguidas cometido o crime de homicídio por negligência por que estavam acusadas e de que foram despronunciadas pela decisão em recurso, atentemos no que consta dos três relatórios finais constantes do processo, elaborados um pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde em 19-4-2015, outro pelo Colégio de Cardiologia do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos em 24-8-2015 e o último pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses em 5-4-2017. O elaborado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde: I. História da situação 1.1. O utente, AA, nascido em 25 de Abril de 1934, recorreu, no dia 23 de Fevereiro de 2013, ao Serviço de Urgência da Unidade Hospitalar de Portimão do Centro Hospitalar do Algarve. 1.2. O utente recorre àquele SU por dor pré-cordial com irradiação à região dorsal, tendo, na triagem, encaminhado para a "via verde coronária", com a prioridade "laranja-muito urgente" (triagem de Manchester). 1.3. Não obstante a menção, no episódio de urgência cujas cópias se juntam (fls. 34 e segs), a ausência de antecedentes cardíacos, consta, na mesma ficha, que o utente «Não faz qq medicação, excepto Vastarel». 1.4. O utente foi observado e realizou, de urgência, uma ecografia abdominal, renal e vesical, que não evidenciou alterações patológicas que justificassem as queixas. 1.5. Ficou internado em observação, apresentando uma TA 125-74 mm Hg, sendo medicado com solução polielectrolítica, Butilesocopolamina, Bromazepam; Ranitidina; AAS, Tramadol e Metoclopramida. 1.6. Foi-lhe concedida alta médica no dia 24 de Fevereiro de 2013, com o diagnóstico de dor abdominal generalizada, estado inalterado, tendo sido referenciado à consulta do Centro de Saúde. 1.7. O utente faleceu no seu domicílio no dia seguinte, 25 de Fevereiro de 2013, às 06h31. 1.8. O relatório da autópsia médico-legal apresenta como causa da morte, «rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e aterosclerose generalizada grave de que sofria.» 1.9. De acordo com a participação, não se encontrava ao serviço, no fim-de-semana de 23 e 24 de Fevereiro, qualquer médico especialista de Cardiologia. Na verdade, no relatório de urgência que citámos anteriormente, apenas consta a intervenção da especialidade de radiologia e de medicina geral e familiar. II. Questionário 2.1. De acordo com o constante no relatório do episódio de urgência, a fls. 5-7 dos autos, o utente foi triado para a via verde coronária. Sustentando-se no referido relatório considera que foram efectuados os exames de diagnóstico adequados? 2.2. Atendendo às queixas do utente, aos sintomas que apresentava, ao seu historial clínico e aos resultados dos MCD efectuados, impunha-se que o utente fosse avaliado por cardiologia? 2.3. Avalie a alta médica concedida no que concerne à sua adequação e oportunidade. 2.4. Caso o utente tivesse sido avaliado por um especialista de cardiologia a decisão poderia ter sido diferente daquela que foi tomada? 2.5. Valore o procedimento do pessoal médico envolvido na assistência prestada no que concerne à observação das leges artis. 2.6. Atenta a história clínica sumariada, bem como todos os elementos clínicos presentes nos autos, haverá mais alguma questão que, no seu entendimento, fosse pertinente suscitar a fim de melhor se poder avaliar o procedimento de todos os intervenientes? (…) Resposta às questões formuladas pelo Sr. Dr. PC 1) Não! Um Serviço de Urgência (SU), a funcionar 24 por dia, deve estar apetrechado de meios técnicos e humanos que lhe permita dar resposta a todos os doentes, qualquer que seja a patologia urgente que apresentem. Pode não ter capacidade para intervir, de forma absoluta, em casos de patologia complexa, mas pelo menos, o diagnóstico da situação deve ser tentado, com elevado grau de certeza, determinando, em consonância, a evacuação para o centro clínico adequado, que se encontre mais próximo, de modo a permitir o controlo absoluto da situação. No caso vertente, apareceu um doente com precordialgia com irradiação ao dorso, a quem foi dada prioridade laranja (muito urgente), tendo-lhe sido atribuída via verde coronária. Um doente, nestas circunstâncias, em ambiente de SU, deveria ter sido abordado dentro das seguintes situações clínicas, potencialmente de risco elevado, a saber: a) Angina instável (AI) b) Enfarte agudo do miocárdio (EAM) c) Aneurisma dissecante da aorta (consubstanciando uma situação de pre-rotura) Para a patologia em a) (AI) deveria ter sido feito ECG seriado de 12 derivações, monitorização electrocardiográfica (para despiste de arritmias "malignas", ecocardiograma (ECO) e análises seriadas (troponina, CK e CK MB) Para a hipótese em b) (EAM) deveria ter (sido seguido o mesmo protocolo proposto para a) Para a hipótese c) (aneurisma dissecante/pre rotura da aorta), além do citado para as outras patologias, deveria ter sido feito uma radiografia do tórax( Rx) postero-anterior e perfil. Em resumo, para o despiste de patologias graves que se apresentem, num ambiente de SU, com um quadro de dor torácica, deveriam ter sido feitos: a) ECG de 12 derivações seriados b) Monitorização electrocardiográfica contínua c) Ecocardiograma d) Rx do tórax e) Análises seriadas No caso vertente apenas foram feitas análises seriadas para despiste de EAM. 2) Os MCD realizados, análises, ecograma abdominal, renal e vesical, apenas despistaram necrose aguda do miocárdio e alguma patologia abdominal aguda. Convém referir que não existe qualquer referência à avaliação clínica do abdómen do doente (palpação?). Num SU a funcionar permanentemente, integrado num hospital distrital, deverá ter sempre presente um médico especialista em Medicina Interna experiente em situações de urgência, com o apoio de um Cardiologista, para confirmar diagnósticos e realizar exames complementares (ECG e ECO). Uma equipa com estas valências deverá despistar a grande maioria de situações clínicas graves que podem ocorrer num SU. 3) O doente em análise, foi admitido ao SU com queixas de precordialgia com irradiação ao dorso, que nunca chegaram a ser esclarecidas. A partir de uma certa altura assistiu-se a uma mudança de sentido na avaliação diagnóstica do doente, pela equipa médica, que "esqueceu" a sintomatologia inicial e se focalizou apenas num hipotético quadro abdominal. Nas análises iniciais destaca-se um hemograma com leucocitose e neutrofilia, com uma PCR normal, que no dia seguinte, aumentou muito significativamente. Não houve repetição do hemograma. Há, portanto, evidência de um processo inflamatório agudo, em evolução (agravou ao 2° dia de internamento). Este era um caso, em que , independentemente da sua etiologia, deveria ter ficado mais tempo em observação, entregue a uma equipa mais diferenciada, provavelmente noutra instituição hospitalar mais apetrechada, para onde o doente deveria ter sido evacuado. 4) Um cardiologista tinha a obrigação, perante um quadro de precordialgia com irradiação ao dorso, despistar as três situações mais graves e encaminhar adequadamente o doente, no caso de a instituição hospitalar onde se encontrava, não possuir meios para o tratamento eficaz. 5) A equipa médica presente no SU na altura da chegada do doente era constituída por uma especialista em Medicina Geral e Familiar (MGF) e por um Radiologista. Desconheço qual o grau de diferenciação da médica de MGF e qual a sua experiência em SU em hospitais distritais ou centrais. Não me parece que tenha assimilado convenientemente a importância do quadro inicial de precordialgia com irradiação ao dorso. Se tivesse suspeitado de um quadro cardiovascular e na impossibilidade de realizar MCD importantes (ECG e ECO) deveria de imediato evacuar o doente para outro hospital da região que os pudessem realizar. O desvio de atenção do quadro inicial, para uma hipotética complicação abdominal, só pode ter sido devido aos resultados das análises que apontavam para um processo inflamatório agudo que poderia ter origem em órgãos da cavidade abdominal, mas que os estudos ecográficos e principalmente a clínica (falta referência ao exame clínico do abdómen) não confirmavam. 6) A existência de um SU permanente, integrado num Hospital Distrital, deve suscitar, nas entidades tutelares, um elevado nível de responsabilidade. Não se pode defraudar as legítimas expectativas da população utente, oferecendo um serviço que não cumpre os requisitos mínimos para poder funcionar cabalmente. Deixar um SU entregue a uma Especialista em MGF e um Radiologista parece-me consubstanciar um elevado grau de irresponsabilidade. Não se pode ter "uma porta aberta" para SU permanente, a contar apenas com a elevada probabilidade de só aparecerem gripes, diarreias e crises de ansiedade. Os doentes, quando sabem que têm nas imediações um SU a funcionar 24 horas por dia, integrado num Hospital em que confiam habitualmente, procuram-no, acreditando que lá encontrarão solução para os seus problemas, independentemente da sua gravidade, que na maioria dos casos, desconhecem na realidade. Poderá não haver recursos para resolver todos os problemas, mas tem de haver uma equipa, suficientemente diferenciada para fazer diagnósticos adequados e, se for caso disso, enviar para resolução em centros hospitalares mais apetrechados. Parece-me que este caso, apesar da sua gravidade, poderia ter tido um desfecho mais feliz, se a Administração da Instituição Hospitalar onde o doente foi admitido se preocupasse mais com a qualidade das equipas médicas que disponibiliza para os seus SU. Um doente com as características do caso em análise, se encaminhado atempadamente para um centro de Cirurgia Cardíaca teria cerca de 90% de probabilidades de sobreviver á cirurgia (mortalidade de 10-12%). É de salientar que o doente morre cerca de 12 horas após a alta do SU onde permaneceu cerca de 24 horas. (…) O parecer elaborado pelo Colégio de Cardiologia do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos: 1. Por deliberação do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos foi-nos solicitado elaboração de parecer relativamente aos factos que envolveram a morte de AA. 2. Em face dos elementos constantes do processo é possível considerar assentes os seguintes factos: a. No dia 23/02/2013 o doente, AA recorreu ao Serviço de Urgência, conduzido pelo INEM, por "dor precordial com irradiação à região dorsal". b. Na descrição da primeira observação médica, bem como das subsequentes não há, no entanto, qualquer referência à existência de dor precordial, estando de facto referido nas diversas observações que o doente se queixava de dor lombar e abdominal. c. Foram pedidas análises e ecografia abdominal, em conformidade com os sintomas de dor abdominal e lombar, tendo ainda sido pedido o doseamento dos marcadores de necrose miocárdica, como a troponina de alta sensibilidade. d. A ecografia abdominal não mostrava alterações significativas. e. A troponina mostrava valores elevados, com subida ligeira nos valores subsequentes, mas nos resultados das análises não estão indicados os valores de referência do laboratório que tivessem permitido a fácil identificação desse aumento. f. Não está descrita a realização de electrocardiograma. g. O doente terá melhorado com terapêutica analgésica instituída, tendo tido alta no dia 24/02/2013, pelas 17 horas e 16 minutos. Resultado, de acordo com o relatório da autópsia médico-legal, de ruptura da artéria aorta. 3. Os factos expostos permitem-nos as seguintes considerações: a. O doente foi admitido aparentemente por dor precordial mas nas observações médicas, este sintoma não é referido, pelo que admitimos alteração temporal das características da dor, em termos de localização. b. Foi valorizada a dor abdominal e dorsal, tendo sido orientado o diagnóstico nesse sentido. c. Não obstante, havendo uma informação inicial de dor precordial, devia ter sido realizado electrocardiograma. d. As alterações laboratoriais deviam ter levantado a suspeita de síndroma coronário agudo (aumento do valor de Troponina de alta sensibilidade), embora possa servir de atenuante para os clínicos a falta de indicação dos valores normais/referência desse parâmetro nos resultados do laboratório. Chamamos a atenção de que o marcador de necrose miocárdica comumente utilizado ser a troponina 1, e não a sua variante de "alta sensibilidade", pelo que os valores considerados normais versus patológicos desta última não estão vulgarizados na prática médica, mesmo entre especialistas de cardiologia, sendo poucos os hospitais em que é utilizado por rotina o doseamento da Troponina de alta sensibilidade em vez da Troponina 1. e. A valorização atempada das alterações laboratoriais deveria ter impedido a alta precoce, embora a morte por rotura da aorta não seja resultado de um síndroma coronário agudo, e a elevação da troponina seja provavelmente uma consequência da dissecção da aorta. f. A dissecção e rotura da aorta, causa da morte, é uma emergência médica com uma mortalidade muito elevada, sobretudo num centro a cerca de 300 Km de uma unidade hospitalar com cirurgia cardíaca, pelo que não se pode afirmar que o desfecho fosse diferente, ainda que o diagnóstico correcto tivesse sido realizado atempadamente. 4. Em resultado do exposto, concluímos que a orientação diagnóstica deveria ter tido em conta as queixas iniciais de dor precordial, e que os resultados laboratoriais também deveriam ter suspeitado de envolvimento cardíaco. Embora de muito mau prognóstico, a situação clínica que causou a morte, é uma urgência cirúrgica e apenas a cirurgia cardíaca poderia ter alterado o prognóstico. Por fim, o teor da Consulta Técnico-científica do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses: Resumo do caso: Homem, 78 anos. Recorreu ao Serviço de Urgência (SU), de acordo com registo de triagem de MANCHESTER do ALERT, por dor precordial com irradiação para o dorso, no dia 23 de Fevereiro de 2013 às 15h 09min. Foi acionada a VIA VERDE CORONÁRIA pelo fluxograma dor pré-cordial. Está descrito na nota de entrada, quando foi realizada a história clínica, que o senhor referia dor nos quadrantes superiores do abdómen e região lombar bilateral desde o dia anterior e que apresentava, no SU, queixa de dor lombar bilateral, pelo que foi colocada a hipótese de se tratar de cólica renal. Na urina tinha proteínas e sangue (referido no registo do ALERT), embora a Urina tipo II tivesse resultados normais e a ecografia abdominal fosse normal (excepto por esteatose hepática), sendo que a aorta abdominal apresentava calibre normal. Das análises, destaca-se, leucocitose e Troponina T elevada, com valores de 26 ng/L às 15h 57min do dia 23 de Fevereiro e, seriadamente, de 24.8, 35.1 e, às 15h 42min do dia 24 de Fevereiro, de 37.2 ng/L. Não havia anemia, nem alterações da coagulação. A PCR era normal à entrada mas subiu para 14 mg/L em análise posterior. No SU fez terapêutica analgésica e soros, antiemético e protector gástrico. Manteve-se clínica e hemodinamicamente estável e sem dor. Teve alta para ambulatório no dia 24 de Fevereiro às 17h 16min. Pela descrição no registo clínico encontrava-se assintomático. Veio a falecer no domicílio no dia 25 de Fevereiro às 06h 31 min (hora a que foi verificado o óbito). O estudo necrópsico concluiu como causa da morte "rotura da aorta justa cardíaca com hemopericárdio, na sequência de cardiopatia dilatada e aterosclerose generalizada grave" Resposta aos quesitos: 1- Perante os sintomas apresentados pelo paciente no dia 23 de Fevereiro de 2013 quais deveriam ter sido os tratamentos administrados. De acordo com os sintomas registados pelo médico que observou o doente (dor nos quadrantes superiores do abdómen e região lombar bilateral) e que fez o diagnóstico de provável cólica renal, o tratamento administrado no dia 23 de Fevereiro foi o adequado. 2 - Se, perante esses sintomas, deveria ter sido ordenada a realização de algum exame complementar de diagnóstico adequado. Na afirmativa, qual ou quais exames. Os exames realizados foram dirigidos à suspeita de cólica renal, para esclarecimento dessa hipótese de diagnóstico e, nesse contexto, foram os adequados. Foi ainda pedido doseamento da troponina, provavelmente por haver a descrição na admissão da dor torácica o que também parece correcto para esclarecer se haveria a possibilidade de patologia do miocárdio. Nesta suspeita, teria sido conveniente solicitar também um electrocardiograma (ECG) mas não há registo deste exame no processo presente, embora, no dia 5 de Abril de 2017 tenha dado entrada no Instituto Médico-Legal documentação em aditamento ao processo em que existe fotocópia de ECG datado de 23 de Fevereiro de 2013 às 15h 25min, que apresenta alterações. 3 - Se foram realizados os exames de diagnóstico adequados. Após os resultados do ECG apresentado nos documentos em aditamento e da troponina e o facto de o seu valor ter aumentado, teria sido prudente rever a história clínica e o exame físico, realizar um novo ECG (se não foi feito) e, eventualmente, um ecocardiograma e uma radiografia do tórax. 4 - Se o tratamento a que foi submetido no dia 23 de Fevereiro de 2013 foi o adequado. Sim, tendo em consideração o diagnóstico inicial de cólica renal. 5 - Se o paciente estava em condições de lhe ser dada alta após o tratamento que recebeu no dia 23 de Fevereiro de 2013. O doente manteve-se, durante as 26 horas que permaneceu em observação no SU, estável e, na última avaliação, estava assintomático pelo que foi decidido dar alta. No entanto, não estando o diagnóstico esclarecido, o ECG ter alterações e tendo a troponina aumentado, teria sido mais seguro manter a vigilância e realizar outros exames complementares para melhor esclarecimento, como já referido. 6 - Se, no dia 23 de Fevereiro de 2013 o paciente já mostrava sintomas de rotura da aorta justa-cardíaca com hemopericárdio e de cardiopatia dilatada e aterosclerose generalizada grave, alegadas causas da sua morte. Na afirmativa, qual o tratamento que deveria ter sido administrado ao paciente. No dia 23 de Fevereiro não havia indício clínico, pelos sintomas apresentados e registados pelo médico, de rotura da aorta justa-cardíaca com hemopericárdio, de cardiopatia dilatada ou aterosclerose generalizada grave. Pelo que está registado, o doente não tinha sinais de insuficiência cardíaca nem antecedentes relatados que fizessem supor uma cardiopatia e a doença aterosclerótica não tem, directamente, estes sintomas agudos. A rotura da aorta pode ser consequência de doença aterosclerótica, como parece ter sido o caso. É uma situação clínica rara, de diagnóstico difícil, muitas vezes com sintomatologia atípica, pelo que raramente é colocada como uma das principais hipóteses de diagnóstico. No caso em apreço os sintomas não eram os mais típicos de rotura da aorta. 7 - Se a 23 de Fevereiro de 2013 tivessem sido realizados os exames complementares de diagnóstico adequados aos sintomas do paciente, teriam sido detectados os problemas de saúde que provocaram a morte ao paciente (enumerados a 6). Não é seguro que se tivessem sido realizados, logo no 1° dia, mais exames complementares, o diagnóstico tivesse sido possível de imediato. A realização de, pelo menos, novo electrocardiograma (de que não existe registo), radiografia do tórax e ecocardiograma (ou mesmo uma Tomografia Computorizada do tórax) teria tido interesse para esclarecer o diagnóstico uma vez que o doseamento de troponina estava elevado e o ECG (no registo que deu entrada no processo posteriormente) ter alterações. 8 - Se o paciente tivesse recebido os tratamentos adequados aos sintomas que apresentou no dia 23 de Fevereiro de 2013 a morte teria ocorrido ou teria sido evitada. O prognóstico de rotura da aorta, nomeadamente, nesta localização ascendente, é muito reservado e, frequentemente, o desfecho é fatal. Trata-se de uma emergência cirúrgica e a taxa de mortalidade aumenta cerca de 1 a 2% por hora após o início dos sintomas (Mehta, RH, Suzuki T, Hagan PG, et al. Predicting death in patients with acute type A aortic dissection. Circulation 2002;105:200-4.). A mortalidade cirúrgica é, também, muito elevada, sobretudo após os 70 anos. O risco cirúrgico ronda os 10 a 15%. Assim, este doente teria, mesmo com um tratamento adequado e rápido, um prognóstico muito reservado. Há no teor destes pareceres alguns denominadores comuns fundamentais: a alta do doente foi precoce – e essa foi da responsabilidade da arguida MM; o doente devia ter sido, desde logo, submetido a mais exames médicos do foro cardiológico até se descobrir cabalmente o mal de que padecia e, caso os mesmos não pudessem ser efectuados no hospital de Portimão, devia ter sido evacuado por qualquer uma das arguidas para outro hospital que os pudesse fazer, bem como aos tratamentos adequados – e isso foi da responsabilidade de cada uma das arguidas; se não tivesse sido dada alta precoce ao doente e ele tivesse sido evacuado para o hospital de Faro, teria hipóteses de se salvar (cerca de 90% de probabilidades de sobreviver á cirurgia, segundo o parecer elaborado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde), pois que, apesar de a cirurgia só poder ser feita em Lisboa, mediaram cerca de 13 horas entre a alta e a constatação da morte do AA, período de 13 horas que podia até ter sido bem mais dilatado, pois que a transferência do doente para o hospital de Faro não tinha que coincidir necessariamente com a hora em que no dia 24 de Fevereiro lhe foi dada alta, podia ter sido bem mais cedo, após os primeiros exames terem arredado a hipótese de se tratar de um problema abdominal, renal ou vesical (às 15h25m de 23 de Fevereiro, havia já um ECG que apresentava alterações), na noite de 23 para 24, por exemplo quando pelas 6h14m do dia 24 se constatou que a Troponina T-HS (indicador de existência de problemas cardíacos) tinha disparado para 35,1 ng/L e que a Proteína C Reativa (indicador de um quadro inflamatório sugestivo de aterosclerose ou de isquemia ou de risco de enfarte de miocárdio, cujo valor de referência se situa entre os 0-5) tinha passado de 1,3 mg/L, às 15h57 do dia 23, para 14.0 mg/L, às 6h14m do dia 24 – o que prolongaria de 13 para… 23 horas o período de reacção no hospital de Faro para fazer exames complementares e proceder ao envio do doente para Lisboa. Ora bem. O tipo legal descrito no art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal (homicídio por negligência), tanto pode ser preenchido por acção como por omissão, desde que, neste último caso, se possa afirmar em relação ao agente a existência de um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado (art.º 10.º, n.º 2, do Código Penal). Importa, assim, ter presente que o eixo estruturante dos delitos omissivos é a ideia fundamental de que a protecção do bem jurídico em perigo depende de uma prestação positiva de determinada pessoa e que a sociedade confia nessa intervenção activa. Por outro lado, para que se possa responsabilizar um médico por homicídio (ou por ofensa à integridade física) por negligência, é necessário que ele tenha violado o dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia, criando, deste modo, um perigo não permitido que se concretizou no resultado. Mas para que o agente seja punível por negligência não é suficiente que viole o cuidado objectivamente imposto – é necessário ainda que não afaste o perigo ou evite o resultado desde que aquele se apresente como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável. O tipo de culpa negligente reside na atitude descuidada ou leviana revelada pelo agente e que fundamenta o seu facto e, aí, nas qualidades desvaliosas da pessoa que no facto se exprimem. Aproximando a questão ao nosso caso concreto, o que está em causa é aferir se cada uma das arguidas, segundo os seus conhecimentos e as suas capacidades pessoais, se encontrava em condições de cumprir o dever de cuidado que integra o tipo negligente. Só respondendo afirmativamente a esta questão poderá afirmar-se que cada uma das arguidas documentou no facto qualidades pessoais de descuido ou leviandade perante o direito e as suas normas, pelas quais tem de responder – por outras palavras, só assim poderá dizer-se que o médico actuou com culpa negligente. No entanto, para determinar se cada uma das arguidas se encontrava ou não em condições de cumprir o dever de cuidado que integra o tipo negligente, há-de ter-se em conta não o poder das médicas concretamente em causa, mas sim os conhecimentos e as capacidades pessoais dos outros médicos como as arguidas. Vai averiguar-se se, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta das agentes, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e a teriam evitado[1]. Ora em face dos reparos que às suas condutas foram feitos em todas e cada uma das três perícias elaboradas e concluímos que, realmente, AA teria tido hipóteses de sobrevivência se tivesse sido transferido atempadamente para Faro. As arguidas, na impossibilidade de no hospital de Portimão diagnosticarem correctamente o mal do doente, a solução que deram ao caso foi, a arguida EE (que saiu de serviço às 8h19m de dia 24) prorrogar (nessa altura já sem necessidade, porque em Portimão não havia mais nada a fazer) a manutenção de AA no hospital de Portimão, empurrando a responsabilidade de uma qualquer decisão sobre a transferência do doente para Faro para a arguida MM, e esta, a solução que deu ao caso foi o de mandar o doente para casa, para depois ir ao Centro de Saúde. As arguidas não só não conseguiram fazer nem o diagnóstico nem o prognóstico dos males do ofendido, como desistiram de prosseguir com outros exames que o pudessem elucidar, ainda que tivessem de ser realizados noutras unidades de saúde, e a arguida MM simplesmente livrou-se do paciente, mandando-o embora em bem pior estado de saúde do que viera e sem querer saber o que é que ele tinha. Ter ido à urgência do hospital ser atendido pelas arguidas foi para o AA igual a zero. Com isto não se pretende afirmar que o médico seja garante da cura do paciente ou da evitação da sua morte. A obrigação do médico é uma “obrigação de meios” e não de “resultado”, exigindo-se-lhe, de um lado, todo o esforço possível adequado a obter tais resultados, se a própria cura ou melhoria forem clinicamente possíveis (e já vimos que o era) e, de outro lado, todo o cuidado necessário a evitar a produção da lesão à saúde ou à vida do paciente, lesão que se pode traduzir num agravamento da já existente. De resto, como refere Maria da Conceição Ferreira da Cunha in «Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias», pág. 823, a propósito do crime de ofensas à integridade física por omissão, «(…) os médicos em serviço no hospital, em relação aos doentes que dão entrada nesse hospital, mormente os médicos que são chamados para tratar desses doentes, têm um dever jurídico de garante – o que quer dizer que podem vir a ser responsabilizados pelos danos de que esses doentes venham a padecer, desde que tais danos se possam imputar à sua conduta omissiva (dolosa ou negligente); por outras palavras, desde que não tenham praticado a conduta (possível) adequada (previsivelmente adequada) a evitar esses danos.». E mais à frente: «nos crimes por omissão, o dano não decorre directa e do ponto de vista naturalístico, da omissão, mas de algo anterior (doença, acidente, etc.), algo a que o omitente geralmente foi alheio (…); ou seja, a vítima já está em perigo quando se impõe o dever de o agente actuar. Mas quando se responsabiliza o agente pelo dano que vem a ocorrer, por omissão, é porque se entende que o agente (colocado, é claro, numa posição de garante) podia ter interrompido aquele processo naturalístico, tomando medidas que previsivelmente evitariam o resultado e, de facto, não as tomou». Assim, a decisão desta Relação será a de ordenar ao tribunal "a quo" que pronuncie as arguidas pela prática, como autoras materiais e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos art.º 15.º al.ª a) e 137.º, n.º 1, do Código Penal. E isto porque não compete ao Tribunal da Relação apreciar os factos apurados e substituir-se ao tribunal de 1.ª Instância na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas apenas, por força do recurso, com a base indiciária recolhida, corroborada ou não por outros elementos de prova, decidir se no seu conjunto são suficientes ou insuficientes para a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância (neste sentido: ac. TRE de 1-3-2005, proc. 1481/04, relator Orlando Afonso; e ac. TRL de 10-7-2007, proc. 1075/07-5, relatora Margarida Blasco, ambos em www.dgsi.pt). Não obstante, sempre se dirá que, no caso de o Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal decidir utilizar como contributos para a narração fáctica a redacção proposta pelos assistentes no ponto TT das conclusões de seu recurso, deverá fazê-lo com as seguintes correcções: Aonde no ponto u) consta: u) A leitura das radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de se tratar de uma cólica renal e da visualização do calibre da aorta abdominal ser muito limitada pela interposição de gasosa digestiva. Deverá antes constar (a parte alterada vai a sublinhado): u) Apesar da leitura das radiografias abdominal, renal e vesical arredarem a possibilidade de se tratar de uma cólica renal e da visualização do calibre da aorta abdominal ser muito limitada pela interposição de gasosa digestiva. Aonde no ponto aa) consta: aa) Desse modo, as arguidas não levaram a cabo os procedimentos técnicos adequados que as circunstâncias concretas impunham para se inteirarem das causas da dor precordial com irradiação para a zona dorsal, intensa e repentina, sentida por AA e, assim, ser este encaminhado para um Hospital Central para a realização de uma cirurgia cardio-toráxica. Deverá antes constar (a parte alterada vai a sublinhado): aa) Desse modo, as arguidas não levaram a cabo os procedimentos técnicos adequados que as circunstâncias concretas impunham para se inteirarem das causas da dor precordial com irradiação para a zona dorsal, intensa e repentina, sentida por AA e, assim, poder ser este encaminhado para um Hospital Central para a realização de uma cirurgia cardio-toráxica. Aonde no ponto bb) consta: bb) Actuaram, portanto, com total falta de prudência e de cuidado, já que, ao invés de determinarem a transferência do doente para o Hospital de Faro, a fim de ser submetido a exames complementares de diagnóstico necessários, conduta que podiam e deviam ter adoptado, optaram por lhe ministrar analgésicos sem que tivessem diagnosticado cada um dos sobreditos sintomas. Deverá antes constar (a parte alterada vai a sublinhado): bb) Actuaram, portanto, com total falta de prudência e de cuidado, já que, ao invés de determinarem a transferência do doente para o Hospital de Faro, a fim de ser submetido a exames complementares de diagnóstico necessários (e assim poder ser este depois encaminhado ainda para um hospital central de Lisboa para a realização de uma cirurgia cárdeo toráxica), conduta que podiam e deviam ter adoptado, optaram por lhe ministrar analgésicos sem que tivessem diagnosticado cada um dos sobreditos sintomas. III Termos em que, concedendo provimento ao recurso interposto pelos assistentes, se decide revogar o despacho recorrido e ordenar ao tribunal "a quo" sejam as arguidas MM e EE pronunciadas pela prática, como autoras materiais e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos art.º 15.º al.ª a) e 137.º, n.º 1, do Código Penal. Não é devida tributação. # Évora, 6-11-2018 (elaborado e revisto pelo relator) João Martinho de Sousa Cardoso Ana Maria Barata de Brito _________________________________________________ [1] Sónia Fidalgo: «Responsabilidade Penal por Negligência no Exercício da Medicina em Equipa», Coimbra Editora, 2008, pág.s 82 e 93-94. |