Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
Descritores: | ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO COMPETÊNCIA TRIBUNAL COMUM TRIBUNAL ADMINISTRATIVO | ||
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Data do Acordão: | 06/05/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. Constitui jurisprudência consolidada a de que as ações de reivindicação são da competência dos tribunais comuns. II. A natureza real da ação que, para além do mais, corre entre privados, não é descaracterizada pela circunstância de ter sido formulada pretensão indemnizatória. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo 1198/23.5T8FAR.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Central Cível de Faro – Juiz 1 I. Relatório «(…)», (…), (…), (…), (…) e (…), autoras nos presentes autos que movem a “(…), Unipessoal, Lda.” e (…), inconformados com a decisão que, julgando verificada a exceção dilatória da incompetência em razão da matéria nos termos dos artigos 96.º, 97.º, 99.º, n.º 1, 577.º, alínea a) e 578.º , todos do CPCiv., absolveu os RR da instância e determinou a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, dela interpuseram o presente recurso, cuja alegação remataram com as seguintes conclusões: 1) Os Autores intentaram uma acção de reivindicação de propriedade contra os Réus “(…), Unipessoal, Lda.” e (…). 2) Os Autores formularam o seguinte pedido: a) Declarar-se que as AA. são legítimas donas e proprietárias do prédio sub judice; b) Os RR. serem condenados a restituir a posse às AA. do imóvel sub judice, livre de quaisquer ónus ou encargos, com o consequente cancelamento do artigo n.º (…), da freguesia de (…), da matriz predial urbana e, ainda: c) A reconhecer e respeitar esse direito de propriedade e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito; d) A cessar de imediato a intromissão e a prática de qualquer acto que viole o direito de propriedade das AA. sobre o prédio sub judice; e) Condenar os RR., solidariamente, a proceder à demolição de todas as edificações por si erigidas no prédio sub judice, responsabilizando-se por todos os encargos daí advenientes. f) Condenar-se os RR. ao pagamento de uma indemnização às AA. a título de danos emergentes e lucros cessantes em montante a liquidar em incidente de liquidação de sentença, acrescido de juros moratórios desde a citação até integral pagamento. 3) Em 2024.10.16 foi notificada a sentença ora recorrida que julgou procedente a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria – cfr. artigos 96.º, 97.º, 99.º, n.º 1, 577.º, alínea a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil – e, por conseguinte, decidiu absolver os réus da presente instância, determinando a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, nos termos do n.º 2 do artigo 99.º do Código de Processo Civil. 4) Com o presente recurso os Recorrentes pretendem a revogação da sentença proferida pelo Tribunal a quo supra referida; 5) A sentença recorrida que julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria (artigos 96.º, 97.º, 99.º, n.º 1, 577.º, alínea a) e 578.º do CPC) padece, salvo melhor opinião, de error in judicando, ao ponderar erradamente os critérios de atribuição de competência, designadamente: a. Pretensão do autor, a causa de pedir e de pedido; b. Não aplicação do n.º 2 do artigo 4.º do ETAF; c. Inexistência de qualquer relação administrativa. 6) Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor – objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19,quanto aos elementos objectivos de identificação da acção). 7) No caso sub judice, o Tribunal a quo percepcionou a «A Agência Portuguesa do Ambiente, I.P.» (APA, IP) e pretendeu enxertar a discussão do contrato administrativo, quando a causa de pedir e o pedido são dirigidos aos RR. e ora Recorridos “(…), Unipessoal, Lda.” e (…). 8) Em todo o caso, não se está a discutir este contrato, pelo que não está preenchido o âmbito objetivo do artigo 4.º do ETAF. 9) Por outro lado, não se trata de caso em que é ou foi formulado pedido também contra a APA, em regime de solidariedade, o que determinaria a competência dos Tribunais administrativos. 10) O artigo 4.º, n.º 2, do ETAF não está, sequer, teleologicamente, desenhado para o caso dos autos. 11) A Jurisprudência é ainda muito consistente quanto à complexidade objectiva e subjectiva do objeto da acção. 12) Os sujeitos, a causa de pedir e o pedido são a raiz da competência do Tribunal. 13) No que à configuração objectiva e subjectiva do litígio diz respeito cumpre dizer o seguinte: (i) Não se pretende discutir qualquer contrato ou relação administrativa; (ii) Os pedidos e a causa de pedir assentam (e nascem) numa esfera exclusivamente privada; (iii) Os pedidos e causa de pedir são genética e funcionalmente dirimidos a partir da ocupação ilegal de um terreno privado; (iv) A APA não é, nem tem de ser, demandada pelos Autores. 14) A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe, apenas, na esfera dos Tribunais Judiciais. (Neste sentido vide Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23-03-2022, Processo n.º 015/20, publicado in www.dgsi.pt). 15) Efectivamente, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe, apenas, na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19 e de 02.12.2021, Proc. 03802/20.8T8GMR.G1.S1, todos consultáveis in www.dgsi.pt). 16) Acresce que, de acordo com a informação prestada no processo por parte da «Agência Portuguesa do Ambiente» (APA), o bar da praia situa-se, sem qualquer margem de dúvida, em terrenos particulares, para além de que os equipamentos erigidos e cuja remoção se visa com a presente acção, foram equipamentos edificados pelo 1.º R., ora Recorrido, não se tratando de quaisquer equipamentos edificados por parte da APA. 17) “Os tribunais comuns são os competentes para apreciarem uma acção de reivindicação em que se pede a restituição de uma parcela de terreno ocupada abusivamente por um particular e a restituição de outra cedida inicialmente com vista à efectivação de um loteamento no qual posteriormente a interessada cedente deixou de ter qualquer interesse” (Neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-09-2013, Processo n.º 032/13, publicado in www.dgsi.pt). 18) Em suma, a sentença do Tribunal a quo é recorrível nos termos do artigo 644.º, n.º 2, alínea b), do CPC, por error in judicando ao aplicar erradamente os artigos 96.º, 97.º, 99.º, n.º 1 do CPC e n.º 2 do artigo 4.º do ETAF, por ter desatendido à pretensão dos Autores modelada pelos sujeitos demandados, pela causa de pedir e pelos pedidos, nunca alicerçados em qualquer relação administrativa ou dirigidos a qualquer entidade pública ou investida nesses termos”. Com os referidos fundamentos concluem pela procedência do recurso e consequente revogação da decisão recorrida. Os apelados contra alegaram e, tendo defendido a manutenção da decisão impugnada, suscitaram a título de questão prévia a inadmissibilidade dos recurso, por válida renúncia por parte dos apelantes, uma vez que, tendo-lhes sido facultado o contraditório prévio, tendo-se embora pronunciado pela competência do tribunal judicial da comarca de Faro, pediram subsidiariamente, e para o caso de assim não ser entendido, a remessa dos autos ao TAF competente nos termos do disposto no artigo 99.º, n.º 2, do CPCiv. * Da questão préviaConforme se enunciou, pretendem os RR apelados que os AA renunciaram prévia e validamente à interposição do recurso, pelo que o agora interposto não deverá ser admitido. Mas não têm razão, o que se antecipa. O artigo 632.º do CPC, epigrafado de “Perda do direito de recorrer e renúncia ao recurso”, dispõe que: “1. É lícito às partes renunciar aos recursos; mas a renúncia antecipada só produz efeito se provier de ambas as partes. 2. Não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida. 3. A aceitação da decisão pode ser expressa ou tácita. A aceitação tácita é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer. (…) 5. O recorrente pode, por simples requerimento, desistir livremente do recurso interposto até à prolação da decisão”. Resulta claramente do preceito que a renúncia antecipada – a que tem lugar antes de proferida a decisão –, para ser válida, tem que provir de ambas as partes e ser expressamente declarada. Ao invés, a aceitação da decisão, que só pode ter obviamente lugar depois desta ter sido proferida e ser conhecida, pode ser expressa ou tácita, podendo assim resultar de atos que inequivocamente a demonstrem. No caso dos autos, e como se vê da alegação dos próprios apelados, no exercício do contraditório prévio não deixaram os AA, ora recorrentes, de se pronunciar no sentido da competência dos tribunais comuns, na circunstância o Tribunal Judicial da Comarca de Faro. É certo que subsidiariamente, e para o caso, que se veio a verificar, do tribunal decidir absolver os RR da instância por via da procedência da exceção da incompetência material, pediram a remessa dos autos ao TAF competente sem que daí se possa extrair, a nosso ver, uma conduta concludente no sentido da aceitação desta última decisão, que à data não havia sido proferida. Seja como for, considerando que a validade da renúncia depende de provir de ambas as partes, o que não se verificou, tendo-se os apelados abstido de se pronunciarem então sobre a questão, nada obstava a que os AA, vencidos, apresentassem o presente recurso. Improcede, pelo exposto, a invocada questão prévia. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui única questão a decidir determinar qual o tribunal competente em razão da matéria para dirimir a causa.* II. FundamentaçãoDe facto Relevam para a decisão os factos relatados em I. e ainda os seguintes: 1. Na presente acção os AA formularam os seguintes pedidos: a) Declarar-se que as AA. são legítimas donas e proprietárias do prédio sub judice; b) Os RR. serem condenados a restituir a posse às AA. do imóvel sub judice, livre de quaisquer ónus ou encargos, com o consequente cancelamento do artigo n.º (…), da freguesia de (…), da matriz predial urbana e, ainda: c) A reconhecer e respeitar esse direito de propriedade e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito; d) A cessar de imediato a intromissão e a prática de qualquer acto que viole o direito de propriedade das AA. sobre o prédio sub judice; e) Condenar os RR., solidariamente, a proceder à demolição de todas as edificações por si erigidas no prédio sub judice, responsabilizando-se por todos os encargos daí advenientes. f) Condenar-se os RR. ao pagamento de uma indemnização às AA. a título de danos emergentes e lucros cessantes em montante a liquidar em incidente de liquidação de sentença, acrescido de juros moratórios desde a citação até integral pagamento. 2. Para tanto alegaram, em síntese útil, que são comproprietárias do prédio rústico denominado “(…)”, sito em (…), concelho de Loulé, o qual confronta do sul com mar, encontrando-se inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da freguesia da (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), tendo intentado no ano de 2017 acção declarativa contra o Estado Português, representado pela Agência Portuguesa do Ambiente, IP, pedindo o reconhecimento da propriedade privada das AA e demais comproprietários sobre a parcela de margem adjacente das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis na confrontação sul do dito imóvel. 3. A acção referida no ponto anterior, instaurada ao abrigo do DL 54/2005, de 15 de Novembro, correu termos no Tribunal Judicial de Faro – Juízo Central Cível de Faro – Juiz 2, sob o n.º 2425/17.3T8LLE e foi julgada procedente por sentença proferida em 26/12/2019, transitada em julgado. 4. Mais alegaram que os RR ocupam ilegitimamente parcela do aludido prédio, nele tendo procedido a diversas edificações, nas quais exploram restaurantes e apoios de praia, ocupação que vem causando prejuízos às AA., que lhe pretendem pôr termo, pretendendo por isso a condenação dos demandados na devolução da parcela ocupada, livre de ónus ou encargos, procedendo à demolição das referidas edificações, e ainda no pagamento de indemnização para reparação dos prejuízos causados – aqui tendo elencado “a) todos os ganhos que se frustraram, designadamente, os lucros obtidos ilegitimamente pelos RR com a exploração comercial do “(…) Restaurante Beach Bar” (…); b) pelo menos a quantia de € 28.132,66 que a Agência Portuguesa do Ambiente obteve dos RR a títulos de taxas (…) e c) o eventual preço pago pela cessão da posição contratual entre o 2º Réu e a 1ª Ré” – a liquidar posteriormente em incidente. 5. Os Réus contestaram e, tendo impugnado os limites do prédio indicados, uma vez que os mesmos não foram definidos pela sentença proferida no dito processo 2425/17.3T8LLE e as demandantes não procederem à respetiva concretização nos termos previstos no DL 353/2007, de 26 de Outubro, defenderam-se ainda por exceção, aqui tendo invocado o abuso de direito. Deduziram ainda reconvenção, pedindo o reconhecimento do direito de propriedade do 2º Réu, por acessão industrial imobiliária, do imóvel em que se encontra implantado o estabelecimento comercial, a que corresponde o artigo matricial (…), da freguesia da (…), fixando-se o valor de aquisição no montante de € 5,00 ou, no máximo, de € 250,00; subsidiariamente, pediram a condenação das AA reconvindas no pagamento de indemnização no montante de € 854.000,00. * De DireitoDa competência em razão da matéria Nos termos do artigo 211.º, n.º 1, da CRP, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, do que decorre a consagração do princípio da competência genérica ou residual dos tribunais comuns, depois reafirmado no artigo 64.º do CPC. O artigo 212.º, n.º 3, da Constituição estabelece ainda que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Comentando esta norma, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (CRP anotada, 3.ª ed., pág. 815, em anotação ao preceito) dizem estar em causa “(…) apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, artigo 4.º)”. Não obstante a aparente clareza do critério consagrado no referido preceito constitucional, cedo se reconheceu que (…) há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se tratam de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado.”[1] Prescindindo de um critério puro, o legislador do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, veio consagrar, no n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.” Não interessando ao caso discutir se estamos perante um elenco taxativo[2], remetendo o critério constitucional para um papel subsidiário, ou antes perante uma “(…) enumeração exemplificativa, através da qual podemos delimitar ou balizar os critérios que de alguma forma se encontram subjacentes a todas as situações especialmente previstas, e que sejam determinantes para a subordinação dos pleitos à jurisdição administrativa, para tanto recorrendo a técnicas de interpretação da lei”[3], a competência dos tribunais administrativos e fiscais dependerá de estarmos perante um litígio que integre a previsão de alguma das alíneas do n.º 1 ou observe o critério plasmado no n.º 2. Revertendo ao caso dos autos, concluiu-se na decisão recorrida que a competência cabia aos tribunais administrativos por via do critério “da natureza da relação jurídica concreta subjacente ao litígio”. Para tanto, não obstante o reconhecimento de que a entidade administrativa não intervinha nos autos, considerou-se tinha sido esta a autorizar a ocupação que legitimou a atuação dos RR e que “a materialidade fática invocada pelas autoras implicará a apreciação da eventual caducidade do contrato de concessão ao abrigo do qual a ocupação da parcela do terreno em causa teve lugar e a interpretação dos seus dizeres, designadamente quanto à titularidade do direito de propriedade sobre as edificações e infraestruturas de utilização pública construídas no terreno dos AA ou o direito destes ao recebimento das taxas que, até agora, foram sendo recebidas pelas autoridades marítimas com competência para tal”. Não subscrevemos tal argumentação nem a conclusão a que se chegou. Vejamos porquê. É pacífico que para efeitos de determinação do tribunal materialmente competente haverá que ter em conta a pretensão formulada pelo autor e fundamentos que a suportam, ou seja, o pedido e a causa de pedir. Segundo o critério enunciado, analisada a petição inicial apresentada nos autos, verifica-se que a presente acção se apresenta com a estrutura típica de uma ação de reivindicação: as AA, arrogando-se a (con)titularidade do direito de propriedade sobre determinado prédio de natureza rústica e a ocupação de parcela que o integra por banda dos RR, terminam pedindo a sua restituição, não sendo a natureza real descaracterizada pelo facto de ter sido cumulada uma pretensão indemnizatória. Assim configurada, a ação instaurada pelas AA não apresenta qualquer conexão com uma relação jurídica de índole administrativa, antes se encontra ancorada no direito privado. Acresce que nem os RR, na contestação que apresentaram, e para utilizar uma expressão dos próprios, enquadraram a ação “num quadro e ambiência” de direito público, não tendo intentado justificar a ocupação da parcela reivindicada com a existência e subsistência do contrato de concessão, antes impugnando os limites do prédio indicados pelas demandantes, assim questionando que integre o prédio rústico de que dizem ser comproprietárias, a par da invocação do abuso de direito, exceção que fundaram no conhecimento que as reivindicantes teriam dos termos e fundamentos de tal ocupação, com a qual se teriam conformado ao longo de quase 30 anos, assim apontando aparentemente à figura da suppressio. Nestes termos definido o objeto da acção, balizado pela causa de pedir e pelo pedido, afigura-se que não integra a previsão do artigo 4.º do ETAF, nos termos do qual “1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública; d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos; e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso; h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público; i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime; j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal; k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas; l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias; m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal; n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração; o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. 2. Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade. 3. Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de: a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa; b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal; c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões. 4. Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso; b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público; c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente; d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça; e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva. Analisadas as diversas alíneas do n.º 1 do preceito que se vem de transcrever, e a despeito do entendimento expresso na decisão recorrida, não vemos que a presente acção preencha a previsão de alguma delas ou cumpra o critério do n.º 2. Diversamente, atendendo à configuração da presente ação, tal como resulta da causa de pedir e pretensões formuladas pelas AA, conclui-se que está antes em causa uma relação jurídica de direito privado, sendo portanto o seu julgamento da competência reservada dos tribunais judiciais, tanto mais que nenhum ente público é parte no processo. Vale pois aqui o critério apontado no acórdão deste TRE de 2/10/2018 (processo n.º 3652/17.T8FAR.E1, acessível em www.dgsi.pt), segundo o qual “a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objeto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objeto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal não judicial”. O entendimento de que as ações de reivindicação são da competência dos tribunais judiciais encontra-se aliás jurisprudencialmente consolidado – sirvam de exemplo, para além do TRE acima identificado, ainda os acórdãos do TC de 26/1/2017, processo 052/14; de 13/12/2018, processo n.º 043/18; de 23/05/2019, processo n.º 048/18; de 23/01/2020, processo n.º 041/19; de 15/02/2023, processo n.º 014/21; de 23/3/2022, processo n.º 015/20; de 18/4/2024, processo 0385/17.0 BEMDL, todos acessíveis em www.dgsi.pt. Cumpre finalmente observar que, ainda a entender-se que a questão da subsistência do contrato de concessão assumia aqui relevância, nem por isso a competência deixava de ser dos tribunais comuns, podendo eventualmente suscitar-se a questão da suspensão dos autos nos termos prevenidos no artigo 92.º, n.º 1, do Código do Processo Civil (cfr. os acórdãos do TC de 18/4/2024 e de 26/1/2017 supra citados). Resulta do exposto que não pode manter-se a decisão recorrida, sendo a competência para a causa legalmente deferida aos tribunais comuns, na circunstância o Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Cível de Faro. * Sumário: (…)* III. DecisãoAcordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso e, revogando a decisão recorrida, declaram a competência do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Cível de Faro. Custas a cargo dos RR, por terem decaído (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.). * Évora, 05 de Junho de 2025Maria Domingas Simões Mário João Canelas Brás Vítor Sequinho dos Santos __________________________________________________ [1] Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Almedina, vol. I, pág. 26, citados no identificado acórdão do TRE de 2 de Outubro de 2018 (processo n.º 3652/17.T8FAR.E1, acessível em www.dgsi.pt). [2] Assim o entende Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3.ª Edição, págs. 158 a 160. [3] Do acórdão do STJ de 8/2/2024, processo n.º 45758/21.9YIPRT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, no qual se expressou ainda o entendimento de que “(…) pese embora seja exaustiva a descrição das situações e litígios que deverão ser submetidos à apreciação e julgamento dos tribunais administrativos, não é a mesma taxativa, tal resultando explícito daquela alínea o)”, o acórdão do STJ de 8/2/2024, processo n.º 45758/21.9YIPRT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt |