| Acórdão do Tribunal da Relação de  Évora | |||
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| Relator: | ANTÓNIO FERNANDO MARQUES DA SILVA | ||
| Descritores: | CONTRATO-PROMESSA MORA INCUMPRIMENTO DEFINITIVO SINAL | ||
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| Data do Acordão: | 10/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
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| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO RECORRIDA | ||
| Área Temática: | CÍVEL | ||
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| Sumário: | Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC): - no contrato-promessa, em caso de constituição autónoma de ambas as partes em mora, pode uma delas converter a mora em incumprimento definitivo. - sendo equivalentes os contributos de ambas as partes para a situação de incumprimento, em sentido amplo, o sinal deverá ser restituído em singelo, excluindo-se a sua devolução dobrada. | ||
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| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora I. AA, Lda., intentou contra BB e CC a presente acção, formulando o seguinte pedido: Pagar à Autora a quantia total de 34.500,00 € (tinta e quatro mil e quinhentos euros) e ainda nos juros de mora à taxa legal contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento. Alegou para tanto, no essencial, que: - entre a A. e os RR. foi celebrado contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma, cuja escritura deveria ser realizada até 11.03.2024, cabendo ao A. marcar a escritura e notificar os RR.. - pagou aos RR. 17.250 euros a título de sinal. - a A. marcou a escritura pública, a qual não se realizou por falta da apresentação das guias do IMT e IS e da declaração emitida pela administração do condomínio, documentos que cabia aos RR. apresentar. - a 14.03.2024 enviou uma carta para cada um dos RR. concedendo um prazo para a entrega dos elementos em falta, findo o qual considerava o contrato definitivamente incumprido. Não foi apresentada contestação. A A. apresentou alegações sustentando a procedência da acção. Foi depois proferida sentença que absolveu os RR. do pedido. Dessa sentença foi interposto o presente recurso pela A., formulando as seguintes conclusões: 1-O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC). 2- Discorda a recorrente da argumentação aduzida pela decisão recorrida que se reduz à falta de apresentação por parte dos promitentes vendedores da declaração de não dívida do Condomínio, considerando que a não entrega de tal declaração não impede a realização da escritura. 3- No caso concreto não só ficou convencionado no Contrato Promessa de Compra e Venda que essa obrigação caberia aos promitentes vendedores (cláusula quarta, nº 3) como a recorrente não aceitaria assumir essa responsabilidade. 4- A escritura foi marcada pela recorrente não se tendo realizado por falta de entrega da declaração do condomínio e das guias para o pagamento dos impostos. 5- A entrega da declaração, sendo impeditiva da realização da escritura, não pode ser considerado um dever secundário mas sim um dever principal pois a sua falta inviabilizou a celebração da escritura. 6- Foi enviada interpelação admonitória para que se pudesse declarar o incumprimento definitivo da parte faltosa. 7- Mas mesmo que se considere que se trata de uma obrigação acessória, dúvidas não há que o seu incumprimento, inviabilizou o cumprimento da obrigação principal (conferir a declaração do Cartório – doc nº 3 junto à petição inicial). 8- No caso em concreto e pese embora o pagamento dos impostos seja uma obrigação da recorrente, a emissão das guias só é possível caso os promitente vendedores não tenham dívidas. 9- Os promitentes vendedores no dia da escritura apresentaram uma declaração da Autoridade Tributária falsificada a atestar da inexistência de dívidas, o que não sendo verdade, impediu a emissão das guias dos impostos e consequentemente o seu pagamento (doc nº 3 junto à petição inicial). 10- A interpelação admonitória refere: “Mais informamos que iremos também apresentar queixa crime por causa da apresentação de documentos falsificados” – documentos nºs 4 e 5 juntos com a petição inicial. 11- A não entrega dos documentos em falta, como veio na realidade a suceder, inviabilizou a marcação de nova escritura e determinou a resolução do contrato promessa de compra e venda por incumprimento. 12- Seguir a tese da Sentença recorrida equivale a esvaziar o alcance e o objectivo da interpelação admonitória que não serviu para nada, originando sim uma repercussão negativa “no equilíbrio sinalagmático do contrato-promessa” beneficiando claramente os infractores, no caso, os promitentes vendedores. 13- Os recorridos não apresentaram a declaração do Condomínio e possuem dívidas fiscais impeditivas de emitir as guias para o pagamento dos impostos, inviabilizando a realização da escritura pública de compra e venda. 14- Os factos dados como provados justificam a resolução do contrato por incumprimento da obrigação definitiva. 15- O direito de resolução do contrato promessa, por incumprimento imputável a um dos contraentes, abrange apenas o incumprimento definitivo, artigos 432º, nº 1, 799.ºnº.1 1 e 801º, nº 2, do Código Civil, ou seja, no caso, não foi convertida a mora em incumprimento mediante fixação de prazo razoável para cumprir, a chamada interpelação admonitória, artº. 808º. do Código Civil. 16- A indemnização instituída pelo artº.442º, nº.2 do Código Civil só tem lugar quando ocorra uma situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa imputável a uma das partes - (pois, pressupõe que uma parte esteja em falta e a outra não) - e não de simples mora. 17- Impõe-se a revogação da decisão recorrida, condenando-se os recorridos, nos termos do artigo 442º, nº 2 do Código Civil, sendo o incumprimento imputável a eles imputável, tem a recorrente direito a exigir o sinal em dobro, ou seja a quantia de 34.500,00 € (tinta e quatro mil e quinhentos euros), que os recorridos devem ser condenados a pagar. 18- mesmo que tal não assim não fosse, a recorrente teria sempre o direito de receber o sinal em singelo. O R. BB respondeu, sustentando a improcedência do recurso com base na argumentação da sentença recorrida. II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa». Assim, importa verificar se a recorrente tem direito a receber o sinal em dobro ou, subsidiariamente, em singelo. III. Foram considerados provados os seguintes factos [1]: 1) A 22 de Fevereiro de 2024 entre Autora e Réus foi celebrado contrato denominada «contrato promessa de compra e venda», tendo por objecto a fracção autónoma designada pela letra “AO”, que corresponde ao 2º andar direito para a habitação, destinada a habitação, que faz parte integrante do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida 1, nº 170, 170ª a I, concelho de Cidade 1, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o nº 2272, da freguesia de Cidade 1 (Local 1), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 14739 da freguesia de Cidade 1. 2) No contrato em referência as partes previram o seguinte: Cláusula Quarta (Data e local da escritura) 1. Estipulam as Partes que a Escritura de Compra e Venda/Documento Particular Autenticado deverá ser celebrada, até ao dia 11 de março de 2024, podendo o prazo ser prorrogado por mais 10 (dez) dias úteis, caso a Parte Promitente Vendedora, não consiga garantir para esta data a presença do agente de execução, entidade que garantirá o cancelamento da penhora. 2. A Escritura de Compra e Venda/Documento Particular Autenticado será marcada com antecedência mínima de 10 (dez) dias de calendário face ao termo do prazo acima indicado, devendo a Parte Promitente Compradora, notificar a Parte Promitente Vendedora, pelos meios previstos na cláusula décima, de qual o dia e a hora da respetiva e local de celebração da mesma. 3. A Parte Promitente Vendedora, ou quem a represente, obriga-se a fornecer à Parte Promitente Compradora, até 5 (cinco) dias antes do contrato prometido, todos os documentos relativos ao imóvel objeto do presente contrato, que sejam legalmente exigíveis, para a celebração da prometida Escritura de Compra e Venda/Documento Particular Autenticado, todos os elementos identificativos e documentais que lhe diga respeito, bem como, do Imóvel, objeto do presente CPCV, nomeadamente uma declaração da administração do condomínio, da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente ao imóvel prometido vender, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento. 3) O preço acordado no contrato prometido foi de 172.000,00€. 4) Na data da celebração do contrato, a Autora pagou ao Réu a título de sinal, 17.250,00 €. 5) No dia 08 de Março de 2024, a Autora marcou a escritura pública de compra e venda no Cartório Notarial de Setúbal da Notária DD, não se tendo realizado a mesma por falta da apresentação das guias do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis e de Imposto de Selo, assim como a declaração emitida pela administração do condomínio. 6) A 14 de Março de 2024, a requerente enviou uma carta para cada um dos requeridos, concedendo um prazo «de 20 dias para a entrega dos elementos em falta de modo a possibilitar a realização da escritura pública de compra e venda, findo os quais consideramos o contrato definitivamente incumprido com todas as legais consequências, ou seja, com a devolução do sinal pago em dobro». Adita-se ainda o seguinte facto: 7) Consta também do contrato-promessa a seguinte: Cláusula Quinta (Despesas) 1. Todas as despesas com a respetiva Escritura de Compra e Venda/ Documento Particular Autenticado, IMT, Imposto de Selo e Registos a que der lugar a celebração do Contrato Definitivo serão suportadas pela Parte Promitente Compradora. Consignou-se também, na sentença recorrida, que não resultaram por provar quaisquer factos essenciais. IV.1. O facto descrito em 7) foi aditado ao abrigo do art. 662º n.º1 do CC, face ao documento junto aos autos que corporiza o contrato-promessa, sendo dispensável o contraditório por tal facto já ter sido considerado na sentença recorrida (embora sem o descrever nos factos provados) e se tratar de facto decorrente de documento que nenhuma das partes contesta (a A. quer dele prevalecer-se e o R., no recurso, não o discute). 2. Está em causa um contrato-promessa bilateral de compra venda. Os factos ajustam-se a esta qualificação (art. 410º n.º1 do CC), a qual não vem discutida. 3. A obrigação principal decorrente deste contrato-promessa analisa-se na celebração do negócio prometido (em rigor, emitir, na forma legal, as declarações de vontade constitutivas de tal negócio). Em regra, do contrato-promessa, como em qualquer relação obrigacional complexa, decorrem outras obrigações ou deveres, revestindo uma natureza instrumental ou acessória (a terminologia é flutuante). A forma como se relacionam com o objectivo do contrato-promessa varia, porém, conferindo-lhes fisionomias distintas, o que se reflecte no regime a que devem subordinar-se. No caso, está em causa o cumprimento de deveres fiscais e de obtenção da declaração da administração do condomínio. Trata-se de prestações (comprovação do pagamento e apresentação de documento declarativo) instrumentais da prestação principal, e já que correspondem à obtenção de elementos necessários para a realização daquela, para a celebração do negócio prometido. Não têm autonomia porquanto se esgotam naquele papel instrumental, não satisfazendo interesses específicos e independentes nem tendo um valor próprio: o seu relevo esgota-se na colocação de condições essenciais ao cumprimento da obrigação principal. Surgem em exclusiva relação, mediata embora, com o interesse visado pela obrigação principal. Constituem, em formulação corrente (e adoptada na sentença recorrida) obrigações secundárias acessórias, não autónomas, da obrigação principal [2]. Ambas as obrigações referidas foram incumpridas pois, tendo sido marcada a realização da escritura (marcação compreendida na cláusula 4ª do contrato-promessa), esta não se efectuou por faltar a comprovação do pagamento do IMT e do imposto de selo e a declaração da administração do condomínio imposta pelo art. 1424º-A n.º 1 do CC. 4. Quanto àquele pagamento, ele condicionava a realização da escritura. Assim é, para o IMT, atento os art. 22º n.º1 e 49º n.º1 do CIMT, de onde decorre que o pagamento precede o acto translativo (art. 22º n.º1) e que os notários não podem lavrar as escrituras que envolvem tributação sem lhe apresentarem os documentos pertinentes, que arquivarão, sempre que a liquidação deva preceder a transmissão (art. 49º n.º). Também do Código do Notariado deriva que o comprovativo deve ser mencionado e ficar arquivado, nos termos do art. 46º al. f) do CNotariado [3]) - sendo, aliás, o notário solidariamente responsável pela falta de pagamento, caso não exija o documento comprovativo do pagamento (art. 49º n.º6 do CIMT). Semelhante solução vale para o imposto de selo devido nos termos do ponto 1.1 da tabela do imposto de selo, já que, sendo os notários sujeitos passivos nos contratos em que sejam intervenientes (art. 2º n.º1 al. a) do CIS), lhes cabe, nos casos cabíveis no referido ponto 1.1. da tabela, liquidar o imposto, valendo ainda as regras do CIMT referidas (art. 23º n.º1 e 4º do CIS), sendo que nos documentos e títulos sujeitos a imposto devem ser mencionados o valor do imposto e a data da liquidação (art. 23º n.º6 do CIS). A sua falta é imputável à recorrente, pois lhe cabia realizar o pagamento, atento o sentido da cláusula 5ª do contrato-promessa. Nada se constata, a partir dos factos provados, que permita afirmar que este incumprimento [4] se deve a circunstância alheia à recorrente. A alegação, em sede de recurso, de que tal se deveu ao facto de os recorridos terem apresentado «declaração da Autoridade Tributária falsificada a atestar da inexistência de dívidas, o que não sendo verdade, impediu a emissão das guias dos impostos e consequentemente o seu pagamento» [5] é inconsequente porque tardia e, nessa medida, indevida [6]. A alegação de factos conhece momentos próprios, a que se associam efeitos tendencialmente preclusivos, não podendo as partes alegar, em regra, factos novos em momento subsequente (art. 5º n.º1 e 552º n.º1 al. d) do CPC), como deriva do princípio da estabilidade da instância (art. 260º do CPC), do carácter limitado e excepcional da réplica (art. 584º do CPC), e do regime de modificação da causa de pedir (art. 264º do CPC), sendo que as excepções ao conhecimento de novos factos (que confirmam a regra preclusiva, apenas atenuando o seu rigor) derivadas dos art. 5º n.º2 al. b) e 588º n.º1 do CPC se não verificam no caso. E se assim é em geral, de forma acrescida vale para o âmbito dos recursos, dada a sua natureza de reponderação, assentando na reapreciação da decisão impugnada, nas condições em que foi proferida, e não num novo julgamento da causa que atenda a toda a realidade ou a circunstâncias não disponíveis para aquela decisão. Por isso que não seja admitida a invocação de factos novos (ou seja, não alegados) em sede de recurso (v. art. 611º n.º1 do CPC, o qual fixa o momento final de atendibilidade dos factos). A questão só não se mostra pacífica quanto a factos supervenientes mas não é, manifestamente, esse o caso dos autos. Assim, a alegação nunca poderia ser atendida nesta sede (para além, obviamente do muito saliente problema de a alegação não estar demonstrada, nem o poder ser nesta sede), Podia admitir-se também que a recorrente não teria interesse em proceder ao pagamento antes de verificar que todas as demais condições necessárias à celebração da escritura estavam verificadas, podendo ser essa também razão justificativa da falta de pagamento. Mas trata-se de hipótese que em momento algum foi aventada nem se mostra factualmente revelada (ao invés, a recorrente invocou razão diferente em sede de recurso, como se viu), pelo que não monta. 5. Quanto à declaração da administração do condomínio, a sua apresentação é imposta pelo art. 1424º-A n.º1 e 2 do CC, que expressamente a qualifica como documento instrutório obrigatório da escritura ou do documento particular autenticado de alienação da fracção em causa [7]. Apresentação devida, naturalmente, pelo condómino alienante, como deriva quer da letra do n.º1 do citado art. 1424º-A quer pela natureza e razão de ser do regime. Esta obrigação não pode ser qualificada como obrigação secundária autónoma, cujo incumprimento não inviabiliza o cumprimento da obrigação principal, como fez a sentença recorrida, com base na circunstância de esta declaração ser dispensada «se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fração, que prescinde da declaração do administrador» (art. 1424º-A n.º3 e parte final do n.º2 do mesmo artigo). Por duas razões. De um lado, porque ficou expressamente convencionado que a parte vendedora deveria entregar à parte compradora tal declaração, como elemento exigível para a celebração da escritura (número 3 da cláusula 4ª). A natureza da obrigação secundária pode derivar da sua natureza e função mas pode ser também convencionada pelas partes, podendo estas colocá-la como condição da celebração do negócio definitivo. E é esta imprescindibilidade convencional que logo deriva desta cláusula. De outro lado, e decisivamente porque se trata de razão que só por si impunha o afastamento do argumento, a apresentação da declaração pelo vendedor e a sua dispensa pelo comprador não são fungíveis porquanto a dispensa implica, para o comprador, a assunção da responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio (art. 1424º-A n.º3, in fine, do CC), responsabilidade que não teria de outra forma. Pois, como deriva da actual redacção do art. 1424º-A n.º3 e 4 do CC, as despesas relativas ao condomínio são da responsabilidade dos condóminos proprietários das fracções no momento em que se vençam [8] e, por isso, o adquirente não teria que suportar o pagamento das obrigações vencidas antes da aquisição. Donde que não seja indiferente a falta de apresentação da aludida declaração [9]. Assim, os recorridos só cumpriam a sua obrigação apresentando a declaração, e a recorrente não tinha que a dispensar (pois esta dispensa implicava uma possível oneração da sua posição) [10], podendo legitimamente manter o estatuto daquela declaração como elemento obrigatório da escritura. 6. Ambas as partes se constituíram assim em mora (culposa [11]), quanto às aludidas obrigações, por as não terem cumprido no momento devido (antes da agendada celebração da escritura), sendo, contudo, a sua realização ainda possível - art. 804º n.º2 do CC. Mas constituíram-se também em mora logo quanto à obrigação principal (emissão das declarações de vontade) pois esta também não foi cumprida no momento próprio, sendo contudo ainda possível, por facto imputável a cada uma das partes: por incumprimento das obrigações secundárias apontadas. De qualquer modo, e ainda que assim se não entendesse, ou seja, ainda que se entendesse que existia mora apenas quanto ao cumprimento das aludidas obrigações secundárias, o facto de estas terem uma natureza não autónoma, estritamente funcionalizada ao cumprimento da obrigação principal, permite sustentar que «se (...) o dever incumprido for acessório ou instrumental do cumprimento da obrigação principal, os seus efeitos são tipicamente absorvidos e consumidos pelo não cumprimento que ele provoca na prestação principal» [12], pelo que seria a falta equivalente, ao menos por esta via, à falta de cumprimento da obrigação principal. O que equivale a afirmar que ambas as partes se encontravam em mora, tout court. Sendo também claro no caso que o incumprimento é efectivamente bilateral, desde logo por ser simultâneo e autónomas as condutas ilícitas (mormente por não haver uma relação de dependência lógica entre as prestações omitidas, em termos de se poder dizer que a falta de uma se deve à omissão da outra, ou por não ocorrerem circunstâncias justificativas da excepção de não cumprimento). Existe, pois, uma «conjugação não concertada de condutas violadores». 7. A circunstância de as partes terem previsto um prazo para realização do negócio prometido não altera os termos da questão. Podem, com efeito, distinguir-se basicamente dois tipos de prazos, diferenciando-se entre prazo essencial e não essencial [13]. No prazo essencial, a sua ultrapassagem determina a extinção do contrato (essencial absoluto) ou provoca a constituição em incumprimento definitivo, mormente permitindo logo a resolução do contrato (essencial relativo). No prazo não essencial (ou relativo tout court), a sua ultrapassagem apenas provoca a constituição em mora (é este que o art. 805º n.º2 al. a) do CC pressupõe). A distinção assenta na vontade das partes e por isso a qualificação é essencialmente um problema de interpretação. No caso, releva a circunstância de o próprio contrato prever a prorrogação do prazo inicial. Também a inexistência de elementos que indiciem a existência de um prazo categórico, tido por essencial. Ainda a circunstância de a própria recorrente não invocar essa natureza do prazo. Por fim, o facto de se dever aceitar que, como regra ou salvo desmonstração diversa, o prazo deve ser qualificado como não essencial, desde logo por tal decorrer do regime base dos art. 804º, 805º n.º2 al. a) e 808º do CC, de onde deriva que o efeito normal da ultrapassagem do prazo é a constituição em mora, sendo necessárias condições adicionais para converter a mora em incumprimento definitivo (art. 808º do CC). Acresce que o efeito legal comum da fixação do prazo se analisa em impedir a exigibilidade ou o cumprimento imediato da prestação (art. 777º n.º1 do CC - conforme o prazo seja estabelecido a favor do devedor ou do credor, ou de ambos) e não em fixar o destino do negócio: nesta parte, a regulação não deriva directamente do prazo e por isso não é legítimo da sua mera estipulação, sem mais (ou seja, sem a expressão de uma vontade diversa clara), fazer decorrer um incumprimento definitivo. Esta é a regra do sistema e assim também o regime normal. Pelo que, face a este quadro legal, terá que existir uma vontade clara e indubitável das partes em excluir tal regime, sendo que, como nota Gravato Morais, a gravidade das consequências (no prazo essencial) postula certeza da estipulação. Por isso que também se afirme que, como regra, o prazo se deve ter por não essencial [14]. Assim, o prazo estipulado não contesta a asserção alcançada. 8. A mora dá origem a uma pretensão indemnizatória dos danos derivados do atraso na realização da prestação (art. 804º n.º1 do CC). Não é isso que está em causa na acção, em que se pede preferencialmente a devolução do sinal em dobro. No quadro específico do contrato-promessa, a mora não permite obter a restituição do sinal em dobro, no quadro do art. 442º n.º2 do CC, restituição esta que se entende depender da existência de um incumprimento definitivo a alcançar nos termos gerais. Esta solução não é, na verdade, ainda inteiramente pacífica, mas é jurisprudencialmente acolhida de forma claramente dominante (ou mesmo já pacífica), baseada em razões convincentes, que, em termos muito sintéticos (por a questão estar já amplamente debatida, tendo tal discussão conduzido a generalizado consenso jurisprudencial), atendem à letra da norma, à desejável coerência com o regime comum (não ocorrendo razões para diferenciar, sendo ainda certo que, em parte, o regime do sinal em causa nem é exclusivo do contrato-promessa) ou a razões históricas (relevando, em particular, o carácter terminal do mecanismo do sinal, associado à terminação definitiva do negócio, e a artificialidade da associação do mecanismo do sinal à mora). É essa solução a que se adere [V., a título exemplificativo, Acs. do STJ proc. 11623/21.4T8SNT.L1.S1 de 27.02.2025, proc. 2182/21.9T8BCL.G1.S1 de 12.11.2024, proc. 885/22.0T8VCT.G1.S1 de 19.09.2024, proc. 309/10.5TBTVD.L1.S1 de 18.06.2024, proc. 2117/18.6T8VRL de 11.11.2020, proc. 386/13.7T2AND.P2.S1 de 10.12.2019 ou proc. 9818/09.8TBVNG.P1.S1 de 15.03.2012, do TRE proc. 10139/20.0T8LRS.C1 de 08.04.2025, do TRG proc. 2182/21.9T8BCL.G1 de 07.03.2024 ou do TRL proc. 4592/19.2T8ALM.L1-2 de 11.03.2021 ou proc. 5439/12.6TBALM.L1-6 de 19.12.2013]. 9. O incumprimento definitivo (excluindo a impossibilidade de cumprimento) pode derivar, essencialmente, das seguintes circunstâncias: - de uma declaração antecipada de cumprimento ou recusa categórica em cumprir (que compreende ainda condutas tácitas, como falta de cumprimento de obrigação que revele intenção de não a cumprir). Os factos não revelam esta situação. - da existência de um prazo de tal determinante. Já se viu que não é esse o caso. - da mora, pela sua conversão em incumprimento definitivo através da perda objectiva de interesse na prestação, ou pela realização de interpelação admonitória. A perda objectiva de interesse não foi alegada nem se vislumbra a partir dos factos provados. Resta a interpelação admonitória, que a recorrente invocou [15]. Sustenta-se dominantemente que a interpelação admonitória compreende três elementos: i. uma intimação para cumprir, ii. a fixação de um prazo adicional, razoável e exacto, para cumprir, e iii. a declaração cominatória de que findo este prazo adicional, sem que ocorra a realização da prestação, se considera o contrato definitivamente incumprido [16]. A sentença recorrida considerou que não estaria verificado o primeiro elemento por a declaração da recorrente se reportar à obrigação secundária e não à obrigação principal, sendo a esta que a intimação se deveria dirigir. A interpelação admonitória constitui uma declaração unilateral receptícia, subordinada assim às regras da interpretação, no quadro do art. 236º do CC, relevando o sentido que, um declaratário normal na posição dos recorridos, retiraria do conteúdo da interpelação. A declaração em causa, tal como consta dos factos provados, caracteriza-se pela menção à entrega dos elementos em falta (que seria, na posição dos recorridos, apenas a aludida declaração do administrador do condomínio), mas envolve também, logo de seguida, a menção a que aqueles elementos, e o prazo fixado, visam a realização da escritura pública de compra e venda (que consubstancia a obrigação principal), e que, findo o prazo, consideravam o próprio contrato (ou seja, a vinculação às obrigações principais), definitivamente incumprido. Ou seja, a cominação abrange quer a obrigação secundária quer a obrigação principal, e surgem as duas porque a primeira é essencial para realizar a segunda (e a referência à obrigação secundária até se compreende por constituir um obstáculo determinante). Neste quadro, não custa aceitar que da declaração ainda decorre com suficiente precisão que a interpelação, e a cominação, têm directamente em vista a celebração do contrato prometido (ou seja, o cumprimento da obrigação principal), tanto que é este contrato, e não qualquer obrigação secundária, que consideram ficar incumprido (em caso de falta de colaboração). O que mais se acentua quando, como se viu, a apresentação da declaração do condomínio não constitui uma formalidade lateral, ainda que querida pelas partes, mas antes uma exigência legal vinculativa, condicionadora da realização do negócio prometido. Pois, dessa forma, a ligação entre o cumprimento da obrigação secundária e o cumprimento da obrigação principal mais se evidencia, já que o incumprimento daquela é, no plano funcional e valorativo, equivalente ao incumprimento desta: tanto monta recusar aquela como esta. Assim, em termos finais, o que se verifica é que a comunicação realizada deixa claro que se está a dar uma oportunidade à parte faltosa para remediar a falha, realizando as prestações em falta (secundária e principal, conexas entre si), ficando igualmente patente que, perante a reiteração da falha, o credor poderá optar por uma solução final. É este sentido que um declaratário normal, na posição concreta em causa, colheria sem sobressaltos da interpelação realizada, podendo assim admitir-se a sua regularidade e eficácia. Interpelações semelhantes foram já invocadas jurisprudencialmente sem que a sua regularidade fosse posta em causa [17]. Aliás, no Ac. do STJ proc. 2356/21.2T8PTM.E1.S1 de 11.01.2024 admitiu-se a eficácia de intimação admonitória para agendar a escritura do negócio prometido (e não para realizar o negócio-prometido), sendo que em, em rigor, este agendamento também constitui obrigação secundária distinta da obrigação principal (tanto que pode-se cumprir a obrigação secundária, agendando a escritura, e não cumprir a obrigação principal, emitindo a declaração de vontade prometida): a solução compreende-se e justifica-se dada a conexão umbilical existente entre as obrigações. A solução contrária, referida na sentença recorrida, justifica-se apenas quando estejam em causa obrigações secundárias ou acessórias autónomas, sem relevo directo na obrigação principal (v.g. pedido de informações sobre documentos necessários para a escritura, como se avaliou no Ac. do STJ proc. 211/21.5T8GMR.G1.S1 de 28.03.2023]. Em termos finais, podia ainda discutir-se o relevo da interpelação, a não valer nos moldes expostos, por outra via. Com efeito, e atendendo aos termos literais do art. 808º n.º1 do CC, esta norma não distingue, em rigor, a natureza da obrigação incumprida. Significa isto que o seu mecanismo pode ser legitimamente usado para converter a mora no cumprimento de uma obrigação secundária no seu incumprimento definitivo. O problema que subsistiria seria apenas saber quais os efeitos desse incumprimento definitivo (de uma obrigação secundária), mormente se e em que medida se poderia reflectir no próprio contrato. Ora, estando em causa obrigação secundária essencial, indispensável à realização da prestação principal, não custa admitir que o incumprimento definitivo daquela implica o incumprimento definitivo desta obrigação principal, já que sem aquela não pode esta cumprir-se. E assim podia atribuir-se ao incumprimento definitivo daquela, alcançado pela interpelação admonitória (caso não pudesse esta valer para a obrigação principal, o que não se admite contudo) o mesmo resultado que ao incumprimento definitivo desta [18]. Donde ser, por esta via, lícito alcançar o incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte dos recorridos. 10. Não contém a interpelação qualquer menção à opção do credor inerente ao incumprimento definitivo, mormente à resolução do contrato, nem tal menção se reputa necessária, por não constar do art. 808º n.º1 do CC [19]. Alcançado o incumprimento definitivo, cabe ao credor optar pela indemnização, pela resolução ou, para certo entendimento, até pelo cumprimento da prestação em falta. Essa opção evidencia-se na presente acção pela formulação do pedido atinente à devolução do sinal em dobro. Para além da natureza indemnizatória desta devolução, ela envolve ainda um efeito resolutivo do contrato e já que se entende que a opção por aquela devolução do sinal em dobro leva implícita a resolução (ou ao menos a extinção) do contrato, e já que, com aquela devolução, fica comprometida a manutenção dos deveres de prestar [20]. 11. Resta avaliar esta actuação à luz do diagnosticado incumprimento bilateral (em sentido amplo). Este incumprimento bilateral não tem regulação normativa directa. O CC em geral, e o art. 442º do CC em particular, estão notoriamente articulados em função do incumprimento unilateral. Perante a lacuna, suscitam-se dificuldades de tratamento do fenómeno. No âmbito essencialmente do incumprimento definitivo bilateral ou da impossibilidade bilateral imputável a uma das partes (e em regra no quadro do contrato-promessa), a jurisprudência tem vindo a optar por uma solução extintiva do contrato, com aplicação do regime do art. 570º do CC quanto às pretensões indemnizatórias. Em termos muito esquemáticos [21], é por vezes referida (e admitida) a resolução do contrato (ainda que por iniciativa de uma das partes), ou ao menos a extinção do contrato (que por vezes se faz derivar do próprio art. 570º do CC), sendo aquele art. 570º do CC invocado, ou ao menos os princípios que o enformam, para valorar as culpas relativas de cada parte e dessa forma avaliar a indemnização atribuível, sendo que em caso de culpas idênticas ficaria excluída a indemnização (mormente a devolução do sinal em dobro). Culpas que, por vezes, se tende a afirmar deverem presumir-se idênticas. Quanto ao contrato, extinguindo-se (mormente por resolução), importaria por essa via a devolução do sinal entregue [v Acs. do STJ proc. 4724/10, de 27.11.2018, proc. 9818/09, de 15.03.12, proc. 1508/18.7T8PTM.E1.S1, de 01.07.2021, proc. 148/14, de 12.09.2017, proc. 3018/06, de 25.11.2010, proc. 3026/05, de 11.09.2012, proc. 129/08.7TBFND.C1.S1, de 28.05.2015, ou do TRC proc. 1486/19.5T8VIS.C1, de 13.09.2022]. A doutrina oferece perspectivas variadas (em regra partindo do incumprimento definitivo bilateral [22] e não da mora bilateral, ou da mora face ao incumprimento definitivo), mas sempre atribuindo relevo próprio ao incumprimento bilateral, que tende a redundar, em caso de culpas iguais, na devolução do sinal em singelo, por vezes referindo-se também a extinção do contrato. Assim, V. Serra, em anotação na RLJ 104 pág. 10 e ss., numa situação peculiar, admite a aplicação do art. 570º do CC, em si ou na sua lógica, quer ao direito de resolução quer à indemnização derivado do incumprimento, ou impossibilidade (mas exclui a resolução em caso de culpas equivalentes); M. Leitão, referindo-se ao incumprimento imputável a ambas as partes, sustentava a restituição do sinal em singelo, inexistindo dever de indemnização porque ambas as partes a ele teriam direito e assim se extingue por compensação (Direito das obrigações Vol. I, Almedina 2000, pág. 207); a esta solução adere Gravato Morais, loc. cit. pág. 219 nota 426; C. da Silva apela ao regime do art. 570º para admitir a resolução do contrato e a regulação da indemnização, com restituição em singelo se as culpas forem iguais (Sinal e Contrato-Promessa, Almedina 2003, pág. 134 e ss., ou Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, suplemento do BFD, vol. XXX 1987, pág. 267 e ss.); Raúl Guichard e Sofia Pais sustentam uma extinção automática do contrato, com a restituição do sinal em singelo com base nos art. 442º n.º1 ou 570º do CC se os incumprimentos forem equivalentes, caso este em que negam a possibilidade de resolução (Contrato-promessa: resolução ilegítima (...), Direito e Justiça 14, n.º1, 2000, pág. 328 e ss.); H. Sousa Antunes também sustenta a restituição do sinal em singelo se as culpas forem equivalentes (Direito das obrigações, Almedina 2015, pág. 273); também Ana Afonso sustenta esta devolução em singelo no caso de culpas equivalentes (Comentário ao CC, Direito das obrigações, UCE 2018, pág. 170); Ana Prata exclui, neste incumprimento definitivo bilateral, ou mesmo na mora, a resolução mas sustenta a devolução do sinal em singelo se as culpas forem equivalentes, com base no regime do art. 473º do CC (loc. cit., pág. 718 e ss. e 801 e ss.); B. Proença, para faltas equivalentes, sustentava, excluindo a resolução, a extinção automática do contrato e a devolução do sinal em singelo, com base no art. 442º n.º1 do CC, admitindo embora o apelo à «ideia» do art. 570º do CC (Do incumprimento... cit., pág. 98 e ss.); actualmente, afirma-se menos certo da sua solução, excludente da resolução, nos casos de resoluções recíprocas a partir de incumprimentos com gravidade semelhante, e, sem ser assertivo quanto ao fundamento da devolução do sinal, chama a atenção para o problema indemnizatório do incumprimento bilateral, a solucionar através do critério misto do art. 570º do CC em função da importância das condutas contributivas (Lições (...) cit., pág. 396 e ss.; no âmbito específico da impossibilidade bilateralmente imputável, Catarina Pires, assumindo a existência de uma lacuna, acaba por admitir a aplicação do art. 570º do CC (Impossibilidade da prestação, Almedina 2023, pág. 786/7); também no quadro da impossibilidade imputável a ambas as partes, A. Varela admite a resolução do contrato (loc. cit., pág. 343 nota 1); sobre a questão pode ver-se também Tomás Selas, o qual, em último termo, admite a resolução do contrato e a valoração das condutas no quadro do art. 570º do CC (O incumprimento bilateral e a jurisprudência portuguesa, na Revista electrónica de direito, Fevereiro 2023, n.º1 (vol. 30), pág. 110 e ss., ou, com interesse, O incumprimento bilateral e o tu quoque, tese de mestrado, ambos disponíveis online] [23] Entretanto, e no âmbito do contrato de empreitada, o STJ adoptou solução não inteiramente conforme, passando, de um lado, a aproximar o tratamento da situação à impossibilidade da prestação, e, de outro lado, a justificar a extinção do contrato num «duplo comportamento volitivo concludente» [v. Ac. do STJ proc. 2209/14.0TBBRG.G3.S1, de 14.01.2021: em sentido próximo, mas não inteiramente, v. o Ac. do STJ proc. 13988/19.9T8PRT.P1.S1, de 24.02.2022, que, igualmente perante contrato de empreitada, sustentou a extinção do contrato por apelo ao art. 790º n.º1 do CC]. Embora, naturalmente, estas intervenções sejam sempre condicionadas pelas concretas características das situações sob análise. 12. Admite-se que a mora de uma das partes não a impede, em princípio, de provocar a conversão da mora da contraparte em incumprimento definitivo e, subsequentemente, de procurar resolver o contrato, ao menos nas situações em que a sua falta contratual não se apresenta com maior gravidade que o ilícito da contraparte, como será o caso (como se explicitará a final). Inexistem dados legais que claramente o contrariem ou impeçam. Decerto, a falta de regulação da situação (incumprimento bilateral) torna os contributos do sistema legal volúveis. Mas deste sistema ainda se colhem dados que revelam que não existe uma hostilidade de princípio àquela solução. Assim a partir do regime da resolução, já que, podendo a resolução surgir a partir de incumprimento culposo de uma parte, o regime legal não atribui a essa culpa um valor específico (mormente porque a devolução das prestações opera objectivamente, não sendo relevante a culpa, e apenas a impossibilidade de devolver a prestação, e já não a culpa da parte, obsta ao funcionamento da resolução: art. 433º e 432º n.º2 do CC). Assim, ela não parece constituir dado condicionador do seu regime. Também assim na impossibilidade culposa parcial, em que prevendo a lei circunstância excludente do direito de resolução, aí não contempla a culpa do credor como factor de exclusão (art. 802º n.º2 do CC). Para além de que, como notou C. da Silva, a resolução não depende de culpa, mas apenas da verificação objectiva das condições legais. Acresce, igualmente, o facto de a resolução não ter natureza sancionatória (como nota B. Proença) mas constituir apenas via de desvinculação (fundada) de relação contratual cuja execução se revelou disforme. De outra banda, também se entende que a falha recíproca não deve obrigar as partes a manterem uma vinculação de que se mostraram ao menos arredias (não deve obrigar a um cumprimento de que ambas já se distanciaram), devendo poder cada uma delas dar os passos necessários à desvinculação final. Havendo também que considerar que a desvinculação não constitui realmente uma vantagem para a parte faltosa mas apenas um remédio para uma situação de crise contratual repartida, imputável a ambas as partes, e imputabilidade dividida que indicia justamente que a desvinculação constitui a solução natural (vantagem, num sentido impróprio embora, existirá na obrigação de indemnização que pode acompanhar a resolução, mas esta é questão diferente). Solução esta (admissibilidade da resolução) que teria sempre o limite da boa fé, mesmo que por via do tu quoque, boa fé que poderia em situações de desequilibro e, assim, eventualmente abusivas, obstar ao exercício daquelas faculdades, mormente a resolução [24]. 13. O caso vertente acaba por apresentar a especificidade de, nos termos expostos, ao incumprimento definitivo de uma das partes se opor apenas a mora da contraparte. Julga-se que este enquadramento, ao menos na situação em causa, não deve conduzir a soluções diferenciadas. Deve, com efeito e de um lado, levar-se em conta que a situação base ou o ponto de partida é idêntico para ambas as partes: ambas incumpriram obrigações secundárias essenciais à realização do contrato prometido. A diferenciação surge apenas porque, a partir dessa circunstância, uma das partes foi mais lesta ou diligente na conversão do atraso do cumprimento em incumprimento definitivo. Esta actuação tendente a converter a mora em incumprimento definitivo não altera os termos do incumprimento (em sentido amplo), apenas dele retira um seu efeito possível. Materialmente, as falhas das partes continuam equiparáveis, e da sua iniciativa resolutória não deve a parte também em falta retirar vantagens [25]. E, de outro lado, as condutas das partes revelam positiva perda de interesse no contrato (dada a pretensão da recorrente) e semelhante desinteresse ou indiferença pelo contrato pela contraparte, que, após o seu ilícito, não reagiu à interpelação e nem sequer contestou esta acção. 14. Neste quadro, deve admitir-se a (implícita) resolução extintiva do contrato pretendida pela recorrente (sendo que a situação vertente se aproxima mas não corporiza ainda uma condutas articuladas numa resolução/extinção bilateral). O problema coloca-se apenas ao nível da indemnização, que, legalmente, corresponde ao que a recorrente pediu: a devolução do sinal em dobro (art. 442º n.º2 do CC). Ponto onde se admite que o quadro normativo que estritamente deriva do art. 570º do CC não corresponde directamente à situação vertente, desde logo pelo facto de concorrerem dois ilícitos na produção dos danos. Não obstante, a norma tem uma vocação regulativa que, face aos valores em presença, permite que a sua «ideia» [na expressão de B. Proença] possa ainda ser convocada na avaliação da situação. Sendo este ponto, quanto ao regime da indemnização e ao apelo ao recorte do art. 570º do CC, em que nem releva decisivamente a modalidade de incumprimento em causa, pois à «ideia» do regime se basta o concurso de incumprimentos em sentido amplo. Apelando, como critérios valorativos, à natureza das obrigações incumpridas, ao grau da sua violação, ou à intensidade culposa das actuações das partes, começa por se notar que a ilicitude radica em obrigações idênticas do ponto de vista funcional e valorativo, e que a sua violação ocorre, por ambas as partes, de forma idêntica e homogénea. A simultaneidade do incumprimento exclui uma relação de sucessão, que pode diferenciar as posições das partes (e até a radicar o incumprimento de uma parte no prévio incumprimento da outra). Quanto ao grau de censurabilidade das suas condutas, não existem elementos que a permitam graduar, sendo que da constatada ilicitude das condutas nada se retira e, de outra banda, esta culpa vem até essencialmente aferida a partir da sua presunção legal (já referida). A única diferenciação radica, basicamente, na circunstância de uma parte ter diligenciado pela conversão a mora em incumprimento definitivo, mas, como referido, isto não constitui um agravamento da violação da obrigação. O efeito do procedimento de interpelação não é tornar o incumprimento mais intenso mas apenas lhe dar a estabilidade que permita passar a diferente fase regulativa do contrato. Para além de não servir para um tratamento privilegiado de parte que está também em falta. Assim, não se mostra viável diferenciar as posições das partes (sem necessidade de apelo, no caso, a uma presunção de culpas iguais que, a partir da bilateralidade das situações e da realidade das coisas, e com apelo a lugares paralelos como o art. 497º n.º2 do CC, se defende valer nesta sede). O que torna eticamente equivalentes as posições das partes. Assim, no quadro valorativo exposto, mostra-se justificada a exclusão de qualquer indemnização e assim a pretendida devolução dobrada do sinal. 15. Sem embargo, a solução também não pode permitir um enriquecimento dos recorridos, devendo ser imposta a devolução do sinal em singelo. O que constitui, aliás, directo reflexo do regime da resolução, que se admitiu ainda estar em causa no caso, e da inerente obrigação de restituição do prestado (art. 433º e 289º do CC) [assim se justificando a menção a este regime, que grande resistência suscita em alguns Autores] [26]. Imposição que não viola o princípio do pedido pois, além de constituir um minus face ao pedido original, a resolução que o sustenta é, como se disse, ainda fundamento da acção (v. Ac. do STJ proc. 3018/06, citado). 16. Quanto aos juros, e pese embora o recurso não os contemple explicitamente e se trate de obrigação autónoma, tem sido entendido que estão conexos com a pretensão indemnizatória, nessa medida devendo ser considerados (v. Ac. do STJ proc. 12213/15.6T8LSB.L1.S1, de 31.03.2022). Também assim no caso, pois apenas foram excluídos por se excluir a pretensão principal, devendo, ser esta (parcialmente) acolhida ser considerados. Assim, serão devidos desde a data da citação, que vale como interpelação (art. 805º n.º1 do CC). 17. As custas (da acção e do recurso) devem, dados os termos do decaimento, ser repartidas por igual entre as partes (art. 527º n.º1 e 2 do CPC). V. Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, condenando-se os recorridos a pagarem à recorrente a quantia de 17.250 (dezassete mil duzentos e cinquenta) euros, acrescida de juro de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação. Custas, na acção e no recurso, pelas partes na proporção de metade para cada. Notifique-se. Datado e assinado electronicamente. Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original). António Fernando Marques da Silva - relator Filipe Aveiro Marques - adjunto Maria Adelaide Domingos - adjunta 
 ___________________________________________________ 1. Em reprodução literal.↩︎ 2. A denominação destas obrigações não principais também varia. No texto adopta-se uma terminologia descritiva, adaptada à avaliação em curso.↩︎ 3. Embora a norma ainda se refira à sisa.↩︎ 4. No texto, a menção ao incumprimento, sem mais, tem um sentido amplo. Quando se trata do incumprimento definitivo, a menção é concretizada nesses termos.↩︎ 5. A declaração (documento) de inexistência de dívidas não é exigida em si. O que releva é a efectiva existência de dívidas que impede, em actuação tributária contestável, a emissão pelo sistema informático de guias para pagamento.↩︎ 6. E, na verdade, contrária à alegação inicial, na qual se imputava o incumprimento desta obrigação aos recorridos (art. 8º da PI).↩︎ 7. Ao ponto de se considerar nulo o negócio celebrado contra a previsão legal - v. Margarida Costa Andrade, Despesas comuns, Propriedade horizontal II jornadas, Gestlegal 2024, pág. 102.↩︎ 8. Sobre isto, e o sentido (diverso) do art. 1424º n.º1 do CC, v. Margarida Costa Andrade, loc. cit., pág. 88 e ss..↩︎ 9. No fundo, a cláusula 4º n.º3 do contrato-promessa apenas constitui reconhecimento desta realidade.↩︎ 10. Só não seria assim se inexistissem dívidas condominiais vencidas por pagar, mas... tal só se comprovava justamente a partir da declaração omitida.↩︎ 11. Entende-se, pese embora a questão seja discutida, que a mora depende da culpa do devedor, mas esta presume-se por força do art. 799º n.º1 do CC e, como deriva do já exposto, inexistem dados que permitam excluir a presunção.↩︎ 12. Ana Prata, O contrato-promessa e o seu regime civil, Almedina 1999, pág. 657.↩︎ 13. A categorização e nomenclatura adoptadas ajustam-se à economia da decisão. Elas surgem, contudo, com amplas variações na doutrina e na jurisprudência.↩︎ 14. Assim, Ac. do STJ proc. 7185/12.1TBCSC.L1.S1 de 13.10.2016 ou do TRC proc. 1486/19.5T8VIS.C1 de 13.09.2022. Também afirmando que, na dúvida o prazo deve valer como não essencial ou que esse é o seu sentido normal, B. Proença, Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, Coimbra Editora 1996, pág. 112 (ou Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, UCP Editora 2023, pág. 106 - embora aqui falando de um direito de resolução alternativo à mora), J. B. Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, vol. I, Braga 1991, pág. 190 (solução esta a que A. Prata parece aderir - O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, Almedina 1999, pág. 638) ou Gravato Morais, Manual do contrato-promessa, Editora D´Ideias 2022, pág. 198. Contra, Ac. do STJ proc. 4724/10 de 27.11.2018.↩︎ 15. Existem outras hipóteses menos correntes, mormente atinentes à inexigibilidade ou justa causa de resolução (especialmente associada a contratos de execução duradoura, onde a confiança entre as partes é essencial), que não têm relevo no caso.↩︎ 16. Na linha da lição de Baptista Machado, vejam-se, por último, Acs. do STJ proc. 211/21.5T8GMR.G1.S1 de 28.03.2023, proc. 386/13.7T2AND.P2.S1 de 10.12.2019, ou proc. 831/19.8T8PVZ.P1.S1 de 23.06.2022. A exigibilidade do terceiro elemento referido é menos pacífica mas, no caso, está verificada, dispensando avaliações adicionais.↩︎ 17. Por exemplo, no Ac. do TRL proc. 5750/06.5TCLRS.L1-1 de 27.03.2012: interpelação para a entrega de todos os documentos necessários para a marcação e realização da escritura de compra e venda, sob a cominação de o credor deixar de ter interesse na consumação do negócio (Ac. disponível em 3w.dgsi.pt, tal como todos os demais citados neste acórdão).↩︎ 18. Admitindo que a violação de dever secundário (ou acessório) permita a resolução do contrato (ou o seu incumprimento definitivo), Ac. do STJ proc. 03B3697 de 18.12.2003 ou proc. 647/05 de 09.03.2010, ou do TRC proc. 6918/16.1T8CBR.C1 de 27.02.2018; P. Monteiro, Anotação em RLJ 136/253 (nota 26), A. Varela, Das obrigações em geral I, Almedina 2000, pág. 127, J. Ribeiro de Faria, Direito das obrigações vol. I, Almedina 2024, pág. 168 (e 246/7), B. Proença, Lições... cit., pág. 460/1, Ana Prata, loc. cit., pág. 657 e ss., ou Nuno Pinto Oliveira, Os deveres acessórios 50 anos depois, Revista de direito civil 2017, n.º2, pág. 251 (admite que, a partir de regimes especiais de vários contratos que servem como pontos de apoio, se aceda «ao princípio geral de que cada uma das partes de um contrato bilateral sinalagmático dispõe de um direito potestativo de resolução por inexigibilidade da subsistência da relação contratual» em caso de violação de obrigações acessórias).↩︎ 19. V. Ac. do STJ proc. 25097/17.0T8PRT.P1.S1 de 17.10.2019.↩︎ 20. Assim, Ac. do STJ proc. 3018/06 de 25.11.2010, proc. 05B2166 de 22.09.2005 ou proc. 04A2667 de 25.11.2003, ou Ac. do TRC proc. 1486/19.5T8VIS.C1 de 13.09.2022, ou C. da Silva, Estudos de direito civil e processo civil, Almedina 1999, pág. 237 (dizendo que o pedido de pagamento do sinal em dobro leva ínsita uma declaração resolutiva tácita). Em geral, tende-se a associar o mecanismo do sinal a uma inerente resolução (ou extinção) do contrato: v. Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora 2002, pág. 230; A. Varela, Das Obrigações em Geral I, Almedina 2000) pág. 352 e 358/9, ou B. Proença Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral, Coimbra 1996, pág. 119. afirmando que aquele mecanismo é «fruto incindível de uma necessária resolução». A. Prata nota igualmente (em tese geral e não apenas para o contrato-promessa) que o regime do sinal está pensado justamente para se articular com a resolução do negócio (loc. cit., págs. 777, 797 e 799).↩︎ 21. Ocorrem, na verdade, muitas variações no enquadramento.↩︎ 22. Ou de situações de impossibilidade imputável a ambas as partes, ou desta impossibilidade de uma das partes face ao incumprimento definitivo da contraparte.↩︎ 23. Trata-se de panorama muito genérico que não faz justiça às especificidades das várias posições; interessava sobretudo o panorama geral, para fixar as ideias dominantes.↩︎ 24. Para o contrato de empreitada mas em termos válidos em geral, e também em situação de mora dos dois contraentes, o STJ admitiu a licitude da resolução do contrato por contraente que se encontrava em mora (Ac. de 17.06.2025, proc. 24442/19.9T8PRT.P1S2).↩︎ 25. Também assim o aludido Ac. do STJ de 17.06.2025, proc. 24442/19.9T8PRT.P1S2.↩︎ 26. Fontes normativas alternativas encontram-se nos regimes do art. 442º n.º1 do CC, do art. 570º do CC, do art. 473º do CC ou na ineficácia do contrato, dada a sua extinção. A diversidade de posições deriva da falta de regulação legal e do carácter elástico do enquadramento possível.↩︎ |