Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
91/10.6EAFAR.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
DISPENSA DE PENA
ADMOESTAÇÃO
Data do Acordão: 02/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - O conteúdo normativo do prémio do n.º1 do art. 74.º do Código Penal é indubitavelmente reportado à moldura penal abstracta, tal como definida pela lei, independentemente do juízo de escolha que o tribunal tenha de levar a cabo entre a pena de prisão e a pena de multa, quando cominadas em alternativa.

II – Sendo o crime de desobediência simples, previsto pelo art. 348.º, n.º1, al. b) do CP, punível, em abstracto, com prisão até um ano ou multa até 120 dias, não pode haver lugar a dispensa de pena, porquanto a aplicação deste instituto pressupõe que a pena privativa da liberdade em abstracto cominada ao crime não exceda a barreira dos seis meses.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

No Processo Comum nº 91/10.6EAFAR, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, por sentença proferida em 12/7/13, foi decidido:

Julgar parcialmente procedente e provada a acusa­ção e:

a) Absolver os arguidos A. Lda. e B. da acusação contra eles formulada;

b) Dispensar de pena a arguida C, de harmonia com o dispos­to no artigo 74º, nº 1 do Código Penal;

c) Condenar a arguida C. no pagamento das custas, de harmo­nia com os artigos 344º, nº 2, alínea c), 513°, maxime nº' 4, e 514º do Código de Processo Penal, com a taxa de justiça fixada em metade do mínimo;

d) Ordenar a remessa de boletins ao registo criminal, bem como a remessa de cópia da presente sentença à ASAE e ao SEF;

e) Ordenar a notificação e depósito desta sentença;

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1 p. A sociedade arguida, NIPC..., com sede..., em Queluz, tem por objecto social o exercício de actividades hoteleiras e outras.

2p. O arguido B é o único sócio e gerente da arguida sociedade, que ins­talou para exploração um restaurante em Lagos denominado «A...».

3p. A arguida C, pelo menos até 29 de Dezembro de 2010, exerceu no esta­belecimento as funções de empregada de balcão e de gerente, responsável pela gestão do pessoal e pelo estabelecimento na ausência do arguido B.

4p. No dia 16 de Novembro de 2010, o estabelecimento encontrava-se aberto ao público e a funcionar, sob a orientação da arguida C na ausência do arguido B.

5p. Na data provada em 4p, realizada inspecção pela ASAE, verificada a falta de licença emitida pela Câmara Municipal de Lagos, e verificado que o estabelecimento estava a funcionar, foi a arguida C. notificada, como representante da arguida sociedade, para suspender imediatamente a actividade, factos estes de que a arguida C deu imediato conhecimento ao arguido B.

6p. No dia 29 de Dezembro de 2010, o mesmo estabelecimento, ainda sem pos­suir licença, e não obstante a ordem de suspensão provada em 5p, encontrava-se nova­mente aberto ao público e a funcionar, com a arguida C. a exercer as funções prova­das em 3p, na ausência do arguido B.

7p. O provado em 6p sucedeu por iniciativa pessoal da arguida C, que nada comunicou ao arguido B, excepto depois que a ASAE, na data provada em 6p, voltou a encerrar o estabelecimento.

8p. O arguido B teria recusado à arguida C autorização para abrir o esta­belecimento ao público, se esta lho tivesse pedido antes de ser emitida a licença.

9p. A arguida C. agiu de modo voluntário, livre e consciente, sabendo que cometia um ilícito criminal, pois disso fora advertida, não obstante o que não deixou de abrir o estabelecimento ao público, com o propósito de servir os clientes que aparecessem.

10p. O arguido B. foi condenado duas vezes, ambas em pena de multa, sendo uma em 19 de Junho de 2008 por abuso de confiança fiscal. e a outra em 28 de Abril de 2010 por abuso de confiança.

11 p. Habilitado com o 12º ano, o arguido tem cinco filhos, com quem vive junta­mente com sua esposa, professora de profissão.

12p. A arguida C. é isenta de antecedentes criminais, e tem na Roménia, de onde é natural, um filho de 21 anos a quem paga os estudos; esteve em Portugal de 2002 a 2006, e posteriormente, de 2010 até à presente data.

13p. À presente data, o estabelecimento já tem o necessário alvará camarário.

Da referida sentença o MP veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1- O Mmo. Juiz a quo ao dispensar de pena a arguida C. violou um dos pressupostos cumulativos, deste instituto previsto no n.º 1 do artigo 74.º do Código Penal, referente às penas aplicáveis aos crimes.

2- Com efeito. o Mmo. Juiz entendeu que, ao afastar a punição com pena de prisão - por entender que no caso, não seria aplicável – ­estaríamos perante um crime exclusivamente punível com pena de multa.

3 - No entanto, tal não se verifica, dado que o n.º 1 do artigo 74º do Código Penal se refere às penas aplicáveis nos crimes cm questão, isto é, verificados os restantes pressupostos previstos nas alíneas a), b ) e e) do n.º 1 do artigo 74º do Código Penal, poderá o tribunal declarar o arguido culpado mas não aplicar qualquer pena “Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a seis meses ou só com multa não superiora 120 dias”..

4- Atendendo a que o crime pelo qual a arguida vinha acusada -­desobediência. p. e p. pela alínea b) do n.º 1 do artigo 348º do Código Penal - é punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, verificamos que não é admissível a dispensa de pena relativamente ao crime pelo qual a arguida foi acusada e condenada.

5- Deveria assim o Mmo. Juiz a quo ter condenado a arguida C. numa das penas previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 318º do Código Penal, sem prejuízo da admoestação prevista no artigo 60º do mesmo diploma legal.

Face ao exposto:

Deverá a sentença recorrida ser revogada na parte em que dispensa de pena a arguida C, condenando-se esta arguida numa pena prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal - sem prejuízo da admoestação prevista no artigo 60.º do mesmo diploma legal.

A arguida C. foi notificada para responder à motivação do recurso, mas não exerceu tal direito.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, defendendo a respectiva procedência.

O parecer emitido foi notificado à recorrente, a fim de se pronunciar, o que ela não fez.

Pelo Desembargador Relator foi proferido despacho determinando se comunicasse ao MP e à arguida uma alteração dos factos em que se baseou a decisão recorrida, em obediência ao disposto no nº 3 do art. 424º do CPP.

Uma vez notificada da alteração factual, a arguida nada respondeu.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da sentença recorrida, expressa pela Digna Recorrente nas suas conclusões, versa exclusivamente sobre matéria jurídica e centra-se nas seguintes questões:

a) Revogação, por legalmente inadmissível, do benefício da dispensa da pena, previsto no art. 74º nº 1 do CP, atribuído pela sentença recorrida à arguida C.;

b) Condenação da mesma arguida como autora de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº 1 al. b) do CP, sem prejuízo da eventual aplicação da admoestação prevista no art. 60º do CP.

O tipo fundamental do crime de desobediência é definido pelo nº 1 do art. 348º do CP, como segue:

Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

O regime geral da dispensa de pena é regulado pelo art. 74º do CP:
1 - Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena se:

a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;
b) O dano tiver sido reparado; e
c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção.

2 - Se o juiz tiver razões para crer que a reparação do dano está em vias de se verificar, pode adiar a sentença para reapreciação do caso dentro de um ano, em dia que logo marcará.

3 - Quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do n.º 1.

No entanto, antes de entrar na apreciação da pretensão recursiva propriamente dita, importará que este Tribunal repare uma anomalia constatada no texto da decisão sob recurso.

Resulta do disposto no proémio do nº 1 do art. 74º do CP que a dispensa de pena nele prevista tem como pressuposto a demonstração da prática de um crime pelo arguido, considerando a lei desnecessária a aplicação de qualquer sanção, em virtude da verificação cumulativa das circunstâncias tipificadas nas alíneas desse normativo.

No caso, o Tribunal julgou verificada a prática pela arguida de um crime de desobediência simples, na modalidade típica prevista na al. b) do nº 1 do art. 348º do CP.

Ora, o crime de desobediência, na modalidade que, segundo se julgou na sentença, a arguida preencheu, comporta um elemento típico objectivo consistente em que a comunicação da ordem ou mandado, que o agente haja desacatado, tenha sido acompanhada da cominação, por parte da autoridade ou do funcionário emitente, de que o desacatamento do ordenado fará o destinatário incorrer na prática de um crime de desobediência.

Os factos objectivos constitutivos da responsabilidade criminal da arguida, que a sentença recorrida julgou provados, podem ser assim resumidos:

a) Em 16/11/10, a arguida, enquanto empregada da sociedade proprietária de um estabelecimento comercial de café, dirigia o funcionamento deste, na ausência do sócio-gerente da respectiva proprietária;

b) Na mesma data, no decurso de uma acção inspectiva realizada por funcionários da ASAE foi verificado que o funcionamento do estabelecimento não estava autorizado por licença camarária, pelo que foi a arguida notificada para suspender imediatamente a actividade do mesmo;

c) Não obstante a notificação que lhe foi dirigida, a arguida, por sua iniciativa, manteve o estabelecimento a funcionar, o que foi constatado, em 29/12/10, por nova fiscalização da ASAE, que procedeu então ao encerramento do local.

Confrontada a factualidade dada como provada pela sentença recorrida, da qual não constam factos não provados, verifica-se que nela não figura qualquer menção de que à arguida foi comunicado, aquando da notificação que lhe foi feita no decurso da primeira acção inspectiva da ASAE, que a inobservância da injunção que então lhe foi dirigida a faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

A única referência constante da matéria de facto assente, que poderia ter alguma relação com a realidade que acabámos de evocar, situa-se no ponto 9p, que reza:

«A arguida C. agiu de modo voluntário, livre e consciente, sabendo que cometia um ilícito criminal, pois disso fora advertida…».

Ora, a advertência a que se refere a al. b) do nº 1 do art. 348º do CP não serve apenas como meio de assegurar, da parte do destinatário da ordem ou mandado, a consciência da ilicitude de uma conduta desconforme à injunção transmitida, mas antes integra um elemento constitutivo do tipo objectivo do crime, na falta de disposição legal que comine a sua punibilidade a título de desobediência.

Por outro lado, para relevar para o preenchimento do tipo de crime que agora nos ocupa, a advertência prevista na al. b) do nº 1 do art. 348º do CP terá de ser efectuada com referência expressa ao crime de desobediência e não um qualquer «ilícito criminal» em abstracto.

Nesta conformidade, teremos de concluir que a matéria de facto provada e não provada fixada na sentença sob recurso não inclui qualquer dado factual susceptível de integrar o elemento típico exigido pela al. b) do nº 1 do art. 348º do CP.

Contudo, importa verificar que a notificação feita em 16/11/10 à arguida, no sentido de suspender imediatamente a actividade do estabelecimento onde trabalhava, em virtude de o seu funcionamento não se achar devidamente licenciado, mostra-se formalizada no documento de fls. 36, que se encontra assinado, nomeadamente, pela ora arguida e pelo funcionário da ASAE, que efectuou a diligência.

Do referido documento consta a seguinte menção, reportada ao destinatário de notificação: «Fica ainda advertido que o não cumprimento imediato desta ordem ou a sua violação posterior CONSTITUI CRIME DE DESOBEDIÊNCIA, previsto e punido no artigo nº 348º, nº 1, do Código Penal…» (maiúsculas e negritos no original).

Assim, a cominação a que se refere a al. b) do nº 1 do art. 348º do CP encontra-se atestada no documento comprovativo da notificação que a arguida desacatou.

Poderá argumentar-se que, não tendo o MP recorrente impugnado a decisão da primeira instância em matéria de facto, sempre seria vedado ao Tribunal «ad quem» alterar a factualidade fixada pelo Tribunal «a quo».

Contudo, somos de entender que a deficiência detectada na matéria factual assente na sentença recorrida devera ser enquadrada no vício da decisão previsto na al. a) do nº 2 do art. 410º do CPP.

Na parte que pode interessar à questão sob apreciação, o nº 2 do art. 410º do CPP dispõe:
Mesmo nos casos em que a lei restringir a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) …;
c)
….
Segundo o Acórdão do STJ de 13/5/98 (CJ, Acs. do STJ, VI, tomo 2, pág. 199), a locução «decisão» inserida no texto da al. a) do nº do art. 410º do CPP, deve ser entendida como a decisão justa que ao caso deveria caber e não como a decisão concretamente proferida e objecto do recurso, sendo, portanto, com referência à primeira e não à segunda que deverá ajuizar-se da suficiência da matéria de facto provada.

Assim, e sintetizando, poderemos dizer que o referenciado vício de decisão verifica-se sempre o Tribunal deixe de emitir juízo probatório sobre um facto relevante para a justa decisão da causa.

Qualquer dos vícios tipificados no nº 2 do art. 410º do CPP terá de ser inferido do próprio texto da sentença, por si ou conjugado com as regras de experiência comum, não podendo ser tomados em consideração elementos exteriores, nomeadamente, meios de prova cujo conteúdo não esteja de alguma forma reflectido no texto da decisão.

Ao omitir na matéria de facto provada e não provada a referência à comunicação à arguida C. de que o desacatamento da imposição que lhe foi transmitida de suspender imediatamente a actividade do estabelecimento onde trabalhava a faria incorrer no cometimento de um crime de desobediência, a sentença recorrida deixou de formular juízo probatório sobre um facto essencial à formação da decisão a proferir, pois da sua verificação depende o preenchimento pela apurada conduta daquela arguida da tipicidade do referido ilícito criminal, na modalidade da al. b) do nº 1 do art. 348º do CP, por que ela foi acusada.

O elemento em falta na matéria de facto assente poderá ser obtido por via do meio de prova documental de fls. 36, a que já fizemos referência.

Dada a natureza estritamente documental do meio que pode permitir suprir a deficiência detectada na matéria de facto fixada na sentença recorrida, é lícito a este Tribunal proceder ao suprimento do vício verificado, sem com isso violar os princípios que regem a produção de prova na fase processual de julgamento, mormente, os da oralidade e da imediação, em ordem a evitar o reenvio do processo previsto no art. 426º do CPP.

Da consideração da referida prova documental resulta que deverá ser aditado à matéria de facto provada um novo ponto, do seguinte teor:

«Aquando da efectivação da notificação referida em 5p foi comunicado à arguida Voichita que o não cumprimento imediato da determinação, que então lhe foi transmitida, ou o seu desacatamento posterior a faria incorrer na prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº 1 do CP».

Dispõe o nº 3 do art. 424º do CPP:
Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.

A al. f) do art. 1º define alteração substancial dos factos como aquela que implique a imputação ao arguido de crime diverso ou o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis.

A modificação do conteúdo da matéria de facto fixada pelo Tribunal «a quo», acima preconizada, consubstancia uma alteração dos pressupostos factuais em que se baseou a decisão impugnada, não requerida pela arguida e relativamente à qual ela não teve ainda ensejo de exercer o seu direito ao contraditório, até ao termo do julgamento em primeira instância, mas não envolve a imputação de crime diverso daquele por que a mesma vinha acusada, nem o agravamento do limite máximo da moldura punitiva a este cominada.

Nesse sentido, procedeu-se lugar à notificação prescrita no nº 3 do art. 424º do CPP, à qual a arguida não respondeu.

Consequentemente, determinamos a alteração da matéria de facto julgada provada pela sentença recorrida, mediante o acrescento de um novo ponto com conteúdo enunciado supra.

Aqui chegados, importará averiguar se os factos julgados provados pela sentença, com o acrescento agora introduzido, são susceptíveis de integrar a prática pela arguida do crime de desobediência por que vinha acusada.

O tipo criminal geral da desobediência, em todas as suas variantes, comporta os seguintes elementos constitutivos objectivos e subjectivos:

a) Uma injunção (ordem ou mandado) de conteúdo legítimo, proveniente de funcionário ou autoridade competente;
b) A comunicação dessa injunção ao agente;
c) A inobservância pelo agente daquilo que lhe foi determinado;
d) O dolo do agente.

Na modalidade prevista na al. b) do nº 1 do art. 348º nº 1 do CP, cujo preenchimento é imputado à arguida, o tipo criminal em análise comporta mais um elemento, qual seja a transmissão ao agente da cominação de que o desacatamento da injunção o fará incorrer na prática de um crime de desobediência.

Na sequência da alteração introduzida pelo presente acórdão na factualidade dada como provada, esta mostra-se caracterizada em termos de preencher por completo a tipicidade do crime de desobediência simples, na modalidade definida no art. 348º nº 1 al. b) do CP.

Dito isto, haverá que investigar a bondade da atribuição à arguida do benefício da dispensa de pena, decidida na sentença recorrida, em face da lei aplicável.

Em sede de fundamentação jurídica da decisão, expende-se na sentença sob recurso (transcrição com diferente tipo de letra):

1 - Começar-se-á por observar que não estão reunidos os pressupostos da prática, pela arguida sociedade e pelo arguido B, do crime por que vêm acusados, e que exige dolo especifico, isto é, a manifesta vontade de executar uma conduta contrária a ordem legal recebida de autoridade competente - pelo que terão de ir absolvidos,

2 - Provou-se, por outro lado, que a arguida C se constituiu autora material do crime doloso consumado de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, em abstracto, com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias.

- B - Punibilidade –

Não emerge da factualidade provada qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, já que a arguida não agiu no exercício dum direito ou no cumprimento dum dever, ou coagida por uma situação apta a desculpar a sua conduta, e não ocorrem outras causas, típicas ou atípicas, de não punibilidade.

- C - Ponderação e escolha da pena –

1 - A arguida agiu com dolo directo, porque quis efectivamente abrir ao público o estabelecimento, sabendo que este continuava impedido por suspensão da actividade.

2 - O grau de ilicitude é moderado, nele se levando em conta que a arguida agiu por necessidade de dinheiro, e sem que estivesse a servir ao público coisas nocivas ou em mau estado.

3 - A arguida não tem passado criminal, e assumiu a censurabilidade dos seus actos, que espontaneamente declarou como de sua exclusiva autoria e decisão, sendo cer­to que, entretanto, foi outorgado ao estabelecimento o alvará em falta.

4 - A arguida não pode, razoavelmente, ser punida com pena de prisão, pelo que a sanção a impor-lhe em abstracto se restringe a pena de multa até 120 dias.

5 - Obtido o alvará em falta, consoante se mostra actualmente, e dado todo o cir­cunstancialismo provado, pode sem esforço entender-se que são diminutos a ilicitude do facto e a culpa da arguida, que se mostra reparado o dano (obtenção do alvará) e que a necessidade da pena se mostra agora questionável.

6 - Não se defende aqui a rebeldia contra as ordens dimanadas de autoridade com­petente, como é o caso; mas cumpre atentar em que, resolvido o problema de fundo, e fazendo a arguida questão, somente isso, de ganhar a sua vida mediante a prestação de trabalho honesto, as exigências de prevenção, até pelo que já ficou dito, mostram-se redu­zidas ao mínimo concebível.

7 - Face a estas considerações, irá a arguida C, nos termos do disposto no artigo 74º, nº 1, do Código Penal, dispensada de pena.

Conforme pode inferir-se do disposto do nº 1 do art. 74º do CP, o instituto da dispensa de pena depende, para poder ser aplicado, da verificação de diversos pressupostos, um de natureza formal, previsto no proémio de tal normativo; outros de cariz material, enumerados nas alíneas do mesmo.

O pressuposto formal prende-se com a moldura punitiva abstractamente cominada ao crime, cujo limite máximo não poderá exceder 6 meses, no que se refere à pena de prisão (com ou sem multa alternativa ou cumulativa), nem 120 dias, no tocante à pena de multa.

Ora, o crime de desobediência simples p. e p. pelo art. 348º nº 1 al. b) do CP, cujo cometimento pela arguida a sentença recorrida julgou verificado, é punível em abstracto com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.

Assim sendo, o ilícito criminal preenchido pela apurada conduta da arguida não satisfaz o pressuposto formal exigido pelo proémio do nº 1 do art. 74º do CP, pois o limite máximo da penalidade privativa de liberdade que lhe é cominada excede a barreira de seis meses, imposta por essa disposição legal.

Na fundamentação jurídica da sentença recorrida, que deixámos transcrita, o Tribunal «a quo» optou pela dispensa de pena, depois de, num primeiro momento, ter ajuizado que, em face das circunstâncias do caso, a arguida não podia, razoavelmente, ser condenada em pena de prisão, pelo que a pena, que abstractamente poderia ser-lhe imposta, ficava restringida à pena de multa até 120 dias.

Trata-se de um raciocínio, a nosso ver, equivocado, porquanto o conteúdo normativo do proémio do nº 1 do art. 74º do CP é indubitavelmente reportado à moldura penal abstracta, tal como definida pela lei, independentemente do juízo de escolha que o Tribunal tenha de levar a cabo entre a pena de prisão e a pena de multa, quando cominadas em alternativa.

Nestas condições, não deveria o Tribunal «a quo» ter «ignorado», ao ajuizar dos requisitos da dispensa de pena, a penalidade de prisão cominada ao crime de desobediência cometido pela arguida, a qual, pela sua gravidade, constitui óbice legal a que ela possa auferir do benefício em discussão.

Por conseguinte, verifica-se que, no caso, não se mostra reunido o pressuposto formal da dispensa de pena, pelo que a decretação desta se mostra desde já inviabilizada, ficando prejudicado o ajuizamento da reunião dos respectivos pressupostos materiais.

Por isso, impõe-se a procedência do recurso e a revogação da sentença recorrida.

Passemos, então, ao juízo de determinação da sanção em que a arguida há-de ser condenada, no lugar da dispensa de pena decretada na sentença a revogar.

Dado que o crime praticado pela arguida é punível com pena de prisão ou pena de multa, em alternativa, cumpre, num primeiro momento, optar por um ou outro tipo de pena, valendo, nesse ajuizamento, o critério estabelecido pelo art. 70º do CP, que manda dar preferência à reacção penal não privativa de liberdade sempre que esta realizar adequada e suficientemente as finalidades da punição.

O nº 1 do art. 40º do CP define como finalidades da punição a protecção de bens jurídicos, que se concretiza, no essencial, na prevenção geral e especial da prática de crimes, e a reintegração social do condenado.

Considerados os factos por que a arguida responde e aquilo que se apurou sobre a sua personalidade, modo de vida e comportamento anterior e posterior, nada se vislumbra que permita concluir que as finalidades da punição não possam ser satisfeitas mediante a cominação de uma pena não privativa de liberdade.

Impõe-se, por isso, optar pela pena de multa em detrimento da de prisão.

Uma vez feita a opção pela pena pecuniária, poderá colocar-se a questão de saber se a arguida deverá ser condenada numa pena de admoestação, no lugar da multa, que, em princípio, lhe caberia, independentemente da determinação do quantitativo desta.

Sobre os pressupostos de aplicação e o conteúdo da pena de admoestação dispõe o art. 60º do CP:

1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação.

2 - A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

3 - Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação.

4 - A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal.

A admoestação é mais benévola de todas as penas do vigente sistema penal, pois, ao contrário das restantes, não comporta para o condenado qualquer sacrifício efectivo, seja da sua liberdade, seja do seu património, resumindo-se a uma advertência solene, pelo que só deve ser aplicada em casos de notória pouca gravidade.

A aplicação da pena de admoestação encontra-se também dependente da reunião de determinados pressupostos, uns de natureza formal, outros de natureza material, que podem ser assim enunciados:

a) A medida da pena concreta de multa, que no caso caiba, não seja superior a 240 dias;

b) Não ter o agente sido condenado em qualquer pena, incluindo a admoestação, nos três anos anteriores ao facto;

c) A reparação do dano causado pelo crime;

d) A formulação pelo Tribunal de um juízo de prognose no sentido de a admoestação realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Dado que a pena abstracta de multa cominada ao crime de desobediência simples tem por limite máximo 120 dias, qualquer pena concreta que fosse aplicada à arguida sempre se conteria dentro da baliza estabelecida pelo nº 1 do art. 60º do CP.

A arguida não tem quaisquer antecedentes criminais.

A conduta concreta por que a arguida responde resume-se a ter mantido em funcionamento o estabelecimento de restaurante onde trabalhava como empregada, depois de ter sido notificada de uma ordem de encerramento, emitida por uma inspecção da ASAE, motivada por estar a funcionar sem o necessário alvará camarário.

Atentas as suas características, não há notícia de a conduta incriminada ter causado prejuízo, patrimonial ou não, a qualquer pessoa ou entidade, pelo que, a exigência da reparação do dano do crime, no caso, não se coloca.

Mais complexa se apresenta, naturalmente, a questão de saber se o quadro factual em presença permite concluir que a pena de admoestação poderá satisfazer adequada e suficientemente as finalidades da punição, tal como definidas pelo nº 1 do art. 40º do CP.

Antes de mais, as necessidades de prevenção especial são notoriamente modestas, tendo em conta que a arguida é delinquente primária, os factos por que responde não a revelam como portadora de uma personalidade especialmente divorciada dos valores sociais e, conforme se encontra consignado na parte da sentença dedicada à fundamentação do juízo probatório, confessou integralmente e sem reservas esses factos.

Não vislumbramos que à imposição da pena de admoestação se oponham razões que se prendam com as necessidades de integração social da arguida, antes pelo contrário.

Como frequentemente acontece, é no plano das exigências de prevenção geral que poderão suscitar-se maiores reservas à aplicação da pena de admoestação, já que sempre poderá argumentar-se que uma reacção penal que não envolve limitação efectiva de direitos do condenado exercerá um escasso efeito dissuasor sobre o conjunto da sociedade.

A este respeito, convirá recordar que a jurisprudência das Relações se vem orientando no sentido de denegar, salvo circunstâncias excepcionais, a aplicação da pena de admoestação aos agentes de certos tipos de crime, relativamente pouco graves em termos de moldura penal abstracta, mas que, pela sua particular danosidade, no actual contexto social, colocam imperativos acrescidos de prevenção geral, como sejam os crimes de condução de veiculo sem habilitação legal e de condução de veículo em estado de embriaguez.

Poderemos indicar como representativos desta orientação os Acórdãos desta Relação de Évora de 29/5/12, proferido no processo nº 917/10.4GDPTM.E1 e relatado pelo Exmº Desembargador Dr. Martinho Cardoso, e de 19/11/13, proferido no processo nº 619/12.7GTAF.E1 e relatado pelo Exmº Desembargador Dr. Sénio Alves, e os da Relação de Guimarães de 20/4/09, proferido no processo nº 967/08.0GAEPS.G1 e relatado pelo Exmº Desembargador Dr. Filipe Melo, de 28/9/09, proferido no processo nº 230/09.0GAEPS.G1 e relatado pelo Exmº Desembargador Dr. Estelita de Mendonça, e de 28/9/09 e 11/1/10, proferidos nos processos nºs 34/09.0GTVCT.G1 e 941/09.0GBBMR.G1, respectivamente, ambos relatados pelo Exmº Desembargador Dr. Cruz Bucho.

O bem jurídico tutelado pela norma que prevê e pune o crime de desobediência reside na autonomia intencional do Estado, o que equivale a dizer o imperativo de não serem colocados entraves à acção da administração pública, em sentido lato, por parte dos administrados (vd. Cristina Líbano Monteiro, «Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial», Tomo III, pág. 350).

Não será difícil detectar na sociedade portuguesa uma «cultura» difusa de alheamento em relação às determinações das autoridades, desde que daí não resultem consequências desfavoráveis efectivas para quem assim proceda.

Todavia, não se nos afigura que possam ser equiparados, em termos de danosidade social, os perigos que podem advir para a segurança da circulação rodoviária, e daí para a vida e a integridade física das pessoas, do exercício da condução por pessoas influenciadas pelo álcool ou que careçam da necessária habilitação legal e as possíveis consequências do desacatamento das injunções das autoridades em geral ou, em concreto, da ordem de encerramento, que recaia sobre um restaurante que esteja a funcionar sem alvará camarário.

A isto acresce que a situação anti-jurídica, que motivou a emissão da ordem de encerramento, que a arguida inobservou, mostra-se entretanto superada, estando o estabelecimento a funcionar já devidamente licenciado, o que permite concluir que o presente processo não foi inócuo do ponto de vista da conformação dos comportamentos.

Nesta ordem de ideias, teremos de concluir que, tanto quanto é possível antever, a conduta da arguida ora em apreço não suscita exigências de prevenção geral, que não possam ser adequada e suficientemente satisfeitas mediante a imposição de uma pena de admoestação.

Consequentemente, mostram-se reunidos todos os pressupostos da aplicação da pena de admoestação, previstos no art. 60º do CP, pelo que irá a arguida nela condenada.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Determinar a alteração da matéria de facto provada preconizada a fls. 12 e 13 do presente acórdão;

b) Conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida na parte em que declarou dispensada de pena a arguida C;

c) Condenar a mesma arguida pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº 1 al. b) do CP na pena de admoestação.

Sem custas.

Notifique.

Évora 4/2/14 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)