Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÉRGIO CORVACHO | ||
Descritores: | QUITAÇÃO ABUSO DE DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 03/10/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - A expressão «quitação» é uma declaração através da qual o credor atesta o cumprimento de uma obrigação pelo devedor (ou por outrem, legitimado para o efeito) e não comporta, por definição, a abdicação de quaisquer direitos. - Quanto à invocação do abuso de direito, em tese geral, o exercício de um direito em situação de «venire contra factum proprium» é atentatória do princípio da boa fé, o que se verifica quando o titular do direito venha exercitá-lo depois de ter inequivocamente renunciado a ele. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÈVORA I. Relatório No Processo Comum nº 81/13.7TALLE, que correu termos no Juízo Central Criminal de Faro do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Exº Juiz titular dos autos, proferiu, em 11/9/2018, um despacho do seguinte teor: «A demandante RS, após ter procedido ao pagamento da taxa de justiça devida pelo pedido de indemnização deduzido, veio apresentar nota de custas de parte, reclamando o pagamento de 12.889,49 euros, correspondente ao valor da taxa de justiça paga na parte que corresponde ao seu vencimento, e de 7.209,75 euros correspondente a 50% do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencedora e pela parte vencida. O demandado Banco …..SA (que incorporou o Banco ……..) deduziu reclamação, considerando que tal pretensão configura abuso de direito (na modalidade de venire contra factum proprium) porquanto, no essencial, a demandante assinou declaração de quitação nos termos da qual declarou ter recebido 1.176.172 euros para liquidação de responsabilidades do banco, o que incluiria o valor relativo a custas de parte; com efeito, declarando «nada ter a reclamar, seja a que título for», criou no demandado a confiança de que nada mais se lhe exigiria (ié, não reclamaria outro valor), surgindo o pedido formulado como uma quebra daquela confiança, em violação da boa fé. Subsidiariamente invoca a compensação com as quantias que lhe seriam devidas a título de custas de parte. A demandante respondeu, considerando que a declaração de quitação apenas respeitava ao capital e juros em dívida (sob pena de existir erro na formação da sua vontade). Por sua vez, o demandado também apresentou nota de custas de parte, reclamando o pagamento de 1.240,53 euros, correspondendo à sua participação proporcional na taxa de justiça que pagou (1.530 euros) e no valor equivalente a 50% das taxas de justiça pagas por demandante e demandado – mas sublinhando que a pretensão tinha natureza subsidiária, para ser considerada apenas se não improcedesse a paralela pretensão da demandante. A demandante reclamou, considerando que a reclamação deveria ter sido apresentada no prazo de 5 dias a contar da data em que o demandado pagou as custas da sua responsabilidade (por aplicação extensiva do art. 25º n.º1 do RCP), o que não ocorreu – tendo assim caducado o direito do demandado. O demandado respondeu, reiterando o carácter subsidiário da sua pretensão, e sublinhando que o termo do prazo de pagamento das custas terminava a 22 de Maio, data em que apresentou a sua nota, cuja dedução seria assim tempestiva; invocou também jurisprudência sustentando que o desrespeito do prazo de apresentação da nota não fazia claudicar o direito. O MP pronunciou-se quanto à reclamação do demandado, considerando os valores e dando razão ao demandado. Cabe apreciar. Quanto à reclamação do demandado, o ponto essencial prende-se com a interpretação da declaração de quitação junta, onde, no essencial, consta: i. declaração da demandante onde esta declara ter recebido 1.176.172 euros; ii. a transcrição do dispositivo do acórdão quanto à pretensão cível da demandante e referência à sua subsistência após recurso; iii. a subsequente referência a que o aludido valor de 1.176.172 euros cumpre integralmente a decisão a que o banco foi condenado, fazendo-se referência ao capital e juros de mora, cujos valores se discriminam; iv. declaração final da demandante afirmando «nada ter a reclamar do referido Banco, seja a que título for, no âmbito do mencionado processo judicial, considerando integralmente cumprido o referido Acórdão quanto ao demandado» Esta declaração pode valer essencialmente como uma verdadeira quitação, a qual consiste numa declaração de ciência pela qual o declarante assume ter sido realizado o cumprimento, ou como uma remissão, negócio jurídico bilateral pelo qual o credor, tendo consciência do seu crédito (da sua existência e subsistência), pretende extingui-lo (art. 863º do CC) [a ser uma remissão, no caso apenas a declaração de vontade da credora estaria documentada, mas nada obsta a que a declaração do devedor fosse informal e até tácita; também se poderia equacionar a existência de uma renúncia abdicativa mas esta, como negócio unilateral, é de discutível admissibilidade fora dos casos legalmente previstos (art. 457º do CC), e nada acrescentaria à aludida remissão; também se poderia falar de um reconhecimento negativo de dívida mas, além de contornos duvidosos, confundia-se em parte com a declaração de quitação e teria apenas efeitos probatórios, nada acrescentando à discussão]. No caso, julgo que os termos da declaração apontam no primeiro sentido. De um lado, monta a própria qualificação que as partes atribuem à declaração, a qual, não sendo determinante, constitui um critério indiciador da sua real vontade. Depois montam os termos da declaração, onde a decisão judicial vem apenas referenciada na parte atinente ao pedido de indemnização (reportando a condenação em capital e juros), o valor pago vem definido por referência a essa condenação e respectivos elementos indemnizatórios (capital e juros), e a demandante assume a satisfação integral da obrigação correspondente àquela específica condenação (indemnizatória). Monta também a circunstância de a declaração da demandante vir, em primeira linha, reportada a um valor preciso (1.176.172 euros), valor este que o documento especifica como correspondendo ao capital e juros inerentes à condenação do demandado, e só por referência a este valor declarar a demandante estar paga. Pois, assim, ela reporta apenas o cumprimento desta obrigação, e assume esse cumprimento como a única forma de extinção da obrigação que assume (sem qualquer vontade remissiva ou abdicativa). Por fim, também releva a circunstância de o documento não conter qualquer menção ao crédito relativo a custas de parte (por oposição à cuidada indicação dos créditos cumpridos), indiciando que este não foi incluído na declaração. Todos estes elementos apontam no sentido da existência de uma verdadeira declaração de quitação, reportada à específica obrigação decorrente da procedência da pretensão indemnizatória. Não consentem, pois, a expressão de uma vontade extintiva de qualquer crédito, sem o seu cumprimento, e assim uma vontade remissiva (ou uma renúncia abdicativa); ao invés, a afirmação de extinção do crédito que da declaração se retira está claramente associado ao verificado cumprimento, e não a qualquer vontade extintiva da obrigação. O único ponto perturbador radica na declaração final [onde a demandante afirma «nada ter a reclamar do referido Banco, seja a que título for, no âmbito do mencionado processo judicial, considerando integralmente cumprido o referido Acórdão quanto ao demandado»], a qual, à letra, parece exceder aquele cumprimento (dada a referência a nada mais ter a reclamar, a qualquer título, no âmbito do processo). Mas não creio que seja o alcance que um declaratário normal atribuiria à expressão, dado o referido contexto geral do documento. Ao invés, ela deve ser compreendida justamente no contexto exposto: significa apenas que, no quadro das obrigações tidas em conta, ié, das obrigações indmnizatórias de capital e juros, foi tudo pago, cumprido. Não mais, e assim não significa que a demandante esteja a extinguir (ou renunciar) outras obrigações que não as reportadas [ela declara nada ter a receber não porque quer extinguir mas porque julga que já está extinto pelo cumprimento], ou que esteja a declarar que estas foram já cumpridas. Até porque o documento não contém qualquer tipo de concessão entre as partes (em que a demandante abra mão de certo direito), limitando-se a fazer a liquidação (o cálculo, a fixação do valor da dívida) da responsabilidade civil do demandado e a comprovar o seu cumprimento. E só deste cumprimento cura, só dele é expressão, sem nele se ver manifestação de uma vontade remissiva ou abdicativa quanto a outros créditos por parte da demandante. Ademais quando o documento é absolutamente omisso quanto a outras obrigações, mormente associadas à responsabilidade tributária. Assim, não é possível encontrar no documento, creio, expressão de uma vontade extintiva de qualquer direito associado a esta responsabilidade. O documento em causa não é oponível, pois, à pretensão da demandante agora esgrimida, ficando prejudicada a invocação do abuso de direito (embora também não ocorresse pois, a ter o documento o alcance visado pelo demandado, o exercício do direito não seria abusivo; apenas poderia haver uma prova do cumprimento, se valesse como quitação, eventualmente impeditiva da pretensão da demandante; ou demonstraria que o direito invocado pela demandante já não existiria, se o documento contivesse uma declaração de remissão). Persistindo a pretensão da demandante, cabe apreciar a nota do demandado. A esta foi oposta pela demandante a excepção da intempestividade (por desrespeito da obrigação de apresentação da nota no prazo de 5 dias contados da data do apagamento - prazo que, em rigor, a própria demandante também não respeitou). A questão tem merecido dois tipos de soluções: para uns, trata-se de prazo de exercício do direito de crédito, cujo esgotamento provoca a caducidade do direito, nos termos do art. 298º n.º2 do CC (seria esta caducidade, de conhecimento não oficioso, que a demandante invocaria); para outros, trata-se de mero prazo processual de interpelação com vista à formação do título executivo compósito, cuja ultrapassagem não extinguiria o direito [que poderia ainda ser posteriormente exercido, referindo uns que ficaria excluída a formação de título executivo e assim o acesso imediato à acção executiva, aceitando outros, embora de forma talvez menos coerente, que se manteria ainda o título executivo]. Adiro a esta segunda solução por, em termos sintéticos, a apresentação da nota no processo regular apenas a exigibilidade relacionada com a formação de um título executivo especial (ié, marca o momento em que o pagamento é devido, sob pena de formação imediata de um título executivo especial), não visando estipular directamente sobre a forma de exercício do direito, subordinando-o à forma processual que regula (não é condição de afirmação ou subsistência do direito mas apenas requisito de vencimento/executoriedade da obrigação). E, de outro lado e complementarmente, por estar em causa acto e prazo processual, sendo que a falta de cumprimento dos prazos processuais pode implicar a extinção do direito processual (direito de praticar o acto no processo: art. 139º n.º3 do CPC) mas não o direito substantivo (o crédito), direito este que nasce com a condenação em custas (art. 527º n.º1, 529º n.º1 e 4 e 533º do CPC). A própria exiguidade do prazo aponta no sentido exposto: essa exiguidade ajusta-se a uma regulação formal (obtenção de título executivo) e não a uma disponibilidade material do direito (sendo demasiado reduzido para efeito tão severo). Assim, apenas haveria que equacionar em que termos poderia ser admitido o exercício de tal direito, sendo que se não vê objecção à sua invocação como excepção material (compensação), atento o teor dos art. 847º n.º1 e 2 e 848º n.º1 do CC. Importa ainda, porém, precisar o alcance do crédito do demandado pois este reclama o pagamento (proporcional) da taxa de justiça que pagou. A parte tem direito a custas de parte na medida em que obteve vencimento, em virtude da condenação da parte contrária, na formulação do art. 529º n.º4 do CPC. Por isso estipula o n.º3 do art. 26º do RCP que a parte vencida é condenada ao pagamento dos valores de taxa de justiça pagos pela parte vencedora, na proporção do vencimento. Ora, a taxa de justiça que o demandado invoca respeita apenas ao seu decaimento nos recursos interpostos, e decaimento este integral (não havendo pois condenação da parte contrária). Assim, não existe aqui vencimento seu (e decaimento da parte contrária) que lhe permita reclamar qualquer pagamento a título de custas de parte (note-se que as custas nos recursos revestem autonomia, e que não é legítimo estender o vencimento/decaimento na acção aos recursos). Deste modo, apenas lhe cabe reclamar 950,25 euros (14.790 euros x 50% x 12,85%). Pelo exposto, admito as notas de custas de parte, sendo devido o valor reclamado pela demandante após a compensação operada, com o limite definido [20.099,24 euros (vinte mil e noventa e nove euros e vinte e quatro cents) menos 950,25 euros (novecentos e cinquenta euros e vinte e cinco cents)]. Custas do incidente pelas partes na medida e proporção do decaimento. Notifique-se com cópia de fls. 2663». Do despacho proferido o demandado Banco ………, SA interpôs recurso com a devida motivação, terminando com as seguintes conclusões: I. O presente recurso vem interposto do Douto Despacho de fls…do tribunal a quo que decidiu indeferir a reclamação da nota de custas de parte apresentada pelo ora Recorrente na medida em que entendeu que a declaração de quitação emitida pela demandante não tinha o alcance que o Recorrente entende que tem. II. Como demonstrado nos autos, é entendimento do Recorrente que a nota discriminativa e justificativa das custas de parte apresentada pela Demandante é totalmente desprovida de sentido além de que consubstancia, claramente, abuso de direito da assistente, na modalidade de venire contra factum proprium. III. É certo que, o Recorrente é parte vencida no âmbito dos presentes autos (em 87,15%), atento o Acórdão proferido a 20 de Dezembro de 2016, pela Comarca Judicial de Faro, Instância Central Criminal, no âmbito do processo n.º 81/13.7TALLE, no qual é arguido o ex-funcionário do Banco …….., S.A., LFRF, e Demandado cível o Banco…………….., S.A., sendo que quanto a custas, o tribunal colectivo decidiu “Condenar a Demandante RGS e os demandados LFRF e Banco……., S.A. no pagamento de custas cíveis, na medida do seu decaimento (sem prejuízo, porém, do decidido em sede de apoio judiciário.”. IV. A decisão supra foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora e transitou em julgado, em 10 de Abril de 2018, após decisão sumária de não admissão de recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça. V. Todavia e na verdade não é devido pelo Recorrente, nem tão pouco exigível, qualquer montante relativo a custas de parte (ou a qualquer outro título). VI. Após trânsito em julgado da sentença, o Recorrente contactou a Assistente para cumprimento da decisão judicial, tendo, consequentemente, a Assistente emitido Declaração de Quitação cuja assinatura se encontra reconhecida, e que foi junta ao processo como documento 3 aquando da reclamação apresentada e ora indeferida, declaração esta que foi livremente emitida pela Assistente e aceite. VII. A Assistente declarou ter recebido a “A importância de € 1.176.172,00 (um milhão cento e setenta e seis mil, cento e setenta e dois euros), através de transferência bancária para o IBAN PT……………………………………, efectuada pelo Banco ……….., S.A., para liquidação de responsabilidades deste último, em virtude da operação de fusão por incorporação do Banco …………., S.A. (sociedade incorporada) no Banco ……………….., S.A. (sociedade incorporante) ocorrida em 27 de Dezembro de 2017.” VIII. Mais declarou que, “A importância de € 1.176.172,00 liquidada cumpre integralmente a decisão a que o Banco foi condenado: capital de € 834.805,93, juros de mora vencidos até 20.12.2016 no valor de € 298.825,34 (tendo em consideração a prescrição declarada, as apropriações e devolução do arguido LF) e juros de mora vencidos após 20.12.2016 no valor de € 42.540,73.” IX. A Assistente, livremente, declarou ainda que, com o recebimento da quantia de € 1.176.172,00, “(…) fica o Banco …………, S.A., desonerado de todas e quaisquer obrigações postuladas no Acórdão transitado em julgado, declarando nada ter a reclamar do referido Banco, seja a que título for, no âmbito do mencionado processo judicial, considerando integralmente cumprido o referido Acórdão quanto ao demandado, passando a presente declaração de quitação, definitiva e sem reservas.” X. Tal declaração é explícita: a Assistente declarou, livremente e sem reservas, nada mais ter a reclamar do Reclamante, seja a que título for, XI. A expressão «nada ter a reclamar, seja a que título for», abrange - sem limitar - quaisquer verbas que ainda poderia ter a reclamar do ora Recorrente, sendo que se fosse intenção da Assistente ressalvar qualquer quantia, esta teria sido ressalvada especificamente, o que não sucedeu! XII. Pelo contrário, a Assistente declarou que o Reclamante ficaria desonerado de todas as obrigações postuladas no Acórdão, passando a declaração definitivamente e sem reservas. XIII. O facto da Assistente vir reclamar custas de parte causou, pois, estupefacção ao Recorrente, que estava em crer que a Assistente nada mais iria reclamar, como aliás a própria havia declarado, XIV. O comportamento adoptado (e contrário) consubstancia um claro abuso de direito da Assistente na modalidade de venire contra factum proprium já que é de forma clara que se pode atestar que, a Assistente gerou no aqui Recorrente a confiança de que o seu comportamento se manteria inalterado e, XV. Não poderá deixar de se entender como quebra de confiança o pedido (injustificado) de pagamento de custas de partes poucos dias após a emissão da declaração de quitação, por via do qual a Assistente declarou nada mais ter a reclamar do Recorrente, a que título fosse. XVI. O fundamento da vedação do comportamento contraditório é, justamente, a tutela da confiança, que mantém relação íntima com a boa-fé objetiva. XVII. Assim sendo, e de boa-fé, mais nenhum sentido se pode tirar da estipulação da Assistente em que renuncia expressamente a quaisquer outros montantes, seja a que título for, uma vez que foi intenção tutelar o pagamento de todos os montantes que a Assistente poderia reclamar, sob qualquer fundamento e em qualquer instância, do Recorrente, o que esta aceitou, definitivamente e sem reservas. XVIII. Entende o Recorrente que a conduta da Assistente radica em má-fé e não se pode aceitar que o Douto Tribunal a quo dê cobro ao entendimento que a Declaração de Quitação apenas contemplaria a importância de capital e juros postulada no Acórdão. XIX. Se o declarado não fosse o pretendido pela Assistente então é certo que não teria dado quitação, por um lado, com a abrangência dada, ou em alternativa ter-se-ia ressalvado especificamente certos montantes ou certas quantias ainda a reclamar a título específico, o que não sucedeu! XX. O tribunal não deve substituir-se à parte e tentar encontrar uma justificação que vai muito além do que é razoável. XXI. É clarividente que a Assistente quis referir que, nada tinha a haver seja a que título for e tem que se entender que aquela quis dizer exactamente o que expressou por escrito. XXII. O Recorrente continua a entender que não é devedor da nota justificativa e discriminativa de custas de parte apresentada pela Assistente. XXIII. A acrescer ao exposto, e porque não deve prevalecer apenas aquilo que o Douto Tribunal a quo entende que a Assistente quis dizer, deve, pois, ressalvar-se aquilo que, legitimamente, o Recorrente interpretou. XXIV. Refere o art.º 236.º CC que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração negocial”. XXV. Assim, com base da aludida regra legal, importaria o Douto Tribunal a quo ter feito melhor e maior esforço para aferir qual o verdadeiro sentido que um declaratário normal, colocado na posição do ora Recorrente, poderia deduzir do comportamento da Assistente, XXVI. Ou seja, qual o sentido que deduziria da declaração de “que, com tal pagamento, fica o Banco………., S.A., desonerado de todas e quaisquer obrigações postuladas no Acórdão transitado em julgado, declarando nada ter a reclamar do referido Banco, seja a que título for, no âmbito do mencionado processo judicial, considerando integralmente cumprido o referido Acórdão quanto ao demandado, passando a presente declaração de quitação, definitiva e sem reservas.” XXVII. Escalpelizando a dita declaração de quitação, e ao contrário do que entendeu o Douto Tribunal a quo, podemos antes concluir que a Assistente declarou nada mais ter a haver do banco Recorrente sendo este o primeiro dos sentidos que qualquer declaratário normal deduziria do comportamento da Assistente. XXVIII. O declaratário normal, ou seja, qualquer homem médio (“bonus pater familiae”) sem especiais conhecimentos jurídicos, confrontado com a aludida declaração de quitação, concluiria - tal como o ora Recorrente – que a Assistente se conformava com aquele pagamento e nada mais iria exigir ao Recorrente e pensaria que era aquela a real vontade da Assistente. XXIX. Pelo exposto, entende o Recorrente que a decisão do Douto Tribunal a quo não fez a correcta interpretação da lei e que por isso deve a mesma ser revogada e substituída por outra que entenda que a Assistente nada tem a haver do Banco aqui Recorrente. Nos termos do disposto no art.º 646.º, n.º 1 do CPC, o ora requerente requer seja extraída certidão dos documentos abaixo mencionados para efeitos de instrução do presente recurso: - Nota discriminativa e justificativa de custas de parte apresentada pela Assistente - Nota discriminativa e justificativa de custas de parte apresentada pelo Recorrente - Reclamação da nota de custas de parte apresentada pelo Recorrente - Requerimento de fls… dos autos datado de 25/06/2018 com a ref.ª 5728462 - Requerimento do MP com a refª 110048731, e - Despacho recorrido. NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE A DOUTA DECISÃO RECORRIDA EM CONFORMIDADE, SÓ ASSIM SE FAZENDO A ACOSTUMADA JUSTIÇA! O recurso interposto foi admitido com subida imediata, em separado, e efeito devolutivo. A demandante RGS respondeu à motivação do recorrente, formulando as conclusões que seguem: 1.ª – A doutrina da impressão do destinatário, prescrita no art.º 236.º do Código Civil, não pode ser atendida se o declarante não puder razoavelmente contar com esse sentido, conforme resulta da parte final do n.º 1, o que constitui uma limitação subjetiva ao critério objetivista, impelindo o intérprete à ponderação das circunstâncias de cada caso (Carlos Alberto Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4.ª edição, Coimbra 2012, pag. 444). 2.ª – O art.º 238.º do Código Civil contém um desvio à regra geral de natureza objetivista ao preceituar que nos negócios formais o sentido correspondente à doutrina da impressão do destinatário não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no texto do respetivo documento (in Ac. Rel. Porto de 30-05-2018, Proc. 1166/17.6T8OAZ.P1). 3.ª – Atendendo às circunstâncias em que foi feita a declaração da demandante (apenas com referência ao valor da condenação indemnizatória: 1.176.172,00 euros), não se pode concluir que fosse intenção da demandante renunciar ao direito de receber as custas de parte. 4.ª – No meio forense, nas transações e acordos de pagamento efetuados no âmbito de processos judiciais, é prática corrente as partes acordarem entre si qual o regime que adotam quanto a custas judiciais. 5.ª – No presente caso, tratando-se, como se trata, de um negócio bilateral, no documento “Declaração de Quitação”, nada foi mencionado quanto a custas judiciais. 6.ª – Antes, o texto do documento “Declaração de Quitação” indicia que tal documento é uma verdadeira quitação e não uma remissão abdicativa. 7.ª - O texto do referido documento contém os seguintes elementos (razões) indiciadores de que se trata de uma declaração de quitação: a) - Desde logo, a própria qualificação que as partes atribuem à declaração: “Declaração de Quitação”; b– Na decisão judicial a que tal documento se refere, vem apenas referenciada a parte atinente ao pedido de indemnização, reportando a condenação unicamente a capital e juros. c) – O próprio valor pago vem definido por referência a essa condenação e respetivos elementos indemnizatórios: capital e juros; d).- A demandante apenas assume como satisfação integral da obrigação de pagamento do demandado a correspondente àquela específica condenação indemnizatória e não a mais qualquer outra; e) – A declaração da demandante vem reportada a um valor preciso, 1.176.172,00 euros, correspondente ao capital e juros inerentes à condenação do demandado; f).- Só por referência a este valor declarou a demandante estar paga; g) - A demandante assume como forma de extinção da obrigação do demandado o pagamento do valor de 1.176.72,00 €, sem manifestar qualquer vontade de remissão abdicativa relativamente a outros créditos, mormente, no que se refere a custas de parte; h) – O documento não contém qualquer menção ao crédito relativo a custas de parte, por oposição à cuidada indicação dos créditos cumpridos, os referentes ao valor da condenação indemnizatória. 8.ª – A declaração da demandante de “nada ter a reclamar do referido banco, seja a que título for” inserida no texto do documento denominado “Declaração de Quitação”, não consubstancia uma remissão abdicativa, uma vez que a demandante ao efetuá-la apenas estava a receber e dar quitação das quantias em que o acórdão condenara o demandado (capital e juros), nada mais se dizendo ou acordando, ou seja, sem que tenha havido negociações prévias em que a questão da renúncia a custas de parte alguma vez tivesse sido discutida (neste sentido, também, o Ac.Rel. Évora de 31-01-2019, Proc.9/18.8T8PTM.E1). 9.ª – O documento intitulado como “Declaração de Quitação” não traduz um acordo de remissão abdicativa mas, antes uma mera quitação. 10.ª- O despacho do Meritíssimo Juiz “a quo” ao não admitir a reclamação do demandado à Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de parte apresentada pela demandante, fez correta interpretação do documento “Declaração de Quitação”, não merecendo qualquer censura, pelo que deve ser mantido na íntegra. Termos em que o presente recurso deve ser considerado improcedente como é de DIREITO e JUSTIÇA A Digna Procuradora-Geral Adjunta em funções junto desta Relação emitiu parecer sobre o recurso interposto, tendo propugnado pela respectiva improcedência. Tal parecer foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, nada tendo eles respondido. Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência. II. Fundamentação Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra. A sindicância da sentença recorrida visada pelo recorrente tem por finalidade a reversão do juízo de improcedência nele formulado sobre a reclamação deduzida pelo Banco demandado à nota de custas de parte da demandante Rolanda Silva, no sentido de se determinar que o recorrente nada deve à demandante a esse título. Resulta evidente das conclusões do recorrente e das formuladas na resposta da recorrida que o sucesso da pretensão recursiva depende do sentido que se atribuir, em sede de interpretação da declaração negocial, a uma declaração escrita, intitulada «Declaração de quitação» e assinada pela demandante RS, a qual se encontra certificada a fls. 89 e 90 dos presentes autos de recurso. Para melhor compreensão, passamos a reproduzir, na íntegra, o teor da aludida declaração: DECLARAÇÃO DE QUITAÇÃO RGS portadora do Cartão de Cidadão n.º ……….., residente na Rua, ……, DECLARA expressamente ter recebido: A importância de € 1.176.172,00 (um milhão cento e setenta e seis mil, cento e setenta e dois euros), através de transferência bancária para o IBAN PT………………………….., efectuada pelo Banco ………….., S.A., para liquidação de responsabilidades deste último, em virtude da operação de fusão por incorporação do Banco………….., S.A. (sociedade incorporada) no Banco …………………, S.A. (sociedade incorporante) ocorrida em 27 de Dezembro de 2017. Por Acórdão proferido a 20 de Dezembro de 2016, pela Comarca Judicial de Faro, Instância Central Criminal, no âmbito do processo n.º 81/13.7TALLE, no qual é arguido O ex-funcionário do Banco ………….., S.A., LFRF, e Demandado cível o Banco……………l, S.A., o tribunal colectivo decidiu: «- Condenar os demandados LFRF e Banco ………l, S.A. a pagarem solidariamente à demandante RGS a quantia de € 834.805,93 (oitocentos e trinta e quatro mil, oitocentos e cinco euros e noventa e três cêntimos), a que acrescem juros de mora (à taxa legai), até pagamento, sendo: i. devidos pelo Banco demandado desde os últimos 5 anos anteriores à data da instauração do procedimento criminal (cinco anos que antecedem 28.12.2012), sendo os juros contados sobre o valor em dívida na data de início da sua contagem, e sobre os valores posteriormente desviados pelo arguido a contar da data de cada uma dessas apropriações (posteriores a 28.12.2007) - sendo que a partir de 06.03.2008 os juros incidem sobre o valor em dívida depois de descontado o valor que foi devolvido naquela data;" A decisão supra foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora e transitou em julgado, em 10 de Abril de 2018, após decisão sumária de não admissão de recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça. A importância de € 1.176.172,00 liquidada cumpre integralmente a decisão a que o Banco foi condenado: capital de € 834.805,93, juros de mora vencidos até 20.12.2016 no valor de € 298.825,34 (tendo em consideração a prescrição declarada, as apropriações e devolução do arguido LF) e juros de mora vencidos após 20.12.2016 no valor de € 42.540,73. Consequentemente declara RGS que, com tal pagamento, fica o Banco……………………, S.A., desonerado de todas e quaisquer obrigações postuladas no Acórdão transitado em julgado, declarando nada ter a reclamar do referido Banco, seja a que título for, no âmbito do mencionado processo judicial, considerando integralmente cumprido o referido Acórdão quanto ao demandado, passando a presente declaração de quitação, definitiva e sem reservas. L………, de Maio de 2018 (segue assinatura da declarante) O recorrente mobiliza, em apoio da sua pretensão, o normativo do art. 236º do CC: 1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. Por sua vez, a recorrida invoca, em defesa da sua posição, o disposto no art. 238º do CC, que é do seguinte teor: 1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. 2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade. Embora sem indicar a respectiva sede legal, o recorrente alega que o comportamento da demandante, ao reclamar dele o pagamento das custas de parte, depois de a elas ter renunciado, integra um abuso de direito, enquanto «venire contra factum proprium». A figura civilística do abuso de direito vem tratada no art. 334º do CC, nos termos seguintes: É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Ainda que reconhecendo a dificuldade da questão, somos de entender que, uma vez considerada na sua globalidade a declaração negocial interpretanda e as disposições legais relevantes, importa atribuir razão à tese interpretativa defendida pela demandante em detrimento da propugnada pelo demandado e recorrente. Dado que está em causa uma declaração negocial exarada em documento escrito, o critério predominante na sua interpretação deverá ser o previsto no art. 238º do CC e não o do art. 236º do CC, ainda que os dois critérios não tenham de se excluir um ao outro completamente. Neste contexto, somos sensíveis à circunstância, como o foi o Tribunal «a quo», de o texto em apreço não conter referência expressa à condenação do demandado em custas, mas somente no pagamento à demandante de indemnização composta de capital e juros de mora. Consequentemente, não pode razoavelmente entender-se que a declaração contida no parágrafo final do documento, que está formulada, é verdade, em termos genéricos e abrangentes, envolva da parte da declarante a renúncia a quaisquer direitos, mormente, o de perceber do Banco demandado custas de parte. Conforme se salientou também na fundamentação do despacho sob recurso, o título ou epígrafe da declaração em causa milita a favor da tese interpretativa da demandante, porquanto a expressão «quitação» é uma declaração através da qual o credor atesta o cumprimento de uma obrigação pelo devedor (ou por outrem, legitimado para o efeito) e não comporta, por definição, a abdicação de quaisquer direitos. Quanto à invocação do abuso de direito, podemos dar de barato, em tese geral, que o exercício de um direito em situação de «venire contra factum proprium» é atentatória do princípio da boa fé, o que se verifica quando o titular do direito venha exercitá-lo depois de ter inequivocamente renunciado a ele. Contudo, pelas razões que deixámos expressas, entendemos que a declaração reproduzida a fls. 89 e 90 não consubstancia uma renúncia ao direito de receber custas de parte do demandado ora recorrente, pelo que o abuso de direito não pode estar em causa. Assim, gorada a tese interpretativa em que se apoiava a pretensão do recorrente, terá esta de improceder. III. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça. Notifique. Évora 10/3/20 (processado e revisto pelo relator) (Sérgio Bruno Povoas Corvacho) (João Manuel Monteiro Amaro) . |