Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL BARGADO | ||
Descritores: | EXCESSO DE PRONÚNCIA ARRENDAMENTO RURAL RESOLUÇÃO DO CONTRATO ABUSO DE DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 06/27/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - A consideração de alguns factos que não devessem ser atendidos nos termos do artigo 5º, nº 1 e 2, do CPC, não se traduz em vício de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608º, nº 2, do mesmo Código. II - Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC. III - À semelhança do disposto no NRAU quanto à resolução do contrato, o NRAR (Novo Regime do Arrendamento Rural) consagra a possibilidade de qualquer das partes resolver o contrato de arrendamento rural com base no incumprimento contratual da parte contrária que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível a manutenção do arrendamento, ou com base na alteração significativa da natureza e ou da capacidade produtiva do prédio objeto de arrendamento. IV – Constitui fundamento de resolução do contrato nos termos das alíneas b) e d) do nº 2 do artigo 17º do NRAR a conduta do inquilino que: i) efetua sucessivas mobilizações dos solos, através do sistema de gradagem, causando elevados índices de mortalidade do montado da autora constituído por sobreiros; ii) não protege o renovo dos sobreiros quando grada as terras para cultivo; iii) permite que as ovelhas andem por toda a herdade em bando/rebanho, sem qualquer tipo de controlo, compactando os solos através do pisoteio e destruindo o eventual renovo sobrevivente; iv) como não se mostram recetivos à qualquer interpelação da autora ou das pessoas que contrata para o efeito no sentido de implementar estratégias ou modos de atuação que facilitem a recuperação do montado. V – A vertente do abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que acontece quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara, o que não se verifica de todo no caso em apreço. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO Sociedade BB, Lda. instaurou a presente ação declarativa com processo comum contra CC e DD, pedindo que: 1) Seja decretada a resolução dos contratos de arrendamento identificados na petição inicial. 2) Os réus sejam condenados a entregar à autora, imediatamente, os seguintes prédios: - As courelas nº 192, 194 e parte da 197, do prédio rústico denominado “Herdade de …” situado na freguesia de Santa Maria da Castelo, concelho de Alcácer do Sal, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo …º, secção D a D15, livre de pessoas, animais e coisas; - As courelas nº 193 do prédio rústico denominado “Herdade de …” situado na freguesia de Santa Maria da Castelo, concelho de Alcácer do Sal, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo …º, secção D a D15. 3) os réus sejam condenados a pagarem as rendas que se vencerem na pendência da ação, bem como nos juros, à taxa legal, contados desde o dia de vencimento de cada uma das rendas vencidas até efetivo pagamento. Alegou, em síntese, que o gado dos réus pastoreia e pernoita sem qualquer limitação, procurando no verão as zonas mais frescas que são as mais próximas dos sobreiros, o que cria um aumento de carga de animais no solo e, consequentemente, a compactação dos solos pelo pisoteio, encontrando-se muitas das árvores com raízes à vista pelo pasto insistente e permanência de gado na mesma zona. Os réus não protegem o renovo quando gradam as terras para cultivo, o que acontece todos os anos, danificando gravemente os sobreiros existentes o que leva à diminuição atual e futura da cortiça do prédio. Os réus instalaram no prédio galinheiros e pombeiro construindo barracas para o efeito, mantendo ali muitas aves, tudo sem consentimento da autora, sendo que a presença das aves traz várias doenças para perto dos sobreiros. Os réus vêm colocando barris de óleo por toda a propriedade, pneus, recipientes de tintas, estrados de cama, madeiras e ferros abandonados e mantém no prédio uma oficina que é utilizada como armazém de tintas, óleo, frigoríficos, motas, etc. Os réus contestaram, impugnando a generalidade da factualidade alegada pela autora, sustentando que sempre exploraram as parcelas locadas respeitando a sua produtividade e a capacidade dos solos e das árvores e plantas existentes, concluindo pela improcedência da ação e a sua absolvição do pedido. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedente a ação, decidiu nos seguintes termos: «A) Declaro resolvidos os contratos de arrendamento celebrados com os Réus: - O primeiro celebrado em 27 de Dezembro de 1989, relativo à courela 194, com a área de 217,00 ha, do prédio rústico denominado “Herdade de …”; - O segundo de 27 de Dezembro de 1989, relativo à courela n.º193, com a área de 220,00 ha, do prédio rústico denominado “Herdade de …”; - O terceiro, celebrado em 30 de Dezembro de 2002, relativo à courela 192, com a área de 120 ha, e parte da courela 197, com a área de 60,65 ha, no total de 180,65 ha, ambas do prédio rústico denominado “S…”. B) Condeno os Réus a entregar à Autora, livre de pessoas e animais as parcelas ou courelas objecto dos contratos supra identificados. C) Condeno os Réus a pagaram à Autora as rendas que se tenham vencido na pendência da acção, acrescido de juros de mora, à taxa legal.» Inconformados, os réus apelaram do assim decidido, finalizando as alegações com as conclusões que a seguir se transcrevem: «1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância que declarou resolvidos os contratos de arrendamento celebrados pelos R.R., ora Apelantes, o primeiro celebrado em 27 de Dezembro de 1989, relativo à courela 194, com a área de 217,00ha do prédio rústico denominado Herdade de …, o segundo celebrado em 27 de Dezembro de 1989 relativo à courela nº 193, com a área de 220,00ha, do prédio rústico Herdade de …, o terceiro celebrado em 30 de Dezembro de 2002, relativo à courela 192 com a área de 120ha e parte da courela 197 com a área de 60,65ha, no total de 180,65ha, ambos do prédio denominado “S…”, e condenou-os a entregar à A., livre de pessoas e animais as parcelas ou courelas objecto dos contratos supra identificados e pagarem à A. as rendas que se tenham vencido na pendência da acção, acrescidas de juros de mora, à taxa legal. 2. Considerou o tribunal “a quo” que a conduta dos R.R. preencheram os pressupostos previstos nas alíneas b) e d) do nº 2 do artigo 17º da L.A.R. por violação dos deveres legais e genéricos de colaboração entre o senhorio e o rendeiro e por falta de zelo na pretecção do renovo e o prejuízo que a efectiva mobilização dos solos produz coloca em causa a subsistência do montado da Autora. 3. A matéria de facto a considerar é aquela que foi tida como assente na sentença recorrida, para a qual, nessa parte, se remete. 4. Apesar de respeitar, os Apelantes não concordam com o entendimento preconizado pelo douto Tribunal a quo por em 30 anos de duração dos contratos sempre actuaram com consciência de cumprirem as suas obrigações contratuais e legais, aplicando as técnicas adequadas e respeitando os direitos contratuais e legais da A. 5. Nos termos dos contratos de arrendamento ficou acordado que as parcelas arrendadas se destinaram, exclusivamente à cultura de pastagem e hortejo. 6. Para obter a pastagem para as ovelhas os R.R. fazem sementeiras de tremocilha e aveia. 7. Tais sementeiras são feitas com sulcos no solo para enterrar as sementes. 8. Para o efeito utilizam a técnica da gradagem leve com disco de 4/5 dedos. 9. Estas sementeiras, como é de conhecimento oficioso, são feitas no final do retorno, com uma mobilização ligeira dos solos com grade de discos com sulcos de 3 a 6cm de profundidade. 10. A estrutura radicular dos sobreiros desenvolvem-se a 30cm de profundidade. 11. A gradagem com discos utilizada pelos R.R. evita a compactação dos solos, ao provocar uma ligeira mobilização dos solos e não danifica a estrutura radicular dos sobreiros. 12. É certo que aconselha-se a substituição da gradagem pela aplicação de corta-matos, mas esta substituição só se aplica no controlo do extracto arbustivo, porque é impossível tratar o terreno e fazer os sulcos para enterrar as sementes com corta-matos. 13. Há 30 anos que os R.R. utilizam a gradagem de discos para fazer as sementeiras sem que alguma vez, tenha havido oposição da Locadora. 14. Os R.R. lavram todos os anos os prédios arrendados em regime rotativo, dividindo as parcelas em folhas com intervalos de 5/7 anos, ou seja cada parcela só é lavrada novamente decorridos 5/7 anos. 15. As pequenas plantas forma-se em 5 anos com sistemas radiculares a 30 cm de profundidade. 16. O pastoreio é continuo com livre acesso dos animais a toda a área de pastagem. 17. O pastoreio continuo é o aconselhado pois evita a compactação dos solos. 18. A pernoita dos animais é feito em locais alternadamente. 19. O efectivo do rebanho é de 535 cabeças. 20. A área das parcelas arrendadas é de 617,65ha, o efectivo pecuário é inferior a 1 cabeça por há média inferior à recomendável. 21. Ficou acordado nos contratos que no arrendamento não se incluía qualquer espécie florestal, incumbindo à A. todas as diligências de limpeza, corte e extracção das árvores e seus frutos. 22. Competia à A. a conservação e recuperação do montado sem prejuízo das culturas dos R.R. 23. Nas acções de conservação competia à A. a identificação e protecção do renovo do montado, que não consta ter feito. 24. Nas acções de recuperação competia à A. a regeneração do montado através de regeneração artificial o que não consta ter feito. 25. Os R.R. estão excluídos de proceder a essas acções a gradagem e o maneio dos animais executados pelos R.R. não contribuíram para a mortalidade dos sobreiros. 26. A elevada mortalidade dos sobreiros, no concelho de Grândola, tem desde os anos de oitenta sido objecto de preocupação e de inúmeros estudos, cujas causas estão determinadas, como a deterioração da qualidade do ar, as pragas, as doenças, as elevadas intensidades de descortiçamento, a manutenção de material morto e as alterações climáticas. 27. Como é do conhecimento do Tribunal a quo essa elevada mortalidade tanto se verifica nos montados com pastagem como nos montados sem pastagem. 28. O índice de mortalidade normal dos montados é de 1 sobreiro por hectare, que é o que se verifica no montado da A., se dividir-mos o total de área pelos sobreiros mortos. (617,65ha/946 sobreiros/20 anos) 29. Não existe mortalidade elevada no montado da A. 30. A plantação de pinheiros foi feita pela A. na parcela com pastagem de ovelhas. 31. Sempre que haja pastoreio, caça ou outra actividade que possa danificar as jovens plantas, torna-se necessário recorrer a métodos de protecção adequados. 32. O verão de 2018 foi um verão com uma inédita onda de calor que se prolongou por semanas. 33. Sem chuva e sem sistema de rega e com protecções inadequadas poucos pinheiros vingaram, devido ao verão quente e seco. 34. Situação igual aconteceu na reflorestação de pinheiros no pinhal de Leiria. 35. O pastoreio não contribui para a mortandade dos pinheiros. 36. Numa situação de prolongadíssima duração dos arrendamentos assume particular releva a determinação do momento em que os R.R. violaram a obrigação legal de facilitar a implementação das acções de manutenção e recuperação do montado. 37. Bem como a partir de que momento a gradagem realizada pelos R.R. começou a contribuir para a elevada mortalidade dos sobreiros. 38. E desde que momento o maneio do gado visava sabotar as acções da A. 39. A longíssima duração da relação de arrendamento e a estabilidade que lhe vai associada, bem como a confiança das partes na sua provável subsistência não pode deixar de ser tida em consideração quando se realiza uma ponderação entre a censurabilidade dos factos e a sua relevância resolutiva, pois só, por via de proporcionalidade, só um comportamento de particular gravidade justifica o termo de uma relação contratual que subsiste, ininterruptamente entre as partes há várias décadas. 40. É que a expectativa do senhorio em reaver os prédios no estado em que os entregou, que pode revelar-se razoável e proporcional em arrendamentos que vigoram por períodos temporais limitados, perda claramente consistência quando se trata de reaver prédios arrendados há trinta anos, e nos quais a A. não realizou acções de conservação ou manutenção do montado. 41. Os contratos de arrendamento têm uma longevidade de 30 anos os dois primeiros e o terceiro 17 anos. 42. Os R.R. sempre cultivaram as sementeiras com o recurso à gradagem e utilizaram o galinheiro e o pombeiro à vista, conhecimento e colaboração da A. 43. Com a convicção, zelo e diligência que a sua actuação era legítima e não ofendia nenhum direito da A. 44. A A. criou-lhes essa convicção, sem que da sua parte manifestasse qualquer oposição às técnicas utilizadas, revelando um tácito consentimento. 45. Com a presente acção de despejo, a A. viola os princípios da boa-fé e de confiança em que os R.R. assentaram a sua expectativa sobre o comportamento anterior. 46. A A. excedeu, assim, manifestamente o fim económico que do direito invocado no peditório pelo que nos termos do disposto no artº 334º é ilegítimo o exercício deste que visa a presente acção. 47. Ao litigar da forma como faz a A. ocorre Abuso de Direito na modalidade de venire contra factum proprium pelo que a acção deve improceder. 48. Os factos provados AAA); BBB); CCC) e DDD) não foram alegados pela A. na petição inicial, não constam dos temas de prova, nem alegados pelos R.R. na contestação. 49. O Juiz não pode ampliar a matéria de facto de surpresa sem dar às partes a oportunidade de produzir sobre esses factos as respectivas provas. 50. O Tribunal conheceu os factos que não podia conhecer pelo que é nula a sentença – nulidade que se invoca. 51. A actuação dos R.R. careceu de relevância resolutiva, por não preencherem a cláusula geral prevista no nº 1 do artº 17º da L.A.R. de inexigibilidade de manutenção dos arrendamentos.» A autora contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir: - nulidade da sentença; - resolução do contrato; - abuso de direito. III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos: A) A autora é dona e legitima possuidora do prédio rústico denominado “Herdade de …”, situado na freguesia de Santa Maria, concelho de Alcácer do Sal, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo …º, secção D a D15. B) A autora é dona e legitima possuidora do prédio rústico denominado “S…” situado na freguesia de Santa Maria da Castelo, concelho de Alcácer do Sal, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo …º, secção D7 a D10. C) No dia 27 de Dezembro de 1989, foi celebrado entre a Sociedade Agrícola da Herdade de …, S.A., pessoa coletiva nº …, com sede na Rua …, …, S/L, esquerdo, em Lisboa, e o réu CC, um contrato de arrendamento denominado pelas partes de “contrato de arrendamento rural”, nos termos do qual aquela sociedade deu ao réu de arrendamento rural, a courela n.º194, com a área de 217,00 ha, do prédio rústico denominado “Herdade de …”. (documento de fls. 14 que aqui se dá por reproduzido) D) O arrendamento foi pelo prazo de 10 anos, com início dos seus efeitos no dia 1 de Janeiro de 1990. E) A renda acordada na data foi de 53.620$00, a pagar nos escritórios do senhorio até ao dia 31 de Dezembro do ano respetivo. F) Presentemente a renda é no valor de 2.708,62€, mais IVA à taxa reduzida que no presente é de 6%. G) Ficou acordado que a parcela arrendada se destina exclusivamente à cultura de pastagem e hortejo. H) Também ficou acordado que no arrendamento não se incluía qualquer espécie florestal, incumbindo à Sociedade Agrícola Herdade de …, S.A. todas as diligências de limpeza, corte e extração das árvores ou seus frutos. I) No dia 27 de Dezembro de 1989, foi celebrado entre a Sociedade Agrícola da Herdade de …, S.A., e a ré DD um contrato que as partes denominaram de “contrato de arrendamento rural”, nos termos do qual esta sociedade deu à ré de arrendamento a courela n.º193, com a área de 220,00 ha, do prédio rústico denominado “Herdade de …” (documento de fls. 19 que aqui se dá por reproduzido) J) O arrendamento foi pelo prazo de 10 anos, com início dos seus efeitos no dia 1 de Janeiro de 1990. K) A renda acordada na data foi de 55.685$00, a pagar nos escritórios do senhorio até ao dia 31 de Dezembro do ano respetivo. L) Presentemente a renda é no valor de 1.846,02€, €, mais IVA à taxa reduzida que no presente é de 6%. M) Ficou acordado que a parcela arrendada se destina exclusivamente à cultura de pastagem e hortejo. N) Também ficou acordado que no arrendamento não se incluía qualquer espécie florestal, incumbindo à Sociedade Agrícola Herdade de …, S.A. todas as diligências de limpeza, corte e extração das árvores ou seus frutos. O) No dia 30 de Dezembro de 2002, foi celebrado entre a autora, e o réu CC, um contrato que as partes denominaram de “contrato de arrendamento – campanha de 2003”, nos termos do qual a autora deu ao réu de arrendamento parte da courela 192, com a área de 120 ha, e parte da courela 197, com a área de 60,65 ha, no total de 180,65 ha, ambas do prédio rústico denominado “S…” ” (documento de fls. 24 que aqui se dá por reproduzido) P) O arrendamento foi celebrado pelo prazo de um ano, com termo no dia 31 de Dezembro de 2003. Q) A renda acordada na data foi de € 2.163,00, a pagar nos escritórios do senhorio até ao dia 31 de Dezembro do ano de 2003. R) Presentemente a renda é no valor de € 1.808,52, mais IVA à taxa reduzida que no presente é de 6%. S) Ficou acordado que a parcela arrendada se destina à cultura de aveia e tremocilha. T) Após o dia 31 de Dezembro de 2003 o réu CC continuou, mediante o pagamento de uma renda, a explorar as courelas identificadas em O). U) Após 31 de Dezembro de 2003, ficou acordado que o réu CC continuaria a destinar as courelas identificadas em O) às culturas de aveia e tremocilha. V) Por escritura pública lavrada no 12º Cartório Notarial de Lisboa, foi efetuada uma cisão-fusão da Sociedade Agrícola da Herdade de …, S.A. com a autora Sociedade BB, S.A., sociedade anónima, com sede em …, Alcácer do Sal, com o número de matrícula e de pessoa coletiva …. W) A autora passou a ser a dona e legitima possuidora das courelas objeto dos contratos de arrendamento identificados em C) e I) X) A autora tem nos prédios identificados em C) e I) montado de sobro. Y) Os réus têm mantido nos locados rebanhos de ovelhas. Z) Sem cercas, o gado dos réus pastoreia e pernoita em qualquer local dos prédios. AA) No pastoreio, o gado dos réus procura sempre as zonas mais frescas. BB) Os réus são casados entre si. CC) À data dos arrendamentos, estavam colocadas no prédio cercas de madeira. DD) As zonas mais frescas são as mais próximas dos sobreiros. EE) Por força da degradação das vedações ou por as mesmas não se encontrarem fechadas, o pastoreio passou a ser contínuo. FF) Com um aumento da carga dos animais no solo em algumas zonas. GG) Fazendo com que exista uma compactação dos solos pelo pisoteio. HH) Encontram-se muitas árvores com raízes à vista pelo pasto, devido a uma confluência de fatores: erosão dos solos, gradagem e permanência do gado. II) As ovelhas dos réus, pela forma como são conduzidas, causam impacto negativo nos solos e nas plantas, nomeadamente através do sobre pastoreio e do excesso de pisoteio em solos. JJ) O índice de mortalidade de sobreiros nos prédios da Autora é elevado. KK) Os réus não protegem ao renovo dos sobreiros quando gradam as terras para cultivo. LL) A sucessiva mobilização dos solos com a gradagem com recurso a grades de discos danifica estrutura radicular dos sobreiros. MM) O Réu grada todos os anos parcelas dos prédios arrendados, ainda que em regime rotativo. NN) A mortalidade elevada dos sobreiros conduz à diminuição atual e futura produção de cortiça do prédio. OO) Os réus procederam também à colocação de galinheiros e pombeiro, construindo barracas para esse efeito. PP) Construções que os réus levaram a cabo sem consentimento da autora. QQ) Os Réus mantinham junto ao Monte e apoiados nos sobreiros, barris de óleo, pneus, recipientes com tintas, estrados de camas, madeiras e ferros abandonados, madeiras, chapas de ferro. RR) Manuseiam óleo sem cuidar de utilizar mecanismos de retenção para proteção do solo. SS) Mantêm no centro da herdade bidons de água e sacos plásticos de adubo. TT) Os Réus mantêm bebedouros de ovelhas inutilizados e deixados na propriedade. UU) A autora tem tentado junto dos Réus implementar estratégias ou modos de actuar que facilitasse a recuperação do montado. VV) Apesar das insistências da autora, os réus não alteram o seu comportamento. WW) Sempre que as representantes da autora os interpelam os réus assumem um comportamento agressivo para com as mesmas. XX) Bem como com outras pessoas que a autora desloca aos prédios para procederem à manutenção e proteção do montado. Mais se provou: YY) No ano de 1998, a Autora foi autorizada a proceder ao abate de 145 sobreiros adultos e 5 jovens. ZZ) No ano de 2018, a Autora foi autorizada a proceder ao abate de 710 sobreiros adultos e 236 sobreiros jovens. AAA) O ano de 2018, a Autora procedeu à plantação de cerca de 4.800 pés de pinheiro manso, encontrando-se uma parte significativa da plantação morta. BBB) No local da plantação dos pinheiros era visível o pisoteio das ovelhas, sendo as mesmas pastoreadas nesse local. CCC) A Autora não procedeu à rega dos pinheiros. DDD) A Autora utilizou proteções de rede flexível nos pinheiros que plantou. E foi considerada não provada a seguinte factualidade: 1) Que as cercas de madeira mencionadas em CC) se destinassem a evitar que determinadas zonas fossem sujeitas a sobre pastoreio. 2) Os réus obrigaram-se a manter vedados os locais onde o seu gado pernoita. 3) Os Réus obrigaram-se a manter em boas condições de conservação as vedações existentes nos prédios. 4) Em data que a autora não consegue precisamente determinar, os réus, sem o seu consentimento, procederam a retirada de parte dessas cercas. 5) Deixando-as abandonadas pelos prédios e encostadas nos sobreiros existentes nos prédios. 6) O que se verifica à data da propositura da presente ação. 7) As ovelhas evitam a regeneração natural das árvores por afolhamento rotativo. 8) Os Réus mantêm muitas aves nos prédios 9) A presença das aves traz várias doenças e variados bichos indesejáveis para perto dos sobreiros e das espécies protegidas 10) As construções feitas pelos réus causam grande dano no espaço e árvores envolventes. 11) Os réus mantêm nos prédios uma oficina, que utilizam como armazém de tintas, óleos, frigoríficos inutilizados, motas inutilizadas, peças ferrugentas, etc. 12) Os réus, com o comportamento supra descrito, têm vindo a tornar as courelas verdadeiros armazéns de ferro velho variado. 13) O que origina a contaminação dos solos pelos vários tipos de detritos. 14) O que fazem sem autorização da autora. 15) Os réus bem sabem que quando haja pastoreio, ou outras atividades que danifiquem as árvores e plantas, torna-se necessário recorrer a métodos de proteção das mesmas. O DIREITO Da nulidade da sentença Dizem os recorrentes que os factos provados nas alíneas AAA), BBB), CCC) e DDD) não foram alegados pela autora na petição inicial, não constam dos temas de prova, nem foram alegados pelos réus na contestação, pelo que não podia a Sr.ª Juíza a quo «ampliar a matéria de facto de surpresa sem dar às partes a oportunidade de produzir sobre esses factos as respetivas provas», tendo assim o Tribunal conhecido «factos que não podia conhecer pelo que é nula a sentença». Como é sabido, as nulidades da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito. Assim, os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia incidem sobre as “questões” a resolver, nos termos e para os efeitos dos artigos 608º e 615º, nº 1, alínea d), do CPC, com as quais se não devem confundir os “argumentos” expendidos no seu âmbito. No que respeita aos recursos, as questões a resolver definem-se à luz do respetivo objeto genericamente traçado nos artigos 639º, nº 1 e 2, e 640º, nº 1, alíneas a) e c), do CPC: a) - quanto ao erro de direito, por delimitação do erro de interpretação e/ou de aplicação da normas tidas por violadas, ou do erro na determinação da norma que devia ser aplicada – artigo 639º, n.º 2, alíneas a) a c); b) – quanto ao erro de facto, por especificação dos pontos de facto tidos por incorretamente julgados e da decisão que se entende dever ser proferida – artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c). No que respeita à decisão de facto, «o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, (…)»[1]. Como ensina Alberto dos Reis[2]: «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão. … «(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.» «E, por argumento de maioria de razão, o mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito»[3]. Assim, quanto aos factos das referidas alíneas AAA), BBB), CCC) e DDD), não se poderá colocar o vício de excesso de pronúncia. A questão devia, pois, ser colocada no âmbito da impugnação da matéria de facto, mas os recorrentes entenderam que não deviam efetuar tal impugnação, aceitando a decisão de facto proferida pelo Tribunal recorrido, tendo circunscrito o objeto do recurso à decisão de direito, pelo que não há que reapreciar a matéria em questão. Em suma, a sentença recorrida não enferma da nulidade invocada pelos réus. Da resolução do contrato/abuso de direito Não tendo os réus/recorridos procedido à impugnação da matéria de facto, tem-se por intocada a factualidade dada como assente pelo tribunal recorrido. Da mesma decorre que entre a autora e réu estão em vigor os seguintes três contratos: - O primeiro celebrado em 27 de Dezembro de 1989, denominado pelas partes de “contrato de arrendamento rural”, nos termos do qual foi dado de arrendamento rural ao réu, a courela n.º194, com a área de 217,00 ha, do prédio rústico denominado “Herdade de …”, com destino exclusivo de pastagem e hortejo, nele tendo sido excluído qualquer espécie florestal, incumbindo à proprietária todas as diligências de limpeza, corte e extracção das árvores ou seus frutos. - O segundo, com a mesma data – 27 de Dezembro de 1989 - denominado pelas partes de “contrato de arrendamento rural”, nos termos do qual foi dado de arrendamento rural ao réu, a courela n.º193, com a área de 220,00 ha, do prédio rústico denominado “Herdade de …” com destino exclusivo de pastagem e hortejo, nele tendo sido excluído qualquer espécie florestal, incumbindo à proprietária todas as diligências de limpeza, corte e extracção das árvores ou seus frutos. - O terceiro, celebrado em 30 de Dezembro de 2002, denominado pelas partes de “contrato de arrendamento – campanha de 2003”, nos termos do qual a autora deu ao réu de arrendamento parte da courela 192, com a área de 120 ha, e parte da courela 197, com a área de 60,65 ha, no total de 180,65 ha, ambas do prédio rústico denominado “S…”, destinado à cultura de aveia e tremoçilha. Não sofre contestação que estamos na presença de três contratos de arrendamento rural, tal como este vem definido no artigo 2º, nº 1, do Novo Regime de Arrendamento Rural[4], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro, sendo os dois primeiros contratos do tipo arrendamento agrícola e o terceiro do tipo arrendamento de campanha, nos termos do artigo 3º do NRAR. No recurso está em causa saber se existe ou não fundamento para a autora (senhoria) resolver tais contratos, tendo a sentença recorrida respondido afirmativamente a tal questão, entendimento contra o qual se insurgem os réus que consideram inexistir fundamento para a resolução decretada, invocando ainda a figura do abuso de direito para obstar à resolução contratual. Vejamos, pois, de que lado está a razão. A cessação do contrato de arrendamento rural por resolução está regulada no artigo 17º do NRAR, que estatui do seguinte modo: «1 – Qualquer das partes pode resolver o contrato com base em incumprimento pela outra parte, que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, ou alteração significativa da natureza e, ou, da capacidade produtiva do prédio. 2 - O senhorio só pode pedir a resolução do contrato se o arrendatário: a) Não pagar a renda no tempo e lugar próprio, nem fizer o pagamento nos termos previstos no n.º 4 do artigo 11.º; b) Faltar ao cumprimento de uma obrigação legal ou contratual, com prejuízo directo para a produtividade, substância ou função económica e social do prédio; c) Não utilizar apropriadamente e com regularidade o prédio ou usar o mesmo para fins diferentes do estipulado no contrato; d) Não zelar pela boa conservação dos bens ou causar prejuízos graves nos que, não sendo objecto do contrato, existam no prédio arrendado; e) Realizar, sem consentimento do senhorio, investimentos em obras ou construções que alterem a natureza, a estrutura geofísica e as características essenciais do prédio, sem prejuízo do disposto no capítulo V do presente decreto-lei.» À semelhança do disposto no NRAU quanto à resolução do contrato, o NRAR consagra a possibilidade de qualquer das partes resolver o contrato de arrendamento rural com base no incumprimento contratual da parte contrária que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível a manutenção do arrendamento, ou com base na alteração significativa da natureza e ou da capacidade produtiva do prédio objeto de arrendamento. Porém, ao contrário do que se verifica em sede de NRAU, o NRAR indica taxativamente nas várias alíneas do nº 2 do artigo 17º as situações de incumprimento pelo arrendatário que permitem ao senhorio resolver o contrato, não sendo, por conseguinte, admissível a resolução do contrato pelo senhorio com fundamento noutras situações de incumprimento diferentes daquelas previstas na lei. Ao caso importa atender ao que dispõem as alínea b) e d) do nº 2 do artigo 17º. O princípio geral no que respeita à conservação e beneficiação dos prédios rústicos arrendados vem enunciado no artigo 21º do NRAR: «1 - O senhorio e o arrendatário são obrigados a permitir e facilitar a realização das acções de conservação ou recuperação, assim como as benfeitorias que a outra parte deva ou pretenda fazer, com o intuito de garantir a utilização do prédio em conformidade com os fins constantes do contrato e numa perspectiva de melhorar as condições de produção e produtividade. 2 - As acções de conservação ou recuperação e as benfeitorias referidas no número anterior devem ser realizadas, sempre que possível, durante o período do ano que menos inconvenientes cause ao arrendatário, salvo se as mesmas forem de carácter urgente e inadiável. Escreve a este propósito Adalberto Costa[5]: «(…), entregue o prédio ao inquilino este tem a obrigação de o conservar, ou seja, de o manter com as condições de utilização que possuía quando foi recebido. A esta obrigação ficam no entanto ressalvadas as alterações que são inerentes a uma boa e adequada utilização e em conformidade com os fins que constam do contrato. Não sendo assim, isto é, quando o inquilino não atue de modo a conservar o prédio e, por outro lado dele faça uma utilização que o prejudique na sua capacidade produtiva ou até na alteração das suas características ou fins, pode o inquilino por isso ser responsabilizado e consequentemente ser obrigado a indemnizar o senhorio nos termos da lei geral, sem prejuízo do das benfeitorias que se encontra previsto nos artigos 23º e 24º (…). Seja como for, deve entender-se, no dizer da lei, por utilização adequada a exploração do prédio de acordo com as técnicas que sejam necessárias e também adequadas à execução da atividade que está acordada no contrato, bem como de acordo com os fins que dele constam. Isto é tão importante quanto o tipo de contrato de arrendamento outorgado já que cada tipo de contrato terá obviamente em vista uma atividade específica e um fim próprio. Para um contrato agrícola exigir-se-á um comportamento, um certo modo de atuar, e para o contrato florestal, certamente que esse comportamento e modo de atuar será diferente, atenta, desde logo, a natureza da atividade a desenvolver em face da exploração a concretizar. (…)». Escreveu-se na sentença recorrida: «Mas entendemos outrossim que existe – de forma grave e reiterada – a violação dos deveres legais e genéricos de colaboração entre o senhorio e o rendeiro (ou arrendatário) previstos no artigo 21º da Lei do Arrendamento Rural (…). Com efeito, provou-se que efectivamente o montado da Autora apresenta problemas graves que têm como consequência, uma mortalidade elevada dos sobreiros (cfr. alínea JJ) e NN) dos factos provados. É óbvio que para tais índices de mortalidade contribuem diversos factores, sendo que apenas alguns deles poderão ser assacados aos Réus, designadamente a elevada mobilização dos solos através do sistema de gradagem o que conduz, por um lado à exposição das raízes dos sobreiros existentes e destruição da sua estrutura radicular mas igualmente à destruição do renovo que impede a reflorestação natural. Com efeito, e como foi amiúde explicado pelos Engenheiros depoentes, não só a gradagem destrói o renovo, mas igualmente, o que resistir a tal operação fica exposto pela inexistência de sub-coberto que o proteja. E, tendo isto por assente – sendo que estas condutas serão analisadas na alínea subsequente - na que ora cuidamos, provou-se que a Autora tem tentado implementar estratégias ou modos de actuar que facilite a recuperação do montado, sendo que por um lado, os Réus não contribuem para as mesmas – por exemplo, protegendo o renovo - e por outro lado, não se mostram receptivos à interpelação da Autora ou dos técnicos que esta contrata para o efeito. Por outro lado, provou-se ainda que - num comportamento que se afigura de assaz gravidade - tendo a Autora, na tentativa de reflorestar a sua propriedade de acordo com as indicações que recebeu dos técnicos, plantado no ano de 2018 cerca de 4.800 pinheiros, encontram-se estes sem qualquer viabilidade (mortos), sendo que no Réu nada fez para impedir o pisoteio das jovens árvores deixando que as ovelhas pastassem livremente sobre as mesmas. Claro que os Réus entendem que a Autora não usou a protecção das jovens plantas que no seu entender aquela devia ter usado. Com efeito, a Autora utilizou uma rede flexível em cada árvore e o Réu marido entende que a Autora devia ter protegido as mesmas com uma protecção de rede ovelheira. Sustenta ainda o Réu que os pinheiros morreram por falta de rega. É certo que não se provou a causa específica da morte das árvores plantadas (que da inspecção judicial estimamos em 80% a 90%), designadamente se por falta de água (a relembrar aqui a pública elevada taxa de mortalidade dos pinheiros plantados no recente ardido pinhal de Leiria, que foi objecto de recente notícia nos órgãos de comunicação social) se por pisoteio. Mas provou-se – porque foi visível na inspecção judicial – que na zona plantada, as ovelhas pastavam livremente sobre as jovens árvores, sendo notório o pisoteio destas (foi dito por um dos engenheiros depoentes que o Réu colocou no local os bebedouros do seu rebanho). Ou seja, evidentemente e à saciedade, o Réu nada fez – e a crer no depoimento da mencionada testemunha, contribuiu propositadamente colocando os bebedouros que as ovelhas procuraram - para proteger a reflorestação que a Autora tentou realizar. Ora, o supra citado artigo 5º da Lei do Arrendamento Rural, define o que se tem por acções de conservação (as que tenham como objectivo manter as características e potencialidades fundamentais do prédio e, consequentemente, a respectiva capacidade produtiva) e acções de recuperação (as que tenham como objectivo promover e garantir a recuperação das características e potencialidades fundamentais do prédio objecto de destruição ou deterioração, devida a circunstâncias imprevisíveis e anormais, alheias à vontade do arrendatário) constituindo uma obrigação legal para o senhorio e o rendeiro a permissão e facilitação da implementação e realização destas. Por outro lado, não temos qualquer dúvida em afirmar que o montado existente no conjunto de parcelas dadas de arrendamento constituiu e erige-se como a mais valiosa potencialidade do prédio, sendo o que o caracteriza. Assim, ainda que se entendesse que a actuação dos Réus não contribui para a elevada mortalidade dos sobreiros, violam estes a obrigação legal de facilitar a implementação das acções de manutenção e recuperação do montado, “sabotando-as” através do maneio que fazem do rebanho. E a questão que se coloca é a de saber se este incumprimento deste dever genérico, assume a gravidade e as consequências que permitam ao senhorio o direito a resolver o contrato ou, dito com a formulação legal, que tornem inexigível ao senhorio a manutenção do contrato. E a verdade é que entendemos que sim. A manutenção dos contratos de arrendamento que cuidamos, nos termos em que os mesmos se encontram a ser executados, fará, em termos de prognose futura, que a Autora, tendo arrendado um prédio produtivo, venha a obter a sua entrega, daqui a 15 ou 20 anos, com uma taxa muito elevada de improdutividade ao nível do montado, isto claro, intuindo a dificuldade de a Autora se opor à renovação dos contratos face ao disposto no n.º 9, do artigo 19º da Lei do Arrendamento Rural, ao qual igualmente não se é alheio. Com efeito, importa não olvidar que um sobreiro, plantado tradicionalmente, demora 25 anos, a tornar-se produtivo, ou seja, a estar pronto para a primeira retirada de cortiça, sendo esta o que constitui o seu valor primordial. Assim, fácil é perceber que atendendo aos índices de mortalidade existentes no prédio da Autora, se esta não cuidar de implementar de imediato métodos e técnicas de reflorestação, verá a produtividade do prédio reduzir drasticamente, bem como demorará cerca de 25 anos a colocá-lo em níveis semelhantes de produtividade.» Comungamos, no essencial, deste entendimento, o qual, aliás, encontra o devido respaldo na factualidade apurada. Na verdade, está provado que o montado da autora apresenta problemas graves que têm como consequência, uma mortalidade elevada dos sobreiros, sendo que os réus são responsáveis por grande parte dos índices de mortalidade do montado da autora, nomeadamente por efetuarem sucessivas mobilizações dos solos, através do sistema de gradagem o qual conduz, por um lado à exposição das raízes dos sobreiros existentes e destruição da sua estrutura radicular mas, também, à destruição do renovo que impede a reflorestação natural. Por outro lado, os réus não protegem o renovo dos sobreiros quando gradam as terras para cultivo, a que acresce a ação dos rebanhos de ovelhas, que no presente caso, como resultou provado, andam por toda a herdade em bando/rebanho, sem qualquer tipo de controlo, compactando os solos através do pisoteio e destruindo o eventual renovo sobrevivente [cfr. alíneas Y) a AA), CC) a GG), II), KK) e BBB) dos factos provados]. Resultou igualmente provado que a autora tem tentado implementar estratégias ou modos de atuação que facilitem a recuperação do montado, mas não só os réus não contribuem para a proteção do renovo, como não se mostram recetivos à qualquer interpelação da autora ou das pessoas que contrata para o efeito [cfr. alíneas HH) a MM e UU) a XX) dos factos provados]. Não admira assim que dos 4.800 pés de pinheiro manso plantados pela autora no ano de 2018, uma parte significativa da plantação está morta, sendo visível no local da plantação daqueles pinheiros o pisoteio das ovelhas, as quais pastoreiam nesse local, não obstante a autora ter utilizado proteções de rede flexível para protege as árvores plantadas [cfr. alíneas AAA), BBB) e DDD) dos factos provados]. Note-se que não está em causa uma atuação isolada ou esporádica dos réus, mas antes um comportamento reiterado, como demonstra a factualidade constante das alíneas Y), EE) a NN) e YY) a BBB) dos factos provados. Ora, em face destes factos, forçoso é concluir que a atuação dos réus, através do maneio que fazem dos rebanhos de ovelhas, viola a obrigação legal de facilitar a implementação das ações de manutenção e recuperação do montado, assumindo esse incumprimento uma gravidade que torna inexigível à autora a manutenção do arrendamento. Efetivamente, como bem se observa na sentença recorrida, «atendendo aos índices de mortalidade existentes no prédio da Autora, se esta não cuidar de implementar de imediato métodos e técnicas de reflorestação, verá a produtividade do prédio reduzir drasticamente, bem como demorará cerca de 25 anos a colocá-lo em níveis semelhantes de produtividade». E como também assertivamente refere a autora/recorrida nas contra-alegações, «[n]ão nos esqueçamos que, numa região como a de Alcácer do Sal, é o montado existente, no conjunto das parcelas dadas de arrendamento, que constitui a mais valiosa potencialidade do prédio, potencialidade que, se se permitir a continuação da actuação dos RR, o transformará num enorme prédio improdutivo, (…)». Em suma, com a conduta acima descrita, os réus incumpriram uma obrigação legal, causando tal incumprimento um prejuízo direto para a produtividade, substância ou função económica do prédio da autora, verificando-se assim a causa de resolução do contrato prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 17º do NRAR. Além das dificuldades criadas à implementação das ações de manutenção e recuperação do montado, os réus também não cuidaram de zelar e proteger o que existe no prédio e está expressamente excluído da exploração agrícola que os contratos lhes garantem. Na verdade, como vimos supra, a conduta dos réus contribuiu para o elevado índice de mortalidade de sobreiros que se verifica, com origem na gradagem e mobilização dos solos e efeitos ou consequências ao nível da destruição do sistema radicular dos sobreiros e inexistência de renovo. Ainda que se admitisse que cabia à autora a proteção e identificação do renovo, isso torna-se praticamente impossível pois os réus gradam constantemente as terras com grades de disco profundas, as quais destroem o sistema radicular dos sobreiros, acrescendo a isto o facto de as ovelhas pastorearem livremente antes de o renovo se tornar visível, pelo que nunca a autora terá possibilidade de o identificar e proteger, uma vez que o renovo fica destruído pela ação das ovelhas, nomeadamente pelo pisoteio. Concluímos assim, como na sentença recorrida, «que a falta de zelo dos Réus na protecção do renovo e o prejuízo que a efectiva mobilização dos solos produz, é grave e coloca em causa a subsistência do montado da Autora», ocorrendo assim a causa de resolução do contrato prevista na alínea d) do nº 2 do artigo 17º do NRAR. Aduzem os réus/recorrentes que «[c]om a presente ação de despejo, a A. «viola os princípio da boa-fé e de confiança em que os R.R. assentaram a sua expectativa sobre o comportamento anterior», excedendo assim o fim económico do direito invocado, ocorrendo em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Mas não têm qualquer razão os recorrentes. De acordo com o estatuído no artigo 334º do CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o respetivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. O exercício abusivo do direito traduz-se no «comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica – por não contrariar a estrutura formal – definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde – e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto – materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício»[6]. O instituto do abuso do direito tutela, deste modo, situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante. Tem como pressuposto a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito, excedendo os limites impostos pela boa fé[7]. A parte que abusa do direito atua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito[8]. O nosso sistema legal acolhe uma conceção objetiva do abuso de direito, não exigindo a consciência do “abusador” no sentido de se encontrar a exceder, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que, objetivamente, se excedam tais limites[9]. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção. Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder[10]. É preciso que o direito seja exercido, em termos clamorosamente ofensivos da justiça[11]. A doutrina tem decomposto o instituto do abuso do direito em várias figuras parcelares, cada uma delas traduzindo um conjunto específico (com características particulares que permitem o seu agrupamento e a sua destrinça dos demais) de comportamentos abusivos e, por isso, inadmissíveis. Entre tais figuras, temos o venire contra factum proprium. Esta vertente do abuso de direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que acontece quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara. Dissertando sobre tal instituto, o Prof. Almeida Costa[12] ensina que «de acordo com o entendimento mais recente e quase uniforme da dogmática, a relevância da chamada conduta contraditória supõe a conjugação dos vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Entende-se que vedar, pura e simplesmente, a uma pessoa a prática de atos lícitos, embora opostos, redundaria numa teia de vinculações sistemáticas incompatível com o tráfico jurídico». E, mais adiante: «A concepção da tutela da confiança assenta no enunciado de um certo número de eventos ou circunstâncias que integram o chamado facto jurídico da confiança («Vertrauenstatbestand»). São eles: a situação objectiva de confiança (esta existe quando alguém pratica um acto – o factum proprium - que, em abstracto, é apto a determinar em outrem a expectativa de adopção, no futuro, de um comportamento coerente ou consequente com aquele primeiro e que, em concreto, efectivamente gera tal convicção. (…). E a situação objectiva de confiança também não surgirá se o factum proprium não influenciar o destinatário, como sucede quando se demonstra que este, independentemente da conduta de outrem, teria agido do mesmo modo». Prosseguindo, escreve: «O investimento da confiança («Vertrauensinvestition») corresponde às disposições ou mudanças na vida do destinatário do factum proprium que, não só evidenciam a expectativa nele criada, como revelam os danos que, irrefragavelmente, resultarão da falta de tutela eficaz para aquele. A dogmática alemã menciona, a propósito, a necessária irreversibilidade do investimento». E, a finalizar: «Finalmente, entende-se que a confiança apenas se mostra digna de protecção jurídica se o destinatário se encontrar de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adoptar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico». Por seu turno, «a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura»[13]. É por isso que «para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação de confiança é preciso que ela, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro”[14]. Assim, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa-fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada[15]. Quanto à situação objetiva de confiança, nada na matéria de facto permite concluir que os réus esperassem que a autora não resolvesse os contratos, ou que os réus tenham confiado nisso e se tenham deixado influenciar por via disso. O simples decurso do tempo não é de molde a suscitar nos réus qualquer expetativa de que a autora não resolveria os contratos, sendo, aliás, o comportamento reiterado dos réus em recusarem que a que a autora implemente estratégias que facilitem a recuperação do montado, um elemento essencial para que se considere preenchida a causa de resolução do contrato da alínea b) do nº 2 do artigo 17º do NRAR. Por outro lado, a propósito do investimento da confiança, na matéria de facto apurada não se encontra qualquer alteração da atividade dos réus que evidencie a expectativa criada de que a autora não procederia à resolução dos contratos, não resultando provado um único dano decorrente da frustração dessa expectativa. Por último, quanto ao requisito da boa-fé em sentido subjetivo, o que seria de esperar era que os réus revissem o seu comportamento e permitissem a implementação de estratégias que facilitassem a recuperação do montado. Mostra-se assim injustificada a invocação do abuso do direito para obstar à resolução dos contratos. Por conseguinte, o recurso improcede. Vencidos no recurso, suportarão os recorrentes as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC. Sumário: I - A consideração de alguns factos que não devessem ser atendidos nos termos do artigo 5º, nº 1 e 2, do CPC, não se traduz em vício de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608º, nº 2, do mesmo Código. II - Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC. III - À semelhança do disposto no NRAU quanto à resolução do contrato, o NRAR (Novo Regime do Arrendamento Rural) consagra a possibilidade de qualquer das partes resolver o contrato de arrendamento rural com base no incumprimento contratual da parte contrária que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível a manutenção do arrendamento, ou com base na alteração significativa da natureza e ou da capacidade produtiva do prédio objeto de arrendamento. IV – Constitui fundamento de resolução do contrato nos termos das alíneas b) e d) do nº 2 do artigo 17º do NRAR a conduta do inquilino que: i) efetua sucessivas mobilizações dos solos, através do sistema de gradagem, causando elevados índices de mortalidade do montado da autora constituído por sobreiros; ii) não protege o renovo dos sobreiros quando grada as terras para cultivo; iii) permite que as ovelhas andem por toda a herdade em bando/rebanho, sem qualquer tipo de controlo, compactando os solos através do pisoteio e destruindo o eventual renovo sobrevivente; iv) como não se mostram recetivos à qualquer interpelação da autora ou das pessoas que contrata para o efeito no sentido de implementar estratégias ou modos de atuação que facilitem a recuperação do montado. V – A vertente do abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que acontece quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara, o que não se verifica de todo no caso em apreço. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida. Custas pelos recorrentes. * Évora, 27 de Junho de 2019 Manuel Bargado Albertina Pedroso Tomé Ramião __________________________________________________ [1] Cfr. Acórdão do STJ de 23.03.2017, proc. 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt. [2] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, pp. 144-146. [3] Cfr. o citado Acórdão do STJ de 23.03.2017, que aqui seguimos de perto. [4] Doravante NRAR. [5] O Contrato de Arrendamento Rural, Vida Económica, p. 43. [6] Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, p. 391. [7] Ac. do STJ de 28.11.96, CJ/STJ, 3º, 117. [8] Ac. do STJ de 13.01.2005, proc. 04B4063, in www.dgsi.pt. [9] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, p. 536. [10] Antunes Varela, ob. cit. p. 536. [11] Ac. do STJ de 7.01.93, BMJ, 423º-539. [12] Revista de Legislação e de Jurisprudência, 129º, pp. 61-62. [13] Baptista Machado, in Obra Dispersa, Braga, 1991, Vol. I, p. 416. [14] Ibidem. [15] Ac. STJ de 11.12.2012, proc. 116/07.2TBMCN.P1.S1, in www.dgsi.pt. |