Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3118/23.8T8STB-A.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: LIVRANÇA
ASSINATURA
CONHECIMENTO NO SANEADOR
AUDIÊNCIA PRÉVIA
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Num caso em que o juiz tenciona conhecer do mérito da causa no despacho saneador, a lei prevê a realização da audiência prévia e não prevê a possibilidade da respetiva dispensa;
II – Destinando-se a audiência prévia a facultar às partes a discussão de facto e de direito, num caso em que o juiz tencione conhecer imediatamente do mérito da causa, nada impede que, com o acordo das partes, o contraditório seja assegurado por outra via, designadamente através de notificação para o efeito;
III – Ainda que se trate de ação de valor não superior a metade da alçada da Relação, tencionando o juiz conhecer do mérito da causa no despacho saneador, não pode deixar de o comunicar às partes e de lhes facultar, previamente à prolação de tal decisão, a discussão de facto e de direito, seja através da convocação da audiência prévia ou, com o acordo das partes, por outra via, sob pena de violação do princípio do contraditório;
IV – Ao conhecer do mérito da causa no despacho saneador sem ter convocado a audiência prévia, não tendo facultado às partes a discussão de facto e de direito, a 1.ª instância apreciou uma questão de que, nas indicadas circunstâncias, não podia tomar conhecimento, o que configura excesso de pronúncia, causa de nulidade prevista 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3118/23.8T8STB-A.E1
Juízo de Execução de Setúbal
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

A executada (…) deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa que lhe move (…) – STC, S.A., na qual é apresentada, como título executivo, uma livrança.
Alega a embargante, em síntese, que não lhe pertence a assinatura constante da livrança que serve de base à execução e que não celebrou qualquer contrato com a exequente, impugnando a genuinidade da letra e da assinatura de contrato apresentado com o requerimento executivo; mais invoca a prescrição da dívida exequenda, como tudo melhor consta do articulado apresentado.
Recebida a oposição à execução, a embargada contestou, pugnando pela respetiva improcedência.
Foi proferida decisão em 24-02-2025, na qual se fixou o valor à causa, se decidiu não convocar audiência prévia, se proferiu despacho saneador, se discriminou os factos considerados provados e se conheceu do mérito da causa, tendo os embargos de executado sido julgados procedentes, nos termos seguintes:
Decide-se assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, declarar procedente a oposição à execução e, por consequência, determinar a extinção da execução relativamente à opoente/executada.
Custas pela exequente (cfr. artigo 527.º, n.º 1, do CPC).
Notifique e registe.
Inconformada, a embargada interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«1- A Sentença recorrida foi proferida sem que o Tribunal a quo observasse previamente uma formalidade de cumprimento obrigatório, in casu, a convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório (artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C.).
2- Nem tampouco as partes foram notificadas pelo Tribunal a quo, informando-as da sua intenção em prescindir da audiência prévia e assegurando-lhes o direito ao contraditório, fundamentando uma eventual exigência de realização de audiência prévia.
3- A lei é clara ao afirmar que nestes casos o juiz não goza de tal discricionariedade, devendo assegurar o exercício do direito ao contraditório quanto às exceções dilatórias e ao mérito da causa.
4- Tanto mais que a Apelante alegou no seu articulado de contestação factos relevantes que obstam ao conhecimento do mérito da ação, por via da excepção peremptória de prescrição, obrigando à produção de prova em audiência de julgamento.
5- Esta omissão do Tribunal a quo de não convocação das partes para audiência prévia consubstancia “uma nulidade traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve” (artigo 195.º, n.º 1, do C.P.C.) e, em último termo, violador do direito constitucional do direito à jurisdição (artigo 20.º da CRP).
6- Ao fazê-lo, com desconsideração da sua função de apreciação e de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC) sobre uma questão essencial, aliás a única tomada em conta na sentença, conduziu-o a uma errada e incompleta fundamentação de facto e de direito (artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
7- Para além disso, também se verifica omissão de pronúncia quanto à factualidade carreada para os presentes autos, em que o facto do tribunal a quo não se ter pronunciado nem ter conhecido o circunstancialismo do caso em concreto em discussão, o qual foi alegado em sede de contestação e dado como provado na sentença a quo, verificando-se uma e a ausência inequívoca de apreciação e de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC) repercutindo-se esta omissão na total ausência de fundamentação por parte do tribunal no qua esta questão diz respeito, que, a ter sido feita, reverteria na íntegra a decisão de que agora se recorre!
8- Nesse sentido, o facto do tribunal não se ter pronunciado devidamente sobre a matéria supra descrita, impediu-o de se pronunciar devidamente, pois o seu conhecimento é oficioso, sobre o comportamento abusivo por parte dos Embargantes, atentatório dos mais elementares princípios de boa-fé processual, devendo a sua conduta integrar o instituto do Abuso de Direito na modalidade de venire contra factum proprium nos termos do artigo 334.º do Código Civil, verificando-se a ausência inequívoca de apreciação e de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC) sobre uma questão essencial que permitiria conhecer e concluir pela inexistência de qualquer exceção perentória extintiva de prescrição da dívida, repercutindo-se esta omissão na fundamentação errada e incompleta (artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC), de facto e de direito, aduzida pelo tribunal a quo.
9- No âmbito dos presentes autos, o título executivo sub judice é uma livrança prescrita que, nos termos do artigo 703.º do CPC é considerado título executivo bastante enquanto documento quirógrafo/particular bastando ao credor que, para o efeito, alegue no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, se os mesmos não constarem já do próprio título, facto que já demonstrou ter sido feito e dado como provado.
10- E, tendo em conta a natureza do contrato, o que foi peticionado nos presentes autos foi o pagamento do valor em dívida à data do incumprimento do contrato, sendo que não se poderá considerar que se está perante quotas de amortização do capital, pois que apesar do pagamento das quantias devidas pelo incumprimento estar diferido no tempo, o que se trata no presente caso é tão só a liquidação do valor em dívida nesse momento. (…).
11- Portanto trata-se de um único contrato, celebrado com a Embargante, em que existe uma dívida previamente fixada, dívida esta que irá ser paga parcialmente, fraccionadamente, em diversas prestações previamente estipuladas.
12- As prestações fraccionadas transmutaram-se numa única obrigação sujeita ao prazo prescricional ordinário, ou seja, foram destruídas pelo vencimento antecipado, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.
13- Tratando-se de uma única obrigação pecuniária, por consequência não se poderá aplicar o disposto no artigo 310. º do CC, mas sim a regra geral, prevista no artigo 309.º do CC.
14- O crédito peticionado e que aqui se exige nos presentes autos não se reporta individualmente às quotas de amortização convencionadas, mas sim a todo o capital global da dívida, decorrente do vencimento das prestações, por força do disposto no artigo 781.º do CPC.
15- Não se enquadrando o capital no prazo de prescrição da alínea e) do artigo 310.º do C.C..
16- Aplicar ao presente contrato o prazo quinquenal com os pressupostos dos aludidos Acórdãos da Douta Sentença recorrida viola, além do princípio da segurança jurídica, os princípios basilares constitucionais previstos nos artigos 2.°, 12.°, n.° 2, 18.°, n.°s 1, 2 e 3, todos da Constituição da República Portuguesa.
17- Se assim não for entendido, isto representaria uma clara desproteção do credor que nem sequer vê o valor do capital mutuado e já vencido passível de ressarcimento constituído, tal facto, uma desproporcional aplicação do direito do devedor em detrimento do credor o que ataca o princípio da segurança jurídica, violando até basilares princípios constitucionais previstos nos artigos 2.°, 12.°, n.° 2, 18.°, n.°s 1, 2 e 3, todos da Constituição da República Portuguesa.
18- Sendo excessiva, inadequada e desnecessária face ao princípio já consagrado no artigo 310.º, n.º 1, alínea d), do C.C. e a proteção que o mesmo dá aos devedores.
19- Enferma para tal de inconstitucionalidade a norma presente no artigo 310.º, alínea e), do CPC, por violação dos princípios constitucionais, da proporcionalidade, segurança jurídica e proteção jurídica, assim como de igualdade de armas num Estado de Direito.
20- Por todo o exposto, deverá aplicar-se ao caso sub judice o prazo de 20 anos previsto no artigo 309.º do Código Civil no que concerne ao prazo de prescrição.
21- No que concerne à interrupção do prazo de prescrição terá de se considerar como acto interruptivo o dia 04/02/2009, o recomeço desse prazo de prescrição que inicia com o trânsito em julgado da decisão de extinção da execução anterior, ou seja, a obrigação exequenda não se encontra prescrita, pois apenas ocorre o terminus do prazo em 2033.
22- Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência deverá ser o mesmo declarado nulo e realizada a devida audiência prévia; no caso de assim não se entender, deverá a sentença a quo ser revogada e substituída por uma que julgue totalmente improcedente os Embargos apresentados e o respectivo prosseguimento da Execução, com o que se fará inteira e acostumada JUSTIÇA!»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- da nulidade do saneador-sentença recorrido;
- subsidiariamente, da reapreciação do mérito da causa.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Fundamentos de facto
Na 1.ª instância, foram considerados provados os factos seguintes:
1. A exequente deu à execução o documento consistente em livrança emitida pelo (…) assinado por (…), preenchido além do mais nos seguintes termos:
Data emissão Data vencimento Importância
2003-02-21 2003-03-07 € 3.790,72
2. O documento referido em 1 foi entregue em branco ao (…) para garantia do pagamento de todas as responsabilidades assumidas pela executada no âmbito do designado “Contrato de Crédito” n.º (…) celebrado com o (…) como mutuante e a opoente/executada como mutuária, datado de 15.07.2002, para pagamento da quantia de € 3.192,79 em 48 prestações mensais e sucessivas de € 101,22 consubstanciado no documento de que foi junta cópia no RE, cujo teor de dá aqui por reproduzido.
3. A executada assinou e rubricou o “contrato de crédito” onde consta nas cláusulas 12ª e 13ª respectivamente o seguinte: “O Banco fica desde já autorizado pelo Avalista a debitar a livrança entregue com a função de garantia do presente empréstimo (…) sempre que haja lugar ao seu preenchimento e desde que não paga na data marcada para o seu vencimento em qualquer conta de depósitos …”., e “Os proponentes autorizam o Banco, (…) a preencher qualquer livrança por si subscrita entregue com a função de garantia designadamente no que respeita às datas de emissão e de vencimento, ao local de pagamento, ao valor e à importância (…)”.
4. Por falta de pagamento de sete prestações no valor de € 726,77, o (…) interpelou a executada por carta datada de 21.02.2003 para o pagamento da quantia em dívida até 07.03.2003 e que liquidou em € 3.790,72 sob pena de preenchimento da livrança referida em 1 dos factos assentes.
5. O Banco (…), S.A., que usa a designação comercial (…), Sociedade Aberta, NIPC (…), com sede na Praça (…), (…) e com o capital social de € (…), matriculado na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o n.º (…), incorporou por fusão a sociedade (…) – Banco (…), S.A..
6. Por escritura pública o Banco (…), S.A. celebrou um Contrato de Sociedade pelo qual constituiu uma nova sociedade comercial anónima, com a firma (…) – Instituição (…) de Crédito, S.A..
7. A (…) – Instituição (…) de Crédito, S.A. foi incorporada por fusão na sociedade (…) – Instituição Financeira (…), S.A..
8. A 17/10/2007, por alteração ao pacto social, mudou-se a firma social de (…) – Instituição Financeira (…), S.A. para Banco (…), S.A..
9. Por Contrato de Cessão de Créditos assinado no dia 18.05.2012 o Banco (…), S.A., cedeu à sociedade (…) 3, S.A.R.L., os créditos que detinha sobre a executada, incluindo capital, juros, indemnizações e quaisquer outras obrigações pecuniárias.
10. Em 16 de março de 2021, foi celebrado um contrato de cessão de créditos, entre (…) 3, S.A.R.L, na qualidade de cedente e (…) – STC, S.A., na qualidade de cessionária.
11. Em 07.03.2003 (…) – Banco (…) SA instaurou acção executiva contra a executada dando à execução a livrança identificada em 1 dos factos assentes e que correu termos no sob o n.º 13339/03.4TJLSB no 2º Juízo Cível de Lisboa, declarada extinta nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Dec.-Lei n.º 4/2013 por notificação datada de 04.03.2013.
12. Em 28.04.2023 a exequente instaurou a presente acção executiva contra a executada.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem posto em causa na apelação o despacho através do qual a 1.ª instância decidiu não convocar audiência prévia e, de seguida, proferiu despacho saneador, discriminou os factos considerados provados e conheceu do mérito da causa, tendo julgado procedente a oposição à execução e determinado a extinção da execução que constitui o processo principal, condenando a exequente/embargada nas custas.
Nas alegações da apelação, a recorrente invoca a nulidade do saneador-sentença, sustentando que a lei não permite a dispensa da audiência prévia nos casos em que o tribunal se propõe conhecer do mérito da causa no despacho saneador, defendendo que a omissão da realização da audiência prévia, bem como da concessão às partes da faculdade de discussão de facto e de direito, impede o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador.
Face ao objeto da apelação, assente que a 1.ª instância dispensou a realização da audiência prévia e conheceu do mérito da causa no despacho saneador, cumpre aferir se a lei permite a dispensa da realização da audiência prévia nesta situação, em que o juiz tenciona conhecer imediatamente do mérito da causa.
Definindo as finalidades do despacho saneador, dispõe o n.º 1 do artigo 595.º do CPC que se destina a: a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Prevê a alínea b) do citado preceito o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, se o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas.
Esta desnecessidade de mais provas verificar-se-á, entre outras situações, quando não existam factos controvertidos, estando em causa unicamente matéria de direito, mas também nos casos em que da factualidade controvertida não resulte o efeito jurídico pretendido pela parte que a alegou, não assumindo tal matéria de facto relevo à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito.
Elenca o artigo 591.º do CPC, nas alíneas a) a g) do n.º 1, as finalidades a que pode destinar-se a audiência prévia, prevendo a alínea b) que tenha como fim facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.
O artigo 592.º do mesmo código prevê, no n.º 1, duas situações em que não se realiza audiência prévia, a saber: a) nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º; b) quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
O artigo 593.º do mesmo código, por seu turno, prevê no n.º 1 a possibilidade de dispensa pelo juiz da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.
Não estando em causa qualquer das situações previstas no n.º 1 do artigo 592.º, em que não se realiza audiência prévia, nem se destinando tal diligência apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º, mas sim à finalidade prevista na alínea b) do preceito – facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa –, decorre do regime exposto que num caso, como o presente, em que o juiz tenciona conhecer do mérito da causa no despacho saneador, a lei prevê a realização da audiência prévia e não prevê a possibilidade da respetiva dispensa.
É certo que, destinando-se a audiência prévia a facultar às partes a discussão de facto e de direito, num caso em que o juiz tencione conhecer imediatamente do mérito da causa, nada impede que, com o acordo das partes, o contraditório seja assegurado por outra via, designadamente através de notificação para o efeito; porém, tal não ocorreu no caso presente, em que não foi comunicada antecipadamente às partes a intenção de dispensa da audiência prévia e do subsequente conhecimento do mérito da causa no despacho saneador.
A 1.ª instância fundamentou a dispensa da audiência prévia na previsão do artigo 597.º do CPC, nos termos seguintes:
De acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 597.º do CPC, nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, findos os articulados, consoante a necessidade e a adequação do acto ao fim do processo, observar-se-á o disposto naquele artigo 597.º do CPC.
Tal significa que tal norma é aplicável aos processos de valor não superior a € 15.000,00 (cfr. n.º 1 do artigo 24.º da Lei n.º 3/99, de 3 de janeiro, do qual resulta que a alçada dos Tribunais da Relação é de € 30.000,00).
Verifica-se, assim, que ao caso concreto é aplicável o artigo 597.º e atenta a desnecessidade de actuar o princípio do contraditório e a simplicidade da causa, é dispensável a realização de audiência prévia, uma vez que os autos contêm elementos suficientes para, sem necessidade de mais provas, conhecer do mérito da oposição, pelo que se passa a proferir despacho
O invocado artigo 597.º, com a epígrafe Termos posteriores aos articulados nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, tem a redação seguinte:
Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo:
a) Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados;
b) Convoca audiência prévia;
c) Profere despacho saneador, nos termos do no n.º 1 do artigo 595.º;
d) Determina, após audição das partes, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
e) Profere o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º;
f) Profere despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas;
g) Designa logo dia para a audiência final, observando o disposto no artigo 151.º.
Em anotação ao preceito, explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 673) «(…) que o artigo 597.º é essencialmente tributário de um dos princípios integrantes do princípio da gestão processual (artigo 6.º) – o princípio da adequação formal (artigo 547.º) –, que orienta todos os processos, mas que nas causas de menor valor exige maior atenção do juiz». Esclarecem os autores (ob. cit., págs. 673-674) o seguinte: «Ao juiz compete então, nestas ações, decidir sobre a prática de certos atos que a lei insere na tramitação do processo comum de declaração; mas não se pode dizer que a regra é a de que os mesmos não sejam praticados (por exemplo, não se pode depreender do artigo 597.º que nas ações de valor mais baixo não tem normalmente lugar o despacho saneador, a menos que o juiz decida proferi-lo). O poder do juiz é, em princípio, discricionário quanto à prática desses atos. Relativamente ao despacho pré-saneador, e por força da remissão do corpo do artigo para o artigo 590.º-2, o juiz não goza de tal poder, devendo proferi-lo quando estejam verificados os seus pressupostos. Não pode tão-pouco o juiz, não obstante a redação da alínea a), deixar de assegurar o exercício do contraditório quanto às exceções dilatórias e ao mérito da causa, nos mesmos termos em que o tem de fazer nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, visto que tal constitui uma derivação do direito fundamental à jurisdição (artigo 20.º da CRP; (…))».
Conforme decorre do excerto transcrito, ainda que se trate de ação de valor não superior a metade da alçada da Relação, tencionando o juiz conhecer do mérito da causa no despacho saneador, não pode deixar de o comunicar às partes e de lhes facultar, previamente à prolação de tal decisão, a discussão de facto e de direito, seja através da convocação da audiência prévia ou, com o acordo das partes, por outra via, sob pena de violação do princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC).
Nesta conformidade, no caso presente, perante a não convocação da audiência prévia, não tendo sido facultada às partes a discussão de facto e de direito, não podia o juiz conhecer do mérito da causa no despacho saneador; como tal, ao conhecer do mérito da causa no despacho saneador, a 1.ª instância apreciou uma questão de que, nas indicadas circunstâncias, não podia tomar conhecimento, o que configura excesso de pronúncia, causa de nulidade prevista 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Esta causa de nulidade ocorre quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, assim incumprindo o estatuído no artigo 608.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, nos termos do qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Procedendo a arguição de nulidade da decisão recorrida, cumpre atender à regra da substituição ao tribunal recorrido estatuída pelo artigo 665.º do CPC, cujo n.º 1 dispõe que ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
Porém, estando em causa a omissão da convocação da audiência prévia, em violação da obrigatoriedade decorrente da conjugação dos artigos 591.º, n.º 1, alínea b) e 593.º, n.º 1, a contrario, do CPC, previamente à reapreciação do mérito da causa impõe-se determinar a convocação da audiência prévia, com a finalidade prevista na alínea b) do citado preceito.
Reportando-se ao conhecimento pelo juiz de questões de que não podia tomar conhecimento [excesso de pronúncia – artigo 615.º, n.º 1, alínea d)], explicam João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, AAFDL Editora, 2022, pág. 633) o seguinte: «(…) a não possibilidade do conhecimento de uma questão pode ser absoluta, se o tribunal não pode conhecer, em circunstância alguma, dessa questão (como sucede quando a questão não tiver sido levantada pelas partes e não for de conhecimento oficioso), ou relativa, se o tribunal não pode conhecer, em certas condições, dessa questão, mas poderia conhecê-la em outras circunstâncias (por exemplo: (…) o tribunal não pode proferir uma decisão-surpresa (artigo 3.º, n.º 3), mas pode decidir com base num fundamento não alegado pelas partes depois de as ouvir previamente)».
O vício de que padece a decisão recorrida – nulidade por excesso de pronúncia – não é passível de ser suprido por este tribunal de 2.ª instância, antes devendo ser suprido pela 1.ª instância, mediante a prévia convocação da audiência prévia.
Procede, assim, a arguição de nulidade da decisão recorrida, a qual deverá ser suprida pela 1.ª instância, em consequência do que se encontra prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela apelante.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, declarar nulo o saneador-sentença recorrido, determinando que os autos voltem ao Tribunal de 1.ª instância para que aí seja convocada audiência prévia, designadamente para o fim previsto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC, previamente ao conhecimento do mérito da causa.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Évora, 10-07-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos (1º Adjunto)
Eduarda Branquinho (2ª Adjunta)