Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MARIA ADELAIDE DOMINGOS | ||
| Descritores: | AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA USUCAPIÃO FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA | ||
| Data do Acordão: | 12/15/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | O incumprimento das regras de natureza urbanística no que diz respeito ao fracionamento, mormente por falta do devido licenciamento ou loteamento, não obsta à aquisição originária, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas em que se decompõe o imóvel, desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a usucapião. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA I – RELATÓRIO O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra: AA (1.ª Ré), BB, e marido CC (2.ºs Réus), DD (3.º Réu), EE (4.ª Ré) e FF (5.º Réu). Pedindo que se declare a nulidade do contrato de partilha identificado na petição inicial, por violação das regras do fracionamento e loteamento urbano, bem como se declare o cancelamento de todas as inscrições registrais posteriores, inerentes àquele. Para fundamentar a sua pretensão, alegou factos que consubstanciam a seguinte causa de pedir: Nulidade do contrato de partilha, porquanto por via do mesmo, celebrado no dia 29-01-2016, os Réus declararam, conjuntamente, além do mais, que o património de GG era constituído por um prédio misto, que identificaram, e que, como ato prévio à partilha, dividiram o aludido prédio misto em 3 novos prédios, tendo adjudicado duas partes à Ré AA e a terceira parte aos Réus BB e CC, tendo os 3.ºs, 4.ºs e 5.º Réus informado, ali, que receberam, dos restantes, as competente tornas. O ato de autonomização da parcela urbana do prédio rústico foi realizado sem ter sido feito prévio pedido de licenciamento ou de operação de destaque junto da Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere. Contestaram os Réus AA e BB invocando a exceção de usucapião, dizendo que os Réus têm vindo na prática a exercer a posse sobre as parcelas identificadas, de forma individualizada e autónoma, desde há pelo menos 50 anos, situação de facto que se viu formalmente refletida nos atos praticados e cuja legalidade o Autor questiona, uma vez que o prédio foi objeto de divisão verbal no ano de 1970, encontrando-se, desde então, a referidas Rés na posse efetiva dos prédios que resultaram na divisão operada em virtude da escritura de partilhas descrita. Formularam pedido reconvencional no qual peticionam o reconhecimento do direito de propriedade por usucapião dos prédios descritos. Respondeu o Autor à matéria da reconvenção, impugnando os factos dela constantes e alegando que o instituto da usucapião não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da unidade de cultura mínima e que regulam o loteamento. Após ter sido realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, constando da sua parte dispositiva: «Por tudo o exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente e a reconvenção procedente, e, em consequência, decide-se: a) não declarar verificada a nulidade do contrato de partilha identificado, por violação das regras do fracionamento e loteamento urbano; b) reconhecer o direito de propriedade da ré AA, adquirido por usucapião, do prédio urbano pertencente à freguesia de Nossa Senhora do Pranto, concelho de Ferreira do Zêzere, inscrito na matriz predial sob o artigo ...2, do concelho de Ferreira do Zêzere, com a superfície coberta de 41,47 m2, logradouro com 118 m2, totalizando a área total de 160,26 m2; e do prédio rústico com a área total de 6.200 m2 que veio a dar origem a dois prédios na medida em que este prédio se acha separado fisicamente por uma estrada – o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...0 com a área de 5.920 m2 , e o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...9, com a área de 280 m2; c) reconhecer o direito de propriedade da ré BB, adquirido por usucapião, do prédio rústico pertencente à freguesia de Nossa Sr.ª do Pranto, concelho de Ferreira do Zêzere, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...8.º da secção I, com a área de 5.080 m2 (cinco mil e oitenta metros quadrados).» Apelou o Autor, pugnando pela revogação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: «1 – Resultou provado, além do mais, que através de partilha, os réus procederam à divisão do prédio inscrito sob o artigo ...6... em três parcelas, sendo que através daquele ato, os réus procederam à alteração/atualização do prédio rústico inscrito sob o artigo ...6... em três novos artigos: o 88.º da Secção I, o 89-da Secção I e o 90 da Secção I, sem que tivessem efetuado qualquer pedido prévio de licenciamento e sem formalizaram qualquer pedido de operação de destaque junto da Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere. 2 - As normas vigentes que visam a proibição de fracionamento de prédios são normas imperativas que visam a preservação do ambiente, o ordenamento do território e a qualidade de vida, 3 - são erigidas em normas que defendem os interesses de toda a coletividade e são exemplos de interesses difusos (art. 52º, nº 3, al. a) da Constituição), cuja defesa incumbe ao Ministério Público. 4 - Na sentença recorrida, conferiu-se prevalência aos interesses dos particulares intervenientes num contrato de partilha de bens, e decidiu-se que a aquisição das parcelas fraccionadas ocorreu por usucapião, admitindo-se uma operação de loteamento/destaque por usucapião de prédios, ainda que com violação das normas que proíbem tais operações, em detrimento das normas imperativas a que subjazem interesses de ordem pública, 5 - Tal interpretação não é, porém, consentânea com a regra definida no artigo 9.º do Código Civil, que prevê que na interpretação, deve ponderar-se a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 6 - Na verdade, na ponderação das normas em confronto (por um lado, as normas que regem o instituto de aquisição por usucapião e, por outro lado, as normas que regem o fracionamento e loteamento urbano), o fulcro da questão está em saber o valor que a posse invocada para aquisição por usucapião tem e se a mesma se impõe mesmo contrariando normas de interesse público de valor constitucional (cf. art. 66.º da CRP). 7 – À questão de saber em que medida é que os actos de posse baseados num facto proibido por leis imperativas de interesse público permitem a aquisição por usucapião sufragamos o entendimento de que não o permitem. 8 - Na verdade, a exclusão da usucapião sobre parcelas de propriedade justifica-se quando dela resulte ofensa de princípios de direito público; justifica-se igualmente noutros casos no sentido em que a usucapião, enquanto instrumento legal de aquisição originária de um direito, não pode servir para afastar normas imperativas às quais está sujeito quem adquiriu a coisa por aquisição derivada. 9 – Assim sendo, não é admissível a aquisição por usucapião de parcelas de prédios resultante de loteamento/destaque ilegal, por desrespeitar as regras contidas no Regime Jurídico de Edificação e Urbanização. 10 - Já que, tal aquisição, contendendo com normas de caráter imperativo, que visam a tutela de interesses predominantemente públicos por traduzirem o reconhecimento jurídico de um bem que, em primeira linha, compete à comunidade, não pode considerar-se eficaz. 11 - A partilha que os Réus formalizaram através de contrato traduz-se em negócio contrário a normas legais imperativas que regem sobre o fracionamento e loteamento urbano. 12 – Consequentemente, quer a partilha operada pelo contrato impugnado quer a invocada aquisição por usucapião são ilegais. 13 - Pelo exposto, é manifesto que resultando demonstrado nos factos provados na douta sentença recorrida que os Réus operaram uma verdadeira operação de fracionamento/loteamento de um prédio misto contrária a normas legais imperativas, a única decisão compatível com os factos apurados é a declaração de invalidade desse contrato de partilha e consequente cancelamento das inscrições registrais posteriores. 14 - Ao decidir em sentido contrário, a Mma Juiz a quo violou o disposto nos artigos 2º, al. a), 4º e 6º, nº 9 e seguintes do RJUE, os artigos 280º e 294º do Código Civil e o artigo 66.º da CRP. 15 - Nestes termos e nos demais de direito, requer-se seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, julgando procedente a ação instaurada pelo Ministério Público e improcedente o pedido reconvencional dos Réus, declare a nulidade do acto de fraccionamento/loteamento em causa, com todas as consequências legais.» A 1.ª Ré e a 2.ª Ré responderam ao recurso defendendo a improcedência da apelação e a confirmação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: «A) Na senda do exposto em sede de contestação, as Rés (e reitera-se os Tribunais na sua generalidade) têm defendido que o regime jurídico dos loteamentos e da propriedade sofrem derrogações e limitações impostas pelo bem público, tutelando a confiança e a estabilidade de posições jurídicas consolidadas pelo tempo e pela publicidade da posse. B) As normas de natureza administrativa são irrelevantes, face à natureza originária da aquisição da propriedade pela usucapião. C) Ao contrário do defendido em sede do presente recurso, a violação dos normativos de natureza urbanística, que previnam o fraccionamento de prédios urbanos sem o devido licenciamento ou loteamento, não obsta à aquisição originária, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre a parcela em causa, desde que se verifiquem os pressupostos exigidos para esta. D) A usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos, que surgem ex novo na titularidade do sujeito unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo por isso absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios (de natureza formal ou substancial) que afetem o ato ou negócio gerador da posse. E) Através dela e provada que seja a realidade substancial de que depende, o sistema jurídico confere a legitimidade de que carecia o possuidor, independentemente da natureza do vício que afeta a sua posição face ao bem. F) Consequentemente, das regras da usucapião decorre que o direito correspondente à posse exercida é adquirido “ex novo” e, por isso, está imune aos vícios que anteriormente pudessem ser apontados. G) In casu, o fracionamento dos imóveis teve origem numa partilha verbal, datada de 1970, que veio a ser formalizada notarialmente apenas em 29.01.2016, e na sequência da qual as réus passaram a usufruir e dispor como verdadeiras proprietárias das parcelas de terreno em questão, bem como do prédio urbano supra identificado, estando verificados os requisitos para poderem beneficiar da prescrição da aquisição. H) Resulta assim que a usucapião permite a “legalização” de situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, como seja o aparente “loteamento ilegal”, ou o aparente fracionamento ilegal de uma propriedade rústica. I) Ainda que assim não se entenda, no caso em apreço, a data do início da posse, ocorreu em 1970, adquirindo-se o direito no momento em que aquela se iniciou, sendo que é pela lei então em vigor que se apreciará as condições de validade aplicáveis ao objecto do direito que se pretende usucapir (nomeadamente, as relativas ao fracionamento ilegal a que se fez referência na PI) Resulta assim que a usucapião permite a “legalização” de situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, como seja o aparente “loteamento ilegal”, ou o aparente fracionamento ilegal de uma propriedade rústica.» II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto: «Factos provados 1. No dia ...1988, em Dornes, Ferreira do Zêzere, GG faleceu, no estado de viúva. 2. Como únicos herdeiros sucederam-lhe os seus únicos filhos: AA, BB e HH. 3. No dia 30-11-2007, faleceu a identificada HH, tendo deixado como seus herdeiros: o seu cônjuge sobrevivo DD e os seus filhos EE e FF. 4. Por contrato de partilha celebrado no dia 29.01.2016, perante a solicitadora II, em Torres Novas, os Réus declararam, conjuntamente, além do mais, que o património da de cujus - GG - era constituído por: - um prédio misto, sito no lugar de Casal Ascenso Antunes, freguesia de Nossa Senhora do Pranto, concelho de Ferreira do Zêzere, a confrontar do norte com rio, do sul com JJ e KK, do nascente com JJ e KK e do poente com KK, não descrito na Conservatória de Registo Predial de Ferreira do Zêzere, composto: - a parte urbana por prédio não licenciado em condições deficientes de habitabilidade, com a superfície coberta de 41,47m2 e logradouro com área de 118,53 m2, inscrito na matriz sob o artigo ...2 que proveio do artigo ...08 da extinta freguesia de Dornes, que por sua vez proveio do artigo ...88 da extinta freguesia de Dornes, com o valor patrimonial de €2630,00 e a que atribuem igual valor; a parte rústica por eucaliptal, pinhal e mato, com área de 11.280 m2, inscrito sob a matriz sob o artigo ...6 Secção I, anterior artigo 66 Secção I da freguesia de Dornes, com o valor patrimonial de €998,38, e a que atribuem o valor de €1.000. 5. E ali os réus declararam ainda que, como ato prévio à partilha, dividiam o aludido prédio misto, acima descrito em 4.º, em 3 novos prédios, a saber: a) um prédio urbano, composto pelo referido prédio em condições deficientes de habitabilidade, com a superfície coberta de 41,47m2 e logradouro com área de 118,53 m2, inscrito na matriz sob o artigo ...2 que proveio do artigo ...08 da extinta freguesia de Dornes, que por sua vez proveio do artigo ...88 da extinta freguesia de Dornes, com o valor patrimonial de €2630 e a que atribuem igual valor; b) um prédio rústico, com a área de 5080 m2, a confrontar a norte com o rio, do sul com estrada, do nascente com KK e do poente com LL, e a que atribuem o valor de €500; c) um prédio rústico com a área de 6.200 m2, a confrontar a norte com estrada, do sul com MM, do nascente com herança de NN e outros e do poente com KK e a que atribuem o valor de €500. 6. No referido ato, declararam adjudicar à primeira ré - AA- os prédios acima elencados em “5 a) e b)”, sendo que o prédio “5 c)” foi adjudicado aos segundos réus - BB e CC -, tendo os terceiros, quartos e quinto réus informado, ali, que receberam, dos restantes, as competente tornas. 7. Deste modo, através da referida partilha, os réus procederam à divisão do referido prédio inscrito sob o artigo ...6... em 3 parcelas: uma com 5080 m2; outra com 6020 m2 e outra com 160 m2, com construção (inscrita na matriz urbana sob o número ...92) - destinada a constituir um prédio urbano autónomo (havendo indicação de que esta construção estava anteriormente omissa na matriz, tendo sido inscrita apenas em 2015). 8. Donde, através daquele ato, os réus procederam à alteração/atualização do prédio rústico sob o artigo ...6... em três novos artigos: o 88.º da Secção I, o 89-da Secção I e o 90 da Secção I. 9. Assim, no artigo 88 da Secção I ficou a constar registado um prédio urbano com 160 m2, tal como acima elencado em “5 a)”. 10. Ou seja, desta forma, através da aludida partilha, os réus autonomizaram a parcela urbana do aludido prédio rústico. 11. Os réus nunca efetuaram qualquer pedido prévio de licenciamento ou formalizaram qualquer pedido de operação de destaque junto da Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere. Da contestação 12. O prédio foi objeto de divisão verbal no ano de 1970, encontrando-se desde então, a Ré AA, na posse efetiva dos prédios que resultaram na divisão operada em virtude da escritura de partilhas descrita. 13. Cerca do ano de 1970, a falecida doou à filha mais velha, AA - à data com 20 anos - os prédios que lhe vieram a ser adjudicados no contrato de partilhas ora em causa. 14. Tendo destinado à outra filha BB, (à data ainda menor) o prédio que também lhe veio a ser adjudicado na supra citada escritura. 15. Assim: Doou à Ré AA, o prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo ...2, com a área total de 160 m2. 16. Bem como também lhe doou o prédio descrito na alínea c) da escritura de partilha, em concreto, o prédio rústico com a área de 6200 m2 , que por ser atravessado por uma estrada, originou mais tarde dois artigos matriciais, o artigo ...0 e o artigo 89 da secção I, da freguesia de Nossa Senhora do Pranto , freguesia de Ferreira do Zêzere. 17. Pelo menos desde 1970, que a Ré AA passou a comportar-se como única e exclusiva proprietária do prédio urbano objeto da partilha ora em crise. 18. O prédio em causa possui a área total de 160,26m2. 19. Sendo que cerca de 41,47m2 correspondem a parte urbana, e 118,53m2 correspondem a logradouro. 20. De construção anterior a 1951, pelo menos desde 1970 que a R. AA passou a exercer atos de posse sobre o mesmo. 21. O aludido prédio é composto por uma cozinha, sala, um wc e dois quartos. 22. Assim, desde que a R. AA, exerce a posse sobre o referido prédio que o mesmo teve sucessivos melhoramentos, com vista à sua habitabilidade. 23. A Ré AA, procedeu a melhoramentos ao longo destes anos, tais como a colocação de caixilharia para as janelas e procedeu a isolamentos necessários. 24. Tornou-a habitável com alguns elementos que conferem conforto e habitabilidade à mesma, tais como alguns móveis, instalação de fogão, etc. 25. Durante muitos anos este imóvel foi considerado um local de descanso, para onde se deslocava aos fins de semana, gozando momentos de lazer em família. 26. O prédio possui um pequeno logradouro, com a área aproximada de 118,53 m2, também zelado por esta, nas ocasiões em que se desloca a Ferreira do Zêzere, ou por terceiro a quem solicita tais préstimos, OO. 27. A Ré AA, também exerce a posse sobre os aludidos prédios desde a data supra identificada, em concreto 1970, também por doação verbal de sua mãe. 28. Diligenciando pela sua limpeza. 29. Pelo corte das árvores. 30. Pela recolha dos seus frutos. 31. Ambos os prédios se encontram devidamente demarcados por marcos. 32. Os atos de posse supra identificados nunca tiveram a oposição de ninguém. 33. Foram sempre públicos. 34. E pacíficos. 35. Assim, as Rés têm vindo, desde 1970, continuamente e sem oposição de quem quer que seja, à vista e com conhecimento de toda a gente, a agir com a convicção de proprietárias das parcelas individualizadas perfeitamente circunscritas. 36. Por sua vez, a ré BB também beneficiou de doação de sua mãe, e desde 1976 passou a usufruir de uma parcela rústica, com cerca de 5.080m2 (cinco mil e oitenta metros quadrados), a que corresponde o artigo 88 da secção I, da freguesia de Nossa Senhora do Pranto, concelho de Ferreira do Zêzere. 37. O aludido prédio é composto por eucaliptos, e pinhal. 38. Acha-se delimitado com marcos, sendo que a Ré se ocupa da manutenção e zelo da sua área respetiva perfeitamente delimitada. 39. Contratando uma empresa, a “...” para proceder à limpeza do prédio. 40. Cortando a madeira. 41. Limpando o terreno das silvas e mato. 42. Atos que praticam ininterruptamente. 43. À vista de toda a gente. 44. Sem oposição de ninguém. 45. De forma pública e pacífica. 46. A vizinhança reconhece a delimitação das parcelas ocupadas pelas Rés. FACTOS NÃO PROVADOS Nada mais se provou, com interesse para a decisão da causa, designadamente que: I. No ano de 1989, no âmbito da operação cadastro geométrico da propriedade rústica, os proprietários informaram que o prédio correspondente ao artigo 66 da secção I, se tratava de um único prédio com a área de 11.440 m2, onde se incluíam os 160 m2, referentes ao prédio urbano.» III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1. O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se na apreciação da alegada nulidade da escritura de partilhas ou, dito de outro modo, se a usucapião, como forma originária de adquirir, deve prevalecer sobre as normas relativas ao ordenamento do território. 2. Na sentença recorrida a questão em discussão nos autos foi enunciada nos seguintes termos: «Será que a proibição de fracionamento da propriedade constitui restrição legal impeditiva da usucapião, nos termos do artigo 1287.º do Código Civil, não obstante a posse exercida pelo corpus e animus dos possuidores se manter para lá 20 anos?» Tendo o Tribunal a quo respondido à questão formulada do seguinte modo: «O artigo 294.º do Código Civil estabelece que “os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”. Na contraposição das normas de direito privado, como a usucapião, com as normas de natureza pública jus-administrativas, importa referir o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.01.2016, que decidiu que “não sendo de desconsiderar que o regime jurídico dos loteamentos e da propriedade não estão na disponibilidade incontrolada das relações jus-privatísticas, antes e por exigência da vida coletiva e por estarem relacionadas com o ordenamento do território, sofrem derrogações e limitações impostas pelo bem público, a tendência da jurisprudência, sobretudo, reportando a situações possessórias constituídas há longo tempo e ao instituto da usucapião, têm considerado que a usucapião se sobrepõe às normas, ainda que violadoras do ordenamento territorial, assim tutelando a confiança e a estabilidade de posições jurídicas consolidadas pelo tempo e pela publicidade da posse.” Com efeito, afigura-se-nos que hoje o interesse público, no tocante ao direito do urbanismo. não parece centrar-se tanto na inviabilização absoluta dos atos de fragmentação da propriedade, mas antes na edificabilidade contra legem, pelo que, casuisticamente, devem os tribunais apreciar a validade dos atos de divisão e fracionamento da propriedade. Considerando a natureza da posse exercida pelas RR e sendo a usucapião um instituto do direito privado com enorme relevância jurídica na estabilização e consolidação de situações baseadas numa posse digna de relevância no âmbito do direito real de propriedade e atendendo a que a proteção da segurança e a da confiança na atuação dos possuidores é inerente a um direito que, nascendo ex novo, desconsidera atuações, ainda que ilícitas, que não afetam retroativamente a posse relevante e boa para a usucapião, concluímos que as RR adquiriram o direito de propriedade pela via da usucapião já consumada à data da propositura da ação, pois que decorridos mais de 20 anos.» O recorrente discorda, reiterando o argumento da natureza imperativa e tutela de interesses predominantemente públicos das regras referentes aos loteamentos e fracionamento dos prédios, pugnando pela nulidade da escritura de partilhas. Vejamos. Sobre o modo como a doutrina e a jurisprudência têm resolvido a questão em apreciação, debruçou-se o STJ no Acórdão proferido em 26-01-2016[1] que fez uma resenha das teses que têm sido enunciadas na tentativa de conjugação das normas referentes aos loteamentos urbanos com as normas de direito civil sobre aquisição originária, a saber: (i) irrelevância das disposições sobre loteamentos urbanos, face à natureza originária da aquisição da propriedade (ou de outros direitos reais menores) que decorre do instituto da usucapião; (ii) as normas relativas ao ordenamento do território proíbem os loteamentos ou destaques ilegais, enquanto resultado, também proíbem os meios indiretos de lá chegar, e por outro, que carecendo a usucapião de invocação, e sendo esta um ato jurídico dependente da manifestação de vontade, esse ato jurídico está ferido de nulidade e não poderá, pois, atento o disposto nos artigos 294.º e 295.º do Código Civil, ter por efeito a aquisição da propriedade, se a posse que se invoca contraria disposições legais imperativas como as que disciplinam o loteamento, o destaque ou o fracionamento de prédios; (iii) estabelecendo a obrigação das entidades competentes, antes de se decidirem pelo reconhecimento de uma aquisição parcelar por efeito da acessão industrial imobiliária ou de usucapião, deverem certificar-se de que não irá consolidar-se uma situação desconforme com as regras que limitam o fracionamento de prédios rústicos, bem como com as que regulam as operações de fracionamento para fins urbanísticos. Sendo que a jurisprudência tem adotado, de forma consistente, a primeira tese, embora se encontrem concessões a favor da terceira tese, como ocorre no aresto citado, onde se escreveu: «Os tribunais judiciais não podem, pois, manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar o estado de unicidade nas relações entre ambos estes ramos do direito.», acrescentando aplicação que a aplicação «uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implica que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fraccionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião.» O que acaba por conduzir à seguinte conclusão: se os interessados na invocação da usucapião não demonstrarem na ação onde invocam a usucapião o cumprimento das normas de cariz administrativo a que estava sujeita a operação urbanística, deve improceder a invocação das regras da usucapião. Afigura-se-nos que este modo de ver não é substancialmente diferente da tese enunciada em segundo lugar, apenas com a diferença de dispensar os interessados antes da invocação da usucapião de se socorrerem dos procedimentos tendentes à obtenção do fracionamento da propriedade, embora exija que demonstrem em sede judicial que tais requisitos se encontram preenchidos. Porém, esta tese não se nos afigura que seja de seguir (bem como a referida em segundo lugar) considerando a natureza da usucapião, mas sobretudo a realidade social que a suporta. Como faz notar o Acórdão do STJ de 06-04-2017[2], na análise da questão não se pode deixar de levar em conta a realidade «económica e social do nosso País onde, especialmente no interior Norte e Centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos do acervo das heranças, ainda é ou era feita «de boca» e posteriormente «legalizada» com suporte na usucapião.» Por outro lado, não decorre das regras de loteamento urbano que não possa ser invocada a usucapião como forma de aquisição originária de parte de determinado imóvel. Mas sobretudo, como se fez constar no aresto do STJ de 06-04-2017, «invocada a usucapião como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial», acrescentando ainda que também «as regras da usucapião são determinadas por razões de interesse público consistente na defesa da paz pública». Ademais, razões de segurança jurídica também militam no mesmo sentido, pois como nota o mesmo aresto: «Imagine-se o que seria agora, passados 30, 40 ou mais anos, os herdeiros intervenientes nessas partilhas ou os seus sucessores virem questionar judicialmente essas divisões materiais da propriedade com fundamento na invalidade do respectivo fraccionamento.» Deste modo, e considerando que, por força dos artigos 1287.º, 1288.º e 1316.º do Código Civil, a usucapião é indiscutivelmente no nosso ordenamento jurídico um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse e, quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse, adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (artigo 1317.º, alínea c), do Código Civil), entende-se que deve prevalecer sobre as regras de administração do território, mormente sobre as regras do loteamento urbano. Deste modo, a conclusão que se impõe é a seguinte: o incumprimento das regras de natureza urbanística no que diz respeito ao fracionamento, mormente por falta do devido licenciamento ou loteamento, não obsta à aquisição originária, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas em que se decompõe o imóvel, desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a usucapião. Finalmente, cabe assinalar que o fracionamento do imóvel não ocorreu por virtude da escritura de partilhas, pois como consta do ponto 12 dos factos provados o prédio foi objeto de divisão verbal no ano de 1970, encontrando-se desde então, a Ré AA na posse efetiva dos prédios que resultaram na divisão operada em virtude da escritura de partilhas descrita e, por via dessa posse, a mesma fez as doações que se encontram referidas nos pontos 13 a 16 dos factos provados, o que revela que desde essa altura que ocorreu de facto esse fracionamento do prédio. Ignorar esta realidade económico-social colide manifestamente com as regras da usucapião, pelo que bem andou o Tribunal a quo na decisão que proferiu. Nestes termos, improcede a apelação. IV- DECISÃO Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Sem custas, dada a isenção do Ministério Público. Évora, 15-12-2022 Maria Adelaide Domingos (Relatora) José Lúcio (1.º Adjunto) Manuel Bargado (2.º Adjunto) __________________________________________________ [1] Proferido no proc. n.º 5434/09.2TVLRS.L1.S1 (Sebastião Póvoas), em www.dgsi.pt. [2] Proferido no proc. n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1 (Nunes Ribeiro), em www.dgsi.pt. |