Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | RUI MAURÍCIO | ||
Descritores: | ANOMALIA PSÍQUICA DOENÇA MENTAL ALCOOLISMO INTERNAMENTO COMPULSIVO DOS PORTADORES DE ANOMALIA PSÍQUICA INDEFERIMENTO LIMINAR | ||
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Data do Acordão: | 04/26/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
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Sumário: | I. A verificação do requisito da anomalia psíquica grave para o internamento compulsivo cabe exclusivamente à medicina, dependendo de uma avaliação clínico-psiquiátrica do internando, de realização obrigatória (excepto se o requerimento for apresentado pelo director clínico do estabelecimento nos termos do nº 3 do art. 13º da LSM), levada a cabo por dois psiquiatras, com eventual colaboração de outros profissionais de saúde mental, estando o respectivo juízo subtraído à livre apreciação do juiz. II. Não pode, pois, ser liminarmente indeferido, com fundamento em inexistência de anomalia psíquica grave por parte do internando, o requerimento para internamento compulsivo em que se alegue que aquele sofre de alcoolismo e que por isso tem um comportamento instável, agressivo e conflituoso, pois só após a realização obrigatória da sobredita avaliação se poderá aquilatar se o internando é ou não portador de uma tal anomalia. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:1. No presente processo nº … do 1º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de …, em que o Digno Magistrado do Ministério Público requerera o internamento compulsivo de A, melhor identificado nos autos, o Mmº. Juiz, logo que os autos lhe foram presentes, entendendo não se justificar o seu prosseguimento por não estarem reunidos os pressupostos que determinam o internamento compulsivo, nomeadamente por inexistência de anomalia psíquica grave por parte do internando, por despacho proferido em 3 de Dezembro de 2004, decidiu ordenar o oportuno arquivamento dos mesmos. Inconformado com aquele despacho, dele interpôs o Digno Magistrado do Ministério Público o presente recurso, rematando a respectiva motivação com as conclusões que a seguir se transcrevem: 1ª- No caso concreto, o MºPº requereu o internamento compulsivo de A, tendo alegado no requerimento inicial que o requerido sofre de alcoolismo e que por isso tem um comportamento instável, agressivo e conflituoso, descrevendo os concretos factos de onde essa conclusão é inferida, que o requerido tem capacidade cognitiva para o efeito mas nega sofrer de qualquer doença e recusa submeter-se a tratamento, o qual tem que ser feito em internamento para remover o perigo para a integridade física e tranquilidade dos familiares com quem convive; 2ª- A decisão recorrida indeferiu liminarmente tal requerimento, com o fundamento de que não se encontram preenchidos os requisitos do internamento compulsivo, previstos no art. 12º, da LSM, nomeadamente por inexistir anomalia psíquica grave por parte do requerido. Tal conclusão partiu da consideração de que a perigosidade do requerido não pode ser resolvida no âmbito da Lei de Saúde Mental (LSM, aprovada pela Lei n° 36/98, de 24 de Julho), uma vez que esta visa o internamento compulsivo apenas de quem seja portador de anomalia psíquica grave e que o alcoolismo não integra essa noção de anomalia psíquica grave, nem foi alegada a existência de doença que possa ser considerada como tal; 3ª- No âmbito da Lei de Saúde Mental, o conceito de anomalia psíquica grave, constante nos arts. 1°, 6° e 12º, é utilizado em sentido médico; 4ª- O conceito de anomalia psíquica é de conteúdo relativamente indeterminado e amplo, por forma a abranger as doenças mentais e qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas, afectivas ou volitivas, adaptando-se à evolução da ciência; 5ª- Por isso, tal conceito só podendo ser preenchido em concreto e individualmente, mediante avaliação clínico-psiquiátrica (art. 17º, da LSM), mas de acordo com os critérios internacionalmente aceites à data da sua realização; 6ª- São várias as perturbações mentais e do comportamento decorrentes do alcoolismo, que podem ser consideradas anomalia psíquica grave, nomeadamente aquelas que revelem quadros clínicos mais graves: delírio alcoólico agudo ou Delirium Tremens, intoxicação alcoólica grave, Síndrome de Wernicke-Korsakof, outros quadros encefalopáticos, embriaguez patológica, demência alcoólica, entre outros, que só em concreto podem ser identificados e concretizados; 7ª- Apenas através da perícia médica (ou avaliação clínico-psiquiátrica) se pode concluir se o requerido padece de alcoolismo ou de algum distúrbio psíquico causado por alcoolismo, que o determine a ter comportamentos perigosos, e que careça de tratamento para ser curado (nomeadamente através do internamento); 8ª- A realização de avaliação clínico-psiquiátrica é obrigatória nos termos do art. 16°, n° 1, da LSM; 9ª- O juízo médico sobre a existência ou inexistência de anomalia psíquica grave está subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do n° 5, do art. 17º, da LSM; 10ª- A decisão que ponha termo ao processo, quando tenha por fundamento a existência ou inexistência de anomalia psíquica grave, tem que ser obrigatoriamente baseada em juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica previamente realizada; 11ª- Sendo obrigatória a realização da avaliação clínico-psiquiátrica, para apurar da inexistência de anomalia psíquica grave, e sendo tal juízo vinculante, a decisão de indeferimento liminar que tem por base a conclusão de inexistência de anomalia psíquica grave aferida pelo Mm°. Juiz e não por técnico de saúde, é nula por falta de prova pericial, ou seja, por se pronunciar sobre questões cujo conhecimento lhe está subtraído por falta de qualidades técnicas - arts. 17º, nº 5 e 9º, da LSM. e 2ª parte da alínea c) do n° 1 do art. 379º do CPP; 12ª- O requerimento inicial de internamento compulsivo não obedece a especiais formalidades, nem exige a instrução com relatórios psicossociais ou clínicos, a qual é facultativa, nos termos do art. 14°, nºs 1 e 2, da LSM; 13ª- Apenas o juiz, no âmbito de processo de internamento compulsivo já iniciado, pode ordenar a emissão de mandados de condução do requerido para comparecer à realização de avaliação clínico-psiquiátrica; 14ª- Não é exigível que o requerente alegue todos os sintomas sentidos pelo requerido, nem a identificação do concreto distúrbio psíquico sofrido pelo requerido, nem a classificação desse distúrbio como anomalia psíquica grave, quando sejam desconhecidos tais elementos por não existir diagnóstico, devido à recusa do requerido em se submeter a consulta médica; 15ª- O indeferimento liminar do requerimento inicial de internamento compulsivo encontra-se reservado para situações muito excepcionais, ou seja, quando o requerente não tenha legitimidade e não sejam alegados quaisquer factos que indiciem a existência de anomalia psíquica grave por parte do requerido, de que sofra de quaisquer distúrbios psíquicos que sejam causa do comportamento perigoso do requerido para com bens jurídicos de relevante valor (próprios ou alheios, pessoais ou patrimoniais) e de que seja necessário administrar compulsivamente o tratamento médico; 16ª- Não foi alegado directamente, mas fica implícito do teor do requerimento, que o alcoolismo do requerido é causa de distúrbios psíquicos, os quais por sua vez determinam esses comportamentos violentos, agressivos e conf1ituosos; 17ª- A alegação foi feita nesses termos por não se conhecerem os concretos distúrbios psíquicos sofridos pelo requerido, devido à ausência de diagnóstico, sabendo-se apenas que são causados pelo alcoolismo; 18ª- Uma vez que os distúrbios sofridos pelo requerido só podem ser diagnosticados por técnicos de saúde, o processo tem que prosseguir por forma a apurar se este padece de anomalia psíquica grave; 19ª- Poderá haver lugar a despacho de aperfeiçoamento mas não de indeferimento liminar, porque os factos alegados deixam implícita a existência de distúrbios psíquicos, os quais poderão ser classificados como anomalia psíquica grave, e porque todos os outros requisitos de internamento compulsivo, previstos no n° 1, do art. 12º da LSM, encontram-se alegados no requerimento inicial; 20ª- Assim, o não prosseguimento dos autos consubstancia uma violação do direito fundamental do requerido à saúde mental e à sua integração crítica no meio social envolvente. nos termos dos arts. 25°, n° 1, 64° e 71°, da CRP e arts. 1°, 2º, nº 1, 6º e 12º, nº 1, da LSM; 21ª- Sendo requeridas diligências probatórias, nomeadamente a realização de avaliação clínico-psiquiátrica e inquirição de testemunhas, a primeira tem que ser obrigatoriamente deferida e a segunda pode ser deferida ou indeferida, mas tal decisão tem que ser devidamente fundamentada; 22ª- No caso concreto, o Mmº. Juiz a quo não se pronunciou sobre os requerimentos de prova feitos pelo MºPº, no requerimento inicial, nomeadamente de realização de avaliação clínico-psiquiátrica e de inquirição de testemunhas, pelo que a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia, nos termos da 1ª parte da alínea c) do n° 1 do art. 379º do CPP, aplicável ex vi art. 9º da LSM. Termina o Digno Recorrente pedindo que seja determinado o prosseguimento dos autos para os termos do art. 15º da LSM, para realização de avaliação clínico-psiquiátrica e para decisão sobre o requerimento de inquirição de testemunhas. À motivação do recurso respondeu o internando, pugnando pela integral manutenção da decisão recorrida de indeferimento liminar do requerimento de internamento compulsivo, depois de afirmar que não padece de qualquer anomalia psíquica, de sustentar que não foram alegados naquele requerimento “quaisquer factos que indiciem a existência de anomalia psíquica grave no requerido, ou sofrer, o mesmo, de quaisquer distúrbios que sejam causa do seu comportamento perigoso para com os bens jurídicos de relevante valor e ser necessário administrar compulsivamente o tratamento médico”, e de concluir que a Lei de Saúde Mental, não exigindo formalidades especiais para o requerimento de internamento compulsivo, se basta com a descrição dos factos que fundamentam tal pretensão, devendo, no caso de o respectivo requerimento carecer ab initio de fundamento, num primeiro contacto do julgador com o processo, ser o requerimento liminarmente rejeitado por falta de preenchimento dos requisitos do internamento compulsivo. O Mmº. Juiz a quo limitou-se a ordenar a subida dos autos a esta Relação e, aqui, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto, depois de defender que só após a realização da avaliação clínico-psiquiátrica se poderá aquilatar se o requerido é ou não portador de anomalia psíquica grave causada pela dependência alcoólica e que só então se poderá concluir se estão ou não reunidos os pressupostos para o seu internamento compulsivo, emitiu douto parecer no sentido de que o recurso merece provimento, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, recebendo o requerimento formulado pelo Ministério Público, determine os termos subsequentes, nomeadamente a realização de uma avaliação clínico-psiquiátrica ao requerido. Observado o disposto no art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o requerido não respondeu. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. 2. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respectiva motivação, a questão fulcral que ora se discute consiste em saber se pode ser liminarmente indeferido, com fundamento em inexistência de anomalia psíquica grave por parte do internando, o requerimento para internamento compulsivo em que se alegue tão somente que o requerido sofre de alcoolismo e que por isso tem um comportamento instável, agressivo e conflituoso, ou se o conceito de anomalia psíquica grave, utilizado na lei em sentido médico, só pode ser preenchido, em concreto e individualmente, mediante a avaliação clínico-psiquiátrica, de realização obrigatória. 2. Os factos a ter em conta para a apreciação do presente recurso são os seguintes: - O Ministério Público, nos termos do art. 12º da Lei nº 36/98, de 24 de Julho, requereu o internamento compulsivo de A, alegando, além do mais, que: “o requerido sofre de alcoolismo, pois ingere bebidas alcoólicas sem parar, dias seguidos, até perder os sentidos, após o que fica vários dias a dormir, logo retomando a ingestão desse tipo de bebidas”; “devido à dependência e influência do álcool, o requerido tem um comportamento instável, agressivo e conflituoso”; “desde os seus 18 anos que o requerido começou a manifestar um comportamento violento, o qual se tem vindo a agravar progressivamente”; “não obstante ter capacidade cognitiva para o efeito, o requerido não reconhece que é alcoólico e recusa qualquer tratamento”; e “o comportamento violento do requerido coloca em perigo a integridade física da sua mãe, irmão B, e de todas as pessoas que o rodeiam”. - No primeiro contacto que teve com o processo, o Mmº. Juiz a quo, apreciando o dito requerimento, proferiu a decisão ora sob recurso que a seguir se transcreve: “Vem o Mº Pº requerer o internamento compulsivo de A, ao abrigo da Lei nº 36/98, de 24/VII, alegando para tanto que este sofre de alcoolismo e que devido à sua dependência do álcool tem um comportamento instável, agressivo e conflituoso. Que não obstante ter capacidade cognitiva para o efeito não reconhece que é alcoólico recusando tratar-se. Que o seu comportamento violento coloca em perigo a integridade física de sua mãe, irmão (B) e de todas as pessoas que o rodeiam. Vejamos se é no âmbito da Lei de Saúde Mental que o problema da perigosidade do arguido poderá ser resolvido. Dispõe o artº 1º da Lei 36/98 (Lei de Saúde Mental) que: “a presente lei estabelece os princípios gerais da política de saúde mental e regula o internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica (o sublinhado é nosso), designadamente das pessoas com doença mental”. No que respeita propriamente ao internamento compulsivo, resulta do seu art. 8º, nºs 1 e 2 que: “o internamento compulsivo só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internando e finda logo que cessem os fundamentos que lhe deram cauas”, e se for proporcionado ao grau de perigo e ao bem jurídico em causa. Por outro lado, são pressupostos do internamento que o agente seja portador de anomalia psíquica grave (o sublinhado é nosso) e que por tal motivo crie uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou a meios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico ou não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento e desde que a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado - art.º 12º, nºs 1 e 2. Requisito comum a estes dois tipos de internamento previstos no art. 12º da Lei da Saúde Mental, é que o internando padeça de anomalia psíquica grave. A anomalia psíquica, como conceito, não se esgota nas doenças mentais strictu sensu, devidas a causas corporais - orgânicas, vulgo psicoses como é o caso das esquizofrenias, dos transtornos bipolares, dos transtornos conhecidos como paranóias e dos transtornos anti-sociais da personalidade mais conhecidos por psicopatias, como aliás resulta do teor do art. 1º da Lei de Saúde Mental ao intercalar no seu texto o advérbio “designadamente”. Assim, a anomalia psíquica poderá abranger um vasto leque de psicopatologias, sejam ou não doenças mentais, ou seja, e em princípio, os distúrbios psíquicos resultantes das intoxicações alcoólicas e em alguns casos dos resultantes da toxicodependência, desde que a sua gravidade seja manifesta poderão levar a fazer apelo à aplicação da Lei de Saúde Mental mas não a justificam. Por outras palavras, aqueles distúrbios terão eles mesmos de serem de tal modo graves que se transformem em verdadeiras psicoses com quadro devidamente concretizado como por exemplo: o delirium tremens, as alucinações e o síndroma de Korsakof, para que tenha aplicação a Lei da Saúde Mental, nomeadamente no que concerne ao internamento compulsivo. Ora, o caso em apreço, tal como é configurado, não se enquadra no conceito de anomalia psíquica grave, pois sendo graves as consequências do comportamento do arguido, ditadas pelo seu alegado alcoolismo, não traduzem, nem vem alegado, qualquer perturbação psíquica grave do tipo psicose como anteriormente referido. Temos assim que o comportamento do arguido é penalmente relevante mas que não padece de qualquer anomalia psíquica donde lhe não ser aplicável as disposições da Lei de Saúde Mental. E, porque os actos do internamento são penalmente relevantes, terá de ser no âmbito do Código Penal (arts. 86º e 87º) obtida a solução. Perante o exposto, e sem necessidade de mais considerandos, e Decidindo: Entendo não estarem reunidos os pressupostos que nos termos do disposto no art. 12º da Lei de Saúde Mental determinam o internamento compulsivo, nomeadamente por inexistência de anomalia psíquica grave por parte do internando, e consequentemente, não se justificar o prosseguimento dos autos. Em face deste entendimento ordeno o oportuno arquivamento dos mesmos. Notifique”. 3. Perante tais factos com interesse para a apreciação do recurso, vejamos agora o direito. A Constituição da República Portuguesa prevê expressamente, desde a revisão levada a cabo com a Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, no caso de “internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente” - cfr. art. 27º, nº 3, h) -, assim se consagrando a judicialização de um tal internamento. A Lei de Saúde Mental - Lei nº 36/98, de 24 de Julho -, doravante designada simplesmente por LSM, de harmonia com os objectivos traçados no seu art. 1º, veio estabelecer os princípios gerais da política de saúde mental e regular “o internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica, designadamente das pessoas com doença mental”, dedicando ao internamento compulsivo todo o seu Capítulo II, o qual preenche a maior parte do diploma, definindo o internamento compulsivo como “internamento por decisão judicial do portador de anomalia psíquica grave” - cfr. art. 7º, a). Como refere António Leones Dantas, “quando se fala em judicialização do internamento importa que se entenda claramente qual o papel do juiz no processo do internamento constante da Lei e qual o papel do psiquiatra no mesmo processo. Na verdade, o facto de se ter optado por um modelo judicial não quer de maneira nenhuma dizer que o psiquiatra seja alheio ao internamento, que a autonomia deste seja colocada em causa, que a pessoalidade e a confiança que devem existir entre o médico e o doente não tenham sido salvaguardadas e que, no limite, o psiquiatra tenha deixado de ser o primeiro e talvez o verdadeiro garante do direito à individualidade e á liberdade do doente. O juiz é um garante da liberdade e do respeito pelos princípios fundamentais relativos à restrição de direitos, mas antes da intervenção do juiz está claramente a do psiquiatra, já que está em causa a criação de condições para que os actos médicos inerentes ao internamento e ao tratamento compulsivos ocorram em circunstâncias transparentes e que não suscitem quaisquer dúvidas” - cfr. “Notas sobre o internamento compulsivo na Lei de Saúde Mental”, in Revista do Ministério Público, nº 76, págs. 62 e 63. Também para Cunha Rodrigues, então Procurador-Geral da República, “a intervenção judicial é indispensável, revestindo, em princípio, a forma de autorização mas podendo ser confirmativa ou de validação em situações de urgência. Em qualquer dos casos, a intervenção do tribunal depende de prévia avaliação clínico-psiquiátrica (...) Pode dizer-se esquematicamente que estamos perante um modelo misto, em que a judicialização dialoga com a avaliação clínico-psiquiátrica, num axioma de mínima intervenção estatal dominado pelos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade” - cfr. “Sobre o estatuto jurídico das pessoas afectadas de anomalia psíquica”, in “A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo”, Coimbra Editora 2000, pág. 42. Reportando-se ao internamento normal - o que ora nos interessa e por contraposição ao internamento por urgência regulado nos arts. 22º a 27º da LSM -, estabelece o art. 12º do mesmo diploma legal que “o portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado” (nº 1) e que “pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado” (nº 2). De harmonia com o disposto no nº 1 do art. 13º da LSM, “tem legitimidade para requerer o internamento compulsivo o representante legal do portador da anomalia psíquica, qualquer pessoa com legitimidade para requerer a sua interdição, as autoridades de saúde pública e o Ministério Público”, e bem ainda, nos termos do nº 3 do mesmo preceito, o director clínico do estabelecimento se a verificação da anomalia psíquica com os efeitos previstos no citado art. 12º ocorrer no decurso de um internamento voluntário. Dispõe o art. 14º da LSM que “o requerimento, dirigido ao tribunal competente, é formulado por escrito, sem quaisquer formalidades especiais, devendo conter a descrição dos factos que fundamentam a pretensão do requerente” (nº 1) e que “sempre que possível, o requerimento deve ser instruído com elementos que possam contribuir para a decisão do juiz, nomeadamente relatórios clínico-psiquiátricos e psicossociais” (nº 2). No que concerne à respectiva tramitação processual, a LSM preceitua que, recebido o requerimento, o juiz notifica o internando, informando-o dos direitos e deveres processuais que lhe assistem, e nomeia-lhe um defensor, que este e o familiar mais próximo do internando que com ele conviva ou a pessoa que com ele viva em condições análogas ás dos cônjuges são notificados para requererem o que tiverem por conveniente, indo o processo com vista ao Ministério Público para os mesmos efeitos (cfr. art. 15º, nºs 1 a 3). Depois, “o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determina a realização das diligências que se lhe afigurem necessárias e, obrigatoriamente, a avaliação clínico-psiquiátrica do internando, sendo este para o efeito notificado”, avaliação que só pode ser prescindida se o internamento for requerido pelo director clínico do estabelecimento nas supracitadas circunstâncias (cfr. art. 16º, nº s 1 e 2). Uma vez recebido o relatório da avaliação clínico-psiquiátrica, o juiz designa data para uma sessão conjunta, na qual é obrigatória a presença do defensor do internando e do Ministério Público, e, ouvidas as pessoas para ela convocadas e feitas alegações sumárias, profere decisão imediata ou no prazo de cinco dias se o procedimento revestir complexidade, decisão que é sempre fundamentada, especificando a decisão de internamento “as razões clínicas, o diagnóstico clínico, quando existir, e a justificação do internamento” (cfr. arts. 18º, nº 1, 19º, nºs 1 e 2 e 20º, nºs 1 e 2). O primeiro pressuposto para o internamento compulsivo, isto é, o seu requisito básico, seja para aquele a que alude o nº 1, seja na modalidade referida no nº 2, ambos do sobredito art. 12º, consiste em ser o internando portador de uma anomalia psíquica grave. Também o Código Penal, no seu art. 20º, nº 1, condicionou a inimputabilidade em geral à existência de uma anomalia psíquica, aludindo no nº 2 do mesmo preceito a anomalia psíquica grave. Em lado algum o legislador define o que seja uma anomalia psíquica, embora resulte claramente do art. 1º da LSM que o respectivo conceito é mais amplo e abrangente do que o conceito de saúde mental. É pertinente e elucidativo o ensinamento do Professor Jorge de Figueiredo Dias a propósito das boas razões da decisão legislativa de recusa de uma enumeração - sequer exemplificativa - do tipo de anomalias psíquicas que podem determinar a inimputabilidade: “Desde logo a de que no próprio campo médico científico reina ainda hoje a maior incerteza, tanto ao nível terminológico como a nível da determinação dos efeitos sobre o intelecto e a vontade do sujeito que a cada tipo de anomalia devem, em abstracto, atribuir-se. Depois, a circunstância de o conhecimento científico estar a evoluir neste domínio com grande rapidez, pelo que qualquer elenco correria o risco de ser ultrapassado ou se tornar mesmo obsoleto a breve prazo, mais prejudicando deste modo do que favorecendo as tarefas da aplicação do direito. Em terceiro lugar, porventura, a circunstância de assim se ter querido dar a entender que (...) decisivo será sempre o efeito normativo que ao substracto biopsicológico há-de estar ligado. Por fim - mas não por último - o facto de assim se tornar mais claro que o conceito de anomalia psíquica ultrapassa, sob muitos pontos de vista, o conceito médico de doença mental: não apenas pois as doenças mentais em sentido estrito, mas também as perturbações de consciência, as diversas formas de oligofrenia e, em suma, de anormalidade psíquica grave (psicopatias, neuroses, pulsões) podem preencher o substracto biopsicológico necessário” - cfr. “Pressupostos da Punição”, in “Jornadas de Direito Criminal”, Edição do CEJ, 1975-1976. Para o internamento compulsivo a lei exige que o internando seja portador de anomalia psíquica grave e a par desta gravidade que dela resulte uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, ou então que o portador da anomalia psíquica não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado. O conceito de gravidade da anomalia psíquica há-de, como afirma Cunha Rodrigues, “definir-se em termos técnico-científicos mas sem ligação com o critério de perigosidade. Terá uma função limitadora e restritiva, apropriada ao estado do conhecimento científico. Noutra perspectiva, a noção de gravidade obedece a um plano axiológico em que se fixam pressupostos mínimos e se recusam critérios utilitaristas de selecção e diagnóstico. Se a anomalia psíquica não for grave, não há lugar a internamento compulsivo, ainda que gere situações de perigo” - ibidem, págs. 44 e 45. No requerimento indeferido pela decisão ora sob censura, não se refere expressamente que o internando é portador de anomalia psíquica grave, mas alega-se que o mesmo sofre de alcoolismo, ingerindo bebidas alcoólicas sem parar, dias seguidos, até perder os sentidos e que, devido à dependência e influência do álcool, tem um comportamento instável, agressivo e conflituoso, comportamento que coloca em perigo a integridade física da mãe, de irmão B e de todas as pessoas que o rodeiam, requerendo-se, além do mais, a realização da avaliação clínico-psiquiátrica do requerido. Admitindo embora que a anomalia psíquica justificativa do internamento compulsivo pode abranger os distúrbios psíquicos resultantes das intoxicações alcoólicas desde que a sua gravidade seja manifesta e de tal modo que aqueles distúrbios se transformem em verdadeiras psicoses, entendeu o Mmº. Juiz a quo que o caso descrito no requerimento do Ministério Público não se enquadra no conceito de anomalia psíquica grave, pois, apesar de serem graves as consequências dos distúrbios resultantes do alcoolismo, não traduzem, nem vem alegado, qualquer perturbação psíquica grave do tipo psicose. Na avaliação da gravidade da anomalia, citando António João Latas e Fernando Vieira, “as maiores dificuldades podem colocar-se nas perturbações mentais e do comportamento decorrentes do uso de substâncias psicoactivas (na terminologia da Classificação Internacional de Doenças da OMS, 10ª ed.), designadamente o álcool e outros produtos estupefacientes. Todavia, afigura-se-nos que nos quadros clínicos mais graves, nomeadamente nas situações de delírio alcoólico agudo ou Delirium Tremens, que configuram um quadro psicótico grave, associando sintomas psíquicos e neurológicos, que pode evoluir favoravelmente em quatro a cinco dias se uma intervenção terapêutica eficaz for urgentemente instituída, ou em doentes com intoxicação alcoólica crónica grave que desenvolvam a recentemente chamada Síndrome de Wernicke-Korsakof (WKS) ou outros quadros encefalopáticos, bem como os casos de embriaguez patológica ou de demência alcoólica que podem resultar da evolução daqueles quadros clínicos e cuja reversibilidade de sintomas é hoje aceite (...), pode considerar-se estarmos perante anomalia psíquica grave susceptível de justificar o internamento compulsivo do doente, desde que, obviamente, se encontrem preenchidos os restantes requisitos” - in “Notas e Comentários à Lei de Saúde Mental”, CEJ, Coimbra Editora 2004, pág. 83. A verificação do requisito da anomalia psíquica grave para o internamento compulsivo cabe, contudo, à medicina. Depende, com efeito, de uma avaliação clínico-psiquiátrica do internando, de realização obrigatória (excepto se o requerimento for requerido pelo director clínico do estabelecimento nos termos do nº 3 do sobredito art. 13º), a levar a cabo por dois psiquiatras, com eventual colaboração de outros profissionais de saúde mental (cfr. arts. 16º, nºs 1 e 2 e 17º, nº 1 da LSM). Dessa avaliação é elaborado um relatório que os competentes serviços oficiais de assistência psiquiátrica ou de psiquiatria forense do instituto de medicina legal remetem ao tribunal no prazo máximo de sete dias (cfr. art. 17º, nº 4 da LSM). Nos termos do nº 5 do referido art. 17º, “o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz”. Refere Cunha Rodrigues que, “com o aparente objectivo de reequilibrar as tensões clínico-psiquiátrica e judicial, a lei estabelece uma espécie de cézure entre a perícia e o juízo do Tribunal, contrariando o conhecido brocardo de que o juiz é o perito dos peritos” - ibidem, pág. 47. A verificação da anomalia psíquica grave para efeitos do internamento compulsivo é, pois, matéria da competência médica e está sujeita ao juízo técnico-científico inerente à respectiva avaliação pericial. Estamos, assim, no dizer do Professor José Carlos Vieira de Andrade, “perante um parecer psiquiátrico obrigatório e vinculante, figura que também tem um carácter decisório (é, no fundo, uma deliberação preliminar ou uma «pré-decisão» médica). Tendo em conta, porém, que a decisão final cabe ao juiz, devendo especificar as razões clínicas e também a justificação do internamento, deve entender-se a avaliação psiquiátrica prevista na lei no sentido de um parecer conforme, vinculativo só se o parecer médico for desfavorável” - cfr. “O internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica na perspectiva dos direitos fundamentais”, in “A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo”, Coimbra Editora 2000, pág. 85. A LSM foi mais longe do que o próprio Código de Processo Penal que, estabelecendo a presunção de que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se encontra subtraído à livre apreciação do julgador, prevê, todavia, uma excepção: sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência - cfr. art. 163º, nºs 1 e 2. Do que vem sendo exposto flui que a verificação sobre a existência ou inexistência do pressuposto básico para o internamento compulsivo - a anomalia psíquica grave - só pode ser feita com o relatório e conclusões da avaliação clínico-psiquiátrica, juízo que é necessária e obrigatoriamente feito por médicos especializados em psiquiatria e está subtraído à livre apreciação do juiz. Não era, por conseguinte, lícito ao Mmº. Juiz a quo proferir, como proferiu, decisão liminar, ordenando o arquivamento dos autos, por inexistência de anomalia psíquica grave por parte do internando e, consequentemente, por não se justificar o prosseguimento dos mesmos. E não se diga que o requerente do internamento compulsivo teria que alegar uma específica anomalia psíquica grave, com a descrição da respectiva sintomatologia apresentada pelo internando, pois se o requerimento, como dissemos já, não obedece a formalidades especiais, também não se configura como possível uma tal alegação na situação frequente de o internando não assumir a doença, como no caso sub judice, sendo ainda certo que, precisamente perante o desconhecimento do respectivo diagnóstico, é meramente facultativa a instrução do requerimento com relatórios clínico-psiquiátricos e psicossociais (cfr. art. 14º, nºs 1 e 2 da LSM). Por outro lado, a regra da obrigatoriedade da realização da avaliação clínico-psiquiátrica encontra uma das suas principais razões de ser na inexigibilidade do conhecimento por parte do requerente da doença psíquica do requerido, tanto assim que tal avaliação só pode ser prescindida quando o requerimento de internamento compulsivo é feito por um director clínico no decurso de um internamento voluntário, ou seja, quando o diagnóstico foi já efectuado por quem detém legitimidade para tanto. Concordamos com o Digno Recorrente quando afirma que “o indeferimento liminar do requerimento inicial de internamento é excepcional, reservando-se para as situações de ilegitimidade do requerente e em que não se mostre indiciada qualquer patologia ou qualquer perigo relevante ou a necessidade de internamento para o tratamento”, o que manifestamente não é o caso dos autos, pois consideramos terem sido alegados factos bastantes que justificam a submissão do internando a uma avaliação clínico-psiquiátrica com vista à verificação da existência de uma anomalia psíquica grave, pressuposto do seu internamento compulsivo. Em suma, antes da realização da obrigatória avaliação clínico-psiquiátrica, aliás oportunamente requerida pelo ora Digno Recorrente, e de ser conhecido o respectivo juízo médico sobre a existência ou inexistência de anomalia psíquica grave, o qual está subtraído à livre apreciação do julgador, estava vedado ao Mmº. Juiz a quo indeferir o requerimento para internamento compulsivo por não estarem reunidos os pressupostos que determinam tal internamento, “nomeadamente por inexistência de anomalia psíquica grave por parte do internando”. Ao fazê-lo, violou, por deficiente interpretação, as normas contidas nos arts. 14º, nº 1, 15º, nº 1, 16º, nº 1 e 17º, nº 5, todos da LSM, procedendo as atinentes conclusões da motivação do recurso. 4. Nestes termos, concedendo provimento ao recurso, acordam os Juízes desta Relação em revogar o aliás douto despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, recebendo o requerimento para internamento compulsivo de A, determine, em conformidade com o disposto nos arts. 15º e 16º da LSM, os termos subsequentes, nomeadamente a realização da avaliação clínico-psiquiátrica do internando. Sem custas - cfr. art. 37º da LSM. Évora, 26 de Abril de 2005 Texto processado e integralmente revisto pelo relator. Rui Maurício Manuel Nabais Sérgio Poças |