Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | FRANCISCO XAVIER | ||
| Descritores: | INDEFERIMENTO LIMINAR DIREITO À IMAGEM LIBERDADE DE INFORMAÇÃO LIBERDADE DE EXPRESSÃO | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA | ||
| Área Temática: | CÍVEL | ||
| Sumário: | Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil] I. O indeferimento liminar da petição por manifesta improcedência está reservado aos casos em que, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelo autor, seja manifesto que a pretensão formulada não pode proceder. II. O direito à imagem integra o elenco dos direitos pessoais com consagração no artigo 26º, n.º 1, da Constituição, e com tutela ao nível do direito ordinário por parte das leis penal (artigo 199.°, n.º 2, do Código Penal) e civil (artigo 79.° do Código Civil). III. A restrição ao direito de imagem, por contender com direitos pessoais, constitucional e legalmente consagrados, além de ter que estar expressamente admitida ou imposta, tem que visar salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, ser apta para esse efeito, e limitar-se à medida necessária para o alcançar, sem aniquilar o direito protegido em causa. IV. Tendo o autor alegado, no essencial, a violação do seu direito à imagem com a recolha e divulgação das imagens captadas por telemóvel e câmaras de videovigilância do centro comercial onde ocorreram os factos retratados e as consequências que para si alegadamente resultaram com essa divulgação televisiva e num jornal detidos pelas rés, a apreciação da pretensão formulada demanda um juízo de ponderação dos interesses/direitos em confronto, que passa pela integração jurídica dos factos em causa e pela análise das normas em confronto, relativas à protecção do direito à imagem e à liberdade de informação e de expressão, que não se coaduna com a simples apreciação de mérito em sede de despacho liminar. | ||
| Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação n.º 3806/24.1T8FAR.E1
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora I – Relatório 1. AA intentou acção declarativa de condenação, com forma de processo comum, contra BB, Lda., P..., Lda., e M..., Lda., pedindo a condenação das RR. no pagamento da quantia de € 100.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, e que seja declarada ilegal a utilização da sua imagem por parte das RR., devendo ser condenas a remover todos os registos jornalísticos das imagens do A. relativas ao dia ... de ... de 2018, bem como a remover a sua fotografia do website e ainda qualquer referência ao mesmo, não podendo as RR. usar as suas imagens para fins publicitários ou outros de cariz comercial sem a sua autorização. 2. Fundamentou a sua pretensão no facto de, no dia 21 de Novembro de 2018, ter sido filmado por um transeunte com o seu telemóvel, bem como por câmaras colocadas pela 1ª R. no espaço do Centro Comercial BB, tendo sido gravada uma agressão perpetrada pelo A. contra terceiro no interior do referido centro comercial, mais referindo que “[n]o vídeo podia ver-se o AA, aqui Autor a agredir uma outra pessoa com o que presumia-se ser uma faca ou um objecto cortante, segundo se descreve na referida notícia”. Acrescentou que, o vídeo teve grande divulgação nas redes sociais, nomeadamente por intermédio da 2ª R. e pelo canal televisivo da 3ª R., tendo a sua imagem sido divulgada sem que houvesse autorização para tal. Alegou ainda que as câmaras do centro comercial destinam-se apenas a assegurar a segurança dos lojistas, sobretudo quando o mesmo está encerrado, e não para filmar pessoas em particular, concluindo que toda esta situação lhe provocou danos, dada a utilização da sua imagem não autorizada, que sempre tem sido uma pessoa reservada e discreta e sem qualquer intenção de expor a sua vida nem a sua imagem em qualquer plataforma online, e que nunca procurou qualquer relevância mediática, pelo que a condutas das RR. lhe provocou mal-estar, perturbação, vergonha e desconsideração na sua honra, tanto mais pretendendo as RR. apenas enriquecer à sua custa (invocando a violação do disposto no artigo 26º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 79º, n.º 1 e 483º do Código Civil). 3. Foi solicitada a junção aos autos de certidão da decisão proferida no processo crime n.º 1354/18.8..., do Juízo Criminal de Cidade 1 – Juiz 2, bem como certidões das imagens/ficheiros que constem do processo relativas ao incidente de agressão ocorrido no BB no dia 21 de Novembro de 2018, da qual resulta que o A. foi condenado pela pratica de um crime de homicídio simples, na forma tentada, bem como de crimes de ameaça, injúria e ofensa à integridade física, na pena, em cúmulo jurídico, de 7 anos e 8 meses de prisão [cf. sentença de 21/02/2020, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09/06/2020, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/11/2020], tendo os factos relativos à condenação por tentativa de homicídio ocorrido nas circunstâncias de tempo e lugar que integram a causa de pedir da presente acção. 4. Após, foi proferido despacho, no qual se decidiu: «… indefiro liminarmente a presente acção intentada por AA contra BB, Lda., P..., Lda. e M..., Lda., por o pedido ser manifestamente improcedente, nos termos dos artigos 79º, 483º e 496º Código Civil e do artigo 590º, n.º 1 do Código de Processo Civil». 5. Inconformado, interpôs o A. o presente recurso, concluindo pela revogação do despacho recorrido, nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]: A. O Tribunal “a quo” errou ao omitir a aplicação do artigo 79.º, n.º 3, do Código Civil, que impõe limites à divulgação de imagens sempre que daí advenha ofensa à honra ou reputação do visado. B. A divulgação das imagens do Recorrente, sem qualquer forma de anonimização, configurou uma grave violação dos seus direitos de personalidade, nomeadamente do direito à imagem, honra, reputação e reinserção social. C. As Rés actuaram, no mínimo, com negligência, pois dispunham de meios para ocultar a identidade do Recorrente, protegendo-o do estigma social que inevitavelmente resultou da divulgação não anonimizada. D. O nexo causal entre a conduta das Rés e os danos sofridos é inequívoco, justificando a sua condenação no pagamento de indemnização por danos morais e patrimoniais. E. Impõe-se também a remoção ou exclusão imediata das imagens do espaço público (televisão, redes sociais, plataformas digitais), de modo a prevenir a perpetuação da lesão aos direitos do Recorrente. 6. Admitido o recurso e citadas as RR., como previsto no n.º 3 do artigo 629º do Código de Processo Civil, contra-alegou a R. M..., Lda.., pugnando pela confirmação da decisão recorrida de indeferimento liminar, invocando, em síntese, que o A. não indica quaisquer factos concretos relativamente às alegadas divulgações pelas RR. da sua imagem, limitando-se a alegações genéricas, e que, nos termos do n.º 2 do artigo 79º do Código Civil, não era necessário o consentimento do recorrente para a transmissão das imagens, que o retratam no âmbito de factos praticados em lugar público, havendo interesse público na sua divulgação. 7. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * II – Objecto do recurso O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão a decidir consiste em saber se ocorre, ou não, fundamento para o indeferimento liminar da petição. * III – Fundamentação A) - Os Factos Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais mencionadas no relato dos autos. * B) – Apreciação do Recurso/O Direito 1. Com a presente acção pretendia o A., no essencial, ser ressarcido dos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da divulgação das imagens recolhidas, no dia 21 de Novembro de 2018, pelo telemóvel de um transeunte e por câmaras colocadas pela 1ª R. no espaço do Centro Comercial BB, referentes a uma agressão perpetrada pelo A. contra terceiro no interior do referido centro comercial, e impedir que continuem a ser utilizadas/divulgadas. 2. Na decisão recorrida indeferiu-se liminarmente a pretensão do A., por manifesta improcedência, com a seguinte fundamentação: «(…) O Autor invoca a violação do seu direito à imagem, juntando um vídeo onde é visto a agredir outra pessoa, factos pelos quais foi condenado pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva. Em 1º lugar, o Autor limita-se a alegações genéricas, não indicando quaisquer factos concretos relativamente às alegadas divulgações pelas Rés da sua imagem. Em 2ª lugar, a alegada violação do seu direito à imagem resulta de vídeo/imagens de factos praticados pelo próprio Autor em local público e que consubstanciam a prática de um crime de homicídio na forma tentada e que alegadamente terão sido divulgados por um jornal e por uma estação de televisão, para além da 1ª Ré, centro comercial, alegadamente ter fornecido as suas imagens das câmaras de videovigilância do espaço, tendo as imagens/filmagens da conduta do Autor sido utilizadas como meio de prova no âmbito do processo crime em que foi condenado. Nos termos do artigo 26º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Assim, “O direito à imagem configura um bem jurídico-penal autónomo, tutelado em si e de per si, independentemente da sua valência do ponto de vista da privacidade/intimidade, como resulta claro da circunstância de o texto adoptado pelo Código Penal de 1982 ser o de fotografar, filmar ou registar aspectos da vida particular de outrem, expressão que em 1995 seria substituída por fotografar ou filmar outra pessoa. Trata-se de um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem” Por sua vez, artigo 79º do Código Civil refere que: “1- O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada. 2- Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente. 3- O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada”. O consentimento encontra-se previsto no artigo 340º do Código Civil e constitui uma forma de limitação voluntária do próprio direito à imagem, sendo certo que o mesmo é irrelevante nos casos em que a lesão do direito é contrária às normas imperativas e aos bons costumes. O consentimento não exige forma específica, podendo ser tácito ou expresso, verbal ou escrito, atentas as regras gerais do Código Civil (artigos 217º e 218º). Ora, como supra se referiu, o legislador dispensou a necessidade do consentimento em certos casos, designadamente quando se esteja perante exigências de polícia ou de justiça e ainda quando a reprodução da imagem vier enquadrada em lugares públicos, ou em factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente. Nesta medida, o direito à liberdade de imprensa e o direito à imagem conflituam várias vezes. Assim, nos termos do disposto no artigo 3º da Lei 2/99, de 13 de Janeiro (Lei da Imprensa), o direito à imagem constitui um dos limites à liberdade de imprensa, sendo certo que o direito à informação também terá que ser considerado. Um dos exemplos paradigmáticos da captação de imagem é a videovigilância nos espaços públicos e privados cuja utilização se justifica por necessidades de segurança e de racionalização de meios, através do aproveitamento de dispositivos tecnológicos em substituição de agentes de segurança, pelo que, mesmo tendo a 1ª Ré alegadamente fornecido as imagens à policia e que depois foram utilizadas no âmbito do processo crime pelo qual o Autor foi condenado, não se verificava a prática de qualquer facto ilícito originador de responsabilidade civil, nos termos do disposto no artigo 483º do Código Civil. Relativamente às Rés que detêm um jornal e uma estação televisiva, também não se vislumbra a prática de qualquer prática de facto ilícito e culposo com a divulgação do vídeo/imagens do Autor que terá praticado um crime de relevo (contra a vida) e impacto social em local público, num centro comercial, pelo que haverá interesse na divulgação da notícia, tendo sido o próprio Autor que se colocou na posição de permitir a divulgação da sua imagem, pelo que não é necessário o seu consentimento para tal, não se vislumbrando a pratica de facto ilícito e culposo pelas Ré, desde logo não estando verificados os pressupostos da responsabilidade civil. Efectivamente, “- Nas sociedades actuais a liberdade de expressão e de imprensa é a medida da democraticidade porquanto assumem papel determinante na formação de uma opinião publica esclarecida e critica com salvaguarda expressa na CEDH artigo 10º nº 1, art 12º, da DUDH nos artigos 37º e 38º da CRP e na lei 2/99, (artigo 1º e 2º) - A linha inultrapassável na análise do conteúdo de uma notícia versus os direitos de personalidade do visado radica no interesse público do facto noticiado, já que este direito é amplamente acolhido nos arestos internacionais e na jurisprudência interna a par dos diversos instrumentos jurídicos existentes, que os defende mesmo em conflito com outros direitos fundamentais. - As normas que admitem limitações à liberdade de expressão e de imprensa, devem ser interpretadas restritivamente. - No anexo à Recomendação nº 13 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, relativa à difusão de informações pelos meios de comunicação social em matéria de processos criminais, consagra-se, nomeadamente, o direito do público a ser informado através dos media sobre as actividades das autoridades judiciárias e dos serviços de polícia, reconhecendo-se aos jornalistas, o direito de poder prestar contas livremente sobre o funcionamento do sistema de justiça penal” . Por outro lado, nos termos do artigo 496º do Código de Processo Civil, só são indemnizáveis os danos não pantominais que, pela sua relevância mereçam a tutela do direito, o que não se vislumbra nos autos, na medida em que terá sido um agressor de terceiro num espaço público e condenado pela prática de um crime grave em prisão efectiva. Em face do exposto, indefiro liminarmente a presente acção intentada por AA contra BB, Lda., P..., Lda. e M..., Lda., por o pedido ser manifestamente improcedente, nos termos dos artigos 79º, 483º e 496º Código Civil e do artigo 590º, n.º 1 do Código de Processo Civil.» 3. O A./recorrente discorda desta decisão, porque entende que a divulgação das imagens em causa sem qualquer anonimização, configura grave violação dos seus direitos de personalidade, nomeadamente do direito à imagem, honra, reputação e reinserção social, sendo proibida pela norma do n.º 3 do artigo 79º do Código Civil, norma esta que diz não ter sido tida em conta no despacho recorrido. Vejamos: 4. Importa começar por recordar que o despacho recorrido consubstancia um despacho de indeferimento liminar, o qual, actualmente, encontra previsão geral na norma do n.º 1 do artigo 590º, n.º 1, do Código de Processo Civil, onde se prescreve que: “Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º”. Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição actualizada, Almedina 2020, pág.698-699): “A primeira situação está prevista no art. 226º, n.º 4, nos casos em que seja requerida a citação prévia do réu (art. 561º, n.º 2), nos procedimentos cautelares e nos processos em que haja que decidir sobre a prévia audiência do requerido (como no processo de insolvência), sempre que a acção deva ser publicitada (v.g. processo especial de acompanhamento de maiores - art. 893º) e noutras situações previstas na lei, designadamente nos processos especiais para tutela da personalidade (art. 879°) e de divórcio ou separação sem consentimento do outro cônjuge (art. 931º). (…) Mas a lei admite que o juiz, numa apreciação casuística ou tendo em conta as características de certo tipo de acções, por despacho avulso ou através de provimento geral, determine a apresentação liminar do processo ou de certas categorias de processos, situação a que deve equiparar-se aquela em que, por algum motivo, a acção lhe seja apresentada nessa mesma fase para decidir alguma questão incidental ou em face de alguma circunstância que seja exposta pela secretaria relativamente à posterior tramitação processual (v.g. total e absoluta inadequação da forma de processo ou manifesta incompetência absoluta do tribunal). Nessas ocasiões, se acaso o juiz se deparar com aspectos que imponham ou aconselhem a prolação de decisão liminar, poderá adoptar os procedimentos que forem ajustados a cada vicio com que seja defrontado.” Porém, como também advertem os mesmos Autores (ob. e loc. cit.), os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo na fase limiar, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de excepções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição, o que acontece quando seja manifesto que a acção nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelo autor, ou quando seja inequívoca a caducidade reportada a direitos indisponíveis, e perante a constatação de alguma excepção dilatória de conhecimento oficioso que não possa ser suprida nem por convite ou iniciativa do juiz, nem por actuação do autor. Em suma, no que se reporta ao indeferimento liminar por manifesta improcedência, o mesmo está reservado aos casos em que qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelo autor, seja manifesto que a pretensão formulada não pode proceder. Mas será este o caso dos autos? 5. Como se referiu, a pretensão formulada pelo A. encontra o seu fundamento jurídico na proibição da obtenção, não autorizada, da sua imagem, e posterior divulgação, sendo que no recurso, como se vê das respectivas conclusões que o delimitam, o A. restringe a questão à divulgação das imagens recolhidas, posto que o que invoca é a não consideração pelo tribunal recorrido da previsão da norma do n.º 3 do artigo 79º do Código Civil. Não subsistem dúvidas de que o direito à imagem integra o elenco dos direitos pessoais com consagração constitucional no artigo 26º, n.º 1, da Constituição, e com tutela ao nível do direito ordinário por parte das leis penal (artigo 199.°, n.º 2, do Código Penal) e civil (artigo 79.° do Código Civil). Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 26º da Constituição: “[o] direito à imagem (n.º 1) tem um conteúdo assaz rigoroso, abrangendo, primeiro, o direito de definir a sua própria auto-exposição, ou seja, o direito de cada um não ser fotografado, nem de ver o seu retrato exposto em público sem o seu consentimento (cfr. Ccivil, art. 30º); e, depois, o direito de não o ver apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva malevolamente distorcida ou infiel («falsificação da personalidade»).” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 1ª edição revista, pág. 467). Atente-se que, no caso, não releva para apreciação do recurso o facto de as gravações do momento das agressões de que o recorrente foi autor terem sido utilizadas no processo crime em que foi visado, pois a validade de tal utilização só podia ter sido questionada no âmbito do respectivo processo crime em que foram apresentadas como meio de prova, e no qual o aqui autor foi condenado, com pena transitada em julgado, mas sim a divulgação que foi efectuada pelos meios de comunicação social aqui réus e alegadas divulgações pelas ditas redes sociais. E é a respeito destas divulgações que se entende invocar o A. violação do artigo 79º do Código Civil, onde se prescreve que: «1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; (…). 2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente. 3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.» Como refere José Alberto González (Direitos da Personalidade Humana, Novos Problemas, Quid Juris, pág. 309): «O preceito contido no artigo 79.° do Código Civil tem utilidade, mormente, por por através dele se manifestar a preocupação de produzir um inventário (ainda que meramente exemplificativo) dos casos em que a captação e/ou a divulgação da imagem alheia não depende de consentimento do seu titular. Podem agrupar-se tais hipóteses em três classes: • num, são razões atinentes à própria pessoa retratada que justificam a desnecessidade de consentimento (notoriedade, cargo que desempenha, etc.); • noutro, estão em causa razões ligadas à finalidade da captação/divulgação do retrato (exigências de polícia ou de justiça, intuitos científicos, didácticos ou culturais); • no último, por fim, é a própria natureza do contexto em que a pessoa é retratada que funda a superfluidade do consentimento (imagem enquadrada na de lugares públicos, na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente).» Mas, como adianta o mesmo Autor (ob. cit., pág. 311), qualquer uma das excepções erguidas pelo n.º 2 do artigo 79º do Código Civil à necessidade de obtenção de anuência por parte da pessoa retratada deixa de ter aplicação, retornando-se à regra geral, sempre que a captação, ou, sobretudo, a divulgação da imagem ofenda a honra, a reputação ou o decoro da pessoa. 6. Como vimos, no caso em apreço, em função da causa de pedir invocada, suscita-se não só a questão da legalidade da recolha das imagens como a sua divulgação na comunicação social e redes sociais, bem com a possibilidade futura de utilização das mesmas imagens. E, ainda que se entenda ser lícita a sua captação, como se entendeu na decisão recorrida, por caber na previsão da norma do n.º 2 do artigo 79º, sempre a divulgação estará vedada se recair na previsão do n.º 3 do mesmo preceito. Na apreciação, quer da legalidade da obtenção das imagens, quer da sua divulgação, há que ponderar que a restrição ao direito de imagem, por contender com direitos pessoais, constitucional e legalmente consagrados, como é próprio do regime dos direitos, liberdades e garantias, além de ter que estar expressamente admitida ou imposta, tem que visar salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, ser apta para esse efeito, e limitar-se à medida necessária para o alcançar, sem aniquilar o direito protegido em causa. Acresce, que a salvaguarda do direito pessoal à imagem, nas circunstâncias dos autos, surge em confronto com o direito à informação, liberdade de expressão e de imprensa, que assiste às RR., e que nas sociedades actuais assume papel determinante na formação da opinião pública esclarecida [cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2019, citado na decisão recorrida (proc. n.º 21503/17.2T8LSB.L1-8), disponível em www.dgsi.pt], pelo que só com a adequada ponderação destes dois direitos em confronto, em face dos concretos factos apurados, se poderá concluir, ou não, pela violação do direito à imagem do A. e pela eventual responsabilização civil das RR. pelos danos causados. Em síntese, tendo o A. alegado, no essencial, a violação do seu direito à imagem com a recolha e divulgação das imagens captadas por telemóvel e câmaras de vídeo vigilância do centro comercial onde ocorreram os factos retratados, com relevância criminal, e as consequências que para si alegadamente resultaram com essa divulgação televisiva e num jornal detidos pelas RR., a apreciação da pretensão formulada demanda um juízo de ponderação dos interesses/direitos em confronto, que passa pela integração jurídica dos factos em causa e pela análise normativa relativa à protecção do direito à imagem e à liberdade de informação e de expressão, que não se coaduna com a simples apreciação de mérito em sede de despacho liminar. Neste contexto, não se pode concluir que a tese subjacente à decisão recorrida – da qual resulta a legitimação liminar da publicação/divulgação das imagens recolhidas, apenas porque resultam de factos praticados pelo próprio A., em local público, e terem vindo a ser utilizadas como meio de prova no âmbito do processo crime em que foi condenado –, seja a única atendível e que conduza à manifesta improcedência da petição, com o consequente indeferimento liminar. E não se argumente que o A. se baseou em considerações genéricas, não concretizando os factos violadores do direito invocado nem dos danos causados, porquanto os factos integradores da causa de pedir encontram-se minimamente indicados, e a deficiente concretização dos factos que integram a causa de pedir sempre será possível de complementar com o convite ao aperfeiçoamento, como previsto no artigo 590º, n.º 4, do Código de Processo Civil. 7. Deste modo, foi prematura a apreciação liminar do mérito da causa, pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida, procedendo a apelação [porque com a mesma se pretendia a revogação do despacho de indeferimento liminar, o que sucedeu]. Custas a cargo da Apelada que contra-alegou (cfr. artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil). * C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil] (…) * IV – Decisão Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida. Custas a cargo da Apelada que contra-alegou. * Évora, 30 de Outubro de 2025 Francisco Xavier António Fernando Marques da Silva Maria Adelaide Domingos (documento com assinatura electrónica) |