Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
196/18.5T8SRP.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INQUÉRITO JUDICIAL A SOCIEDADE
DIREITOS DOS SÓCIOS
DIREITO À INFORMAÇÃO
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - O direito do sócio requerer inquérito judicial releva, não apenas quanto ao não fornecimento de informações, como, também, em caso de recusa do direito de consulta ou de informação sobre a vida da sociedade, nomeadamente, quando lhe é negado o direito de obter informação sobre um específico assunto respeitante à gestão da sociedade, como sejam, os atos de pessoas ligadas à sociedade, porquanto se trata, de igual modo, de uma faculdade jurídica instrumental do direito à informação, em sentido lato, isto é, do direito do sócio a ser informado da vida e do giro da sociedade.
II - Trata-se, porém, de uma faculdade que conhece limites, nomeadamente, quando for de recear que o sócio utilize a informação para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta, salvo se existir disposição diversa, nesse sentido, no contrato de sociedade.
III - É essencial, por parte do requerente do inquérito social, a satisfação do ónus de explicitar claramente, e com transparência, o esclarecimento que se pretende, e que, embora validamente pedido, não foi veiculado; não podendo ter-se por operacionais pedidos de informação vagos, confusos ou indeterminados.
IV – Não cumpre aquele ónus o sócio que pretende uma informação global e indeterminada sobre toda a vida societária, solicitando ao gerente o envio de inúmera documentação da sociedade e sem que indique concretamente os atos em causa, limitando-se a referir genericamente a existência de contratos celebrados pela sociedade, mas cujo objeto não concretiza.
V - A consulta da escrituração, livros ou documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, que pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, bem como usar da faculdade reconhecida pelo artigo 576º do Código Civil, carecendo por isso de fundamento o pedido de envio de tal documentação para o escritório do mandatário da requerente.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB requereu, com invocação do disposto nos artigos 216º e 292º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e no artigo 1048º do Código de Processo Civil (CPC), inquérito judicial à sociedade CC – Agricultura e Pecuária, Lda., pedindo que, na sua procedência, o requerido DD, gerente da sociedade, seja “condenado a prestar as informações e facultar os documentos a que alude o requerimento datado de 25 de Setembro de 2018 e junto como DOC. 3”.
Alegou, em síntese, que é sócia da sociedade requerida possuindo na mesma a participação social correspondente a uma quota com o valor nominal de € 1.000,00 (mil euros), sendo que desde inícios de 2018 tem sido afastada dos destinos da sociedade, não lhe sendo prestada qualquer informação sobre os destinos da mesma, pois não tem sido devidamente convocada para as assembleias gerais da sociedade, da qual as restantes sócias são suas irmãs, tendo apenas acesso aos documentos que são tornados públicos em cumprimento da legislação aplicável.
Mais alegou que em 25.09.2018 interpelou o requerido para este lhe prestar as “informações” constantes da carta de fls. 11 vº a 13 (Doc. 3), sendo que aquele, através do seu mandatário, em 27.11.2018, remeteu à requerente a missiva de fls. 15 vº e 16 (Doc. 6), informando que não prestará a informação solicitada, mas sem que demonstrasse qualquer fundamento que legitime essa recusa.
Na contestação a sociedade e o gerente desta aceitaram apenas como verdadeiro a qualidade de sócia da requerente e a de gerente do requerido, bem como a resposta dada ao pedido de informação solicitada pela requerente através da carta de fls. 11 vº a 13, contrapondo no mais, em resumo, que nunca a requerente foi afastada dos destinos da sociedade, mantendo aquela e as suas irmãs, restantes sócias, até Junho de 2017 um excelente relacionamento familiar, tendo sido a requerente que desde aquela data deixou de falar às irmãs sobre qualquer assunto da sociedade, o mesmo sucedendo com o requerido, que é seu cunhado.
Mais alegaram os requeridos que a requerente sempre foi convocada para as assembleias gerais da sociedade, tendo as respetivas convocatórias sido enviadas para a residência da requerente, a qual com a presente ação pretende obter informação que sirva apenas o seu interesse e não o da sociedade, sendo que o solicitado por aquela na carta de fls. 11 vº a 13, para além de ser quase impossível de fornecer, atento o trabalho e quantidade de documentos que suportam esses factos, constituiu um abuso do direito, sendo por isso legítima a recusa da sociedade requerida em fornecer o solicitado pela requerente na aludida missiva.
Seguidamente, em 05.02.2019, o Senhor Juiz a quo proferiu despacho convidando a requerente a indicar «os concretos pontos de facto que interessa averiguar em sede de inquérito (artigo 1048.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o que é imprescindível para definir o objecto do inquérito, na hipótese de o Tribunal concluir que existe motivo para proceder ao mesmo (artigo 1049.º, n.º 1, do mesmo diploma legal)».
A requerente aceitou o convite e indicou os seguintes “concretos de ponto de facto” para averiguar em sede de inquérito à sociedade:
«A. Da Situação Patrimonial da Sociedade “CC – AGRICULTURA E PECUÁRIA, LDA., NIPC 509764711
16. Verificação do ativo e do passivo da Sociedade;
17. Verificação do volume de negócios atual da sociedade;
18. Informação sobre os clientes da sociedade desde janeiro de 2016 até ao presente;
19. Resultados das vendas desde janeiro de 2016 até ao presente;
20. Informação sobre créditos da Sociedade sobre terceiros;
21. Forma de pagamento das Faturas emitidas desde janeiro de 2016 até ao presente.
22. Informação sobre a entrada do dinheiro correspondente ao aumento de capital social realizado, bem como o destino (investimento) dado ao mesmo.

B. Da Relação da Sociedade Comercial com terceiros e do Planeamento da Atividade Futura da Sociedade Comercial
23. Informação sobre os contratos celebrados entre a sociedade e o Réu DD e/ou com o Sr. José L….
24. Informação sobre contratos de prestação de serviço celebrados com a Sociedade e outras entidades.
25. Informação sobre os concretos contratos de financiamento celebrados com entidades bancárias e financeiras;
26. Informação sobre os contratos de financiamento em vista bem como a justificação da sua necessidade.
27. Informação sobre a posição jurídica da Sociedade na exploração de propriedades agrícolas, nomeadamente a exploração das propriedades “Herdade de C…” e “Herdade do A…”.
28. Informação e documentação sobre as operações de financiamento, novos ou renovados, subscritas desde 1 de janeiro de 2016 até os dias atuais, com entidades financeiras, espanhol ou portuguesas, indicando, se necessário, das garantias fornecidas pelo parceiro, afirmando: pelo menos, a data, quantidade, descrição da operação, as partes envolvidas e garantias prestadas.
29. Informação sobre candidaturas a projetos e subsídios públicos.
30. Informação sobre subsídios públicos atribuídos.
31. Informação sobre todas as ações judiciais pendentes em que a sociedade é parte.
32. Bem como indica as providências que se afiguram convenientes face os factos que interessa averiguar, nomeadamente a entrega dos seguintes documentos:
I. Relatório de contas anuais de 2017.
II. Relatório de gestão de 2017;
III. Plano de atividades para 2018 e 2019;
IV. Cópia das Atas das assembleias gerais de sócios realizadas durante o ano de 2017 e 2018;
V. Mapa de Imobilizado de 2017 e 2018;
VI. Balancete analítico, atualizado;
VII. Balancetes referentes a todo o ano de 2017 e 2018;
VIII. Lista de Clientes;
IX. Lista de vendas desde janeiro de 2016 até ao presente;
X. Lista de Faturas emitidas desde janeiro de 2016 até ao presente;
XI. Lista de cobrança das Faturas emitidas desde janeiro de 2016 até ao presente;
XII. Lista de incobráveis e motivo de incobrabilidade;
XIII. Cópia de comprovativo de pagamento das Faturas emitidas desde janeiro de 2016 até ao presente.
XIV. Lista de entradas e saídas de caixa de 1º de janeiro de 2016 até a data, indicando pelo menos:
a) Quantias de entrada / saída.
b) Descrição do movimento da conta de dinheiro.
c) Indicação da conta bancária de origem e destino dos movimentos de caixa e/ou indicação das pessoas ou empresas de origem e destino dos movimentos de caixa.
d) Cópias dos documentos contendo as entradas e saídas para o parágrafo anterior.
XV. Cópia dos contratos celebrados pela sociedade com o Sr. DD e/ou com o Sr. José L….
XVI. Cópia de quaisquer contratos celebrados pela Sociedade (por exemplo, sem limitação, acordos de transferência de ativos, contrato de prestação de serviços, contratos de cessão de exploração, contratos de fornecimento, etc. ... ...) com seguintes empresas portuguesas:
a) CC – AGRICULTURA E PECUÁRIA, LDA., …
b) EE, LDA., …
c) FF, LDA., …
d) GG SGPS, S.A., …
e) HH, LDA., …
E com as seguintes empresas espanholas:
f) II, SL,
g) JJ SL,
h) KK SL,
i) LL, SL
j) bem como qualquer contrato celebrado com outras sociedades ou pessoas, em especial relação com os restantes sócios, nomeadamente, cônjuges ou pessoas ligadas por laços de parentesco, direta ou consanguinidade ou afinidade garantia até o terceiro grau dos sócios ou acionistas e gerentes.
XVII. Cópias dos contratos de arrendamento celebrados, em que a sociedade figure como arrendatária, senhoria ou qualquer outra posição;
XVIII. Cópias de contratos de qualquer natureza relativos ao funcionamento das propriedades “Herdade de C…” e “Herdade do A…” atualmente em vigor.
XIX. Cópia de todos os contratos celebrados com instituições bancárias e atualmente em vigor;
XX. Cópias de contratos de qualquer natureza relativos à exploração de qualquer propriedade atualmente em vigor».
Responderam os requeridos, concluindo pela improcedência da pretensão da requerente e que esta, se assim entender, «requeira a realização de uma assembleia geral da ré para esclarecer e lhe serem prestados todos os elementos e tudo o mais que lhe aprouver».
Foi de seguida proferida decisão em cujo dispositivo se consignou:
«Nestes termos, considero inexistir motivo para proceder a inquérito e indefiro o pedido de prestação de informações/ documentos formulado pela autora.
Custas da acção pela autora».
Inconformada, a requerente apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«I. Vem o presente Recurso de Apelação interposto da Sentença de fls. que considerou inexistir motivo para proceder a inquérito judicial à sociedade, e indeferiu o pedido de prestação de informações/documentos formulado pela Autora, ora Apelante.
II. A Autora, aqui Apelante, é sócia da sociedade comercial, ora Recorrida, desde 25/02/2013, possuindo na mesma a participação social correspondente a uma quota com o valor nominal de € 1.000,00 (mil euros).
III. Desde o início de 2018 que a Apelante tem sido afastada dos destinos da sociedade em que possui a referida participação de capital, não lhe sendo prestada qualquer informação sobre os destinos da mesma.
IV. Em face do exposto, a Apelante, no exercício do seu direito à informação sobre o estado, destino e estratégia de gestão da sociedade Apelada interpelou em 25/09/2018 o Apelado para este lhe prestar diversas informações.
V. Sucede que o Apelado recusou-se prestar as informações solicitadas, não alegando nem demonstrando qualquer fundamento que legitime a posição assumida.
VI. Em consequência do impedimento ilícito ao exercício do direito de informação da aqui Recorrente, outra alternativa não restou à Autora senão lançar mão da ação especial de inquérito judicial à sociedade da qual é sócia.
VII. Com o devido respeito, no que se refere ao inquérito judicial nos termos peticionados pela Autora, andou mal o Tribunal a quo ao considerar que “(…) manifesto é, no caso vertente, que não há motivos para proceder a inquérito (…)”.
VIII. Por outro lado, no que se refere à prestação das informações solicitadas pela Autora, ora Apelante, andou mal o Tribunal a quo ao pugnar pelo entendimento de que a “a missiva em questão não é um pedido de informação por escrito, (…) é, na verdade, uma interpelação com vista a remessa de toda a documentação de que, em abstraio, se pode equacionar quanto à vida de uma sociedade, pedindo-lhe, na prática, que exponha ao sócio todos os dados da sua atividade, de forma indiscriminada, o que, evidentemente, não se comporta no direito à informação do sócio.”
IX. Entendimento este que merece a discórdia da Apelante e que motiva o presente recurso, pois resulta de uma interpretação dos artigos 214.º, 215.º e 216.º do Código das Sociedades Comerciais, violadora dos princípios gerais de Direito, pelo que nessa medida se impugna.
X. A Apelante, fazendo uso do meio legal previsto no n.º 1 do artigo 214.º do CSC, efetuou o pedido de informação à sociedade Recorrida, o qual foi perentoriamente negado, vendo, assim, um dos seus direitos sociais ser lesado e afetado de forma irreversível.
XI. Com efeito, considerando a recusa injustificada ao pedido de informações que da ora Apelante, a mesma interpôs a presente ação, no desiderato de se proceder a inquérito judicial à sociedade e, consequentemente, obter as informações que se afiguram como imprescindíveis para o exercício dos seus direitos sociais.
XII. Consequentemente, no caso em apreço, estão reunidos os requisitos formais e substanciais para a utilização do inquérito judicial, mecanismo jurídico de defesa do status socii: a Apelante é detentora de uma participação social na referida sociedade e solicitou, por escrito, ao gerente da sociedade recorrida - órgão competente e capaz para o efeito - que lhe fossem prestadas informações acerca de diversos assuntos sociais, o que não logrou alcançar.
XIII. Porém, as informações solicitadas não foram prestadas, não tendo a gerência logrado, sequer, alegar e demonstrar qualquer fundamento legal que legitime a posição assumida, pelo que é forçoso concluir que, nos presentes autos, a recusa da prestação das informações solicitadas pela Apelante é ilícita.
XIV. O que confere à aqui Apelante a prerrogativa de requerer o inquérito judicial à sociedade na qual detém a sua participação social, sendo este o meio processual adequado, nos termos das disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 216.º do CSC e artigo 1048.º do CPC.
XV. Porém, entendeu o Tribunal a quo que “(…) é manifesto inexistir fundamento para proceder a inquérito, posto que os pontos indicados são, em suma, informações/documentos pretendidos obter”.
XVI. Ora, uma tal decisão como a que ora se impugna colide com os princípios decorrentes da conjugação dos artigos 214.º, 215.º e 216.º do CSC, na medida em que, perante as várias soluções de direito, o caso vertente impõe o inquérito judicial à sociedade em apreço.
XVII. Na qualidade de sócia, a Apelante tem direito a obter informações sobre a vida da sociedade, conforme dispõe o artigo 21.º, n.º 1, al. c) do CSC, disciplinando tal direito, no que às sociedades por quotas diz respeito, os artigos 214.º a 216.º do CSC.
XVIII. Na verdade, o direito à informação do titular da participação social tem a natureza de direito subjetivo, de que é credor o sócio, consubstanciando-se na faculdade de obter informações sobre a vida da sociedade nos termos da lei e dos estatutos sociais, e de que é devedor a própria sociedade.
XIX. Com efeito, a informação é uma condição imprescindível no exercício societário, devendo o sócio agir de forma informada e esclarecida.
XX. Em termos gerais, o direito à informação pode ser perspetivado num sentido amplo, abrangendo o direito dos sócios a obterem dos gerentes informação verdadeira, completa e elucidativa, o direito à consulta de livros e documentos e o direito à inspeção de bens sociais, ou, num sentido estrito, enquanto direito do sócio a haver, a seu requerimento, informação prestada pelos gerentes.
XXI. Ora, no que respeita ao direito à informação em sentido estrito, o pedido de informação pode ter por objeto qualquer assunto referente à gestão da sociedade, abrangendo todos os eventos que compõem a vida social.
XXII. Na verdade, a vida social é composta não só pelos atos do órgão de gerência, como por factos materiais, atas de pessoas ligadas à sociedade por laços contratuais, e, ainda, atas de terceiros com repercussões diretas na sociedade.
XXIII. De acordo com Raúl Ventura, in Sociedades por Quotas, vol. I, 2ª edição, a informação em sentido estrito deve ser verdadeira, completa e elucidativa, pretendendo-se “que o gerente forneça aos sócios o real conhecimento de um facto da vida social”.
XXIV. No caso vertente, as informações solicitadas pela Apelante e documentos de suporte estão direta e exclusivamente relacionadas com a gestão da sociedade na qual detém a sua participação social.
XXV. Na verdade, as referidas informações e documentação de suporte consubstanciam atas praticados pela gerência da sociedade recorrida, com direta repercussão no dia-a-dia da referida sociedade e, consequentemente, no destino que o Apelado e restantes sócias deram à sociedade.
XXVI. As informações solicitadas pela aqui Apelante não são despiciendas, nem se destinam a utilização contrária aos fins da sociedade, sendo relevantes desde logo para a fiscalização dos atos de gerência que hajam sido praticados.
XXVII. Resulta indubitável que as informações solicitadas são imprescindíveis para o exercício dos direitos sociais que a aqui Apelante pretende exercer, nomeadamente para o correto exercício do seu direito de voto.
XXVIII. Face o exposto, não restam dúvidas que as informações e documentação de suporte aqui em crise prendem-se com assuntos relacionados com a gestão da sociedade, sendo que apenas através da disponibilização da documentação de suporte é possível obter as informações solicitadas.
XXIX. A incorreção da decisão que ora se impugna reside no conteúdo do direito à informação do sócio, com influência direta na apreciação da fundamentação de direito nos presentes autos, pelo que deverá considerar-se que as informações e documentação de suporte solicitadas enquadram-se no âmbito do direito à informação do sócio.
XXX. Sem conceder, considerando que o presente processo se enquadra nos processos de jurisdição voluntária, no caso de o Tribunal a quo entender que a Apelada formulou erradamente o seu pedido de informação, imperativo era que outra tivesse sido a sua decisão face aos interesses em causa.
XXXI. Na verdade, verifica-se que a ora Apelante lograr demonstrar nos presentes autos a necessidade do pedido da informação em crise.
XXXII. Bem como a abstração da informação solicitada, atento o seu afastamento, intencional, da vida da sociedade, promovido pelo gerente e restantes sócios.
XXXIII. Para tanto, a Apelante alegou e demonstrou nos presentes autos que é sócia, em conjunto com as suas irmãs, da sociedade aqui Apelada e outras sociedades a saber: CC, Lda., EE Lda., GG Sgps, S.A., HH, Lda., II, SL., JJ, SL., e LL, SL.
XXXIV. E ainda que, desde o início do ano de 2018, a Apelante não mais recebeu qualquer informação sobre o estado atual da sociedade, nem tão pouco lhe foi dada a legítima possibilidade de se inteirar da mesma.
XXXV. Mais alegou e demonstrou o fundado receio da Apelante de que possam ter sido praticados atos que a afetem na sua qualidade de sócia, bem como as necessárias repercussões na esfera jurídica da sociedade e da Apelante, nomeadamente a eventual utilização indevida da sua assinatura e identidade pelo Apelado, bem como a eventual delapidação de património ou atividade da sociedade comercial em questão.
XXXVI. Neste sentido, as informações solicitadas pela Apelante nos presentes autos estão, no essencial, relacionadas com a situação patrimonial da sociedade, com a relação da sociedade com terceiros e ainda do planeamento da atividade futura.
XXXVII. Face o exposto, atenta a imprescindibilidade da informação como condição prévia do exercício dos direitos sociais da aqui Apelante e sendo o inquérito judicial à sociedade o instrumento jurídico legalmente previsto para o efeito, afigura-se premente que a informação solicitada pela Apelante nos presentes autos, lhe seja facultada, de forma verdadeira, completa e elucidativa, ao abrigo do disposto no artigo 214.º e 216.º do CSC e do artigo 1048.º e seguintes do CPC.
ASSIM DECIDINDO, SENHORES JUIZES DESEMBARGADORES, REVOGANDO A SENTENÇA RECORRIDA, FARÃO VOSSAS EXCELÊCIAS, UMA VEZ MAIS, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA

Os requeridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir consiste em saber se é admissível o inquérito judicial à sociedade recorrida.

III - FUNDAMENTAÇÃO
Os factos e a dinâmica processual a considerar para a decisão do recurso, são os que constam do relatório que antecede, havendo ainda a considerar o seguinte:
- Na carta datada de 25.09.2018 de fls. 11 vº a 13, subscrita pelo mandatário da requerente e dirigida ao requerido foi solicitado a este «que no prazo máximo de 15 (quinze) dias remeta a informação, documentação solicitada por correio registado para a morada do mandatário da sócia BB, …».

O DIREITO
Estatui o artigo 21º, nº 1, alínea c), do CSC que todo o sócio tem direito a obter informações sobre a vida da sociedade, nos temos da lei (vd. os artigos 181º, 214º-216º, 288º-292º, 474º, 478º, 480º) e do contrato social.
O direito à informação ocorre, em três níveis distintos, ou seja, a informação permanente, que é prestada, a cada momento, a informação intercalar, que é prestada como preparatória de cada reunião da assembleia, e a informação em assembleia, que é prestada, na própria reunião, como elemento instrutório do debate[1].
No âmbito das sociedades por quotas, rege o artigo 214º, do CSC, que, no seu nº 1, estipula que «os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade e bem assim facultar-lhe na sede social a consulta da respectiva escrituração, livros e documentos. A informação será dada por escrito, se assim for solicitado».
Na verdade, os sócios necessitam de estar informados sobre a vida da sociedade, de modo a poderem influir nela, disso podendo depender, em boa parte, a realização do seu interesse em participar nos lucros, razão pela qual o direito à informação é um direito social autónomo, mais que um direito instrumental em relação a outros direitos, designadamente, o direito aos lucros, o direito de voto, o direito de impugnação das deliberações sociais e o direito de ação de responsabilidade contra os administradores[2].
Prescreve, por outro lado, o nº 2 do artigo 214º do CSC, que «o direito à informação pode ser regulamentado no contrato de sociedade, contanto que não seja impedido o seu exercício efectivo ou injustificadamente limitado o seu âmbito; designadamente, não pode ser excluído esse direito quando, para o seu exercício, for invocada suspeita de práticas susceptíveis de fazerem incorrer o seu autor em responsabilidade, nos termos da lei, ou quando a consulta tiver por fim julgar da exactidão dos documentos de prestação de contas ou habilitar o sócio a votar em assembleia geral já convocada”.
A isto acresce que «[o] direito à informação dos sócios pode, segundo a lei, manifestar-se por três modos: como direito à informação em sentido estrito – poder de o sócio fazer perguntas à sociedade (ao órgão de administração, normalmente) sobre a vida social e de exigir que ela responda verdadeira, completa e elucidativamente; como direito de consulta – poder de o sócio exigir à sociedade (ao órgão de administração) a exibição dos livros de escrituração e de outros documentos sociais para serem examinados; como direito de inspecção – poder de o sócio exigir à sociedade (ao órgão de administração) o necessário para que vistorie os bens sociais»[3].
E, quando a recusa do direito à informação seja ilícita, ou o requerente tiver recebido informação, presumivelmente, falsa, incompleta ou não elucidativa, o sócio pode solicitar a realização de um inquérito judicial à sociedade por quotas, nos termos dos artigos 216º do CSC e 1048º a 1052º do CPC.
Com efeito, o direito de requerer inquérito judicial releva, não apenas para o não fornecimento de informações, como, também, para a recusa do direito de consulta ou de informação, porquanto se trata, de igual modo, de uma faculdade jurídica instrumental do direito à informação, «lato sensu», isto é, do direito do sócio a ser informado da vida e do giro da sociedade[4].
No entanto, esta faculdade jurídico-processual conhece os limites referidos no nº 1 do artigo 215º do CSC, isto é, quando for de recear que o sócio utilize a informação para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta.
Por outro lado, o sócio pode requerer a realização de inquérito judicial quando lhe tenha sido recusada a informação sobre a vida da sociedade, nomeadamente, quando lhe é negado o direito de obter informação sobre um específico assunto respeitante à gestão da sociedade, como sejam, os atos de pessoas ligadas à sociedade, no sentido de obter informação sobre um ato específico da vida social[5].
In casu, importa registar que a requerente, na carta que o seu mandatário enviou ao requerido em 25.09.2018, mais do que obter informação sobre um específico assunto referente à gestão da sociedade, pretende uma informação global e indeterminada sobre a vida societária, não indicando concretamente os atos em causa, referindo a existência de “contratos celebrados entre a sociedade e o réu (…) e/ou com o Sr. José L…”, “contratos de prestação de serviço celebrados com a sociedade e outras entidades”, “contratos de financiamento celebrados com entidades bancárias e financeiras”, etc., cujo objeto não identifica minimamente.
Ora, é essencial, por parte do requerente do inquérito social, a satisfação do ónus de explicitar claramente, e com transparência, o esclarecimento que se pretende, e que, embora validamente pedido, não foi veiculado; não podendo ter-se por operacionais pedidos de informação vagos, confusos ou indeterminados[6].
Por outro lado, pretende a requerente que lhe seja fornecida vasta documentação, nomeadamente o relatório de contas anuais de 2017, o relatório de gestão de 2017, o plano de atividade para 2018 e 2019, cópia das atas das assembleias gerias de sócios realizadas durante o ano de 2017 e 2018, mapa de imobilizado de 2017 e 2018, balancete analítico atualizado, etc….
Na aludida carta de 25.09.2018, foi solicitado ao requerido que, no prazo máximo de 15 dias, remetesse toda a documentação solicitada por correio registado para a morada do seu mandatário, o que além de se afigurar totalmente desprovido de razoabilidade, dado o elevado número de documentos em causa, carece de fundamento legal, sabido que “[a] consulta da escrituração, livros ou documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, que pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, bem como usar da faculdade reconhecida pelo artigo 576 do Código Civil” – artigo 214º, nº 1, do CSC.
Fazemos, assim, nossas as seguintes palavras da decisão recorrida:
«Consabidamente o direito do sócio à informação, - artigo 214.º do Código das Sociedades Comerciais -, não é um direito ilimitado e desde logo a consulta da escrituração, livros e documentos da sociedade faz-se no local da sede social, não estando a sociedade sequer obrigada, nos termos do citado normativo, a remeter ao sócio cópia da sua escrituração.
Portanto neste tocante nem sequer se pode falar em recusa.
No que refere à «informação dada por escrito», igualmente prevista no citado normativo, o que está em causa é, desde logo, uma informação (e não cópias de documentos), portanto uma informação sobre um assunto da vida da sociedade em específico, pressupondo-se que a uma solicitação contextualizada ou circunstanciada do sócio, corresponderá uma resposta igualmente contextualizada ou circunstanciadas da sociedade; só assim se pode aferir se existe direito à informação.
A missiva em questão não é um pedido de informação por escrito, com o referido sentido e alcance - e, portanto, nem se pode falar que à sociedade tenha sido solicitada uma determinada informação – é, na verdade, uma interpelação com vista a remessa de toda a documentação de que, em abstracto, se pode equacionar quanto à vida de uma sociedade, pedindo-lhe, na prática, que exponha ao sócio todos os dados da sua actividade, de forma indiscriminada, o que, evidentemente, não se comporta no direito à informação do sócio.
Portanto, manifestamente, não apenas não há motivo para proceder a inquérito, como também não pode o tribunal atender ao pedido de prestação de informações/documentos».
Por último, alegou a requerente no artigo 7º da petição inicial que apenas tomou conhecimento de que o capital social foi aumentado em 04.07.2018, através de deliberação social tomada em assembleia geral para a qual não foi convocada, nem teve conhecimento.
Trata-se de facto contraditado pelos requeridos, que afirmam ter sempre convocado a requerente para as assembleias gerais da sociedade[7]. Seja como for, como a própria requerente reconhece, esta questão será discutida no “processo judicial adequado”.
Improcedem, assim, na sua essência, as conclusões constantes das alegações da apelação da requerente.
Vencida no recurso, suportará a recorrente as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

Sumário:
I - O direito do sócio requerer inquérito judicial releva, não apenas quanto ao não fornecimento de informações, como, também, em caso de recusa do direito de consulta ou de informação sobre a vida da sociedade, nomeadamente, quando lhe é negado o direito de obter informação sobre um específico assunto respeitante à gestão da sociedade, como sejam, os atos de pessoas ligadas à sociedade, porquanto se trata, de igual modo, de uma faculdade jurídica instrumental do direito à informação, em sentido lato, isto é, do direito do sócio a ser informado da vida e do giro da sociedade.
II - Trata-se, porém, de uma faculdade que conhece limites, nomeadamente, quando for de recear que o sócio utilize a informação para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta, salvo se existir disposição diversa, nesse sentido, no contrato de sociedade.
III - É essencial, por parte do requerente do inquérito social, a satisfação do ónus de explicitar claramente, e com transparência, o esclarecimento que se pretende, e que, embora validamente pedido, não foi veiculado; não podendo ter-se por operacionais pedidos de informação vagos, confusos ou indeterminados.
IV – Não cumpre aquele ónus o sócio que pretende uma informação global e indeterminada sobre toda a vida societária, solicitando ao gerente o envio de inúmera documentação da sociedade e sem que indique concretamente os atos em causa, limitando-se a referir genericamente a existência de contratos celebrados pela sociedade, mas cujo objeto não concretiza.
V - A consulta da escrituração, livros ou documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, que pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, bem como usar da faculdade reconhecida pelo artigo 576º do Código Civil, carecendo por isso de fundamento o pedido de envio de tal documentação para o escritório do mandatário da requerente.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Évora, 12 de Junho de 2019
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4ª edição, 2001, p. 230.
[2] Luís Brito Correia, Direito Comercial, 2º volume, AAFDL, 1987, p. 317.
[3] Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume II, 5ª edição, Almedina, p. 234. Há quem refira ainda o direito de requerer inquérito judicial, como uma quarta vertente em que se manifesta o direito à informação (cfr. Remédio Marques, O Inquérito Judicial, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume III, Almedina, 2012, pp. 312 e 313, citado no Acórdão do STJ de 29.10.2013, proc. 3829/11.0TBVCT.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 29.10.2013, citado na nota anterior.
[5] Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2ª reimpressão da 2ª edição de 1989, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 1999, pp. 279 a 306.
[6] Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, Vol. I, p. 679.
[7] Os requeridos, no final da contestação, solicitaram autorização para apresentar na secretaria do Tribunal os documentos respetivos que se encontram fechados e selados.