Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1053/17.8T8BJA-A.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: INTERDIÇÃO
REVISÃO OFICIOSA
MEDIDA
MAIOR ACOMPANHADO
Data do Acordão: 07/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
Nos processos de interdição, com decisão transitada em julgado antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, a medida de acompanhamento é revista oficiosamente decorridos 5 anos desde a data da entrada em vigor desta lei, e pode ser revista a todo o tempo, a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, desde que seja alegada a modificação das causas que a justificaram ou que a evolução do beneficiário o justifique.
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação n.º 1053/17.8T8BJA-A.E1
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. AA, interpôs recurso do despacho de 11/03/2025, que indeferiu o requerimento apresentado, em 06/03/2025, pelo seu defensor nomeado nos autos, em que promovia a revisão oficiosa periódica da medida decretada, por já ter decorrido o período máximo de cinco anos previsto na norma do artigo 155º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto.

2. No despacho recorrido indeferiu-se a pretensão do ora recorrente, com os seguintes fundamentos:
«Vem o Defensor Oficioso de AA, declarado interdito por anomalia psíquica, por sentença de 18/05/2018, alegar:
«promove que se proceda à revisão periódica das medidas de acompanhamento a que se encontra sujeito, nos termos do artº. 155º. da Lei 49/2018 de 14 de Agosto, em vigor desde 10 de Fevereiro de 2019, uma vez que o período mínimo de 5 anos, transitou em de Setembro de 2018.
Nestas condições e uma vez que já se encontra ultrapassado o período temporal anteriormente fixado, requer-se a V.Exª. que o acompanhado seja convocado para exame pericial actualizado e/ou a notificação do acompanhante para vir aos autos informar se a sua condição física/mental se mantém ou sofreu alguma alteração, bem como a eventual ocorrência de algum fato relevante na sua vida que possa determinar a revisão ou modificação das medidas de acompanhamento.
Requer-se ainda que o acompanhado seja notificado para audição pessoal e directa, nos termos do artº. 904º e 897º. nº. 2 do C.P.C., como tem sido entendido pela jurisprudência, citam-se a título exemplificativo os seguintes acórdãos (disponíveis em www.dgsi.pt ):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17 de Outubro de 2024, Relator Fernando Barroso Cabanelas;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de Dezembro de 2024, Relator(a) Alexandra Rocha;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de Dezembro de 2024, Relator(a) Carla Matos;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6 de Fevereiro de 2025, Relator Nuno Gonçalves.»
Cumpre apreciar.
Dispõe o artigo 26.º da citada lei, sob a epígrafe “Aplicação no tempo”:
1 - A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.
2 - O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes.
3 - Aos actos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática.
4 - Às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação.
5 - O juiz pode autorizar a prática de actos pessoais, directa e livremente, mediante requerimento justificado.
6 - Às inabilitações decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, cabendo ao acompanhante autorizar os actos antes submetidos à aprovação do curador.
7 - Os tutores e curadores nomeados antes da entrada em vigor da presente lei passam a acompanhantes, aplicando-se-lhes o regime adoptado por esta lei.
8 - Os acompanhamentos resultantes dos n.ºs 4 a 6 são revistos a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, à luz do regime actual. (sublinhado nosso)
Ora, da Lei que criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966, resulta que as interdições que tenham sido decretadas antes da sua entrada em vigor se aplica o regime ora introduzido.
Porém, a revisão obrigatória, determinada no artigo 155.º do Código Civil, onde se prevê que o tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos, não é aplicável às interdições/inabilitações decretadas antes da entrada em vigor.
Na verdade, como dispõe o referido artigo 26.º tal revisão só ocorrerá a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público se e quando devidamente justificada e concretizados os seus fundamentos.
Acresce que a jurisprudência citada pelo Ilustre Defensor oficioso nada refere quanto à obrigatoriedade da revisão oficiosa das interdições/inabilitações decretadas antes da entrada em vigor do regime do maior acompanhado, mas antes sobre a obrigatoriedade da sua audição quando ocorra a revisão da medida de acompanhamento decretada.
Atento o exposto, indefere-se o requerido.»

3. O recorrente pretende a alteração da decisão com os fundamentos que condensou nas seguintes conclusões:
1 – Foi proferida sentença que decretou a interdição do Acompanhado, em 18 de Maio de 2018 e trânsito em julgado em 3 de Setembro de 2018;
2 – Actualmente já se encontra ultrapassado o período temporal de 5 anos, desde a entrada em vigor da Lei nº. 49/2018 de 14 de Agosto, ou seja desde 10 de Fevereiro de 2019.
3 – Na realidade o douto despacho do tribunal “a quo” no sentido de indeferir o requerimento, em que invoca sem observância do contraditório, de forma arbitrária e sem fundamento que:
“… a revisão obrigatória, determinada no artigo 155º. do Código Civil, onde se prevê que o tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo de cinco em cinco anos, não é aplicável às interdições/inabilitações antes da entrada em vigor.”
Salvo o devido respeito e melhor opinião, não pode deixar de ser considerado uma decisão surpresa.
4 – Uma vez que é pacífico na doutrina e na jurisprudência que o artigo 155º. do Código Civil – Lei 49/2018, de 14 de Agosto, se aplica não só ao processo de maior acompanhado, mas também a todos os processos de interdição/inabilitação.
5 – No caso concreto das interdições/inabilitações, o artigo 155º. (Revisão periódica) entrou em vigor em 10 de Fevereiro de 2024 (decorridos cinco anos desde 10 de Fevereiro de 2019).
6 – Na realidade como foi reconhecido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Relator(a) Eugénia Cunha, de 2 de Dezembro de 2019, disponível em www.dgsi.pt:
(…)
7 – Não existe margem para dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência que o artº. 155º. deve ser aplicado (oficiosamente) aos processos de interdição/inabilitação, contrariamente ao decidido no douto despacho do tribunal “a quo”.
8 – Pode citar-se a título meramente exemplificativo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13 de Maio de 2021, Relator(a) Margarida Almeida Fernandes, disponível em www.dgsi.pt.
9 - No referido Acórdão constam as posições doutrinárias de:
a) Miguel Teixeira de Sousa
b) Nuno Lopes Ribeiro
10 – Para Miguel Teixeira de Sousa, no âmbito de acção de formação contínua no Centro de Estudos Judiciários subordinado ao tema “O Novo Regime do Maior Acompanhado” realizado em Fevereiro de 2019, conforme e-book respectivo: http://www.cej.mj.pt/recursos/ebooks/civil/eb _Regime_Maior_Acompanhado.pdf. p.59-60, pronunciou-se no sentido do disposto no artº. 155º. C.C . “ser de aplicação imediata a todas as interdições e inabilitações convertidas, mas o prazo nele estabelecido só se conta a partir da entrada em vigor do regime de acompanhamento de maiores aplicando extensivamente o disposto no artº. 297º. nº. 1 do C.C.”
11 – Conclui que com esta interpretação “evita-se que, de um momento para o outro, todas as antigas interdições e inabilitações se encontrem em situação de terem de ser revistas.”
12 – Nuno Lopes Ribeiro, p. 108-109, defendeu a revisão oficiosa de todos os processos de interdição decididos. (…)
13 – E o referido Acórdão conclui que:
“… uma vez que o artº. 26º.nº. 4 e 8 da Lei nº. 49/2018 alude apenas à revisão a pedido há que recorrer ao regime geral na aplicação do disposto no artº. 155º. do C.C.. Assim, não obstante a letra do artº. 297º. do C.C. prever apenas a sucessão de leis que prevêem diferentes prazos, a doutrina tem defendido que, no seu nº. 1, a letra da lei, ao não prever a possibilidade da anterior lei não estabelecer qualquer prazo, ficou aquém do seu espírito ou que o legislador disse menos do que queria, pelo que, por interpretação extensiva, aplica o mencionado preceito a tal situação.
Neste sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª. Ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1987,p. 271. Assim, a revisão oficiosa apenas de impõe em 10/02/2024.”
14 – Nestas condições, salvo o devido respeito e melhor opinião, encontram-se verificados todos os requisitos legais para a revisão periódica quinquenal, prevista no artº. 155º. do Código Civil (alteração efectuada pela Lei 49/2018, de 14 de Agosto), que tem natureza oficiosa (cf . António Agostinho Guedes e Marta Monterroso Rosas, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2ª. Edição, UCP, Lisboa, Outubro de 2023, p. 396).
15 – Ao indeferir a revisão periódica (oficiosa), o tribunal “a quo” violou o disposto no artº. 155º. do Código Civil e 891º. nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
16 – E proferiu uma decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório do artigo 3º. nº. 3 do C.P.C., ao arrepio da doutrina e jurisprudência pacíficas, dá origem a uma nulidade da própria decisão (surpresa), por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 615º. nº. 1, alínea d), 666º. nº. 1 e 685º. do C.P.C., uma vez que não foi dada à parte a possibilidade de se pronunciar sobre os fatos e o respectivo enquadramento jurídico, mesmo que adjectivo.
Nestas condições, deve ser revogado o douto despacho, permitindo-se seja efectuada a revisão periódica (oficiosa), nos termos do artº. 155º. da Lei nº. 49/2018, de 14 de Agosto, ordenando-se o prosseguimento dos autos, o acompanhado ser convocado para exame pericial actualizado e/ou a notificação do acompanhante para vir aos autos informar se a sua condição física/mental se mantém ou sofreu alguma alteração, bem como a eventual ocorrência de algum fato relevante na sua vida que possa determinar a revisão ou modificação das medidas de acompanhamento que forem julgadas adequadas à situação actual do beneficiário.
Requer-se ainda que o acompanhado seja notificado para audição pessoal e directa, nos termos do artº. 904º. e 897º.nº. 2, do C.P.C. como tem sido entendido pela jurisprudência.

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir, consiste em saber se a norma do artigo 155º do Código Civil é aplicável aos processos relativos às interdições decretadas antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/08, e se a medida deve ser oficiosamente revista.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Para apreciação do recurso relam as ocorrências processuais mencionadas no relatório, sendo de salientar que:
- Por sentença de 18 de Maio de 2018, proferida pelo Juiz 1 do Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi decretada a interdição de AA, nascido a ../../1981, por anomalia psíquica [cfr. sentença nos autos principais e despacho de rectificação, a que se acedeu electronicamente];
- Esta sentença transitou em julgado em 3 de Setembro de 2018.
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B) – Apreciação do Recurso/O Direito
1. O recorrente discorda da decisão de indeferimento liminar do pedido de revisão da medida de acompanhamento, invocando a nulidade da sentença – por excesso de pronúncia, por a mesma constituir decisão surpresa, visto ter sido proferida em violação do contraditório – e erro de julgamento quanto à interpretação e aplicação do direito.

2. Como concretização prática do princípio constitucional do processo equitativo (artigo 20º, nº 4 da Constituição) e corolário do princípio da igualdade (artigo 13º), o direito ao contraditório traduz-se essencialmente na possibilidade concedida a cada uma das partes de “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (entre muitos outros, cf. o Acórdão n.º 1193/96, disponível em: www.tribunalconstitucional.pt)
O Código de Processo Civil consagra o princípio do contraditório, nos termos tradicionalmente aceites, estipulando no seu artigo 3º que «o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição» (n.º 1), e circunscrevendo a «casos excepcionais previstos na lei a possibilidade de ser adoptada uma providência contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida» (n.º 2).
Com este alcance, o preceito do Código reflecte a estrutura dialéctica e polémica do processo, visando assegurar um direito de resposta a qualquer das partes quanto às posições assumidas no processo pela contraparte e, portanto, em relação a qualquer acto processual (requerimento, alegação ou acto probatório) apresentado pelo outro interveniente.
A reforma de 1996/1997, através do aditamento a esse artigo de um novo comando (n.º 3), mantidos no código actualmente vigente, acentuou a relevância concedida à garantia do contraditório no aspecto relativo ao direito de resposta, impondo ao juiz o «dever de observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório», com a consequência de não lhe ser lícito, «salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Por outro lado, não pode deixar de reconhecer-se que a regra decorrente do citado artigo 3º, n.º 3, que integra um princípio de proibição da decisão surpresa, tem uma função essencialmente programática, conferindo ao juiz, fora dos casos em que a audição da contraparte esteja expressamente prevista, o dever de verificar, em função das circunstâncias do caso, a conveniência de as partes se pronunciarem sobre qualquer questão de direito ou de facto que possa ter relevo para a apreciação e resolução da causa (quanto ao carácter programático da imposição constante do artigo 3º, n.º 3, 1ª parte, do Código de Processo Civil, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pág. 48).
Como salienta Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2ª edição, pág. 9), esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objecto de discussão entes da decisão, sem que o facto de a parte que as não tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade. Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho saneador, sentença, instância de recurso).

3. Não obstante a violação do contraditório constituir nulidade sancionada nos termos previstos no artigo 195º e segs. do Código de Processo Civil, sendo a mesma revelada pela própria sentença, que a incorpora, ao conhecer (de surpresa) questão sem dar oportunidade às partes de sobre ela se pronunciarem, ocorre a decisão em excesso de pronúncia.
De facto, a decisão surpresa não é uma nulidade processual, em si mesma considerada, sujeitas às regras do artigo 195º e segs. do Código de Processo Civil, constituindo, antes, uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, pois o vício da decisão resulta do seu conteúdo, por ser uma decisão que conhece de matéria que, nas circunstâncias em que é proferida, não podia conhecer.

4. No caso em apreço, estamos perante um despacho de indeferimento liminar, o qual só pode ter lugar com fundamentos que, em termos de razoabilidade, determinem a manifesta improcedência do pedido ou a verificação evidente de excepções dilatórias insupríveis e de conhecimento oficioso, que tornam inútil qualquer instrução e discussão posterior (cfr. artigo 590º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o que torna desnecessária a audição a audição prévia da parte [sobre a problemática do indeferimento liminar e do prévio cumprimento do contraditório e da decisão surpresa, veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/05/2021 (proc. n.º 82020/19.9YIPRT.L1-7), disponível, como os demais citados, em www.dgsi.pt, com várias referência doutrinais e jurisprudenciais].
Porém, uma coisa é saber se a petição deve ser liminarmente indeferida, outra, diferente, é saber se, antes, se deve cumprir o contraditório quanto aos fundamentos conducentes ao indeferimento, que é, no fundo, o que o recorrente invoca.
E, no caso, afigura-se-nos inútil a apreciação da concreta nulidade em causa, a qual, em face do alegado, se fundamenta na imprevisibilidade da solução jurídica adoptada pelo tribunal a quo “ao arrepio da doutrina e jurisprudência”, o que sempre nos levaria à apreciação do mérito da decisão, [sendo certo que a ainda que se concluísse pela verificação da nulidade sempre teria que se conhecer do objecto da apelação, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 665º do Código de Processo Civil], e, na situação em apreço, entende-se que não havia fundamento para indeferimento liminar. Acresce que, ainda que o Tribunal a quo entendesse que só era admissível a revisão da medida de acompanhamento decretada se fossem invocados motivos justificativos para tal, em face dos interesses pessoais em apreciação e a natureza do processo, ao qual são aplicáveis, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária, entre outros, no que respeita aos poderes do juiz (cfr. artigo 891º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sempre se imporia o convite ao aperfeiçoamento e não o indeferimento liminar do requerimento inicial.
Vejamos, então, a questão:

5. A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, introduziu alterações significativas no regime das incapacidades, tendo revogado os institutos da interdição e da inabilitação e criado, em alternativa, o regime jurídico do maior acompanhado.
Assim, como se passou a prever no artigo 138º do Código Civil (na redacção da citada Lei nº 49/2018) que “[o] maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
De acordo com o novo regime, já não se trata de saber se uma determinada pessoa tem capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica, mas de saber quais são os tipos de apoio necessários para aquela pessoa exercer a sua capacidade jurídica, pretendendo-se proteger a pessoa, mas sem a incapacitar (neste sentido, Pinto Monteiro, O Código Civil Português entre o elogio do passado e um olhar sobre o futuro, e Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, p. 40).
Em face do novo regime, as medidas de acompanhamento regem-se por uma ideia de subsidiariedade – isto é, só têm lugar quando as finalidades que, com elas se prosseguem, não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e de assistência (cf. Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados. cit., p. 51) –, e da necessidade (cf. artigo 145º, n.º 1 do Código Civil).
E no artigo 155º do Código Civil, na redacção dada pela referida lei, estabeleceu-se a obrigatoriedade de revisão periódica da medida de acompanhamento, estipulando-se que: “O tribunal revê as medidas de acompanhamento de acordo com a periocidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.”
E no que se reporta à aplicação deste regime aos anteriores processos de interdição e inabilitação estabeleceu-se no artigo 26º da citada Lei n.º 49/2018, que:
«1 - A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.
2 - O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes.
3 - Aos actos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática.
4 - Às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação.
5 - O juiz pode autorizar a prática de actos pessoais, directa e livremente, mediante requerimento justificado.
6 - Às inabilitações decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, cabendo ao acompanhante autorizar os actos antes submetidos à aprovação do curador.
7 - Os tutores e curadores nomeados antes da entrada em vigor da presente lei passam a acompanhantes, aplicando-se-lhes o regime adoptado por esta lei.
8 - Os acompanhamentos resultantes dos n.ºs 4 a 6 são revistos a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, à luz do regime actual.» (destaque nosso)

6. A questão que se coloca nos autos, consiste em saber se, em face desta norma, concretamente do n.º 8 do artigo 26º, a revisão das medidas anteriormente decretadas nos processos de interdição decididos ao abrigo do regime revogado pela nova lei, só é possível a requerimento dos indicados na referida norma, com indicação dos fundamentos que a justificam, como se entendeu a decisão recorrida, e não periódica e oficiosamente, como previsto no artigo 155º do Código Civil.
Ora, esta questão já foi apreciada e decidida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15/05/2021 (proc. n.º 97/14.6T8BCL-B.G1), onde se concluiu:
«I- A Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, que instituiu o regime do maior acompanhado, introduziu uma alteração de paradigma uma vez que se passou de um anterior sistema que assentava em dois institutos - interdição e inabilitação – para um sistema que criou a figura maleável do maior acompanhado, com um conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, das capacidades e possibilidades da pessoa em concreto.
II- À interdição decretada antes da entrada em vigor da referida lei aplica-se este regime convertendo-se aquela decisão em medida de acompanhamento segundo o regime de representação geral.
III- Esta medida de acompanhamento é revista oficiosamente decorridos 5 anos desde a data da entrada em vigor da mencionada lei, i.e., em 10/02/2024, mas pode ser revista a todo o tempo a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público desde que seja alegada a modificação das causas que a justificaram ou que a evolução do beneficiário o justifique. (…)» (sublinhado nosso)
Como se escreveu neste aresto:
«Deste preceito resulta:
- a aplicação imediata da lei aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, recorrendo o julgador aos seus poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias; e
- quanto às interdições e inabilitações decretadas antes da entrada em vigor deste diploma aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos, no primeiro caso, ao acompanhante poderes gerais de representação podendo o juiz autorizar a prática de actos pessoais, directa e livremente, mediante requerimento justificado e, no segundo caso, cabendo ao acompanhante autorizar os actos antes submetidos à aprovação do curador. Estes acompanhamentos são revistos, à luz do actual regime, a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público.
A razão de ser deste preceito no que concerne às decisões transitadas em julgado que decretaram a interdição e inabilitação e à revisão a pedido das medidas aplicadas radica, quanto a nós, por um lado, na convicção que a rigidez do antigo modelo dualista, centrado no suprimento da incapacidade de exercício e na conservação do património, pode não acautelar suficientemente os concretos e actuais interesses do requerido e, por outro, permitir um controlo jurisdicional eficaz sobre os constrangimentos imposto aos beneficiários.
No que concerne à revisão das medidas dispõe o actual art. 155º do C.C. que O tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.
E o art. 149º do C.C.: O acompanhamento cessa ou é modificado mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justifiquem (nº 1) e Podem pedir a cessação ou modificação do acompanhamento o acompanhante ou qualquer uma das pessoas referidas no nº 1 do artigo 141º (nº 3).
Por fim, preceitua o art. 904º do C.P.C.:
(…)
2. As medidas de acompanhamento podem, a todo o tempo, ser revistas ou levantadas pelo tribunal, quando a evolução do beneficiário o justifique.
3. Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto no art. 892º e seguintes, correndo os incidentes respectivos por apenso ao processo principal.
Assim, prevê-se, por um lado, a revisão oficiosa da medida aplicada no mínimo de 5 em 5 anos (art. 155º do C.P.C.) e, por outro, a revisão a pedido em face de determinada justificação apresentada, a qual pode ser solicitada a todo o tempo (art. 149º nº 1 e 3 do C.C. e 904º nº 2 e 3 do C.P.C.).
No que diz respeito à primeira, uma vez que o regime anterior não previa de todo a revisão da decisão, importa apurar a partir de que momento se conta o prazo mínimo de 5 anos previsto no art. 155º do C.P.C., se da entrada em vigor da nova lei ou da data da prolação da decisão.
Acerca desta questão pronunciaram-se em sentido oposto dois dos conferencistas no âmbito de acção de formação contínua no Centro de Estudos Judiciários subordinada ao tema “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, realizada em Fevereiro de 2019, conforme e-book respectivo - http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
Miguel Teixeira de Sousa, p. 59-60, pronunciou-se no sentido do disposto no art.º 155.º C.C. ser de aplicação imediata a todas as interdições e inabilitações convertidas, mas o prazo nele estabelecido só se conta a partir da entrada em vigor do regime de acompanhamento de maiores aplicando extensivamente o disposto no art. 297º nº 1 do C.C. Conclui que com esta interpretação evita-se que, de um momento para o outro, todas as antigas interdições e inabilitações se encontrem em situação de terem de ser revistas. (…).
Nuno Luís Lopes Ribeiro, p. 108-109, defendeu a revisão oficiosa de todos os processos de interdição decididos. A este propósito referiu:
“Quanto aos processos já decididos, (…) o regime levanta-nos algumas dúvidas; senão, vejamos:
Como vimos, o exercício de poderes gerais de representação constituiu apenas uma face do conteúdo do acompanhamento, previsto no art.º 145.º, n.º 2, b) do Cód. Civil.
De fora ficam o exercício de responsabilidades parentais, a administração total ou parcial de bens, a autorização prévia para a prática de certos actos e a disposição de bens imóveis.
Fica ainda de fora o exercício dos negócios da vida corrente e dos direitos pessoais, previstos no art.º 147.º. (…)
Por isso, parece-nos que o juiz, oficiosamente, deve reanalisar todos os processos de interdição decididos e, ao abrigo da faculdade de adequação formal, reabrir a possibilidade de produção de prova, com contraditório e fixar um regime de acompanhamento à luz do regime actual.
A possibilidade de revisão a pedido, nos termos do n.º 8, não pode impedir a revisão oficiosa, que sempre deverá ocorrer no mínimo de cinco em cinco anos, como resulta da articulação entre os artigos 155.º do CC e 904.º, n.º 2 do CPC.”
Subscrevemos o primeiro entendimento, o qual resulta, na nossa opinião, da melhor interpretação da lei.
Interpretar a lei consiste numa operação técnico-jurídica tendente a determinar o conteúdo e o sentido das normas jurídicas e realiza-se através de regras ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente, os quais resultam do art. 9º do C.C..
Primeiro atende-se às palavras através da qual a lei se exprime, as quais constituem o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação (elemento literal ou gramatical). A letra da lei tem uma função negativa ou de exclusão - afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei - e positiva ou de selecção - privilegia, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem. Considera-se que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento e se serviu do vocábulo jurídico adequado.
Mas, além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer por vezes aos elementos lógicos que se agrupam em três categorias: elemento histórico (a história da lei); o elemento sistemático (as leis interpretam-se umas pelas outras, pois a ordem jurídica forma um sistema) e elemento racional ou teleológico (ratio legis).
Ora, uma vez que o art. 26º nº 4 e 8 da Lei nº 49/2018 alude apenas à revisão a pedido há que recorrer ao regime geral na aplicação do disposto no art. 155º do C.C.. Assim, não obstante a letra do art. 297º do C.C. prever apenas a sucessão de leis que prevêem diferentes prazos, a doutrina tem defendido que, no seu nº 1, a letra da lei, ao não prever a possibilidade da anterior lei não estabelecer qualquer prazo, ficou aquém do seu espírito ou que o legislador disse menos do que queria, pelo que, por interpretação extensiva, aplica o mencionado preceito a tal situação. Neste sentido vide Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 271. Assim, a revisão oficiosa apenas se impõe em 10/02/2024.
Entendemos que o legislador não quis que ocorresse a revisão oficiosa imediata de todas as interdições e inabilitações decretadas, pois não se vislumbra por que razão, consagrando um preceito para a aplicação no tempo (art. 26º) em que prevê a conversão das anteriores decisões em medidas de acompanhamento nos termos aí referidos, apenas tenha aludido à revisão a pedido (nº 8). Acresce que a interpretação defendida pelo recorrente não resulta dos chamados elementos lógicos. Com efeito, a história da lei, a ordem jurídica no seu todo e a ratio legis não a impõem sendo que, quanto ao elemento teológico, importa referir que o objectivo de adequação da medida à situação concreta e actual mostra-se salvaguardado pelo pedido de revisão por parte do próprio, acompanhante ou Ministério Público.
É um facto que este entendimento leva a que as interdições e inabilitações há muito decretadas tenham de esperar até 10/02/2024 para serem revistas, mas a experiência dos tribunais e da vida mostra-nos que existem situações perfeitamente estáveis que não exigem tal imediata revisão e que no caso de situações problemáticas ou duvidosas o próprio, o acompanhante e/ou Ministério Público não hesitam em recorrer a juízo justificando tal decisão.»

7. Aderindo-se a estes fundamentos, com os quais se concorda, conclui-se que nos processos de interdição, com decisão transitada em julgado antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, a medida de acompanhamento é revista oficiosamente decorridos 5 anos desde a data da entrada em vigor da mencionada lei, i.e., em 10/02/2024, mas pode ser revista a todo o tempo a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, desde que seja alegada a modificação das causas que a justificaram ou que a evolução do beneficiário o justifique [idêntico entendimento foi alcançado nas decisões sumárias, não publicadas, proferidas pelo aqui 2º Adjunto, em 22/05/2024 (Proc. n.º 2368/16.8T8STR.E1), e 16/09/2024 (Proc.º n.º 2721/15.4T8STR.E1)].
Aliás, afigura-se-nos que em face do actual regime e da sua aplicação imediata aos anteriores processos de interdição, a distinção entre as situações decididas ao abrigo da actual lei e as decididas no âmbito do anterior regime, no que se reporta ao regime de revisão, constituiria uma discriminação injustificável, sem suporte material que a fundamente.

8. Deste modo, tendo a pretensão de revisão oficiosa da medida de acompanhamento dado entrada 08/03/2025, já havia decorrido o referido período de cinco anos desta a data de entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, pelo que a medida decretada no presente processo se encontrava em altura de ser oficiosamente revista, e, assim, devia a mesma ter sido iniciada, como pediu o requerente, ora recorrente.
Como se vê do requerimento, não se pretende a revisão a pedido, nos termos do n.º 8 do artigo 26º, mas sim que se proceda à revisão oficiosa da medida.
Acresce, que, como acima se disse, mesmo que se entendesse que o pedido de revisão da medida só era possível a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, nos termos do artigo 26º da Lei n.º 49/2018, com indicação dos fundamentos para a alteração, então, impunha-se o convite ao aperfeiçoamento do pedido, para alegação dos factos que fundamentavam tal pretensão.

9. No que se referem às concretas diligências a praticar no âmbito da revisão oficiosa da medida em causa, que o recorrente também refere no recurso, não tem este tribunal que se pronunciar, porque não foram objecto da decisão recorrida, que se limitou a indeferir a petição, e tendo-se determinado o prosseguimento dos autos, é ao tribunal recorrido que competente praticar as medidas legalmente previstas para tal fim.

10. Deste modo, procede a apelação, com a consequente revogação do despacho recorrido, determinando o prosseguimento dos autos para revisão oficiosa da medida de acompanhamento.
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C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
(…)
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos para revisão oficiosa da medida de acompanhamento.
Sem custas.
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Évora, 15 de Julho de 2025
Francisco Xavier
Maria Adelaide Domingos
José António Moita
(documento com assinatura electrónica)