Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MOREIRA DAS NEVES | ||
Descritores: | REGIME GERAL DAS CONTRAORDENAÇÕES PROCESSO JUDICIAL DECISÃO POR DESPACHO GARANTIAS DE DEFESA | ||
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Data do Acordão: | 06/03/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. No artigo 64.º RGC a lei prefigura um certo rito procedimental na fase judicial do procedimento, que comporta em alternativa: a decisão por despacho ou por sentença. II. Não obstante, a diversidade das circunstâncias pode justificar outras variantes, desde que mediante um procedimento justo, id est, sem prejuízo das garantias da defesa dos arguidos. III. A decisão por despacho poderá justificar-se nas situações em que a realização da audiência se não revele necessária, designadamente nos casos em que as questões suscitadas na impugnação da decisão administrativa sejam apenas em matéria de direito e não houver oposição dos sujeitos. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO 1. Relatório a. No âmbito de procedimento contraordenacional, a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território aplicou à AA, uma coima de 24 000€, por no dia 17/5/2022, ter procedido a uma descarga de resíduos de construção e demolição, em local não licenciado ou autorizado para o efeito, nos termos previstos no artigo 18.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de março, punível nos termos previstos no artigo 49.º, § 1.º e 117.º, § 1.º, al. bb) do anexo I, a que se refere o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro. b. A arguida impugnou judicialmente tal decisão administrativa, invocando: a. A nulidade da decisão proferida pela Entidade Administrativa por não conter a narração de factos que preenchem os conceitos de “descarga de RCD” e de “local não licenciado ou autorizado para o efeito”; b. A nulidade da decisão administrativa por não conter factos relativos à atuação do alegado encarregado de Junta, não sendo possível aferir se o mesmo atuou por conta e no interesse da arguida recorrente e conforme as suas instruções; e, caso assim não se entenda, subsidiariamente, declarou que: c. A arguida não praticou os factos que lhe são imputados, uma vez que o encarregado da Junta não atuou por conta e no interesse da arguida e de acordo com instruções dada por esta; ou, caso assim também se não entenda, subsidiariamente, d. Deverá a coima aplicada ser especialmente atenuada e suspensa na sua execução. c. Antes da remessa dos autos ao Ministério Público, a entidade administrativa, nos termos previstos no artigo 62.º, § 1.º do Regime Geral das Contraordenações (RGC) contido no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, declarou manter a decisão por si proferida. E posteriormente, remetidos os autos ao Ministério Público, estes vieram a ser apresentados a Juízo. d. No dia 23 de janeiro de 2023 veio a ser proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «declarar a nulidade da decisão da autoridade administrativa em causa e dos atos a ela subsequentes, e, em consequência, determina-se o reenvio do processo para mencionada autoridade administrativa, a fim de a mesma proferir nova decisão por forma a suprir as deficiências detetadas na decisão anulada, cumprindo-se com o plasmado no artigo 58.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e das Coimas. Tudo isto, sem olvidar o decurso dos prazos prescricionais.» e. Na sequência dessa decisão judicial, a autoridade administrativa reformulou a sua decisão, a qual notificou a arguida para se pronunciar, vindo posteriormente a autoridade administrativa a manter essa sua decisão, da qual a arguida recorreu para o Juízo de …, alegando no essencial os mesmos fundamentos já anteriormente apresentados, por considerar que a decisão administrativa se manteve essencialmente a mesma, padecendo por isso dos mesmos defeitos já anteriormente apontados. f. Apresentados os autos a Juízo a M.ma Juíza considerou útil decidir, a título prévio, a questão suscitada na impugnação judicial, relativa à nulidade da decisão administrativa por insuficiência quanto à descrição factológica, mormente no plano da imputação do conhecimento e vontade da arguida na prática dos mesmos. Para tanto notificou a arguida e o Ministério Público para declararem se a tanto se opunham. E porque nenhuma oposição foi manifestada, veio a proferir-se despacho sobre tal matéria, o qual tem o seguinte teor: «A arguida/recorrente AA – com o NIPC …, e com sede na Rua …, …, aqui representada pelo Presidente BB, veio apresentar impugnação judicial da decisão administrativa proferida pela Inspecção Geral da Agricultura do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, datada de 07.10.2024, que a sancionou com a aplicação de uma coima no montante de 24.000,00€, pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, por descarga de resíduos de construção e demolição (RCD) em local não licenciado ou autorizado para o efeito, previsto e punido pelo artigo 18.º, n.º1, do DL n.º 46/2008, de 12 de Março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de Junho (actualmente previsto e punido nos termos dos artigos 49.º, n.º1, e 117.º, n.º1, alínea bb) do anexo I a que se refere o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de Dezembro), sancionável nos termos previstos na alínea b), do n.º4, do artigo 22.º, da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 114/2015, de 28 de Agosto, na sua actual redação, e bem assim nas custas processuais. Para tanto, invocou, além do mais, as seguintes nulidades: a. nulidade do processo de contra-ordenação por ter sido proferida nova decisão final sem notificar a arguida para exercício de direito de audição prévia; b. Nulidade da decisão condenatória por ser omissa quanto aos elementos de facto subsumíveis nos elementos do tipo subjectivo da contra-ordenação; c. A nulidade da decisão administrativa por não conter factos relativos à actuação do alegado encarregado de Junta, não sendo possível aferir se o mesmo actuou por conta e no interesse da arguida recorrente e conforme as suas instruções. Por despachos de 18.12.2024 e 14.01.2025, foi determinada a notificação da arguida/ recorrente e a Digníssima Sra. Procuradora para que se pronunciassem quanto à prolação de decisão quanto às nulidades da decisão administrativa invocadas através de despacho judicial, advertindo-se que o silêncio quer da impugnante quer do Ministério Público, valeria como aquiescência destes. Por requerimento de 27.01.2025, veio a Arguida explicitar que não se opunha a que o Tribunal decidisse por despacho as invocadas nulidades da decisão administrativa. Cumpre apreciar e decidir, referindo-se desde já que o Tribunal não se pronunciará, atendendo ao teor dos despachos que antecedem (referem-se apenas à nulidade da decisão administrativa), quanto à nulidade do processo de contra-ordenação, de molde a evitar a emanação de decisão que se possa afigurar como um elemento surpresa. Nulidade da decisão condenatória por ser omissa quanto aos elementos de facto subsumíveis nos elementos do tipo subjectivo da contra-ordenação e por não conter factos relativos à actuação do alegado encarregado de Junta, não sendo possível aferir se o mesmo actuou por conta e no interesse da arguida recorrente e conforme as suas instruções Vem a recorrente afirmar que a decisão instrutória é nula por omissão de factos subsumíveis no elemento subjectivo da contraordenação imputada à arguida, considerando «da decisão administrativa tem de constar e resultar provados factos, que subsumíveis ao tipo legal, permitam a aplicação de uma coima, devendo tais factos dizer respeito quer ao tipo objectivo, quer ao tipo subjectivo». O artigo 50.º RGCO prescreve que «não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.» Por seu turno, o artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa (CRP) estatui que «nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.» Não se olvidando que consubstancia entendimento pacífico que os processos contra-ordenacionais apresentam maior celeridade e simplicidade processual, sendo que nesta sede, «o dever de fundamentação tem uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal, comportando a decisão administrativa um modo sumário de fundamentar, desde que permita ao coimado perceber o que se decidiu e por que razão assim se decidiu» (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09-01-2019, processo n.º 257/18.0T8SRT.C1, relator Vasques Osório), deve ser assegurada, ainda assim, a defesa de princípios partilhados com os preceitos processuais de cariz penal, onde sobressai o direito basilar ao contraditório. Numa apreciação das normas conjugadas relativas ao artigo 32.º, n.º 10 da CRP e 50.º RGCO, facilmente se depreende que o legislador pretendeu assegurar ao arguido um cabal conhecimento dos factos imputados, de molde a permitir um efectivo exercício do referido direito ao contraditório. Neste conspecto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003, de 16-10-2002 cimenta o seguinte entendimento: «Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.» (destacado da nossa autoria) Tendo como ponto de partida os artigos 50.º do RGCO e 32.º, n.º 10 da CRP e o acórdão de uniformização de jurisprudência enunciados, a explicitação do elemento subjectivo consubstancia um elemento vital para que o arguido conheça de todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de Direito. Neste sentido, traz-se à colação o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05 de Abril de 2022, Processo 256/18.2EAFAR.E1, Relatora Maria Clara Figueiredo, o qual consigna que vem a «jurisprudência dos tribunais superiores, formando entendimento, que subscrevemos – e que cremos ser maioritário – no sentido de que a densificação da estatuição do artigo 50.° do RGCO impõe a conclusão de que o processo contra-ordenacional deverá garantir o efectivo exercício do direito ao contraditório prévio à decisão, desiderato que apenas se conseguirá realizar na sua plenitude mediante a comunicação integral dos factos imputados, o que implicará a sua descrição objectiva, localizada no espaço e no tempo, assim como a sua caracterização subjectiva, elementos que se reputam imprescindíveis à identificação e recorte do comportamento contra-ordenacionalmente relevante.» O mesmo entendimento é passível de ser retirado do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/09, relatado pelo Conselheiro Moura Ramos: -“(…) dos direitos de audição e de defesa consagrados no artigo 32°, n.°10, da CRP, e densificados no artigo 50° do RGCO, extrai-se com toda a certeza que qualquer processo contra-ordenacional deve assegurar ao visado o contraditório prévio à decisão; que este só poderá ser plenamente exercido mediante a comunicação dos factos imputados; que a comunicação dos factos imputados implica a descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contra-ordenacionalmente relevante; e que essa descrição deve contemplar a caracterização, objectiva e subjectiva, da acção ou omissão de cuja imputação se trate.” Revertendo ao caso dos autos, dos factos vertidos na decisão administrativa (sob os pontos b), f), h), i), j), k) e l)) resulta que «o funcionário identificado efetuou o depósito de RCD naquele local a mando do Encarregado da Junta CC, ambos exercendo funções na estrutura da Arguida» (alínea b); «a descarga de RCD verificada foi efetuada com recurso a veículo da Junta de Freguesia de … (…)» (alínea f); «(…) foi o encarregado informado que teria de proceder à recolha dos RCDS ali depositados e encaminhá-los para o centro de recolha de resíduos em …, por ser esse o local de destino adequado» (alínea h); «a Arguida, sendo detentora dos RCD supra identificados, estava adstrita ao cumprimento de obrigação legal que sobre si impendia, in casu, assegurar a gestão correcta dos mesmos» (alínea J); «a Arguida representou que descarregava e abandonava os resíduos em questão em local não licenciado ou autorizado para o efeito, incumprindo normas ambientais, mas não se conformou com tal situação» (alínea k) e «ao atuar da forma supra descrita, a Arguida não agiu com a diligência necessária, a que estava obrigada e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem censurabilidade à infração praticada ou que excluam a ilicitude da sua conduta». (alínea l). Do acervo fáctico enunciado, atendendo ao que acima foi dito (mormente ao teor das premissas legais e elementos jurisprudenciais mencionados) descortina-se que a indicação dos factos trazidos à colação concernentes ao elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional e à actuação do alegado encarregado de Junta, afiguram-se como claramente suficientes, não se vislumbrando claras omissões que possam ter reflexos nos direitos de defesa da arguida, enfatizando-se que a decisão administrativa apresenta indicações no que tange aos elementos essenciais do tipo subjectivo (aludindo de forma clara à condenação a título de negligência, a que se agrega a explicação fáctica de como se chegou à negligência, como se extrai dos factos enunciados no parágrafo antecedente). Em complemento, refira-se que das menções da decisão administrativa ao depósito de RCD por parte do funcionário «a mando do Encarregado da Junta CC, ambos exercendo funções na estrutura da Arguida (…) com recurso a veículo da Junta de Freguesia de …», resulta que tais indivíduos estariam a executar tarefas no âmbito laboral, em horário de expediente e utilizando veículo pertencente à arguida, extraindo-se de tais elementos que a entidade administrativa defende de forma clara que aqueles actuaram por conta e no interesse da arguida recorrente e conforme as suas instruções, devendo de resto este vector ser esclarecido em sede de audiência de julgamento. Face a todo o supra exposto, considera-se que a decisão administrativa não omitiu elementos de facto subsumíveis nos elementos do tipo subjectivo da contra-ordenação ou factos relativos à actuação do funcionário e do encarregado da arguida, julgando-se a(s) nulidade(s) improcedente(s). ** Da audiência de julgamento Para cabal decisão do objecto da impugnação judicial requer o Ilustre Mandatária do Recorrente a produção de prova testemunhal. Pelo exposto, designo o dia 22 de Maio de 2025, pelas 09:30 horas, para a realização da Audiência de Julgamento (art.ºs 64.º, n.º 1 e n.º 2 a contrario sensu e 65.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro) – e não antes por absoluta indisponibilidade de agenda.» g. Inconformado com esta decisão a arguida interpôs o presente recurso, preconizando a revogação da mesma, rematando a respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição)1: «(…) P. A Recorrente não pode aceitar o Despacho proferido nestes autos, em 07/03/2025, com a Referência …, por o mesmo violar os artigos 7.º, n.º 2, 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 64.º, todos do RGCO, bem como os princípios constitucionais da legalidade, da segurança jurídica, do contraditório, das garantias de defesa e da tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 2.º, 20.º e 32.º, n.º 10, da CRP. Q. Assim, a Recorrente não poderia deixar de recorrer do Despacho em crise, com vista à revogação do decidido. DA VIOLAÇÃO DO ARTIGO 64.º, DO RGCO E DA SUA ERRADA INTERPRETAÇÃO PELO TRIBUNAL A QUO R. A decisão recorrida viola o disposto no artigo 64.º, do RGCO, na medida em que o Tribunal a quo decidiu, por Despacho, uma questão de mérito — a nulidade da decisão administrativa — e, em simultâneo, remeteu as restantes questões da impugnação judicial para Audiência de Julgamento, o que representa uma forma de decisão híbrida não prevista, nem permitida por lei. S. O Tribunal a quo interpretou o artigo 64.º, do RGCO em desconformidade com o seu sentido e alcance normativo, ao admitir a possibilidade de fracionar o Julgamento entre decisão por Despacho e Audiência, quando a norma impõe, de forma taxativa, que o juiz deve optar entre uma dessas formas de decisão — nunca ambas — e apenas nos termos legalmente estabelecidos. T. A questão decidida por Despacho – a nulidade da decisão administrativa por alegada insuficiência de fundamentação quanto à imputação subjetiva da infração – não constitui uma verdadeira questão prévia (como inicialmente fez crer), mas antes uma das matérias de fundo da impugnação, que apenas poderia ser decidida com plenitude de garantias em sede de Audiência, ou então integrada numa decisão única por Despacho. U. O Tribunal a quo interpretou o artigo 64.º, do RGCO de forma extensiva e contra legem, quando deveria ter interpretado tal norma no sentido de que não lhe era permitido decidir de forma híbrida – parcialmente por Despacho e parcialmente por Audiência –, mas sim de forma una e coerente, optando por uma das modalidades legalmente previstas: ou decidia integralmente por Despacho, nos termos do n.º 2 (o que não podia fazer, dado o conteúdo e a oposição inicial da Recorrente), ou remetia toda a apreciação da impugnação judicial para Audiência de Julgamento, como impõe o n.º 1, da mesma norma. V. A atuação do Tribunal violou, assim, o modelo legal do processo contraordenacional (artigo 64.º, do RGCO), criando incerteza quanto ao objeto da decisão, comprometendo a coerência da tutela jurisdicional e legalidade processual e desrespeitando os princípios constitucionais do contraditório (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), da segurança jurídica e da proteção da confiança (artigo 2.º, da CRP) e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, da CRP). DA CONTRADIÇÃO COM DECISÃO ANTERIORMENTE PROFERIDA NOS MESMOS AUTOS W. O Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento e violação da lei, ao reapreciar a validade da nova decisão administrativa proferida pela IGAMAOT, ignorando que já havia, anteriormente, declarado a nulidade da decisão administrativa originária com fundamento na falta de fundamentação quanto ao elemento subjetivo da imputação à pessoa coletiva (cfr. Sentença de 17/11/2023 com a referência …). X. Na decisão anterior, transitada em julgado, o Tribunal considerou que a Autoridade Administrativa não havia descrito quaisquer factos concretos que permitissem imputar subjetivamente a infração à Arguida, violando o disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea c), do RGCO e os requisitos do artigo 7.º, n.º 2, do mesmo diploma. Y. A nova decisão administrativa, que o Tribunal agora considerou válida, limitou-se a ligeiras reformulações no quadro factual, essencialmente em torno do elemento objetivo da infração, mantendo-se, todavia, omissa quanto aos elementos necessários à imputação subjetiva à pessoa coletiva — sem menção a ordens, instruções, tolerância ou omissões relevantes por parte da estrutura diretiva da Arguida. Z. O Tribunal recorrido interpretou e aplicou de forma contraditória o mesmo quadro normativo – designadamente os artigos 7.º, n.º 2 e 58.º, n.º 1, alínea c), do RGCO – ao considerar, sem alteração substancial da matéria de facto, que aquilo que antes era juridicamente insuficiente passou a ser bastante. AA. Tal contradição compromete o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança (artigo 2.º, da CRP) e o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, da CRP). BB. Deste modo, o Despacho recorrido interpretou e aplicou o artigo 58.º, do RGCO, em violação dos artigos 2.º e 20.º, da CRP, que consagram os princípios da segurança e confiança jurídicas e da tutela jurisdicional efetiva ínsitos ao princípio do Estado de Direito. CC. O Tribunal deveria ter interpretado o artigo 58.º, do RGCO em conformidade com os parâmetros já fixados na decisão anteriormente proferida no mesmo processo – vinculativos enquanto expressão da estabilidade e coerência da jurisdição – concluindo, por identidade de razões, que a nova decisão administrativa continuava a padecer de falta de fundamentação quanto ao elemento subjetivo da infração, mantendo-se, por isso, a nulidade declarada. DD. Ao decidir em sentido oposto, sem alteração material do quadro factual, o Tribunal violou o dever de coerência decisória e o princípio da proteção da confiança das partes, que impunham uma interpretação estável e uniforme da norma aplicável. DA ERRADA DECISÃO SOBRE A NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA EE. A decisão recorrida, ao julgar improcedente a nulidade da decisão administrativa reformulada, violou os artigos 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 7.º, n.º 2, do RGCO, por considerar válidos factos e uma fundamentação que não preenchem os requisitos legais mínimos para imputar validamente a infração à pessoa coletiva. FF. O Tribunal a quo interpretou o artigo 58.º, n.º 1, do RGCO de forma excessivamente permissiva e contrária à sua letra e finalidade, admitindo como suficientes formulações genéricas, presunções e juízos conclusivos, em vez de exigir na decisão administrativa em causa: a) uma descrição factual concreta e individualizada dos atos imputados (alínea b)); e b) uma fundamentação clara, coerente e logicamente articulada com os factos descritos, quanto à imputação subjetiva da infração à entidade coletiva (alínea c)). GG. Do mesmo modo, o Tribunal fez uma aplicação errada do artigo 7.º, n.º 2, do RGCO, ao admitir uma imputação subjetiva à pessoa coletiva baseada exclusivamente na atuação de agentes subordinados, sem demonstrar que: a) esses agentes atuaram em nome, no interesse e no exercício de funções por conta da entidade coletiva; e b) que houve uma falha no dever de organização ou supervisão da arguida que justifique a sua censura autónoma. HH. No entender da Recorrente, o Tribunal deveria ter interpretado e aplicado o artigo 58.º, n.º 1, do RGCO no sentido já assumido na anterior decisão judicial proferida nestes autos – que declarou nula a primeira decisão administrativa – e concluído pela manutenção dessa nulidade, por persistência da omissão de factos concretos e de fundamentação quanto ao elemento subjetivo da imputação à pessoa coletiva. II. Na verdade, os novos factos considerados provados na decisão administrativa reformulada – como a identificação dos resíduos ou o uso do veículo da Junta – dizem apenas respeito ao tipo objetivo da infração e em nada densificam os elementos subjetivos de responsabilidade, permanecendo inalterada a omissão de: i) qualquer atuação ou ordem por parte do órgão de direção da Arguida; ii) qualquer indicação de falha organizacional; ou iii) qualquer juízo concreto de censura imputável à entidade coletiva. JJ. Ao não identificar quem, em nome da Arguida, atuou de forma consciente, voluntária e em violação das normas legais, nem como se manifesta a culpa própria ou defeito de organização da entidade, a decisão administrativa continua a não preencher os pressupostos do artigo 7.º, n.º 2, do RGCO. KK. A norma jurídica que deveria ter sido aplicada de forma estrita e exigente é o artigo 58.º, n.º 1, do RGCO, pelo que o Tribunal deveria ter declarado nula a nova decisão administrativa e determinado o reenvio do processo à IGAMAOT, tudo nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alíneas b) e c) e dos artigos 122.º, n.ºs 1 e 2, 379.º, n.º 2, 414.º, n.º 4, 426.º, 410.º, n.º 2, todos do CPP.» h. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese (transcrição) que: «3. Os dispositivos legais não impedem que as questões que constituem objecto do recurso de impugnação sejam decididas em dois actos decisórios (designadamente umas por despacho interlocutório e outras na decisão final, após audiência de julgamento); 4. O despacho em crise não desconsidera o disposto no artigo 64.º do RGCO, ao conhecer por despacho de uma das questões de mérito da impugnação judicial – nulidade da decisão administrativa-, e em simultâneo designa data para a audiência de discussão e julgamento; 5. A decisão administrativa não omitiu elementos de facto subsumíveis nos elementos do tipo subjectivo da contra-ordenação ou factos relativos à actuação do funcionário e do encarregado da arguida, 6. O despacho judicial de 07/03/2025 deve manter-se nos exactos termos em que foi proferido.» i. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância apôs o seu «visto». j. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir. 2. Dos fundamentos do recurso Tendo em conta as conclusões da motivação, que delimitam o âmbito do recurso, verifica-se terem sido trazidas as seguintes questões (todas interligadas), de que importa conhecer2: i Regularidade procedimental do despacho recorrido; ii Caso julgado; iii Nulidade da decisão administrativa. 3. Dos fundamentos do recurso 3.1 Da regularidade procedimental do despacho recorrido A recorrente sustenta que o Tribunal recorrido, ao ter optado por decidir a título prévio, por despacho, a questão suscitada da nulidade da decisão administrativa, relegando para a sentença, a proferir após a realização da audiência, as demais questões apresentadas na impugnação, fez uma interpretação errada do preceituado no artigo 64.º do RGC, com isso vulnerando as suas garantias de defesa. Sintetizando alega-se que ao agir de tal modo o Tribunal «violou o modelo legal do processo contraordenacional (artigo 64.º, do RGCO), criando incerteza quanto ao objeto da decisão, comprometendo a coerência da tutela jurisdicional e legalidade processual e desrespeitando os princípios constitucionais do contraditório (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), da segurança jurídica e da proteção da confiança (artigo 2.º, da CRP) e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, da CRP).» Isso apesar de a concreta atuação do Tribunal recorrido, assentar no assentimento expresso do recorrente e do Ministério Público, após prévia interpelação sobre essa possibilidade! Pronunciando-se sobre este aspeto do recurso, o Ministério Público, considera que o despacho recorrido não desrespeita o disposto no artigo 64.º do RGC. Pois bem. Sendo verdade que a lei prefigura no artigo 64.º RGC um certo rito procedimental, que comporta em alternativa: a decisão por despacho ou por sentença; não o será menos que a diversidade das circunstâncias pode vir a justificar outras variantes, desde que mediante um procedimento justo, id est, sem prejuízo das garantias da defesa dos arguidos. Não poderá naturalmente postergar-se a realização da audiência quando houver necessidade de produção de prova testemunhal p. ex. Pode, pois, justificar-se a decisão por despacho em diversas situações em que a realização da audiência se não revele necessária, designadamente nos casos em que as questões suscitadas na impugnação da decisão administrativa, sejam apenas em matéria de direito (artigo 64.º, § 2.º RGC) e não houver oposição dos sujeitos processuais. É necessário perspetivar o processo contraordenacional dentro das especificidades que o caracterizam. Conforme refere António Leones Dantas3, ao contrário do que sucede no processo penal, no qual a audiência de julgamento visa a prova do conjunto dos factos imputados ao arguido, em ordem a saber se os mesmos integram a prática de um crime; no recurso impugnatório da decisão administrativa, característico do procedimento contraordenacional, houve já um procedimento prévio, que culminou numa decisão que aplicou uma coima. Chegando o processo a Tribunal apenas porque o recorrente se não conformou com essa decisão. De contrário aquela tornar-se-ia definitiva. Do que se trata verdadeiramente, na impugnação de tal decisão, é de um recurso para uma autoridade jurisdicional. Com efeito, sem prejuízo destas diferenças caracterizadoras do procedimento contraordenacional, o respetivo regime é cerzido pelas garantias do Estado de Direito, sobretudo através das regras e garantias procedimentais (a competência para a instrução e decisão dos ilícitos está deferida às autoridades administrativas, mediante um procedimento com estrutura inquisitória e célere); havendo depois recurso para um Tribunal, em conformidade com o que dispõem os artigos 33.º e 59.º RGC, 2.º, 20.º, § 1.º e 32.º, § 10.º da Constituição, 6.º da CEDH4; 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia; e 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, todos inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, justamente por razão da garantia do recurso judicial)5, surgindo o direito e processo penais comos seus referenciais (apenas) subsidiários (artigos 32.º e 41.º RGC). Não sendo o direito contraordenacional processo penal em sentido estrito – isto é, direito constitucional aplicado -, nem por isso prescinde de certas garantias fundamentais (artigo 32.º, § 10.º da Constituição). E este é que é a «pedra de toque» que permite aferir em cada caso se a realização do ato processual de uma dada maneira (por uma dada «forma») vulnera (ou não) o(s) valor(es) que ela própria tem por função acautelar. Volvendo ao caso concreto. Parece medianamente claro que no normativo contido no artigo 64.º RGC (ou qualquer outro do RGC) não proíbe a atuação judicial que foi (e do modo que foi) seguida. Não estabelecendo a lei para tanto qualquer sanção. Menos ainda quando, como sucedeu no presente caso, os sujeitos processuais manifestam o seu acordo relativamente ao conhecimento pelo Tribunal recorrido, a título prévio, de uma concreta questão que logo foi enunciada. Acrescendo que o julgamento de tal questão (indubitavelmente prévia porque respeitante tão só à regularidade formal da decisão administrativa), não carecia da produção de provas. Daí que tal modo de proceder em nada maculou nem, muito menos, comprometeu (representou qualquer espécie de dano) (n)as garantias de defesa da arguida. Contrariamente ao que vem sustentado pela recorrente, deste modo de proceder não emergiu nenhuma espécie de incerteza quanto ao objeto de tal decisão! Seja porque o seu objeto foi previamente definido e comunicado aos sujeitos processuais, que a tanta nada objetaram; seja porque se conheceu apenas da questão autónoma da nulidade da decisão administrativa; seja ainda porque a mesma constitui mesmo questão prévia ao mérito da causa. Sendo que tal questão prévia se não confunde nem (muito menos) consome a questão de fundo, como a dado passo refere o recurso. Tendo por referência uma certa interpretação do § 2.º do artigo 7.º RGC: concretamente a de saber se haverá responsabilidade da pessoa coletiva quando o facto ilícito é praticado por trabalhadores ao seu serviço, sem que se identifique concretamente o órgão que lhe deu origem - uma vexata quaestio debatida na doutrina e na jurisprudência. Sucede, porém, que a questão de fundo foi (e muito bem) relegada para a sentença, a proferir apenas após a realização da audiência, conforme expressamente se refere no despacho de que se recorre. Ao contrário dessa (da questão de fundo), o conhecimento da questão da nulidade assacada à decisão administrativa pela arguida, no seu recurso para o Tribunal, constitui indubitavelmente uma questão prévia, que nada impede seja conhecida por despacho. Para mais na ausência de oposição por banda da recorrente e do Ministério Público. Isso de modo algum compromete o pleno exercício do contraditório. Como poderia comprometer? Não se vê como é que da decisão recorrida possa decorrer qualquer compressão da tutela da confiança, da garantia do processo justo ou da tutela jurisdicional efetiva (artigos 2.º, 20.º, § 4.º e 32.º da Constituição) relativamente à recorrente! O Tribunal recorrido limitou-se a decidir a título prévio uma questão formal que fora suscitada no recurso da arguida, depois da aquiescência das partes nesse sentido. Relegando-se para diante, na sequência da audiência a realizar, o conhecimento do fundo da causa - conforme com expressa clareza emerge do despacho recorrido. Não obstante se tratar de mera questão formal, prévia e conhecida por despacho, a título prévio, nem por isso tal questão ficou excluída da devida tutela jurisdicional (designadamente do recurso para a Relação). Sinal evidente disso mesmo é o facto de perante a impugnação da decisão da questão prévia referida, se admitiu a interposição do respetivo recurso. E muito bem, como se reconheceu logo no exame preliminar já nesta instância de recurso, estando agora a ser alvo de apreciação em 2.ª instância. E assim teria sempre de ser, porque se o julgamento de tal questão acontecera apenas na sentença final, ela seria suscetível de recurso (artigo 73.º, § 1.º, al. a) RGC). Não podendo, naturalmente, deixar de sê-lo se decidida por despacho a título prévio – como sucedeu. Mas a questão de fundo (que o recorrente pretendeu enxertar no recurso da referida questão prévia), relativa ao preenchimento dos elementos constitutivos da infração, mormente aos elementos objetivos e subjetivo do tipo de ilícito contraordenacional, não se confunde com a questão formal de que se conheceu, a título prévio, na decisão ora sob recurso. Essa respeita à consideração da verificação do ilícito contraordenacional, matéria cujo conhecimento se relegou para a sentença final, após a realização da audiência e produção das provas (não já, apenas, com referência aos elementos formais exigidos à decisão administrativa – artigo 58.º RGC). Termos em que carece de fundamento legal a alegação de que o conhecimento a título prévio da nulidade da decisão administrativa, nos termos referidos, se mostra arredia das garantias inerentes ao processo equitativo. 3.2 Do caso julgado Na linha argumentativa a que se vem fazendo referência preconiza a recorrente - ainda que sem concretamente tal designar - que a decisão recorrida, de algum modo (!), terá vulnerado a garantia do caso julgado (artigo 29.º, § 5.º da Constituição). Assentando essa ideia na circunstância de que tendo o Tribunal, em decisão anterior (de 17nov2023), considerado que a decisão administrativa padecia de insuficiência factológica relativamente à imputação subjetiva do ilícito, não podia agora divergir do entendimento anteriormente expresso sobre a mesma questão, até porque – no entender da recorrente - a autoridade administrativa se limitou a meras alterações de «cosmética», mantendo no essencial o texto anterior! Clarifiquemos o que turvo possa parecer. Em primeiro lugar, a exceptio do caso julgado, emerge do princípio ne bis in idem, com assento no § 5.º do artigo 29.º da Constituição da República, onde se dispõe que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.» A sua dimensão no processo contraordenacional (nos termos do § 10.º do artigo 32.º da Constituição) reconduz-se, no essencial, à proibição de julgar a mesma pessoa duas vezes pelo mesmo facto ilícito típico e seu consequente sancionamento. Refere com particular clareza neste temário o Tribunal Constitucional6, citando Ramón García Albero7: «[…] [O] non bis in idem tem uma vertente substantiva e outra processual. Do ponto de vista material, o princípio veta a imposição plural de consequências jurídicas relativamente a uma mesma infração. Na perspetiva processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar um novo processo e a sujeição a julgamento quanto ao facto sobre o qual incidiu sentença firme ou arquivamento definitivo. […] No caso do non bis in idem material, a hipótese [da norma] reconduz-se à identidade da infração e a sua consequência [evitar a] sanção punitiva. O non bis in idem processual tem, pelo contrário, como hipótese não o «crimen», mas sim o «factum», e como consequência evitar, cabalmente, o próprio processo. (…) Salienta, ainda, Henrique Salinas8: “[…] No que respeita especificamente a esta vertente processual do princípio, é-lhe atribuída uma dupla dimensão. Em primeiro lugar, como direito subjetivo fundamental, garante «ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo)». Por outro lado, «como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. Pode até afirmar-se que o princípio adquiriu uma relevância própria, o que teve por efeito, num desenvolvimento destas conceções, a autonomização do ne bis in idem perante o caso julgado. […]”. Se a proteção do ne bis in idem tem o seu início a partir do momento em que é formalizado o objeto e manifestada a potestas punitiva do Estado, num plano jurisdicional, a exaustão desse poder punitivo deverá ocorrer após a prolação de uma decisão (jurisdicional) que implique a realização de um juízo sobre essa mesma pretensão punitiva.9 […] Mas a acusação é, apenas, o momento em que o ‘jogo do julgamento’ começa, e esse jogo não termina até que haja um ‘vencedor’. Até que haja o ‘primeiro perigo’ não terminou, e procedimentos adicionais não sujeitam o arguido a um perigo pela segunda vez. […]”. E, quanto a decisões no processo que padeçam de erro manifesto, em benefício do arguido (p. 1844): “[…] [Nenhum] valor constitucional é garantido excluindo de reversão e de revisão os erros no processo. Tal exclusão torna-se um prémio arbitrário para o culpado, não um esquema estruturado de proteção do inocente. Seria o equivalente a dizer que um em cada três arguidos, aleatoriamente escolhido, ficará livre do processo sem uma boa razão para isso. O arguido não tem propriamente um direito a que os erros funcionem sempre a seu favor. […]”. Daí que – como observa Inês Ferreira Leite10: “[…] Mesmo nos EUA, são admissíveis casos de retrial, após ‘defective indictements’. […] De acordo com os estatutos e a prática nas instâncias penais internacionais, uma acusação que não contenha a descrição de todos os factos materiais que, findo o julgamento, forem considerados necessários ou pertinentes para a fundamentação da condenação pelo tribunal é considerada ‘defective’, podendo ser corrigida. Este defeito da acusação, consoante a intensidade da falha, pode ser superado por diversas vias. Quando se trate de adicionar uma nova imputação, ou pretensão punitiva, a alteração em fase de julgamento será excecional. Mas quando se trate da mera adição de novos factos materiais relacionados com algumas das imputações já referidas na acusação, o vício pode ser colmatado mediante a modificação da acusação ou pela mera comprovação de que os factos foram, não obstante, já comunicados ao arguido ao longo do processo de forma clara e expressa e que este teve já oportunidade de, sobre os mesmos, exercer a sua defesa.» Como é bom de ver, nas particularidades do caso presente, o perímetro da decisão judicial anterior, para o que neste particular interessa, cingiu-se à declaração de nulidade da decisão administrativa, por insuficiência da descrição factológica no concernente à imputação do facto ilícito à arguida, com isso determinando uma reformulação da mesma. Isto é, tal decisão judicial limitou-se a um controlo formal da decisão administrativa, a qual, depois de entrada em juízo, se constitui como acusação (artigo 62.º, § 1.º RGC). Isto é, cingiu-se à questão formal da decisão administrativa recorrida, não tendo sido realizado qualquer juízo definitivo sobre a pretensão punitiva que naquela se encerrava. O seu efeito foi apenas o de permitir uma reformulação da decisão administrativa. Quer-se dizer, a decisão judicial anterior não constituiu julgamento (nem arquivamento) definitivo da causa. De tal maneira que reformulada a decisão administrativa ela passa a ser toda outra. Passa a ser uma decisão nova. De tal modo que se dela não houvera impugnação se tornaria definitiva. Acresce que a nova decisão administrativa é também formalmente diversa da anterior. Atente-se que esta contém a imputação factológica de 5 novas alíneas, que são agora 12 no total, ao invés das 7 da decisão anterior (que deixou de existir) - para além de duas das anteriores alíneas terem sido reformuladas. Daí que o despacho judicial ora sob recurso tenha apreciado uma outra (uma nova) decisão administrativa, a qual vale processualmente como se fora a única produzida, tendo a anterior deixado de existir. E nestas circunstâncias a pronuncia judicial que sobre ela recaia em matéria de cumprimento dos requisitos formais, em nada pode estar condicionada pela apreciação dos requisitos formais de outra, que já não existe. A recorrente procura deveras a questão prévia da regularidade formal da decisão administrativa, objeto do despacho sob impugnação, na questão de fundo, isto é, no mérito da decisão administrativa impugnada. Quando é certo que o despacho recorrido relegou essa questão de mérito para a decisão final, conforme deflui do seguinte segmento: «(…) a entidade administrativa defende de forma clara que aqueles [os trabalhadores da arguida] atuaram por conta e no interesse da arguida recorrente e conforme as suas instruções, devendo de resto este vetor ser esclarecido em sede de audiência de julgamento.» Nestes termos, consideramos que os fundamentos invocados não logram sustentação na lei nem no direito, pelo que se considera improcedente este fundamento recursivo. 3.3 Da nulidade da decisão administrativa Considera a recorrente que o Tribunal a quo interpretou o § 1.º do artigo 58.º RGC de forma excessivamente permissiva, contrária à sua letra e finalidade, admitindo como suficientes, meras formulações genéricas, presunções e juízos conclusivos, em vez de exigir à decisão administrativa em causa: a) uma descrição factual concreta e individualizada dos atos imputados (alínea b); e b) uma fundamentação clara, coerente e logicamente articulada com os factos descritos, quanto à imputação subjetiva da infração à entidade coletiva (alínea c). Entendendo que o Tribunal recorrido, ao admitir uma imputação subjetiva à pessoa coletiva baseada exclusivamente na atuação de agentes subordinados, sem demonstrar que: «a) esses agentes atuaram em nome, no interesse e no exercício de funções por conta da entidade coletiva»; e «b) que houve uma falha no dever de organização ou supervisão da arguida que justifique a sua censura autónoma», fez uma aplicação errada do artigo 7.º, § 2.º RGC. Concluindo que a decisão administrativa continua a não preencher os pressupostos do artigo 7.º, § 2.º RGC, na medida em que não identifica quem atuou em nome da arguida, de forma consciente, voluntária e em violação das normas legais, nem como se manifesta a culpa própria ou defeito de organização da entidade. Vejamos se assim é. Imputa-se à arguida a prática da infração prevista no artigo 18.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de março, punível nos termos previstos no artigo 49.º, § 1.º e 117.º, § 1.º, al. bb) do anexo I, a que se refere o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, no qual se dispõe que: «Constitui contraordenação ambiental muito grave o abandono e a descarga de RCD em local não licenciado ou autorizado para o efeito.» Revisitando a descrição factológica constante da decisão administrativa, vemos que se imputou à arguida o seguinte: «a) No dia 17 de outubro de 2017, pelas 9h35, DD, funcionário da Junta de Freguesia de … (ora arguida), procedeu ao despejo de cerca de três carradas de Resíduos de Construção e Demolição (RCD) na valeta de um caminho vicinal em … – …; b) O funcionário identificado efetuou o depósito de RCD naquele local a mando do Encarregado da Junta, CC, ambos exercendo funções na estrutura da arguida; c) O referido Encarregado da Junta ali compareceu, tendo declarado que tinha ordenado o depósito naquele local; d) O intuito do depósito no local era proceder ao espalhamento do RCD na valeta; e) Os RCD descarregados no local fiscalizado eram compostos, mormente, por fragmentos e cimento e tijolos, resultantes de demolição, vulgo entulho; f) A descarga de RCD verificada foi efetuada com recurso a veículo da Junta de Freguesia de …, carrinha …, de matrícula …; g) O local onde foram descarregados os RCD em questão (na valeta de um caminho vicinal em … – …) não reunia as condições para receber aquele tipo de resíduos, ou seja, RCD não triados, não sendo local autorizado/licenciado para o efeito; h) Face ao exposto, foi o Encarregado informado de que teria de proceder à recolha dos RCD ali depositados encaminhá-los para o centro de Recolha de Resíduos de …, por ser esse o local de destino adequado; i) A arguida tinha a obrigação de procurar conhecer e acatar as normas legais reguladoras da atividade que exercia; j) A arguida, sendo detentora dos RCD supra identificados, estava adstrita ao cumprimento de obrigação legal que sobre si impendia, in casu assegurar a correta gestão dos mesmos; k) A arguida representou que descarregava e abandonava os resíduos em questão em local não licenciado ou autorizado para o efeito, incumprindo normas ambientais, mas não se conformou com tal situação; l) Ao atuar da forma descrita, a arguida não agiu com a diligência necessária, a que estava obrigada e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem censurabilidade à infração praticada ou que excluam a ilicitude da sua conduta.» Uma vez que é apenas dos aspetos formais da decisão administrativa que aqui curamos, atentemos agora na norma relativa aos mesmos, que é o artigo 58.º RGC, onde se dispõe: «1. A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com a indicação das provas obtidas; c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias. Com os olhos na decisão administrativa impugnada, constatamos que a mesma identifica a arguida, descreve os factos praticados, situando-os no tempo, demonstrativos de descarga de RCD, pertencentes estes à arguida, em local não licenciado ou autorizado para o efeito, operação essa levada a efeito por empregados dela, em dia e no horário de serviço, utilizando os meios e instrumentos a ela pertencentes. Tendo aquela representado que descarregava e abandonava os resíduos em questão em local não licenciado ou autorizado. Com o que consideramos respeitada a matriz formal estabelecida no normativo extratado. E sublinhemos repetindo-nos: só deste aspeto importa aqui cuidar, porque é apenas a este que se reporta a decisão recorrida. A descrição factológica contida na decisão recorrida, permite, nos seus termos essenciais, com referência ao § 2.º do artigo 7.º do RGC, onde se dispõe que «as pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercícios das suas funções», a valoração da atuação imputada à arguida, tendo em consideração as várias soluções plausíveis da questão de direito, talqualmente vem sendo entendido na doutrina e na jurisprudência.11 O que deveras sucede é que a tese sustentada pela arguida/recorrente, contende não com a questão formal, cingida à arrumação dos factos imputados objetiva e subjetivamente à arguida na decisão administrativa (consistindo a questão formal em saber se a decisão administrativa cumpre os requisitos do artigo 58.º RGC - que constitui o objeto do recurso). Antes tem em vista já o mérito da imputação objetiva e subjetiva dos factos descritos naquela peça processual. Isto é, considera a recorrente que os factos que lhe são imputados, ainda que provados, nunca seriam integradores do ilícito que se lhe imputa. Sucede que essa não é já a questão prévia de que conheceu o despacho recorrido, restrita à conformação formal da decisão administrativa. Reporta-se antes (e já) a questão de fundo. Mas esta, como visto, foi relegada para a sentença, a proferir na sequência da audiência ainda por realizar. E, por assim ser, nada temos a censurar à decisão recorrida. 5. Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em: a) Confirmar a decisão recorrida, por esta se mostrar irrepreensivelmente bem fundada na lei e no direito. b) A taxa de justiça a suportar pela recorrente é fixada em 4 UCs. (artigo 93.º, § 3.º RGC). Évora, 3 de junho de 2025 Francisco Moreira das Neves (relator) Manuel Soares Carla Oliveira .............................................................................................................. 1 Não se transcrevendo as que se referem à questão da admissibilidade de recurso da decisão impugnada, em razão de tal questão ter sido resolvida na fase do exame preliminar. i. 2 A ordem de conhecimento das questões não segue o padrão habitual, atendendo a uma lógica que deflui das particularidades do caso concreto. 3 António Leones Dantas, Direito Processual das Contraordenações, 2023, Almedina, p. 236 ss. 4 O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem confirmado a aplicação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - respeitante ao processo justo e equitativo - em processos contraordenacionais (Cf. Acórdão do TEDH de 27set2011, [Menarini Diagnóstics S.R.L. c. Itália, queixa 43509/08]). 5 Sobre a natureza do regime das contraordenações e da sua estrutura procedimental cf. Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações: da cisão à convergência material, pp. 19 ss., Coimbra Editora, 2016. 6 Ac. TConstit 246/2017, 17/5/2017 7 Ramón García Albero («Non Bis In Idem» Material y Concurso de Leyes Penales, Barcelona, 1995, p. 24): 8 Henrique Salinas, Do caso julgado à definitividade da sentença penal, disponível em http://www.fd.lisboa.ucp.pt, p. 15. 9 Inês Ferreira leite, Ne (Idem) Bis In Idem – proibição de dupla punição e de duplo julgamento: contributos para a racionalidade do poder punitivo público, vol. I, Lisboa, 2016, p. 591. 10 Ob. cit., p. 573, nota 6199. 11 Tendo presente a diversidade de entendimentos exegéticos, com referência ao artigo 7.º RGC, sobre o modo de imputação da conduta aos entes coletivos. As teses, seus autores e as decisões jurisprudenciais que vêm recaindo sobre tal questão poderão ver-se p. ex. em: Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2.ª ed., 2022, Universidade Católica Editora, p. 53 ss. (em anotação ao artigo 7.º RGC); e em António Beça Pereira, Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 13.ª ed., 2022, Almedina, p. 49 e ss. (também em anotação ao artigo 7.º RGC). |