Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1390/20.4T8BJA-G.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
HOMOLOGAÇÃO
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Prevendo o plano de insolvência aprovado, em relação ao crédito reconhecido ao Instituto da Segurança Social, IP, o seu pagamento integral, incluindo juros de mora à taxa legal em vigor para as dívidas ao Estado e demais entes públicos, em quatro prestações mensais, vencendo-se a primeira no mês seguinte ao proferimento da sentença homologatória do plano, é injustificado o voto contra da credora.
II. Pese embora a ausência de consentimento do ISS, IP para o plano prestacional, considerando que se está perante uma alteração insignificante do regime geral, de escassa ou nula relevância atendendo ao interesse do credor, impõe-se considerar que a falta de autorização consubstancia violação negligenciável, não prejudicando a aprovação integral do plano, com vinculação daquele, nos termos do artigo 215.º do CIRE.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1390/20.4T8BJA-G.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja
Juízo Local Cível de Beja – Juiz 1


I. Relatório
No Juízo Local Cível da Comarca de Beja, inconformado com a sentença proferida em 6 de Dezembro de 2023 [ Ref.ª 34016299] que homologou o plano de insolvência previamente aprovado em Assembleia de credores, dela interpôs recurso o credor ISS, IP, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões:
“i. Vem o presente recurso interposto da sentença que em 06 de Dezembro de 2023 homologou o Plano de Insolvência apresentado pela insolvente e credora (…), Lda..
ii. A proposta foi aprovada por credores representando mais de 50% da totalidade dos votos emitidos e, destes, correspondendo mais de metade a créditos não subordinados (artigo 212.º, n.º 1, do CIRE).
iii. O Instituto de Segurança Social, IP votou contra o Plano de Insolvência aprovado.
iv. O mencionado Plano não acautela os interesses da Segurança Social, não se afigurando credível a proposta contemplada no mesmo.
v. Em conformidade com o n.º 3 do artigo 190.º do Código dos Regimes Contributivos existem indícios de inviabilidade económica da empresa e clara violação do artigo 42.º do mesmo Código.
vi. As condições de regularização da dívida à Segurança Social são excecionais e imperativas, conforme o disposto no artigo 190.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social.
vii. O Instituto de Segurança Social está subordinado à observância das normas legais aplicáveis à regularização dos créditos tributários.
viii. Consagram tais normas princípios de indisponibilidade dos créditos tributários.
ix. Nos temos do artigo 30.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, o crédito tributário, no qual se integra o crédito da Segurança Social, é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua alteração, redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
x. Em conformidade com o n.º 3 do artigo 30.º da LGT, as normas do CIRE não podem prevalecer sobre as normas imperativas que regulam os créditos fiscais.
xi. Mais, a homologação de um Plano de Insolvência que inclua pagamento em prestações de créditos sem o acordo da segurança Social constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, nos termos do artigo 215.º do CIRE.
xii. Por tal motivo, o mesmo deve ser declarado ineficaz em relação à Segurança Social, sendo-lhe oponível.
xiii. Em face do exposto, aplica-se em absoluto a regra de que o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários se sobrepõe a qualquer outra legislação especial, nomeadamente ao CIRE.
xiv. A sentença de homologação do Plano de Insolvência proferido nos presentes autos violou o disposto no artigo 192.º, n.º 2, do CIRE, artigo 190.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social e artigo 30.º da Lei Geral Tributária”.
Conclui que na procedência do recurso deverá ser declarada a ineficácia do Plano aprovado em relação ao apelante ISS, IP.

Contra alegou a insolvente, alinhando em defesa do julgado os fundamentos que condensou nas seguintes conclusões:
“1.ª - Conforme refere a própria sentença homologatória, não foi solicitada a não homologação do plano de insolvência por qualquer interessado nos termos e ao abrigo do artigo 216.º do CIRE, nomeadamente, pela Recorrente.
2.ª - Pelo contrário, a Recorrente não solicitou tal não homologação; não manifestou nos autos a sua oposição anteriormente à aprovação do plano de insolvência nem demonstrou ou sequer alegou em termos plausíveis que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.
3.ª - A Recorrente detém um crédito sobre a Insolvente no valor de € 34.987,84.
4.ª - O plano de insolvência homologado prevê que: “Quanto ao crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 34.987,84, serão integralmente pagos em quatro prestações iguais, mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte à data da prolação da sentença de homologação do presente Plano de Insolvência.”
5.ª - Como resulta de forma expressa do plano homologado, não há nem redução nem qualquer modificação do crédito da Segurança Social – o que se prevê é que tal crédito seja integralmente liquidado.
6.ª – Existe apenas uma modificação dos prazos de pagamento do mesmo crédito consistente num plano prestacional (quatro prestações).
7.ª – O artigo 30.º, n.º 2, da LGT apenas refere as hipóteses de redução ou extinção do crédito e não a impossibilidade de se alterar de maneira não significativa os prazos de pagamento.
8.ª – É falso que existam “indícios de inviabilidade económica da Insolvente” que permitam a conclusão de que que o Plano não acautela os interesses da Segurança Social…
9.ª – De acordo com o artigo 190.º, n.º 1 e 2, do CRCSPSS, “a autorização do pagamento prestacional de dívida à Segurança Social, a isenção ou redução dos respetivos juros vencidos e vincendos, só é permitida nos termos do presente artigo (…), quando, cumulativamente, tais condições sejam requeridas pelo contribuinte, sejam indispensáveis para a viabilidade económica deste e desde que o contribuinte se encontre, entre outras hipóteses, em processo de insolvência, de recuperação ou revitalização.
10.ª – Não só estamos no âmbito de um processo de insolvência, como o pagamento prestacional é condição indispensável à viabilidade económica da Insolvente, tal como decorre do Plano apresentado.
11.ª – Na Assembleia de Apreciação do Relatório, foi deliberada a manutenção da Insolvente em atividade; no Plano de Insolvência é reconhecido que a “Insolvente encontra-se, assim, numa situação de rutura de tesouraria, sendo incapaz de gerar os cash-flows necessários para o cumprimento das suas obrigações vencidas”; e que “A satisfação dos credores será obtida mediante a aquisição da totalidade das participações sociais da Insolvente pela (…), assumindo esta sociedade a gestão da Insolvente em termos que permitam assegurar a sua viabilidade económico-financeira com o objetivo de manter a Insolvente em atividade.”
12.ª – Assim, é afirmado no Plano de Insolvência homologado que a sociedade(…), Lda., credora da Insolvente, “(…) facultará à Insolvente os fundos adicionais que forem necessários para que a Insolvente desenvolva a sua atividade de forma regular e cumpra pontualmente o plano de pagamentos estabelecido no presente Plano de Insolvência bem como as suas demais obrigações” e ainda que “Os pagamentos aos credores serão realizados com recurso (…) (iii) a fundos proporcionados pela (…), futura sócia única da Insolvente”.
13.ª – Dos elementos que decorrem dos autos resulta, assim, o afastamento da presunção da inviabilidade económica da Insolvente.
14.ª – Por último, a Segurança Social não tem qualquer direito de veto quanto à homologação do Plano de Insolvência – o facto de a Segurança Social ter votado desfavoravelmente o Plano de Insolvência, por si só, não acarreta sua ilegalidade.
15.ª – Tal apenas sucederia se o Plano não respeitasse os requisitos legais e limites impostos em matéria de extinção e redução das dívidas fiscais e contributivas, o que não se verifica.
16.ª – Não ocorrendo qualquer redução ou extinção do crédito da Recorrente, no limite a aprovação do plano prestacional sem o acordo da Segurança Social apenas poderia configurar um vício negligenciável para os efeitos previstos pelo artigo 215.º do CIRE.
17.ª – Ao interpretar-se o n.º 3 do artigo 30.º da LGT no sentido de fazer depender a aprovação e a validade do acordo de pagamento do voto favorável da Segurança Social, esta adquiriria um verdadeiro voto de qualidade e um verdadeiro direito de veto, quando, à luz da lei e quanto ao carácter do voto em si, a Segurança Social é um credor como outro qualquer credor.
18.ª – Termos em que, dos artigos 190.º do CRCSPSS, 30.º da LGT e 192.º, n.º 2 e 215.º do CIRE, não decorre a pretendida inoponibilidade da sentença quanto à Recorrente.
19.ª - Deste modo, andou bem o tribunal a quo quando decidiu pela homologação do Plano de Insolvência, ainda que com o voto desfavorável da Recorrente, garantindo que esta e, em última instância, o Estado, receba a totalidade dos créditos, apenas permitindo que tal fosse feito de forma faseada, ao longo de quatro meses.
20.ª – Razão pela qual deverá a decisão recorrida ser mantida na íntegra, não merecendo qualquer censura ou reparo”.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas no recurso:
i. determinar se o Plano aprovado e homologado na sentença recorrida é inexequível, devendo ser recusada a sua homologação;
ii. verificar se ocorre violação não negligenciável por infracção das regras imperativas que protegem a intangibilidade dos créditos da segurança social, a determinar a ineficácia do Plano em relação ao recorrente ISS, I.P.
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II. Fundamentação
De facto
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com relevância para a decisão a proferir:
1. (…), arrogando-se titular de crédito sobre a requerida sociedade (…), Lda., com sede na Rua (…), n.º 3, em Beja, instaurou processo especial de insolvência da devedora, a qual veio a ser declarada por sentença proferida no dia 18 de Janeiro de 2021, pelas 23h59m (vinte e três horas e cinquenta e nove minutos).
2. Teve lugar a Assembleia de Apreciação do Relatório elaborado pelo Sr. AI, na qual foi deliberada a manutenção em actividade da devedora e a elaboração pela insolvente de um plano de insolvência.
3. A insolvente e a credora (…), Lda. apresentaram plano de insolvência, o qual foi admitido nos termos do artigo 207.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
4. Foi apresentada nova versão do plano inicialmente proposto.
5. Consta do plano apresentado que “A Insolvente encontra-se, assim, numa situação de rutura de tesouraria, sendo incapaz de gerar os cash-flows necessários para o cumprimento das suas obrigações vencidas, encontrando-se por isso em situação de insolvência nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do CIRE, conforme declarado por sentença de 18 de janeiro de 2021.
6. Nele se refere ainda que “O presente Plano de Insolvência tem como objetivo a elaboração de um plano de pagamento dos créditos sobre a insolvência (artigo 192.º do CIRE).
A satisfação dos credores será obtida mediante a aquisição da totalidade das participações sociais da Insolvente pela (…), assumindo esta sociedade a gestão da Insolvente em termos que permitam assegurar a sua viabilidade económico-financeira com o objetivo de manter a Insolvente em atividade.”
7. No que respeita ao crédito reclamado e reconhecido ao Instituto de Segurança Social prevê-se no plano que:
Atenta a indisponibilidade do crédito tributário, nos termos do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 34.987,84 serão integralmente pagos em quatro prestações iguais, mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação seis meses após a data do trânsito em julgado da sentença de homologação do presente Plano de Insolvência.
(… )
A (…) facultará à Insolvente, na medida do que for necessário, os meios financeiros para que esta possa pagar os créditos acima indicados e nos termos acima indicados.
8. Realizou-se assembleia de credores para discussão e votação da proposta revista do plano de insolvência (ref.ª 434317295), na qual se encontraram representados credores cujos créditos ultrapassam um terço do total dos credores com direito de voto (quórum de reunião) – 96,718%, correspondente a € 409.165,71 dos créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência.
9. O resultado da votação foi o seguinte:
Autoridade Tributária e Aduaneira: absteve-se;
Instituto da Segurança Social - IP: Votou desfavoravelmente;
(…) – Sociedade de (…) Mútua, SA: Votou desfavoravelmente;
Banco (…), SA: Votou desfavoravelmente;
(…) – STC, SA: Votou desfavoravelmente;
(…), Lda.: Votou favoravelmente.
9. A proposta foi aprovada por credores representando mais de 50% da totalidade dos votos emitidos, detendo a credora que votou favoravelmente 60,95% do total daqueles votos, correspondente a € 249.403,79 dos créditos não subordinados reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência.
10. Votaram contra o plano apresentado credores que representam 38,25% dos votos emitidos, correspondente a € 156.501,69 dos créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência.
11. A credora AT, que se absteve, representa 0,80% dos votos emitidos, correspondente a € 3.260,23 dos créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência.
12. O crédito reconhecido ao ISS, IP ascende a € 34.987,84, tendo € 17.834,64 natureza privilegiada e € 17.153,20 natureza comum, representando 8,2704% dos votos emitidos.
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De Direito
Da recusa oficiosa de homologação do plano: a manifesta inviabilidade / inexequibilidade como fundamento
Conforme resulta dos autos, analisado o plano de insolvência aprovado, a Sr.ª juíza do Juízo Local Cível de Beja considerou não se verificar nenhuma das circunstâncias previstas no artigo 215.º do CIRE (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção de origem) e que impõem seja oficiosamente recusada a homologação do mesmo.
Cabe antes de mais esclarecer que tendo a aqui apelante invocado como fundamentos de recusa/ineficácia do plano violações em seu entender não negligenciáveis de regras de conteúdo, fundamento da recusa oficiosa de homologação do plano nos termos do citado artigo 215.º, não releva que não se tenha anteriormente oposto, exigência esta formulada pelo artigo 216.º mas que aqui se queda sem aplicação.
Feita tal prévia precisão, verifica-se ter sido invocada pela apelante a inviabilidade da empresa – e do plano, que não prevê a sua liquidação –, revelada pela circunstância de não apresentar declarações de remunerações desde Julho de 2021, apesar de ter vinculados ao Sistema de Segurança Social dois membros de órgão estatutário e um trabalhador por conta de outrem, o que determinaria a sua recusa oficiosa nos termos do já citado artigo 215.º. Vejamos se lhe assiste razão quanto a este primeiro fundamento.
A manifesta inexequibilidade do plano constitui fundamento para a não admissão da respectiva proposta (artigo 207.°, n.º 1, alínea c)), implicando a formulação de um juízo sobre o respectivo mérito. Deste modo, não deverá ser admitida a proposta que, por exemplo, contenha medidas insusceptíveis de serem jurídica ou materialmente realizadas, designadamente por não existirem meios para tal.
No entanto, o plano que não tenha sido objecto de rejeição nos termos do artigo 207.º, interessando agora a sua alínea c), e tenha obtido a aprovação da maioria qualificada dos credores prevista na lei, não tem, ainda assim, garantida a sua homologação, porquanto, deferindo o artigo 215.º ao juiz “o cargo de guardião da legalidade, cabendo-lhe, em consequência, sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano[1][2], os motivos que deveriam ter determinado a rejeição da proposta, consubstanciado violações não negligenciáveis atinentes ao conteúdo do plano, constituem fundamento oficioso de recusa da sua homologação.
Impõe ao juiz o citado artigo 215.º que recuse a homologação do plano aprovado pelos credores sempre que ocorra “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”, estando portanto em causa tanto aspectos de procedimento como de substância, estes atinentes ao conteúdo do plano. “Normas procedimentais serão assim todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, ao passo que normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as relativas à parte dispositiva do plano mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”[3]. Mas, atente-se, nos termos da lei não é qualquer desvio que implica a recusa de homologação, exigindo que se trate de “violação não negligenciável”, deixando ao intérprete a complexa tarefa de concretização do conceito.
Pese embora a categorização dos vícios (uns atinentes ao procedimento, outros ao conteúdo), porque submetidos ao mesmo regime, esbatido fica o relevo da distinção. Mas qual então o critério que permite a elevação de uma violação de lei à categoria de não negligenciável, permitindo a desconsideração de outra?
Primeiro aspecto a destacar, face à literalidade da disposição legal, violações menores deverão ser desconsideradas. Não negligenciável será a violação de norma imperativa que acarrete a produção de um resultado vedado por lei; inversamente, já poderá ser menosprezada a infracção que atinja apenas regras de tutela particular, as quais podem ser afastadas com o consentimento do titular do interesse protegido, critério proposto por Carvalho Fernandes e J. Labareda[4].
Submetidos os vícios procedimentais e aqueles que decorrem da violação de regras aplicáveis ao conteúdo do plano ao mesmo regime, é no entanto possível identificar situações em que a infracção às normas assume diferentes consequências no que se refere aos interesses em causa.
Reconhecendo os autores citados que a violação de lei, pressupondo a prática de acto não admitido ou omissão de formalidade imposta, se reconduz sempre e a final à prática de uma nulidade processual, numa orientação mais geral, defendem ser de apelar ao critério geral consagrado no n.º 1 do artigo 195.º do CPC, tendo-se assim por desvio relevante aquele que afecta o exame e a boa decisão da causa, “o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, renunciável”[5].
Dada a clara adequação do regime das nulidades à previsão normativa do artigo 215.º, aqui se acolhe o aludido critério, cumprindo pois indagar se se verifica no caso violação não negligenciável no que se refere às normas que regulam o conteúdo do plano conducente à recusa de homologação ou, pelo menos, à sua ineficácia em relação à recorrente.
O plano de insolvência deverá obedecer aos requisitos prescritos no artigo 195.º, nos termos do qual, e para o que aqui releva, “(…) deve indicar a sua finalidade, descrever as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e conter todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente:
a) A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor;
b) A indicação sobre se os meios de satisfação dos credores serão obtidos através da liquidação da massa insolvente, de recuperação do titular da empresa ou da transmissão da empresa a outra entidade;
c) No caso de se prever a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiro, e pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, e balanço pró-forma, em que os elementos do activo e passivo, tal como resultantes da homologação do plano de insolvência, são inscritos pelos respectivos valores;
d) Impacto expectável das alterações propostas, por comparação com a situação que se verificaria na ausência de qualquer plano de insolvência;
e) A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação” (vide o n.º 2 do preceito).
Em anotação a este artigo 195.º, e quanto ao alcance das diversas alíneas do transcrito n.º 2, advertem os autores que vimos citando[6], que a utilização do advérbio de modo “designadamente” no proémio do preceito mostra, em termos inequívocos, o carácter meramente enunciativo da enumeração. Por outro lado, o motivo é sempre o de facultar aos credores a exacta percepção da situação, para poderem actuar esclarecidamente, a que acresce a avaliação do tribunal acerca da verificação dos requisitos que legitimam a sua homologação. Por assim ser, a elaboração do plano não tem de obedecer a um modelo estereotipado, comum a todas as situações: deve é ser preparado em termos de, conforme os casos e as circunstâncias, contemplar a análise dos diversos aspectos considerados na lei em termos que permitam a cabal compreensão das propostas nele contidas.
A exacta compreensão da exigência legal adquire particular relevância quando, como é o caso dos autos, o colectivo de credores aprovou o plano, no que foi secundado pela Sr.ª juíza que o homologou, pretendendo agora um credor, na circunstância um credor institucional, o ISS, IP, que a sua homologação deve ser recusada com fundamento na sua inviabilidade, o que constituí violação não negligenciável de normas atinentes ao seu conteúdo.
Não estabelecendo a lei um elenco típico das medidas a adoptar, o plano aprovado pelos credores no caso vertente prevê, a par de providências com incidência no passivo, a aquisição da insolvente pela sua maior credora, que passará naturalmente a assumir a gestão daquela, disponibilizando, se necessário for, os meios para que o plano possa ser cumprido. Acresce que, sendo o único activo da devedora insolvente um contrato de arrendamento com a Santa Casa da Misericórdia de (…) tendo por objecto prédio com terreno cultivável, vem previsto o subarrendamento do mesmo, gerando a diferença, favorável à insolvente, entre as rendas cobradas ao subarrendatário e as pagas à senhoria, meios financeiros que serão afectados à satisfação do passive. Ora, não podendo com certeza garantir-se que o plano venha a ser pontual e cabalmente cumprido, afigura-se contudo observadas as exigências formuladas no n.º 2 do artigo 195.º, resultando ainda evidente que a liquidação, como alternativa, não favoreceria os credores.
Deste modo, e face ao estabelecido no plano, não vemos que dele resulte ser manifesta ou ostensivamente inexequível, ou seja, que se evidencie serem as medidas nele previstas jurídica ou materialmente inviáveis (cfr., neste sentido, o acórdão do TRG de 5 de Dezembro de 2013, no processo n.º 7459/12.1TBBRG-G.G1), não podendo ser recusada a sua homologação com este fundamento.
Questão diversa, a determinar, no entendimento da apelante, a ineficácia do plano aprovado em relação aos créditos de que é titular, é a da violação das normas imperativas que consagram a intangibilidade dos créditos tributários ou equiparados, como é o caso dos créditos da segurança social, violação não negligenciável, portanto, e que pretende ter ocorrido.
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Da ineficácia do plano em relação ao credor ISS, IP
A apelante, indicando como violados os artigos 192.º, n.º 2, do CIRE, artigo 190.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social e artigo 30.º da Lei Geral Tributária, normas legais imperativas, sustenta que não lhe é oponível o plano aprovado e homologado no que respeita ao crédito por si reclamado e reconhecido, uma vez que nele se prevê, sem o seu consentimento, o pagamento em prestações.
Contrapõe a devedora que não prevendo o plano qualquer redução ou extinção do crédito da apelante, deve ser mantida a sentença homologatória.
A questão assim colocada não é nova, afigurando-se no entanto pertinente recordar os seus antecedentes, para o que nos iremos socorrer, dada a sua clareza, do voto de vencido aposto ao acórdão do STJ de 17 de Outubro de 2023 (processo 2395/22.7 T8VFX.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt).
Conforme ali se consignou, “É conhecida a polémica que a homologação do ‘Plano’ que modifique os créditos tributários (designadamente, do Estado e das Instituições de Segurança Social) tem gerado”.
Por o “Plano” – convenção ou negócio jurídico próprio do direito da insolvência – ter a força jurídica especial de afetar os direitos dos credores (aparentemente, todos os credores, com exceção das entidades referidas no artigo 196.º/2, do CIRE, em que se incluem o BCE e os Bancos Centrais dos Estados membros), passou a entender-se neste STJ, pese embora a regra da “indisponibilidade” dos créditos tributários estabelecida nos artigo 30.º/2, 36.º/2 e 3, da LGT, que as dívidas fiscais e as dívidas à segurança social podiam ser comprimidas pelo “Plano” (argumentou-se que não existia, no caso do “Plano” prever perdões, reduções ou moratórias no pagamento das dívidas fiscais e da segurança social, violação das normas fiscais imperativas por vontade das partes ou dos credores, mas sim a necessidade de observar um regime especial, consagrando-se a igualdade de tratamento para todos os credores, criado pelo próprio legislador).
Face a tal contexto e entendimento jurisprudencial, a Lei do Orçamento de 2011 veio dizer, nos seus artigos 123.º e 125.º, que a regra geral tributária constante do artigo 30.º/2 – que estabelece a indisponibilidade do crédito tributário e que diz que só no respeito pelos princípios da igualdade e da legalidade tributárias o mesmo poderá ser comprimido – não é alterável por uma qualquer legislação ou regime especial, querendo referir-se, não há qualquer dúvida, ao CIRE.
Temos pois, a partir de tal Lei do Orçamento, que o mesmo legislador que impõe aos particulares um regime de exceção, obrigando-os a um “Plano” (seja de recuperação seja de insolvência) que inclui o perdão ou a redução dos seus créditos sem ou contra o seu acordo, se pretende abster, ele próprio, de contribuir para a prossecução dos fins que visou atingir com o processo de insolvência, pretendendo manter intocáveis os seus créditos e impondo aos demais credores todo o esforço de recuperação do insolvente.
E é neste ponto – perante a desarmonia e inconciliabilidade das leis, perante o Estado que produz legislação insolvencial com a função de recuperação de empresas (e que anuncia medidas legislativas de recuperação e revitalização das empresa), mas não quer participar nos sacrifícios que tais medidas representam – que este STJ (sem embargo de reconhecer a referida desarmonia e inconciliabilidade) excogitou a “tese da ineficácia relativa”, que, segundo o Conselheiro Fonseca Ramos (no local e artigo referidos no Acórdão), “(…) a par de constituir a solução que melhor satisfaz a conciliação dos interesses em jogo e supera a intransigência do legislador fiscal, obviando às drásticas consequências da não homologação do plano de insolvência, possibilitando a recuperação do insolvente, as mais das vezes à custa de pesados sacrifícios”.
Temos, pois, que após a alteração introduzida pelo DL nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que aditou um n.º 3 ao citado artigo 30.º, segundo o qual “o disposto no número antedito prevalece sobre qualquer legislação especial”, passou a ser entendimento maioritário na doutrina e na jurisprudência, que, face ao princípio da indisponibilidade dos créditos públicos, “os créditos do Estado e da Segurança Social são, em princípio, insuscetíveis de perdões, reduções de valor, moratórias ou de outros condicionamentos, não podendo ser afetados por plano de insolvência ou de revitalização, contra a vontade dos seus titulares”[7]. Aqui chegados, e abstraindo da crítica que à tese que predominantemente vigora na 6.ª secção do STJ, com competência especializada em matéria comercial, é feita a seguir no voto que se deixou parcialmente transcrito, cabe questionar se não haverá situações em que se imponha a homologação pura e simples do plano, arredando a solução da ineficácia relativa.
De volta ao caso dos autos, importa antes de mais determinar se, conforme defende a apelada, na esteira, aliás, do decidido no acórdão do TRC 26/4/2022 (processo n.º 840/21.7T8ACB.C1, acessível em www.dgsi.pt), o pagamento em prestações previsto no plano não viola o artigo 30.º da LGT, por não importar extinção ou redução do crédito reconhecido à apelante.
Não se questiona que as dívidas por contribuições à Segurança Social assumem a natureza de dívidas tributárias, às quais se aplica a Lei Geral Tributária, dada a sua natureza de tributos parafiscais (cfr. artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da LGT.
Dispõe o convocado artigo 30.º que
“1. Integram a relação jurídica tributária:
a) O crédito e a dívida tributários;
b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição;
c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto;
d) O direito a juros compensatórios;
e) O direito a juros indemnizatórios.
2. O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
3. O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.
Por seu turno, o artigo 36.º do mesmo diploma estabelece, para o que aqui releva:
“1. A relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário.
2. Os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes.
3. A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei”.
Defendeu-se no citado acórdão do TRC, invocado pela apelada, que o pagamento prestacional, constituindo mera modificação dos prazos de pagamento, encontra-se subtraído à previsão do citado artigo 30.º, uma vez que, em bom rigor, não prevê qualquer extinção ou redução de juros ou capital e tal possibilidade encontra-se expressamente prevista na lei tributária, designadamente, e no que respeita aos créditos da segurança social, no RCSPSS e artigo 81.º do Dec. Regulamentar n.º 1-A/2011. Entendeu-se ainda que a falta de autorização da credora Segurança Social sempre constituiria, por si só, uma violação negligenciável no caso de as restrições impostas pelo plano aos créditos por aquela titulados se conterem dentro dos parâmetros previstos pelas disposições tributárias aplicáveis[8].
Temos dúvidas que assim seja por princípio[9]. Com efeito, e tal como se assinala no acórdão do TRP de 19 de Dezembro de 2023 (proc. n.º 532/23.2T8AMT.P1, em www.dgsi.pt), em obediência ao proclamado princípio da legalidade, o legislador regulou as condições em que a própria administração tributária, aqui se incluindo a Segurança Social, pode autorizar o pagamento das dívidas tributárias em condições distintas das que a lei estabelece como regra geral, nomeadamente o pagamento em prestações – que não corresponde a uma moratória, ainda que daí resulte dilação do cumprimento – e a isenção ou redução dos juros. Tais condições estão reguladas nos artigos 196.º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, para a generalidade das dívidas tributárias, e nos artigos 190.º e seguintes do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), aprovado pela Lei n.º 10/2009, de 16 Setembro, e regulamentado pelo Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro (cfr. artigo 81.º deste diploma), especificamente para as dívidas por contribuições à Segurança Social. E pese embora o legislador tenha consagrado soluções mais flexíveis no que respeita aos créditos da SS do que propriamente em relação àqueles de que é titular a AT, a aprovação de um plano prestacional daqueles créditos pressupõe sempre a análise da situação concreta do devedor (cfr. n.º 5 do artigo 190.º do CRCSPSS) e depende de autorização.
Deste modo, tendo como certo que a alteração do artigo 30.º foi claramente motivada pelo propósito do legislador de reforçar a protecção de que gozam os créditos tributários, tal impede, em nosso entender, que as regras gerais do direito tributário, incluindo o exigido consentimento do credor, sejam afastadas pelas normas de direito insolvencial.
Do entendimento exposto resulta que constituirá violação das normas imperativas a introdução no plano de insolvência de um esquema de pagamento faseado dos créditos tributários, ainda que com observância dos limites previstos no regime tributário aplicável, sempre que o credor a tal se oponha. Todavia, casos há, conforme se afigura ser o caso dos autos, em que se impõe que tal violação de normas deva ser tida como negligenciável, atendendo a que não interfere – ou fá-lo em reduzidíssima expressão – na salvaguarda dos interesses a proteger, designadamente no que respeita à tutela do credor ISS, critério acima adoptado para distinguir a violação que deve ser ignorada daquela que o não pode ser, a impor a aprovação do plano com vinculação da credora não autorizante, atendendo à sua escassa ou muito diminuta relevância.
Com efeito, visto o plano aprovado verifica-se que, em relação ao crédito da apelante, prevê-se o seu pagamento integral, incluindo juros de mora à taxa legal em vigor para as dívidas ao Estado e demais entes públicos, em quatro prestações mensais, vencendo-se a primeira no mês seguinte ao proferimento da sentença homologatória do plano. Trata-se de um curtíssimo plano prestacional, prevendo-se o pagamento integral do crédito e juros moratórios, resultando numa alteração insignificante do regime geral, de escassa ou nula relevância atendendo ao interesse da credora, donde surgir como de todo injustificada -e até aparentemente contrária ao próprio interesse, uma vez que, considerando os elementos atinentes à situação económica da devedora, a avançar-se para a liquidação não se vê como poderia satisfazer mais rapidamente, se é que poderia satisfazer, o crédito de que é titular- a inflexibilidade da posição por si assumida[10]. Por assim ser, impõe-se considerar, atendendo ao critério antes avançado, que a falta de autorização da credora deverá aqui ser entendida como uma violação negligenciável, não prejudicando a aprovação integral do plano, com vinculação da apelante[11].
O entendimento exposto e solução a que conduz inscreve-se numa interpretação dos artigos 215.º e 30.º da LGT que, conforme se aponta no voto de vencido antes citado, respeita a unidade e harmonia do sistema jurídico, conciliando “os fins que as leis falimentares visam (recuperação de empresas) e, por outro lado, o interesse público na arrecadação das receitas fundamentais à preservação e desenvolvimento do Estado Social (o dever geral que todos temos de contribuir para as receitas suficientes para fazer face às necessidades coletivas)”.
Improcede, pelo exposto, o recurso interposto, sendo de manter a sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário: (…)
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Évora, 09 de Maio de 2024
Maria Domingas Alves Simões
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.ª Adjunta -Sr.ª Juíza Desembargadora Isabel Peixoto Imaginário;
2.º Adjunto- Sr. Juiz Desembargador Vítor Sequinho dos Santos.
[2] Carvalho Fernandes/João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª edição, pág. 825.
[3] Idem, pág. 826.
[4] Ob. e loc. citados.
[5] Ainda o CIRE anotado, pág. 827.
[6] Ob. cit., pág. 757.
[7] António Fonseca Ramos, “Os Créditos Tributários e a Homologação do Plano de Recuperação da Insolvência”, III Congresso de Direito da Insolvência, 2015, Coord. Catarina Serra, Almedina, págs. 367-369, citado no citado aresto do TRC de 26/4/2022.
[8] Cfr., em sentido idêntico, o recente acórdão do TRL de 9/4/2024, no processo n.º 919/23.0T8BRR-A.L1., também disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado: “Ainda que o plano de revitalização seja votado desfavoravelmente pela Segurança Social daí não decorre a inevitabilidade da sua ilegalidade, mas tão-só quando não respeite os requisitos ou limites da extinção ou redução das dívidas contributivas nos termos em que estas são legalmente autorizadas”.
[9] Conforme aliás afirmado no acórdão de 18 de Maio de 2018, proferido no processo n.º 840/16.9T8ELV.E1 relatado pela também aqui relatora e subscrito pelo ora 2.º adjunto, ainda que a propósito de um PER, “O conteúdo do plano de revitalização tem de observar os princípios constantes da lei tributária, e ainda o regime de pagamento faseado das dívidas à Segurança Social, do que resulta a necessidade de obter o acordo dos credores”, verificando-se porém que a situação aí apreciada tinha contornos muito diferentes: a homologação do plano havia sido recusada e a devedora/apelante pugnava no recurso pela declaração da ineficácia em relação aos credores tributários, o que foi concedido.
[10] Recorda-se que no plano das relações privadas, o artigo 802.º, n.º 2, do CC, numa emanação do princípio da boa fé no cumprimento dos contratos e preservação do negócio, priva o credor do direito de resolver o negócio no caso de o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, se revestir de escassa importância.
[11] O STJ, em acórdão 24 de Março de 2015 (processo n.º 664/10.7TYBVNG.P1.S1) já tinha defendido, em casos escolhidos, uma “válvula de segurança interpretativa”, em ordem a ultrapassar a oposição dos credores tributários. Ali se consignou, ainda que em jeito de obiter dictum “Sempre se diz ex abundanti, nesta nossa senda argumentativa, que temos entendido que a circunstância de que os créditos fiscais e da Segurança Social não serem iguais aos outros, não pode conduzir a uma tal protecção que mesmo sendo tais créditos de montante reduzido, pudesse ser permitido ao Estado acabar por inviabilizar qualquer tentativa de recuperação, votando contra todo e qualquer plano de recuperação, porque nestas situações particulares, efectuando uma interpretação actualista do artigo 215.º do CIRE vem-se entendendo como caso negligenciável admitindo, por isso, a aprovação do plano a violação que se traduza numa mera modificação dos prazos de pagamento e/ou numa redução das taxas de juros, que reflictam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva e se tal modificação dos prazos e redução de juros não estiver à partida proibida pelas disposições tributárias abstractamente convocáveis e invocáveis, cfr. neste sentido, o Acórdão do STJ de 25 de Novembro de 2014 (Relator Fernandes do Vale, onde a aqui Relatora e o Ex.º Primeiro Adjunto foram Adjuntos), in www.dgsi.pt.
Trata-se de uma “válvula de segurança” interpretativa que evita por em causa acordos em que aqueles créditos, pelo seu reduzido montante e/ou, por via da concessão de moratórias por banda da administração, têm vindo a ser cumpridos pelo devedor, os quais a seguir-se com rigor a interpretação efectuada pelo segundo grau, também nunca poderiam ser homologados desde que a tal se opusessem os respectivos credores”.