Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MÁRIO BRANCO COELHO | ||
Descritores: | RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO RETRIBUIÇÃO SUBSÍDIO JUSTA CAUSA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 06/12/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1. Na resolução do contrato por iniciativa do trabalhador, o requisito relativo à inexigibilidade da manutenção do vínculo não pode ser apreciado em moldes tão estritos como no caso de justa causa disciplinar. 2. A falta de pagamento do acréscimo remuneratório devido pela prestação de trabalho nocturno durante quase oito meses, assume relevo suficiente para tornar inexigível a manutenção da relação laboral e justificar a resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador. 3. O que releva não é o valor absoluto da remuneração em falta, mas a importância que a mesma assume no contexto das fontes de rendimento do trabalhador. 4. A lei não consigna qualquer dever do trabalhador avisar a entidade patronal que se encontra em violação da sua obrigação de pagamento pontual da retribuição. (Sumário da relatora) | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora: No Juízo do Trabalho de Santarém, M... demandou P..,., pedindo a declaração de improcedência dos fundamentos que determinaram a aplicação da sanção disciplinar de 30 dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade, a declaração de nulidade e ilicitude do respectivo procedimento disciplinar, e a declaração de justa causa na resolução que efectuou do seu contrato de trabalho, sendo a Ré condenada a pagar os seguintes montantes, acrescidos de juros de mora desde a citação: a) € 7.366,24, a título de indemnização por resolução do contrato com justa causa; b) € 1.740,81, a título de trabalho nocturno prestado entre Março e Outubro de 2017; c) € 50,00, a título de subsídio de fardamento devido de Janeiro a Outubro de 2017; d) € 557,00, a título de retribuição de férias pelo trabalho prestado no ano de 2016; e) € 510,58, a título de proporcionais de férias do ano de 2017; f) € 605,50, a título de formação não prestada entre 2013 e 2017; e, g) € 5.570,00, a título de indemnização por aplicação de sanção abusiva. Na contestação, alegou-se a inexistência de justa causa na resolução do contrato de trabalho, a irrelevância das prestações remuneratórias não pagas e a abusividade da sua invocação para proceder à resolução do contrato, e a regularidade e licitude da sanção disciplinar aplicada. Realizado o julgamento, a sentença julgou a causa parcialmente procedente e condenou a Ré no seguinte: a) pagar à A. a quantia de € 50,00, referente ao subsídio de fardamento dos meses de Janeiro a Outubro de 2017; b) pagar à A. a quantia de € 291,10, a título de acréscimo pelo trabalho nocturno prestado; c) revogar a sanção disciplinar aplicada à A. de trinta dias de suspensão com perda de retribuição; d) julgar verificados os fundamentos para a resolução do contrato de trabalho com justa causa e, em consequência, pagar à A. a quantia de € 4.920,17, a título de indemnização pela resolução do contrato; e) pagar à A. a quantia de € 562,28, referente a crédito de horas de formação; f) pagar à A. a quantia de € 586,53, referente a férias vencidas e não pagas; e, g) pagar os juros de mora à taxa legal de 4% desde a data do respectivo vencimento até integral pagamento sobre as quantias referidas nas alíneas antecedentes. Inconformada, a Ré recorre e conclui: 1. O presente recurso limita- se a solicitar a reapreciação da matéria de direito. 2. A lei contempla a possibilidade da trabalhadora resolver o seu contrato de trabalho com fundamento num facto culposo da entidade empregadora que torna inexigível a subsistência da relação laboral. 3. Das várias circunstâncias de facto e de direito invocadas pela A. para fundamentar a sua decisão rescisória, apenas teve acolhimento, a falta de pagamento da retribuição referente ao trabalho nocturno prestado. 4. Sucede porém, que a A. ao invés de ter pugnado pela resolução do contrato de trabalho 30 dias apos os 60 dias de atraso do pagamento, a contar da data do seu inicio, Março de 2017 apenas veio a fazer a 30 de Novembro de 2017, através da comunicação dirigida à R. nos termos e para os efeitos do artigo 394º do C.T. 5. Ora, nessa data, por força do artigo 395º, nº 1 e 2 do C.T. o direito a resolver o contrato caducara já em Junho de 2017 (Março + 60 dias + 30 dias). 6. Mas mesmo que assim se não entenda, o que só por mera hipótese se concede, a boa fé impunha á A. o dever de avisar a entidade patronal de que estaria a cumprir defeituosamente as prestações a que se obrigara. Porém não o fez! 7. Daí decorreu que a atitude da A. converteu a sua súbita decisão de romper o contrato numa surpresa para a R. e, por isso mesmo, abusiva representado um “venire contra factum proprium”! 8. Por ultimo, o facto de terem decorrido mais de 9 meses entre o início da falta de pagamento de uma parte pouco significativa da remuneração mensal, não tornou impossível a continuação da relação laboral (€271,07, distribuídos ao longo de 9 meses equivalem a cerca de €30,00 mês, a 5% do ordenado base). 9. Inexistiu assim, “in casu” justa causa na decisão da rescisão contratual levada a cabo pela A. 10. Nestes termos, deve a presente e douta sentença ser anulada e substituída por uma outra que absolvendo a R. do pedido, declare a inexistência de justa causa subjectiva, como é de inteira Justiça. Respondendo, a A. pugnou pela manutenção da decisão recorrida. Produziu o Ministério Público o respectivo parecer, o qual foi notificado às partes. Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir. A matéria de facto apurada pela primeira instância é a seguinte: 1. A Ré dedica-se à produção e comercialização de produtos médico-hospitalares. 2. A A. foi admitida para trabalhar sob autoridade, direcção e fiscalização da Ré, no dia 02 de Fevereiro de 2009, para desempenhar as funções correspondentes à categoria profissional de Operário Semiespecializado, afecta à produção de tubos plásticos e montagem de sistemas de soros, por um período de 3 (três) meses, renovado por duas vezes. 3. A A. encontrava-se ao serviço da Ré, de forma ininterrupta, desde o dia 02 de Fevereiro de 2009 até 30 de Novembro de 2017, data em que resolveu o seu contrato de trabalho invocando justa causa. 4. A A. prestava as funções descritas no ponto 2, com um horário semanal de 40 horas, distribuídas por cinco dias, de segunda a sexta, entre as 07.30 horas e as 16.00 horas ou das 16.00 horas às 00.30 horas, 5. A A. tinha os dias de descanso aos sábados e domingos. 6. A A. auferia uma retribuição mensal de € 450,00, actualizada em 2017 para o valor mensal de € 557,00, acrescida de subsídio de alimentação, liquidado por atribuição de um cartão “free refeição”, no valor diário de € 6,83. 7. A A. auferia de um subsídio de fardamento no montante mensal de € 5,00. 8. Nos últimos anos a A. desempenhou as suas funções entrando ao serviço pelas 16.00 horas e saindo às 00.30 horas, sempre auferindo da Ré, até Fevereiro de 2017, as horas de trabalho prestadas entre as 22 horas e as 00.30 horas com o acréscimo de 25% decorrente de trabalho nocturno. 9. A partir do mês de Março de 2017, a Ré, de forma unilateral e sem o consentimento da A., deixou de proceder ao pagamento do acréscimo de 25% referente às horas de trabalho prestadas pela A. entre as 22 horas e as 00.30 horas. 10. A partir de Janeiro de 2017 a Ré deixou de proceder ao pagamento do subsídio de fardamento à A.. 11. De 21 de Fevereiro de 2017 a 11 de Outubro de 2017, a A. desempenhou as suas funções entre as 16.00h. e as 00.30h. 12. De 21 de Fevereiro de 2017 a 11 de Outubro de 2017, a A. trabalhou nos seguintes dias: - Fevereiro: 21 a 24, 27 e 28; - Março: dias 1 a 3; 6 a 10; 13 a 17; 20 a 24 e 27 a 31; - Abril: 3 a 7; 10 a 14; 17 a 21, 24 e 26 a 28; - Maio: 4, 5; 8, 10 a 12; 15 a 19; 22 a 24, 25 e 29 a 30; - Junho: 1, 2, 5 a 9; 12 a 14; 19 a 23 e 26 a 30; - Julho: 3 a 7; 10 a 14; 17 a 21; 24 a 28 e 31; - Agosto: 1 a 4; 7 a 11; 21 a 25 e 28 a 31; - Setembro: 11 a 15; 18 a 22 e 25 a 29; - Outubro: 2 a 4 e 9 a 11. 13. A Ré contabilizava os dias para efeitos de pagamento do subsídio de refeição e trabalho nocturno do dia 21 do mês anterior ao dia 20 do mês em que era efectuado o pagamento. 14. Durante o período diário de trabalho a A. tinha um intervalo de 30 minutos para alimentação e descanso. 15. A A., nos dias que se encontrava no desempenho de determinadas tarefas, nomeadamente na máquina, permanecia de pé durante sete horas e meia, com 20 minutos de pausa para ir à casa de banho, distribuídos por duas pausas de 10 minutos cada. 16. Desde data não concretamente apurada, a A. passou a sofrer de patologia na coluna vertebral. 17. Em 28 de Novembro de 2017 o médico de família da A. declarou que a A. não podia exercer actividades que impusessem sobrecarga para o eixo vertebral, nomeadamente desempenhar funções que a obrigassem a permanecer de pé por períodos prolongados, tendo aconselhado a mesma a solicitar parecer nesse sentido à Medicina do Trabalho para a dispensarem daquelas actividades. 18. Examinada pelo Sr. Dr. ..., médico da Medicina do Trabalho ao serviço da Ré, este considerou a A. apta condicionalmente de 19 de agosto de 2014 até, pelo menos, 25 de Outubro de 2016, desaconselhando que a A. exercesse as funções de pé que até então vinha desempenhando. 19. Pelo menos a partir de 11 de Setembro de 2017, a Ré colocou a A. a prestar as mesmas funções de pé, no mesmo horário, e com o mesmo período de descanso. 20. Em 22 de Setembro de 2017, a Ré notificou a A. da Nota de Culpa do procedimento disciplinar instaurado contra a mesma com vista ao despedimento com justa causa, com os fundamentos nela constantes e que aqui se dão por reproduzidos, nomeadamente: “5.º No dia 12 de Setembro do corrente ano a Encarregada Pa..., responsável de Turno, advertiu a Arguida de que deveria parar de distrair a sua atenção conversando com as colegas durante o trabalho, conduta que a arguida tem adoptado reiteradamente apesar das várias advertências de que tem sido alvo.6.º No dia 13 de Setembro a Arguida foi novamente advertida pelo mesmo motivo, tal como consta da Comunicação Interna que se transcreve seguidamente (…).7.º A Arguida nunca aceitou as diversas advertências de que fora alvo, ora retorquindo com maus modos. (…)11.º O comportamento da arguida, relatado na comunicação interna acima transcrita, representa um grave desrespeito para com a sua superior hierárquica, que bem sabia estar no cumprimento de directivas da Arguente, tanto mais grave e acintosa quanto é certo que foi praticada perante varias colegas de trabalho que a tudo assistiram, pondo em causa a disciplina laboral e o respeito devido à hierarquia da Arguente (…)”.21. Em 6 de Outubro de 2017 a A. respondeu à nota de culpa, nos termos constantes de fls. 37 a 42, que aqui se dão por reproduzidos. 22. A A. concluiu a sua resposta à nota de culpa com o pedido de declaração de nulidade da referida nota de culpa e improcedência do procedimento disciplinar, tendo ainda requerido que fossem tomadas as suas próprias declarações. 23. No seguimento da resposta à nota de culpa, a Ré, sem agendamento prévio, pediu verbalmente à A. que se apresentasse perante uma das suas funcionárias a fim de prestar declarações. 24. A Ré não notificou o Mandatário da A. para estar presente na ocasião referida em 23. 25. A A. recusou-se a prestar e assinar as declarações uma vez que não se encontrava devidamente acompanhada pelo seu Mandatário. 26. Em resultado dos factos acima expostos em 20 e 23, a A. entrou em depressão, facto que a impediu de conseguir desemprenhar as suas funções. 27. Motivo pelo qual, em 12 de Outubro de 2017, a A. entrou de baixa médica com incapacidade temporária para o trabalho, a qual se prolongou até à data da resolução do seu contrato de trabalho. 28. Em 31 de Outubro de 2017, a Ré notificou a A. da decisão final do procedimento disciplinar. 29. Concluindo pela aplicação de uma sanção de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade, pelo período de 30 dias. 30. A Ré concluiu o procedimento disciplinar sem lograr diligenciar pela tomada declarações à A. aceites e subscritas pela mesma. 31. Os factos dados como provados na decisão basearam-se em informação interna efectuada pela funcionária Pa..., que se encontrava em substituição da encarregada. 32. A Ré ouviu as testemunhas após a elaboração da Nota de culpa. 33. A Ré tentou acordar com o Mandatário da A. data para inquirição da mesma na sua presença, o que não se revelou possível, por o mesmo ter informado que para o dia marcado tinha outra diligência agendada. 34. Não consta do processo disciplinar quem foi o instrutor nomeado. 35. Em consequência de se encontrar em situação de baixa médica, a A. não chegou a cumprir a sanção quer de suspensão, quer de perda de retribuição. 36. Em 28 de Novembro de 2017, por carta registada com aviso de recepção, a A. comunicou à Ré a resolução com justa causa do contrato de trabalho que entre ambas vigorava, invocando os factos nela mencionados e que aqui se dão por reproduzidos, nomeadamente, a falta culposa de pagamento de retribuição correspondente às horas nocturnas, subsídio de fardamento, perseguição reiterada, fazendo uso sem quaisquer critérios do poder disciplinar, imposição de desempenho de funções em pé e durante várias horas, de onde resultou dores insuportáveis na coluna e uma grave depressão que a impossibilitam de prestar toda e qualquer tarefa e determinaram a incapacidade temporária para o trabalho desde 12 de Outubro de 2017. 37. Aquando da cessação do contrato de trabalho em consequência da resolução do contrato de trabalho levada a cabo pela A., a Ré não entregou à mesma qualquer quantia referente a créditos laborais, nomeadamente, os proporcionais do direito a férias correspondente ao trabalho prestado no ano de 2017. 38. Isto porque, a Ré deduziu aos créditos laborais da A. calculados aquando da cessação do contrato a quantia referente a 60 dias do pré-aviso da denúncia do contrato de trabalho em falta, no montante de € 1 114, 20, concluindo ser credora da A. no valor de € 205,29. 39. A A. não gozou 3 dias das férias respeitantes ao ano de 2016. 40. A A. não gozou as férias referentes ao trabalho prestado no ano de 2017. 41. No ano de 2017 o subsídio de férias e de Natal foram pagos à A. em duodécimos. 42. A A. não dispunha que qualquer outra fonte de rendimento além do seu vencimento. 43. Após a resolução do contrato de trabalho a A. teve que recorrer a apoio financeiro que lhe foi prestado pelo seu filho maior. 44. Nos anos 2013 a 2017, a Ré não prestou formação profissional à A.. 45. O subsídio de fardamento referido em 7 era uma contraprestação paga às trabalhadoras por limparem o respectivo fardamento. 46. A partir de Janeiro de 2017 a Ré instituiu um prémio de produtividade atribuído com regularidade mensal e de acordo com o empenho e produção de cada trabalhadora segundo a apreciação discricionária da Administração da Ré, que a A. nunca recebeu. 47. O horário de trabalho aceite pela A. aquando da sua admissão previa apenas 30 minutos para intervalo de descanso. 48. Tal horário encontra-se actualmente autorizado pelos Serviços com Competência Inspectiva do Ministério do Trabalho, autorização conseguida, com a concordância das trabalhadoras da Ré nela mencionadas, em data posterior a 23 de Novembro de 2017. 49. A Ré requereu PER, o qual correu sob o processo n.º 590/15.3T8STR da Secção de Comércio da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, tendo o Acordo de Revitalização sido homologado por despacho de 6 de Outubro de 2015. 50. Em Janeiro de 2016, na sequência do PER, a Ré comunicou às trabalhadoras, incluindo a A., a suspensão do respectivo contrato de trabalho, a qual não veio a concretizar-se. APLICANDO O DIREITO Da justa causa na resolução do contrato de trabalho por falta culposa de pagamento pontual da retribuição De acordo com o art. 394.º n.º 2 al. a) do Código do Trabalho constitui justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador a falta culposa de pagamento pontual da retribuição. Acrescenta o n.º 5 do mesmo artigo, que se considera culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias. Por outro lado, o n.º 3 al. c) do mesmo artigo afirma constituir ainda justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador a falta não culposa de pagamento pontual da retribuição. Ainda no domínio do Código do Trabalho de 2003, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vinha afirmando que, ocorrendo a falta de pagamento da retribuição que se prolongue por período superior a 60 dias sobre a data de vencimento, quer seja ela imputável, ou não, a título de culpa ao empregador, o trabalhador poderia resolver o contrato de trabalho com base em justa causa, tendo direito à indemnização de antiguidade a que se referia o art. 443.º n.º 1 daquele diploma. Paradigmático desta orientação era o Acórdão do STJ de 02.05.2007[1], do qual se extrai a seguinte passagem: «…não pode escamotear a realidade social – que, aliás já existe há alguns anos e ditou a edição de outros diplomas, entre eles a já aludida Lei n.º 17/86 – em que avultam as situações de pagamento não pontual das retribuições dos trabalhadores, ainda que isso se não deva a comportamentos culposos das entidades patronais, e que apontam para uma inexigibilidade da perduração ou subsistência da relação laboral. E, ponderando o que se consagra na parte final do aludido art. 9.º do Código Civil e o que acima de se deixou exposto, não se antolha como desprovida de razoabilidade a interpretação de harmonia com a qual em situações de justa causa objectiva o trabalhador, nos termos do art. 308.º da Lei n.º 35/2004, tem direito a indemnização, a fixar nos termos do n.º 1 do art. 443.º do Código do Trabalho. Uma tal interpretação, aliás, até se torna mais consonante, quer com o denominado princípio do tratamento mais favorável do trabalhador, quer com o direito (de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias fundamentais constantes do Título V do Diploma Básico), à retribuição do trabalho, conferido constitucionalmente pela alínea a) do n.º 1 do art. 59.º daquele Diploma, retribuição que, por entre o mais, não pode deixar de repousar na garantia de uma existência condigna.» Face ao actual Código do Trabalho, as situações de justa causa de resolução mencionadas no n.º 2 do art. 392.º continuam a ser meramente exemplificativas, mas a lei passou expressamente a declarar culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por um período de 60 dias, conferindo assim ao trabalhador direito à indemnização por justa causa na resolução do contrato. E ponderando ainda que ocorrem outras situações de justa causa objectiva na resolução do contrato de trabalho em que o trabalhador mantém o direito a indemnização, como sucede no caso de transferência do local de trabalho com prejuízo sério do trabalhador, regulada no art. 194.º n.º 5 do actual Código do Trabalho, por maioria de razão consideramos justificado que, falhando o principal crédito do trabalhador na relação laboral, de recebimento pontual e integral da sua retribuição, lhe seja conferido o direito de resolver o contrato de trabalho com justa causa e reivindicar a correspondente indemnização de antiguidade, tanto mais que o direito à retribuição tem consagração constitucional e é essencial a uma existência condigna. A jurisprudência[2] vem afirmando que a justa causa subjectiva para a resolução do contrato pelo trabalhador, exige a verificação dos seguintes requisitos: (i) um requisito objectivo, traduzido num comportamento do empregador violador dos direitos ou garantias do trabalhador; (ii) um requisito subjectivo, consistente na atribuição de culpa ao empregador; (iii) um requisito causal, no sentido de que esse comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Quanto ao primeiro requisito, está demonstrado que a trabalhadora cumpria um horário de trabalho com entrada às 16.00 horas e saída às 00.30 horas, sempre auferindo da Ré, até Fevereiro de 2017, o acréscimo remuneratório de 25% relativo ao trabalho nocturno prestado entre as 22.00 e as 00.30 horas, devido nos termos dos arts. 223.º n.º 2 e 266.º n.º 1 do Código do Trabalho, tendo deixado de o fazer a partir de Março desse ano, por motivos não justificados, apesar da A. ter continuado a cumprir o mesmo horário até 11 de Outubro de 2017. Dado que as retribuições eram pagas mensalmente – assim o demonstram os recibos de vencimento anexos com a petição inicial e não impugnados – e se venciam no último dia do mês ou no dia útil anterior – art. 278.º n.ºs 1 e 4 do Código do Trabalho – quando foi recebida a carta de resolução, estavam vencidos há mais de 60 dias os acréscimos remuneratórios devidos pela prestação de trabalho nocturno entre 21.02.2017 e 20.09.2017, atendendo a que a Ré contabilizava os dias para efeitos de pagamento deste valor de 21 do mês anterior a 20 do mês em que era efectuado o pagamento. Tal facto demonstra a violação pela empregadora do dever de pagamento pontual da retribuição, consignado no art. 127.º n.º 1 al. b) do Código do Trabalho. Quanto ao segundo requisito – comportamento culposo do empregador – há a afirmar que a doutrina vem defendendo que o art. 394.º n.º 5 estabelece uma presunção inilidível de culpa do empregador, “não afastável por prova em contrário, mas que não exclui a possibilidade de qualificar como culposas outras situações de incumprimento da obrigação retributiva, ainda que a falta de pagamento não perdure por 60 dias.”[3] Esta Relação de Évora tem igualmente decidido que a falta de pagamento de retribuições, que se prolongue por mais de 60 dias, presume-se culposa, não sendo ilidível essa presunção de culpa[4], e no mesmo sentido se tem orientado o Supremo Tribunal de Justiça.[5] Quanto ao terceiro requisito – a gravidade e consequências do comportamento da Ré tornaram imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho – Maria do Rosário Palma Ramalho ensina que não pode apreciar-se este requisito “em moldes tão estritos e exigentes como no caso de justa causa disciplinar (…). A fundamental dissemelhança entre as figuras do despedimento disciplinar e da resolução do contrato por iniciativa do trabalhador assim o impõe.”[6] No Supremo Tribunal de Justiça já se escreveu que: “Não obstante as circunstâncias a apreciar para a verificação da justa causa para a resolução do contrato por parte do trabalhador serem reportadas às estabelecidas para os casos da justa causa de despedimento levado a cabo pelo empregador, o juízo de inexigibilidade da manutenção do vínculo tem de ser valorado de uma forma menos exigente relativamente à que se impõe para a cessação do vínculo pelo empregador, uma vez que este, ao contrário do trabalhador, tem outros meios legais de reacção à violação dos deveres laborais.”[7] Na verdade, o trabalhador não dispõe de meios alternativos de reacção que lhe permitam conservar a relação laboral, ao contrário do empregador que dispõe de um leque de sanções disciplinares conservatórias. Por outro lado, ao elevar o princípio da estabilidade do emprego no que respeita ao despedimento e a liberdade de trabalho no que respeita à rescisão pelo trabalhador, a Constituição acentua que os valores e interesses em causa são profundamente diferentes, caso o contrato venha a cessar por iniciativa do trabalhador ou do empregador.[8] Conclui-se, pois, que em matéria de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, a apreciação da justa causa de resolução do contrato de trabalho não é tão exigente como nos casos de apreciação da justa causa de despedimento promovido pelo empregador. Argumenta a Ré que a A. tinha o dever de avisar a entidade patronal da falta de pagamento do acréscimo remuneratório pela prestação de trabalho nocturno, e que o valor em falta é parte pouco significativa da remuneração mensal. A retribuição é absolutamente fundamental para o trabalhador – não é apenas a principal prestação que lhe assiste em virtude do seu trabalho, mas constitui igualmente a sua principal (e única, na maior parte dos casos) fonte de rendimento, com que se sustenta, a si e à sua família. Logo, no que diz respeito à retribuição e à obrigação do seu pagamento pontual, pode afirmar-se que o dever das entidades empregadoras de garantir o pagamento das retribuições dos seus trabalhadores é absolutamente crucial. A falta de pagamento do acréscimo remuneratório devido pela prestação de trabalho nocturno, durante quase oito meses – 21.02.2017 a 11.10.2017 – deve assim ser considerada violadora de um dos deveres essenciais da empregadora, com relevo suficiente para tornar inexigível a manutenção da relação laboral e verificar-se a existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho. Não se argumente que o valor relativo ao referido acréscimo é diminuto. O que releva não é o valor absoluto em si, mas a importância que o mesmo assume no contexto das fontes de rendimento do trabalhador. Ora, no caso está demonstrado que a A. auferia a retribuição mínima nacional, fixada em € 557,00 mensais no ano de 2017, e que não dispunha de qualquer outra fonte de rendimento além do seu vencimento. Apesar dos valores mensais devidos pelo acréscimo remuneratório relativo ao trabalho nocturno rondarem os € 40,00 mensais, conforme cálculos correctamente elaborados na sentença recorrida, o certo é que assumiam um peso relevante no contexto dos rendimentos da trabalhadora, a quem foi exigido o sacrifício de prestar trabalho nocturno mas, sem qualquer explicação, foi subitamente recusado o pagamento do acréscimo devido por esse facto. Por outro lado, a lei não consigna qualquer dever do trabalhador avisar a entidade patronal que se encontra em violação da sua obrigação de pagamento pontual da retribuição. Como já se escreveu, era a Ré “quem estava em incumprimento quanto a tal pagamento e sabendo, como sabia e deveria saber, que tinha a obrigação desse pagamento e que, não o fazendo, incorreria ou poderia incorrer na situação prevista no art. 394.º n.º 2 al. a) do Código do Trabalho”.[9] Como avisadamente se escreveu na sentença recorrida, “este comportamento da empregadora, que se manteve por largos meses até à cessação do contrato, conduz à conclusão que não é exigível à trabalhadora manter o contrato de trabalho quando há quebra da confiança entre as partes, traduzida no continuado não pagamento de parte da retribuição, sem invocação de qualquer motivo, e, bem assim, na ausência de qualquer intenção de proceder ou retomar os pagamentos em falta, mantendo, contudo, a obrigatoriedade de prestação de trabalho nocturno (com as consequências que, na generalidade e normalidade dos casos, acarreta para a vivência pessoal e familiar do trabalhador) e associada ao corte de pagamento do subsídio de fardamento. (…) Acresce que estando em causa parte da retribuição devida, não se mostra curial afirmar que a ré não tinha conhecimento da relevância para a autora dessa ausência de pagamento e das repercussões que a sua conduta teria na vida e nos interesses patrimoniais da autora.” Argumenta, ainda, a Ré que a trabalhadora aceitou a falta de pagamento durante vários meses, pelo que a sua decisão súbita de romper o vínculo contratual constituiria comportamento abusivo, na modalidade de “venire contra factum proprium”. Para que o exercício do direito seja considerado abusivo, exige-se que o titular exceda de forma manifesta e clamorosa os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa-fé), quer pelos padrões morais de convivência social (bons costumes), quer pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça. No entender de Antunes Varela, para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade; quando esses limites decorrem do fim económico e social do direito impõe-se apelar para os juízos de valor positivo consagrados na própria lei.[10] No caso, a Ré não forneceu qualquer explicação para a súbita cessação do pagamento do acréscimo remuneratório devido pela prestação de trabalho nocturno, agravando o seu comportamento com a aplicação, em 31.10.2017, de uma sanção disciplinar de suspensão do trabalho por 30 dias com perda da retribuição, decisão esta que a sentença recorrida revogou por a considerar desproporcionada e desadequada, sendo que a Ré nem sequer impugnou nas suas alegações esta parte do dispositivo condenatório, que assim transitou em julgado. Ponderando que a aplicação do instituto do abuso de direito, como forma de paralisação de uma declaração de nulidade, reveste carácter excepcional, exigindo-se sempre uma actuação intoleravelmente ofensiva do sentimento ético-jurídico dominante, há a afirmar que não se mostra intolerável nem violador do fim económico ou social que justifica a existência do princípio da irredutibilidade da retribuição o modo como a A. procedeu à resolução do contrato de trabalho, num contexto de inexplicável retirada de parte da sua retribuição seguida da aplicação de uma sanção disciplinar desproporcionada, que agravaria ainda mais a sua débil situação económica. Concluindo-se ainda que dos autos não resulta que a trabalhadora se tivesse conformado com a perda de parte da retribuição que lhe era devida, há a concluir que a alegação de abuso de direito não merece atendimento. Uma última palavra quanto à invocação da caducidade do direito de resolver o contrato de trabalho por falta de pagamento pontual da retribuição. Lendo a contestação, esta excepção não é invocada, pelo que a Ré precludiu o direito de a invocar – art. 573.º n.º 1 do Código de Processo Civil. Note-se, ainda, que os recursos visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu, pelo que o Tribunal da Relação não pode ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas perante a primeira instância.[11] Improcede, pois, também esta linha de argumentação. DECISÃO Destarte, nega-se provimento ao recurso interposto, com confirmação da decisão recorrida. Custas pela Ré. Évora, 12 de Junho de 2019 Mário Branco Coelho (relator) Paula do Paço Emília Ramos Costa __________________________________________________ [1] Proferido no Proc. 07S532, publicado em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, cfr. ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.11.2008 (Proc. 08S1871), de 03.11.2010 (Proc. 425/07.0TTCBR.C1.S1) e de 12.10.2011 (Proc. 2384/07.0TTLSB.L1.S1), todos disponíveis no mesmo endereço. [2] De que é paradigmático o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01.10.2015 (Proc. 736/12.3TTVFR.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt. [3] Pedro Furtado Martins, in Cessação do Contrato de Trabalho, 4.ª ed., 2017, pág. 586. [4] Nomeadamente, nos Acórdãos de 13.10.2016 (Proc. 1472/15.4T8FAR.E1) e de 11.01.2017 (Proc. 292/14.8TTFAR.E1), igualmente publicados na página da DGSI. [5] Citando-se, a este respeito, os Acórdãos de 16.03.2017 (Proc. 244/14.8TTALM.L1.S1) e de 01.03.2018 (Proc. 1952/15.1T8CSC.L1.S1), também em www.dgsi.pt. [6] In Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6.ª ed., 2016, pág. 943. [7] Acórdão de 14.01.2015 (Proc. 2881/07.8TTLSB.L1.S1), igualmente publicado em www.dgsi.pt. [8] Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2017, supra citado. [9] Acórdão da Relação do Porto de 09.03.2015 (Proc. 736/12.3TTVFR.P1), igualmente em www.dgsi.pt. [10] Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., 2000, pág. 546. [11] A propósito, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.05.2016 (Proc. 1571/05.0TJPRT-C.P1.S1), também publicado em www.dgsi.pt. |