Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
111/12.0TARMZ-A.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
ALTERAÇÃO
SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE PROFISSÃO
Data do Acordão: 06/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - No decurso do inquérito, é possível alterar o estatuto coactivo do arguido, passando a medida de coacção de T.I.R., inicialmente fixada, para outra mais gravosa, se os factos indiciados no inquérito ganharam, entretanto, uma dimensão e um relevo totalmente diferentes (e mais graves) relativamente aos factos inicialmente participados.
II - Mostra-se adequada e não viola o princípio da presunção de inocência, a aplicação da medida de coacção de suspensão do exercício de profissão (artigo 199º do C. P. Penal) a uma arguida que, no exercício da sua profissão de notária, durante mais de um ano, e por diversas vezes, se apropriou de quantias em dinheiro a si entregues por vários outorgantes em escrituras públicas de compra e venda de imóveis e destinadas ao pagamento dos impostos devidos (IMT, imposto de selo e outros).
Decisão Texto Integral:
Processo nº 111/12.0TARMZ-A.E1


Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I - RELATÓRIO

Nos autos de inquérito nº 111/12.0TARMZ, dos Serviços do Ministério Público junto da Comarca de Reguengos de Monsaraz, em que é arguida A, foi proferido, em 28-02-2013, despacho judicial que aplicou à arguida a medida de coacção de suspensão do exercício da profissão.
Deste despacho interpôs a arguida o presente recurso, terminando a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
“1. Tendo por base o artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado de decisão condenatória, e pretendendo a arguida apresentar cabalmente a sua defesa em sede própria, com a devida prova, a mesma não se conforma com o douto despacho recorrido que agravou a medida de coacção, determinando a suspensão do exercício das funções de Notária, fundamentando-se no perigo de continuação da actividade perigosa.
2. Entende a arguida que a alteração das medidas de coacção, sobretudo quando ocorre agravamento, deve basear-se numa especial motivação, devendo, assim, fundamentar-se na inadequação da medida de coacção vigente.
3. Ora, se até ao dia 28 de Fevereiro de 2013 era suficiente o T.I.R. enquanto medida de coacção e se a alegada prática dos crimes ocorreu entre 14 de Fevereiro de 2011 e 05 de Maio de 2012, não se compreende o que terá motivado a agravação da medida de coacção.
4. Isto porque, não resultam dos autos indícios da prática de quaisquer factos passíveis de se enquadrar na prática do crime de peculato após o dia 05 de Maio de 2012.
5. A arguida desde o final de 2010, por ter sido mãe de um segundo filho, esteve mais afastada do Cartório Notarial, tendo confiado determinadas funções a um terceiro em quem tinha confiança, tendo tal confiança sido defraudada e esse terceiro foi afastado do cartório assim que a arguida tomou conhecimento da prática dos factos.
6. A arguida assumiu que os factos descritos no inquérito e no douto despacho recorrido efectivamente ocorreram no seu Cartório Notarial, sendo certo que em sede própria pretende também demonstrar que alguns dos ofendidos, os que aceitaram, começaram a ser ressarcidos assim que a arguida tomou conhecimento dos factos.
7. Não houve apropriação intencional, nem sequer apropriação em proveito próprio.
8. Quanto à personalidade da arguida o próprio despacho recorrido a considera como arguida primária, que se encontra familiar e socialmente inserida.
9. Pelo que, na senda dos ensinamentos de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 545, em anotação ao artigo 193º, entende-se que a medida de coacção aplicada viola o princípio da adequação, uma vez que este princípio dita que a medida de coação deve ser aplicada “(…) em função de factos e não em função da gravidade objectiva das imputações criminosas feitas ao arguido (…), sendo inadmissível uma presunção legal de perigo baseada na gravidade das imputações, com o ónus da defesa inverter esta presunção, provando a inexistência de perigo (…)”.
10. A arguida sempre cumpriu escrupulosamente os seus deveres legais e deontológicos, sendo que as verbas não entregues ocorreram num hiato temporal especificado, não tendo ocorrido desde 05 de Maio de 2012 quaisquer factos que indiciem a prática do crime de peculato ou de qualquer outro crime.
11. A arguida está social e familiarmente inserida, sendo que, se for afastada do exercício da profissão de Notária, deixará de conseguir obter sustento para si e para os seus filhos e de ressarcir aqueles que foram lesados por actos praticados no seu Cartório Notarial.
12. O despacho revidendo, ao suspender a arguida do exercício da profissão de Notária, viola o princípio da adequação previsto no artigo 193º do C.P.P. e o princípio da presunção de inocência previsto no nº 2 do artigo 32º da C.R.P.
Termos são os expostos, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, em que o douto despacho de aplicação da medida de coacção de suspensão do exercício de funções de Notária deve ser revogado, por violar os princípios da adequação e de presunção de inocência, uma vez que não existe qualquer perigo de continuação da actividade criminosa, considerando-se suficiente, adequada e proporcional como medida de coacção o T.I.R. já prestado, concedendo assim provimento ao presente recurso, far-se-á a costumada Justiça”.
*
O Ministério Público respondeu ao recurso, terminando a sua resposta nos seguintes termos (em transcrição):
“Concluindo, sempre diremos que, o perigo a que alude a alínea c) do art.º 204º do Código de Processo Penal se encontra devidamente expresso nos autos, e a fundamentação concreta do mesmo se encontra expressa no despacho judicial ora em crise, e que a medida de coacção aplicada à arguida é a única capaz de pôr cobro ao perigo que efectivamente se verifica, sendo necessária, adequada e proporcional às exigências cautelares que se fazem sentir, nos termos do art.º 193º do Código de Processo Penal.
Por tudo isto se conclui no sentido do presente recurso ser declarado totalmente improcedente e, consequentemente, mantendo-se a decisão recorrida que decretou que a arguida aguardasse os ulteriores termos do processo sujeita à medida de coacção de suspensão do exercício de funções, à qual já se encontra sujeita”.
*
Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, a arguida nada disse.
Colhidos os vistos legais, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objecto do recurso.

No presente caso, a única questão evidenciada no recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objecto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, consiste em saber se é de manter ou não a medida de coacção de suspensão do exercício de profissão imposta à arguida/recorrente.


2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor:
“Indicia-se fortemente nos autos a prática pela arguida dos seguintes factos:
A arguida, A, é notária no Cartório Notarial Privativo de A sito na Rua Conde de Monsaraz, n.º 17, em Reguengos de Monsaraz.
No âmbito das suas funções compete-lhe, designadamente: Liquidar por via electrónica, a pedido do contribuinte e nos termos por este declarados, o Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis e outros impostos, designadamente o Imposto de Selo tendo em conta os negócios jurídicos a celebrar ou celebrados.
No dia 1 de Março de 2011, o ofendido B, na qualidade de procurador de C, D e E dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de um imóvel sito na Rua do Comércio, n.º 29, em Reguengos de Monsaraz.
No âmbito da celebração de tal escritura, o ofendido na qualidade de procurador dos adquirentes entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo o montante de € 103,65 (cento e três euros e sessenta e cinco cêntimos) e de IMT o valor de € 842,18 (oitocentos e quarenta e dois euros e dezoito cêntimos).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 25 de Março de 2011, a ofendida F dirigiu-se ao Cartório Notarial supra mencionado tendo sido celebrada pela arguida, uma escritura pública de compra e venda de um imóvel sito em São Pedro do Corval, lote 29, descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número mil oitocentos e vinte sete.
No âmbito da celebração de tal escritura, a ofendida, na qualidade de adquirente do referido imóvel, entregou à arguida a título de pagamento de imposto de selo o montante de € 610,40 (seiscentos e dez euros e quarenta cêntimos).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 7 de Junho de 2011, o ofendido G, dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de um imóvel, prédio U-519, sita na Zona Rural dos Mendes, em Reguengos de Monsaraz.
No âmbito da celebração de tal escritura, o ofendido, na qualidade de adquirente do referido imóvel, entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo o montante de € 1280,00 (mil, duzentos e oitenta euros) e de IMT o valor de € 2359,78 (dois mil, trezentos e cinquenta e nove euros e setenta e oito cêntimos).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 22 de Novembro de 2011, o ofendido H, dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de dois imóveis, um prédio rústico, denominado “Velhos”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número dois mil e doze, sito em Reguengos de Monsaraz e, o prédio rústico, também denominado “Velhos”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número dois mil e treze, sito na freguesia e concelho de Reguengos de Monsaraz.
No âmbito da celebração de tal escritura o ofendido, na qualidade de adquirente do referido imóvel, entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo o montante de € 120,00 (cento e vinte euros) e de IMT o valor de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 16 de Março de 2011, o ofendido I, dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de um prédio rústico, denominado “Ochão”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número cento e dezasseis, sito na freguesia e concelho de Reguengos de Monsaraz.
No âmbito da celebração de tal escritura o ofendido, na qualidade de adquirente do referido imóvel, entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo o montante de € 200,00 (duzentos euros) e de IMT o valor de € 1250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 5 de Maio de 2012, a ofendida J, dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de um prédio urbano sito na Expansão do Bairro Luís de Camões Rua D, n.º 47, sito na freguesia e concelho de Mourão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mourão, sob o número mil setecentos e vinte e quatro.
No âmbito da celebração de tal escritura a ofendida, na qualidade de adquirente do referido imóvel, entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo o montante de € 600,00 (seiscentos euros).
Cabendo posteriormente à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 15 de Novembro de 2011, o ofendido K, dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de dois imóveis, o prédio rústico denominado “Cegonheira” descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número três mil duzentos e cinquenta e quatro e o prédio misto denominado “Alborro”, descrito na descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número três mil duzentos e quarenta e seis, ambos localizados no concelho de Reguengos de Monsaraz.
No âmbito da celebração de tal escritura o ofendido, na qualidade de adquirente do referido imóvel, entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo o montante de € 320,00 (trezentos e vinte euros) e de IMT o valor de € 2075,00 (dois mil e setenta e cinco euros).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 14 de Fevereiro de 2011, o ofendido L, dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de um imóvel, o prédio rústico denominado “Escudeira Velha”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número mil setecentos e vinte e nove, sito na freguesia de Corval, concelho de Reguengos de Monsaraz.
No âmbito da celebração de tal escritura o ofendido, na qualidade de adquirente do referido imóvel, entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo e de IMT o montante de € 1450,00 (mil, quatrocentos e cinquenta euros).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 14 de Fevereiro de 2011, a ofendida M, dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de um imóvel, o prédio rústico denominado “Coutada”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número mil trezentos e catorze, sito na freguesia e concelho de Reguengos de Monsaraz.
No âmbito da celebração de tal escritura a ofendida, na qualidade de adquirente do referido imóvel, entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo o valor de € 100,00 (cem euros) e de IMT o montante de € 625,00 (seiscentos e vinte cinco euros).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 14 de Julho de 2011, o ofendido N e O, dirigiram-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de um imóvel, o prédio urbano sito na Aldeia das Gafanhoeiras, freguesia e concelho de Reguengos de Monsaraz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número duzentos e sessenta e seis.
No âmbito da celebração de tal escritura os ofendidos, na qualidade de adquirentes do mencionado imóvel, entregaram à arguida a título de pagamento do imposto de selo o valor de € 380,00 (trezentos e oitenta euros) e de IMT o montante de € 475,00 (quatrocentos e setenta e cinco euros).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
No dia 14 de Julho de 2011, a ofendida P dirigiu-se ao Cartório Notarial da arguida tendo sido por esta celebrada, uma escritura pública de compra e venda de um imóvel, o prédio urbano sito na Urbanização Tapada do Carapetal, lote 13, freguesia e concelho de Reguengos de Monsaraz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Reguengos de Monsaraz, sob o número três mil novecentos e oitenta e três.
No âmbito da celebração de tal escritura a ofendida, na qualidade de adquirente e, igualmente em representação do seu marido Q, entregou à arguida a título de pagamento do imposto de selo o valor de € 872,00 (oitocentos e setenta e dois euros) e de IMT o montante de € 331,86 (trezentos e trinta e um euros e oitenta e seis cêntimos).
Cabendo, posteriormente, à arguida o dever de proceder à entrega de tal montante às Finanças competentes.
Contudo, a arguida não procedeu à entrega do mencionado montante às Finanças como lhe competia, apropriando-se de tais quantias em benefício próprio.
A arguida A tem a qualidade de notária e nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea o) do Decreto-Lei n.º 26/2004 e n.º 2 compete-lhe liquidar por via electrónica e a pedido do contribuinte e nos termos por este declarados, o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis e outros impostos, tendo em conta os negócios jurídicos a celebrar ou celebrados.
A arguida A usou os poderes que lhe foram conferidos, enquanto notária no Cartório Notarial Privativo de A, de um modo que sabia não lhe ser permitido, por contrário às normas reguladoras do funcionamento dos serviços e ao direito de propriedade das quantias de que se apropriou, ciente de que as mesmas não lhe eram devidas, tendo-as utilizado em seu benefício.
Bem sabia a arguida que, pelo seu estatuto funcional, lhe estava vedado prejudicar os interesses patrimoniais dos ofendidos e posteriormente das Finanças, a quem pertenciam os referidos valores, ao obter para si vantagens económicas que a nenhum título lhe eram devidas e ao utilizar os referidos valores para fins diversos daqueles a que estavam destinados.
A arguida actuou na sequência de diferentes e renovadas resoluções criminosas, apropriando-se de tais quantias de forma estruturalmente idêntica e essencialmente homogénea.
Agiu a arguida sempre de forma livre, voluntária e consciente tendo consciência de que a sua conduta estava vedada e era punida por lei.
Elementos probatórios que fundamentam a indiciação supra: os constantes dos autos, designadamente:
- Autos de denúncia de fls. 2 a 4, 19 a 21, 73 a 75, 88 a 90, 110 a 112, 128 a 130, 139 a 141, 153 a 155, 168, 179 a 183, 201 a 204, 304 a 307;
- Documentos de liquidação de IMT de fls. 6 a 8; 60 a 61, 78, 119, 133, 163 a 164, 172, 212 a 213, 309;
- Pedidos das Finanças de fls. 8, 22, 77, 102, 117, 132, 176, 191, 210;
- Cópias das escrituras de compra e venda de imóveis, celebradas no Cartório Notarial Privativo A – fls. 10 a 14; 97 a 101, 113 a 116, 134 a 136, 142 a 145, 156 a 160, 169 a 171, 185 a 189, 215 a 218, 311 a 318;
- Declarações da Notária A da entrega por parte dos compradores do imposto de selo e IMT – fls. 15-16, 24, 76, 118, 131, 150, 162, 211;
- Cópias das certidões de registo predial – fls. 25 a 28, 93 a 96;
- Inquirição das testemunhas: B (fls. 44-45), R (fls. 48-50), F Reis (fls. 55-56), H (fls. 57-58), I (fls. 62 a 63), M (fls. 126 a 127); G (fls. 246 a 248), S (fls. 258 a 259), J (fls. 261 a 262), K (fls. 264 a 265), N (fls. 267 a 268);
- Cheques de fls. 146 a 147, 190.
Os factos acima referidos indiciam fortemente a prática, pela arguida, de um (1) crime de Peculato, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1, com referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea d) e 30.º, todos do Código Penal.
Tendo em conta que a arguida continua o exercício da actividade de notária, mantendo em funcionamento o Cartório Notarial privativo de sua pertença, em Reguengos de Monsaraz, e que a actividade delituosa se desenrolou durante período temporal significativo, demonstrando clara incapacidade de gestão de montantes monetárias de terceiros e desrespeito pelas mais elementares regras do exercício da profissão de notária, existe perigo de que a arguida, em função da sua personalidade e da natureza do crime, pratique actos da mesma índole.
Verificando-se o perigo de continuação da actividade criminosa, previsto na alínea c), do art. 204.º do Cód. Proc. Penal, importa aplicar medida de coacção adequada a afastá-lo.
Considerando as condições pessoais da arguida (que é primária e se encontra familiar e socialmente inserida) entende o tribunal que a aplicação da medida de coacção de suspensão do exercício da profissão, prevista no art. 199.º, n.º 1 al. a) e n.º 2 do Cód. Proc. Penal, se revela adequada a afastar o risco de repetição de actos da mesma natureza, necessária a tal fim e proporcional à pena que, previsivelmente, lhe virá a ser aplicada em julgamento.
Assim, nos termos previstos nos arts. 191.º a 194.º, 196.º, 199.º, n.º 1 al. a) e n.º 2 e 204.º, do Cód. Proc. Penal, e nos arts. 375.º, n.º 1, 386.º, n.º 1, al. d), 66.º, n.º 1 e 2, 100.º e 30.º do Cód. Penal, o Tribunal determina que a arguida aguarde os ulteriores termos processuais sujeita, para além das obrigações que advêm do TIR já prestado, à medida de coacção de suspensão do exercício da profissão de notária.
Notifique e comunique à Ordem dos Notários.
Devolvam-se os autos aos serviços do Ministério Público competente”.


3 - Apreciação do mérito do recurso.

É objecto do presente recurso a decisão da Mmª Juíza de Instrução Criminal, que, na sequência de interrogatório feito à arguida (ao abrigo do disposto no artigo 194º, nº 4, do C. P. Penal), e em apreciação de requerimento nesse sentido formulado pela Exmª Magistrada do Ministério Público, deferiu a aplicação à arguida, em cumulação com o T.I.R. já anteriormente prestado nos autos, da medida de coacção de suspensão do exercício da profissão de notária.
Alega a recorrente, em breve síntese, o seguinte:
1º - Não existem motivos que justifiquem o agravamento da medida de coacção (T.I.R.) aplicada aquando da sua constituição como arguida.
2º - Não ocorre qualquer perigo de continuação da actividade criminosa.
3º - A medida de coacção agora aplicada viola o princípio da adequação e o princípio da presunção de inocência.
Cumpre apreciar e decidir cada uma dessas vertentes do recurso.


a) Da agravação do estatuto coactivo da arguida.

Entende a arguida que a alteração das medidas de coacção, sobretudo quando ocorre agravamento, deve basear-se numa especial motivação (a agravação da medida de coacção deve ocorrer quando a medida de coacção vigente se mostrar inadequada para acautelar as exigências processuais).
Ora, diz a arguida, se até ao dia 28 de Fevereiro de 2013 era suficiente o T.I.R. enquanto medida de coacção, e se a prática dos factos criminosos em causa ocorreu entre 14 de Fevereiro de 2011 e 05 de Maio de 2012, nenhuma razão existe para agravar a medida de coacção (não resultando dos autos indícios da prática de quaisquer factos passíveis de se enquadrar na prática do crime de peculato e cometidos após o dia 05 de Maio de 2012).
Há que decidir.
Dispõe o artigo 212º, nº 1, do C. P. Penal, que “as medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou
b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação”.
Por sua vez, o nº 2 deste mesmo artigo 212º estabelece que “as medidas revogadas podem de novo ser aplicadas (...) se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação”.
Assim sendo, e como bem ensina o Prof. Germano Marques da Silva (in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 4ª ed., 2008, Vol. II, pág. 344), “se uma medida revogada pode de novo voltar a ser aplicada, não se compreenderia que não pudesse revogar-se uma medida e aplicar outra diferente, ainda que mais grave, se as circunstâncias o justificarem. Aliás, é um princípio geral que as medidas de coacção podem ser aplicadas em qualquer fase do processo, até à execução, e por isso que, se necessárias, nada há que impeça a sua aplicação, ainda que em conjugação com outra ou outras já aplicadas ou em sua substituição”.
Ou seja, a aplicação de medidas de coacção não possui um carácter definitivo, podendo, a todo o tempo, as medidas de coacção ser modificadas por despacho judicial, verificados que sejam certos pressupostos.
Quando se alteram os pressupostos em que assentou a aplicação de uma medida de coacção, deve ser proferida nova decisão judicial, alterando a anterior, decisão nova esta mais adequada, proporcional e necessária para satisfação das exigências cautelares verificadas no caso concreto em apreço.
Por isso se diz que as medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, no sentido de que devem manter a sua validade e eficácia apenas enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que assentam.
No caso dos presentes autos, e entendendo a Mmª Juíza a quo que se verificou um agravamento das exigências cautelares, podia, do ponto de vista estritamente processual, modificar a medida de coacção imposta à recorrente, substituindo-a por outra mais grave.
Há, isso sim (mas é coisa diferente), que analisar se a Mmª Juíza o podia ter feito de um ponto de vista substantivo (ou material).
Desde logo, entende-se que pode ser alterada a medida de coacção mesmo que o arguido cumpra todas as obrigações decorrentes da medida anteriormente aplicada e vigente.
Para tanto, basta que ocorra, no caso concreto, um agravamento das exigências cautelares que determinam a aplicação da medida de coacção.
E esse agravamento destas exigências cautelares não depende da violação das obrigações decorrentes da medida de coacção anteriormente vigente, podendo existir agravamento das exigências cautelares sem violação de tais obrigações.
Como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2ª ed., pág. 583, nota 6ª ao artigo 212º do C. P. Penal), “o juiz pode substituir a medida aplicada por outra mais grave ou determinar uma forma mais gravosa da sua execução quando se verificar um agravamento das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção. O agravamento destas exigências não depende da violação das obrigações decorrentes da medida de coacção, já que pode haver agravamento das exigências cautelares sem violação das ditas obrigações”.
Posta assim a questão, o que importa saber é se, no caso dos presentes autos, existem ou não razões que conduzissem à necessidade de agravamento da medida de coacção (T.I.R.) aplicada à recorrente.
Ao que consta da certidão extraída do inquérito e incorporada no presente apenso de recurso em separado, os autos iniciaram-se em Junho de 2012, através de uma “queixa crime” contra a arguida, apresentada por um dos lesados, segundo a qual a arguida não tinha entregue no serviço de Finanças determinadas quantias (de imposto de selo e de IMTO), que recebera para esse efeito enquanto notária (na altura da celebração de uma escritura pública de compra e venda de determinado imóvel).
Entretanto, a ora recorrente foi constituída como arguida, e, nessa altura, prestou termo de identidade e residência (T.I.R.).
Só que, desde esse momento processual, verteram-se nos autos, em sucessivas datas (e até com alguns meses de intervalo), várias outras participações criminais contra a arguida, apresentadas por diversos outros lesados, todas elas pela prática de factos de idêntica natureza da dos inicialmente objecto da aludida “queixa crime”.
Por outras palavras: desde a altura em que, nestes autos, a recorrente foi constituída como arguida e (nessa mesma altura) prestou o T.I.R., os indícios contra a arguida adensaram-se, e, o que é mais importante ainda, aumentou muito a gravidade dos factos imputados à arguida.
Não estava já, pois, em causa um caso isolado (ou alguns casos esporádicos) de apropriação indevida de dinheiro por parte da arguida no exercício da sua profissão de notária, mas sim uma actuação desta, apropriando-se desse dinheiro, de forma contínua e reiterada.
Dirigindo o inquérito, e chegando também a esta nossa conclusão, a Exmª Magistrada do Ministério Público, por requerimento devidamente fundamentado, dirigido à Mmª Juíza de Instrução e datado de 06 de Fevereiro de 2013, promoveu o interrogatório judicial da arguida, para audição desta e para a subsequente aplicação de medida de coacção mais gravosa que o T.I.R. já prestado nos autos.
Em 28 de Fevereiro de 2013, a Mmª Juíza de Instrução procedeu ao interrogatório da arguida, findo o qual ouviu o Ministério Público (que promoveu a aplicação à arguida da medida de coacção da suspensão do exercício da profissão de notária), e, logo de seguida, ouviu também a Ilustre Defensora Oficiosa da arguida (que disse “oferecer o merecimento dos autos”), após o que foi ditado para a acta o despacho revidendo.
Como linearmente decorre do exposto, a medida de coacção (T.I.R.) foi alterada, agravando-se o estatuto coactivo da arguida, porquanto os factos indiciados (e fortemente indiciados, diga-se) ganharam uma dimensão e um relevo totalmente diferentes relativamente aos factos inicialmente participados.
Em suma: os factos cuja prática era inicialmente imputada à arguida, e os factos já trazidos ao inquérito na altura em que a arguida prestou T.I.R., não são os factos (ou melhor: não constituem a totalidade dos factos) que foram objecto de apreciação na altura da prolação do despacho sub judice.
Objectiva e subjectivamente, atenta a continuação criminosa, ponderando a quantidade de actuações da arguida e a quantidade de lesados, a conduta da arguida é, na data do despacho recorrido, muito mais grave, e, assim, reconhecidamente, até porque está em causa o exercício de uma função que dá fé pública a actos praticados pelos cidadãos e de inquestionável relevo jurídico, tal conduta da arguida assume uma gravidade que não era vislumbrável em fases anteriores do processo.
Por conseguinte, e em conclusão: era possível ao tribunal a quo alterar, como alterou, o estatuto coactivo da arguida.


b) Dos requisitos da medida de coacção aplicada.

1º - Dos requisitos específicos.

Sob a epígrafe “suspensão do exercício de profissão, de função, de actividade e de direitos”, dispõe o artigo 199º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, que “se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se disso for caso, com qualquer outra medida de coacção, a suspensão do exercício de profissão, função ou actividade, públicas ou privadas, (…) sempre que a interdição do respectivo exercício possa vir a ser decretada como efeito do crime imputado”.
Assim, a medida de coacção de suspensão do exercício de profissão, de função, de actividade e de direitos, depende da verificação de duas condições especiais (além das condições gerais previstas nos artigos 192º e 204º do C. P. Penal):
1ª - O crime imputado ser punível com pena de prisão de máximo superior a 2 anos.
2ª - A interdição do exercício respectivo poder vir a ser decretada como efeito do crime imputado.
Revertendo ao caso dos autos, estão aqui preenchidas estas duas condições especiais para poder ser decretada a aplicação da medida de coacção em análise.
Com efeito, e por um lado, o crime indiciado é um crime de peculato, na forma continuada, previsto no artigo 375º, nº 1, do Código Penal, e punível com pena de prisão de um a oito anos. Isto é, o crime imputado à arguida é punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos.
Por outro lado, nos termos do preceituado no artigo 66º, nºs 1 e 2, do Código Penal, “o titular de cargo público, funcionário público ou agente da administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a três anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto: a) for praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes; b) revelar indignidade no exercício do cargo; c) implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função” (nº 1); “o disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública” (nº 2).
Ou seja, atenta a profissão da arguida (notária), no exercício da qual praticou os factos em causa, está também verificada a referida segunda condição especial para poder ser decretada a aplicação da medida de coacção ora em questão (a interdição do exercício da profissão de notária, por parte da arguida, pode vir a ser imposta, a título de condenação, na sentença que vier a ser proferida).
Em síntese: in casu, estão preenchidos os dois requisitos especiais para poder ser decretada a medida de coacção em análise (suspensão do exercício da profissão de notária).
Aliás, neste ponto, face ao alegado na motivação do recurso, constata-se que a recorrente não suscita qualquer questão nem manifesta qualquer divergência com o decidido em primeira instância.
Assim, e sem mais delongas, há que, analisando em detalhe a actuação da arguida, decidir se ocorre ou não perigo de continuação da actividade criminosa, e, depois, avaliar se a medida de coacção aplicada é adequada - pontos, esses sim, questionados na motivação do recurso.


2º - Dos requisitos gerais.

O regime de aplicação da medida de coacção de suspensão do exercício de profissão, de função, de actividade e de direitos, obedece ainda a outras regras e a outros princípios (tal como sucede, de resto, com as demais medidas de coacção), designadamente tem de ser respeitado o princípio da adequação (previsto no artigo 193º do C. P. Penal).
Além disso, a aplicação da medida de coacção de suspensão do exercício de profissão, de função, de actividade e de direitos, exige também que se verifique o condicionalismo geral contemplado no artigo 204º do C. P. Penal (no caso discute-se a ocorrência de perigo de continuação da actividade criminosa por parte da arguida).
Mais desenvolvidamente:
As medidas de coacção obedecem aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32º, nº 2, da Constituição da Republica Portuguesa.
Este princípio da presunção de inocência do arguido, no lapidar dizer do Prof. Germano Marques da Silva (ob. citada, pág. 289), impõe que as medidas de coacção “não sejam aplicadas senão nos estritos limites das necessidades processuais, que têm por função satisfazer, e que sejam adequadas às exigências cautelares que o caso requer. Qualquer desvio na utilização dessas medidas, nomeadamente como antecipação da pena ou para coagir o arguido a colaborar na investigação, é incompatível com o princípio da presunção de inocência”.
Numa outra vertente, estabelece o artigo 204º do C. P. Penal que, “nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se, em concreto, se não verificar:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas”.
In casu, a aplicação à arguida da medida de coacção de suspensão do exercício da profissão (de notária) baseou-se na existência de perigo de continuação da actividade criminosa.
Delimitados assim, sumariamente, os requisitos gerais de aplicação da medida de coacção em causa, há agora que ir ao encontro do concreto caso da arguida (e daquilo que foi alegado pela mesma na motivação do seu recurso).


3º - Do perigo de continuação da actividade criminosa.

Assume a arguida, na motivação do seu recurso, que, objectivamente, houve verbas que não foram entregues à Fazenda Pública, mas que, da sua parte, não houve apropriação intencional, nem sequer apropriação em proveito próprio, na medida em que desde o final de 2011 até meados de 2012 a arguida esteve mais ausente do cartório notarial do que presente.
Mais alega a arguida que sempre cumpriu escrupulosamente os seus deveres legais e deontológicos, sendo que as verbas não entregues ocorreram num hiato temporal especificado, e não tendo ocorrido, desde 05 de Maio de 2012, quaisquer factos que indiciem a prática do crime de peculato ou de qualquer outro crime.
Acresce que a arguida está social e familiarmente inserida, sendo que, se for afastada do exercício da profissão, deixará de conseguir obter sustento para si e para os seus filhos e de ressarcir aqueles que foram lesados por actos praticados no seu cartório notarial por um terceiro (o qual foi afastado desse mesmo cartório notarial assim que a arguida tomou conhecimento do sucedido).
Por tudo isso, entende a arguida que não existe perigo de continuação da actividade criminosa.
Cabe apreciar.
Em abstracto, e quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa, visa-se obstar, através da aplicação da medida de coacção, a que o arguido venha a cometer novo ou novos crimes na pendência do processo.
Conforme, a tal propósito, escreve Irineu Cabral Barreto (in “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, Coimbra Editora, 2005, pág. 95), em comentário ao artigo 5º, nº 1, al. c), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, citando um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, esta norma, ao estabelecer que ninguém pode ser privado da sua liberdade salvo quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção, "não cobre uma politica de prevenção geral contra uma pessoa ou categoria de pessoas que se revelem perigosas", mas visa, isso sim, "evitar a prática de uma infracção concreta e especifica".
No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Germano Marques da Silva (ob. citada, pág. 301), ao afirmar que “a aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado".
Procedendo à interpretação da al. c) do artigo 204º do C. P. Penal, com o sentido exposto, há que determinar se, continuando a ora recorrente a exercer a sua profissão de notária, existe o perigo concreto de ela voltar a praticar factos integradores do cometimento de um crime de peculato (ou de crimes análogos, ou de crimes da mesma natureza).
Em primeiro lugar, nenhuma evidência (nenhum indício sequer, por mínimo que seja) existe acerca do facto de ter sido um terceiro (que não a arguida) a praticar os factos em apreço.
Na verdade, a arguida, no interrogatório judicial que precedeu a prolação do despacho revidendo, confessou a prática de todos os factos que lhe foram imputados (e que lhe foram previamente lidos pela Mmª Juíza que presidiu ao interrogatório), factos esses considerados indiciados nos autos e factos esses (todos eles, e sem mais) descritos no referido despacho (despacho que acima, integralmente, se deixou transcrito).
Depois de lidos à arguida (em pormenor e na íntegra) os factos que lhe são imputados pelo Ministério Público, integrantes de todos os elementos (objectivos e subjectivos) de um crime de peculato (na forma continuada), ficou a constar do auto de interrogatório da arguida (por ela assinado, na presença da sua Ilustre Defensora Oficiosa) o seguinte:
Perguntada se queria responder sobre os factos que lhe são referidos, e advertida que a tal não é obrigada, respondeu da seguinte forma:
Correspondem à verdade os factos relatados pelo Ministério Público.
Perguntada, refere não pretender esclarecer as razões que determinaram a sua actuação.
E mais não disse”.
Assumindo a arguida, integralmente e sem reservas, a autoria dos factos coligidos no inquérito (e constantes do despacho recorrido), e ponderando ainda a abundante prova documental também já trazida para o inquérito (e igualmente descrita no despacho sub judice), não tem qualquer suporte a ideia, vertida na motivação do recurso, de que não foi a arguida a autora dos factos.
Ou seja: está claramente indiciado que a arguida, no exercício da sua actividade de notária, no cartório notarial respectivo, e durante uma alargado período de tempo, se apropriou indevidamente de quantias em dinheiro pertencentes a terceiros, fazendo-as suas, quantias essas que lhe foram entregues para pagamento de obrigações fiscais decorrentes dos actos de notariado praticados pela arguida.
Em segundo lugar, tendo em conta a personalidade da arguida manifestada nos factos praticados, olhando à gravidade desses mesmos factos, ponderando a natureza do crime imputado, cometido pela arguida no exercício das suas funções de notária, e atendendo à grave negação dos valores que a arguida, enquanto notária, se propôs promover e respeitar (ou seja, que são inerentes ao exercício das suas funções), entendemos que a arguida manifesta clara propensão para, no exercício do cargo, continuar a sua actividade delituosa.
Nesta perspectiva, não podemos esquecer que a actividade delituosa da arguida se desenrolou durante período temporal significativo, demonstrando a arguida clara incapacidade de gestão de montantes monetários de terceiros, e denotando ainda manifesto desrespeito pelas mais elementares regras inerentes ao exercício da sua (muito relevante) profissão.
No presente, e perante tais circunstâncias, não se pode, legitimamente, confiar no sério desempenho de uma notária, que, no exercício das suas funções, denota comportamentos como aqueles que lhe estão imputados (demais a mais quando ocorridos por diversas vezes).
Na comunidade, e também nos tribunais (no tribunal a quo e neste tribunal ad quem), instalou-se, pois, uma compreensível e atendível desconfiança no recto desempenho profissional da arguida, pelo que, sendo-lhe permitido voltar a desempenhar as mesmas funções, o perigo de continuação da actividade criminosa tem de ser admitido, tal o carácter ilícito (e duradouro) já patenteado na conduta que lhe é imputada nos autos.
Por último, tudo indica que foram as sucessivas participações criminais apresentadas contra a arguida, pelos diversos lesados, que terão determinado a cessação da conduta em causa.
É que, e como bem alega a recorrente, a não entrega das quantias monetárias nos Serviços de Finanças por parte da arguida cessou em Maio de 2012, sendo certo que a primeira participação criminal contra a arguida (e com a qual se iniciaram os autos) ocorreu em Junho de 2012.
Assim, passado o primeiro impacto, exercido sobre a arguida, com as participações criminais entretanto apresentadas, nada nos permite afirmar que, num futuro imediato, a arguida não volte a incorrer na prática de actos semelhantes aos destes autos.
Alega ainda a arguida que está social e familiarmente inserida, sendo que, se for afastada do exercício da sua profissão, deixará de conseguir obter sustento para si e para os seus filhos.
Ora, e desde logo, tais alegações (constantes da motivação do recurso) não estão sustentadas, ainda que apenas indiciariamente, em qualquer elemento de prova trazido ao inquérito.
Depois, mesmo vindo a ser posteriormente demonstradas tais alegadas circunstâncias, elas não são decisivas para a questão que agora nos ocupa (avaliação da existência de perigo de continuação da actividade criminosa), levando-nos tão-só a concluir que a aplicação da medida de coacção em questão ocasiona à arguida sérios prejuízos de ordem material (e até mesmo de ordem moral).
Em conclusão: verifica-se no presente caso, de modo relevante, a existência de um concreto perigo de continuação da actividade criminosa, tal como (e muito bem) decidido pela Mmª Juíza a quo.


c) Dos princípios da adequação e da presunção de inocência.

Invoca a recorrente que o despacho revidendo, ao suspendê-la do exercício da profissão de notária, viola o princípio da adequação previsto no artigo 193º do C. P. Penal, e ainda o princípio da presunção de inocência enunciado no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre decidir.
Dispõe o artigo 193º do C. P. Penal (sob a epígrafe “princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade”), no seu nº 1, que “as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”.
As medidas de coacção, como é sabido, devem ser idóneas a satisfazer as necessidades cautelares do caso, sendo escolhidas em função da finalidade a que se destinam, devendo considerar-se que são adequadas se, com a sua aplicação, se realiza o fim pretendido (ou se facilita tal realização), e entendendo-se que não são adequadas se a sua aplicação dificulta a realização das exigências cautelares (ou não tem nenhuma eficácia para a realização dessas exigências cautelares).
Como bem referem Simas Santos e Leal Henriques (in “Código de Processo Penal Anotado”, Editora Rei dos Livros, 2ª ed., 2004, Vol. I, pág. 957), com a adequação quer-se significar que “a medida a seleccionar deve ser a mais ajustada às exigências cautelares requeridas pelo caso concreto”.
Na situação posta nestes autos, e como bem nota a recorrente na motivação do seu recurso, a aplicação da medida de coacção em referência implica forte restrição da liberdade individual e dos direitos da arguida.
A esta luz, cabe ligar a aplicação da medida de coacção em causa ao princípio da presunção de inocência, uma vez que, só partindo de um critério de concordância prática entre tal medida de coacção e este princípio, podemos avaliar convenientemente da adequação dessa mesma medida.
Aliás, e como muito bem salienta João Castro e Sousa (in “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, C.E.J., Livraria Almedina, 1988, pág. 150), o princípio da adequação (tal como o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade) nada mais é do que “emanação do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, que impõe que qualquer limitação à liberdade do arguido anterior à condenação com trânsito em julgado deva não só ser socialmente necessária mas também suportável”.
Ou, por outras palavras (estas do Prof. Figueiredo Dias, nessas mesmas “Jornadas”, pág. 27), só podem ser aplicadas aquelas medidas de coacção “que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente”.
Nesta perspectiva, e desde logo, repete-se o que já acima afirmámos: a arguida, no interrogatório judicial que precedeu a prolação do despacho revidendo, confessou a prática dos factos que lhe foram imputados (factos esses integrantes de todos os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo legal do crime de peculato, praticado na forma continuada, e actuando a arguida com dolo directo).
Assumindo a arguida, perante a Mmª Juíza a quo, sem reservas, a autoria dos factos coligidos no inquérito (e que lhe foram previamente narrados e explicados pela Mmª Juíza), e ponderando ainda a abundante prova documental também já trazida para o inquérito (e sumariamente descrita no despacho sub judice), e com o devido respeito pelo que vem alegado na motivação do recurso, carece totalmente de sentido considerar-se, in casu, existir violação do princípio da presunção de inocência da arguida.
E, por aqui, de igual modo é despida de sentido a alegação de que se mostra desadequada a medida de coacção aplicada à arguida.
É que, está fortemente indiciado (ou seja: existem abundantes e inequívocos elementos de prova, quer documental, quer testemunhal, quer por declarações da arguida), nos presentes autos, que a arguida exercia funções como notária, e que, no exercício dessas funções, ficou com dinheiro entregue por outorgantes em escrituras de compra e venda, dinheiro esse que se destinava a liquidar impostos vários (nomeadamente o IMT e o imposto de selo), e dinheiro esse que devia ser entregue, pela arguida, nos Serviços de Finanças.
São estes os factos, fortemente indiciados, que têm de ser considerados, não podendo ser atendidas meras alegações, vertidas na motivação do recurso, sem qualquer suporte probatório, e algumas delas contrariando até, de forma desconcertante, o que foi dito pela arguida nas suas declarações prestadas perante a Mmª Juíza de Instrução.
Invoca a recorrente (cfr. conclusão 9ª extraída da motivação do recurso, onde a recorrente cita Paulo Pinto de Albuquerque - ao que nos parece, e salvo erro nosso, a citação é feita de uma forma incompleta) que, com a suspensão do exercício da sua profissão de notária, foi violado o princípio da adequação, “uma vez que este princípio dita que a medida de coação deve ser aplicada “(…) em função de factos e não em função da gravidade objectiva das imputações criminosas feitas ao arguido (…), sendo inadmissível uma presunção legal de perigo baseada na gravidade das imputações, com o ónus da defesa inverter esta presunção, provando a inexistência de perigo (…)””.
Transcrevendo, na íntegra, essa anotação do dito autor (Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2ª ed., pág. 544, nota 2ª ao artigo 193º do C. P. Penal), dela consta (na parte agora relevante): “as medidas cautelares são impostas em função de factos e não apenas da gravidade objectiva das imputações criminosas feitas ao arguido (…), sendo inadmissível uma presunção legal de perigo baseada na gravidade das imputações, com o ónus da defesa inverter esta presunção, provando a inexistência de perigo (…)”.
Na aplicação da medida de coacção em análise deve, pois, atender-se aos factos, como bem assinala a recorrente, mas também deve atender-se à gravidade objectiva das imputações criminosas em causa (muito embora, mas é coisa diferente, devendo decidir-se em “função de factos e não apenas da gravidade objectiva das imputações”).
Em suma: para aplicar, como medida de coacção, a suspensão do exercício de profissão, devem ser considerados os factos em si mesmos (os factos que estão fortemente indiciados nos autos, e não meras alegações constantes da motivação do recurso, sem qualquer suporte na prova recolhida), e, obviamente, além dos factos em si, é também de considerar a gravidade (objectiva e abstracta) das imputações criminosas em causa.
Por fim, temos também de atender ao grau de ilicitude da conduta da arguida, que é elevado, e ao dolo, que é intenso (porque directo).
Dito de outro modo: o grau de censurabilidade da conduta da arguida é elevado, atendendo ao modo de apropriação e ao contexto da apropriação do dinheiro em causa, olhando à qualidade profissional da arguida (notária), e ponderando o lapso de tempo (mais de um ano - entre Fevereiro de 2011 e Maio de 2012) durante o qual a arguida persistiu no seu comportamento delituoso.
É certo que, como bem refere Maia Gonçalves (in “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 7ª ed., 1996, pág. 348), “a lei não oferece ao juiz qualquer critério para o exercício do seu poder/dever de aplicação da suspensão do exercício de funções, profissão ou direitos. Terá assim que funcionar, também aqui, o prudente critério do julgador, equacionando as finalidades da medida e os princípios da adequação e da proporcionalidade”.
Ora, face ao que ficou exposto, ponderando todos os elementos neste momento já disponíveis nos autos, na sua globalidade complexiva, e seguindo este “prudente critério”, com a aplicação à arguida da medida de coacção de suspensão do exercício da profissão (de notária) afigura-se-nos não terem sido violados os princípios invocados pela recorrente na motivação do recurso (o princípio da adequação e o princípio da presunção de inocência).
Em jeito de síntese: tendo em conta a personalidade da arguida manifestada nos factos praticados, a gravidade dos mesmos, e a pena que previsivelmente lhe será aplicada, não tem suficiente eficácia para a realização das exigências cautelares, nem é proporcional ao caso concreto, qualquer outra medida de coacção que não a fixada no despacho sub judice.
Por tudo o que se deixa dito, o recurso da arguida tem forçosamente que improceder.



III - DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora decidem negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
*
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 18 de Junho de 2013.

João Manuel Monteiro Amaro
Fernando Pina