Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
665/21.0T8PTG-B.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: COVID
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – As leis excepcionais relacionadas com a pandemia COVID vieram introduzir imperativamente períodos de suspensão dos prazos prescricionais que devessem correr nos seus períodos de vigência.
2 – Por consequência, na contagem dos prazos de prescrição onde se incluam esses períodos de suspensão é forçoso ter em conta esses lapsos de tempo em que o prazo não correu.
3 – Os prazos de prescrição em causa serão assim alargados pelo período de tempo correspondente àquele em que estiveram suspensos.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 665/21.0T8PTG-B.E1 (1ª Secção Cível)

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
No processo principal, o exequente Banco Comercial Português, SA instaurou execução comum (forma sumária, para pagamento de quantia certa) contra os executados AA e marido BB, e outros, todos devidamente identificados nos autos de execução.
Alegou o exequente que, conforme a escritura pública e documento complementar, que apresenta como título executivo, celebrou com os executados CC e DD um contrato de mútuo com hipoteca, nos termos do qual entregou àqueles a título de empréstimo, a quantia de €120.240,00.
Os executados AA e marido BB constituíram-se então como fiadores daqueles, assumindo as responsabilidades inerentes.
Posteriormente, os devedores principais entraram em incumprimento, e vieram aliás a ser declarados insolventes, pelo que vem reclamar dos executados o pagamento das importâncias que considera em dívida.
Prosseguindo a execução os seus trâmites, nomeadamente com penhora de imóvel pertencente a estes fiadores, vieram então, por apenso, os executados fiadores AA e BB, deduzir contra o exequente os presentes embargos de executado e oposição à penhora realizada no processo principal.
Alegaram os embargantes, como se verifica na petição de embargos:
- A nulidade de uma cláusula do contrato de mútuo em que intervieram como fiadores, que os responsabilizaria pelo aditamento posteriormente celebrado entre o exequente e os mutuários, e que não aceitam;
- Impugnação da liquidação da quantia exequenda efetuada pelo Banco embargado;
- Prescrição da dívida exequenda, pelo decurso do prazo prescricional de 5 anos;
- Eventual ressarcimento do exequente no âmbito do processo de insolvência dos devedores mutuários, CC e DD.
Concluem pedindo que seja julgada extinta a execução contra os embargantes ou, subsidiariamente, reduzido o capital e juros peticionados.
Notificado para tal, o Banco embargado apresentou contestação na qual defendeu a total improcedência dos embargos.
Foi depois convocada e realizada audiência prévia, na qual foi tentada sem sucesso a conciliação entre as partes e logo comunicada a estas a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa, não tendo havido qualquer oposição.
Nessa sequência, foi proferido o despacho saneador-sentença, que concluiu pela decisão aqui recorrida.
No douto saneador-sentença foi considerado o seguinte:
Ao caso aplica-se o prazo prescricional de cinco anos, previsto no art.º 310.º al. e) do Código Civil, e não de 20 anos como defendeu o Banco embargante.
O vencimento das prestações em dívida, incluindo as que respeitam ao vencimento antecipado, ocorreu em 03-06-2016.
A presente acção executiva foi instaurada em 23-06-2021 e os executados foram citados em 15-10-2021.
Contudo, por força do art. 323.º, n.º 2, a interrupção da prescrição operou ao sexto dia subsequente ao da propositura da presente acção, isto é, em 29-06-2021.
Assim, uma vez que a citação dos executados, de acordo com o regime
plasmado no art. 323.º, n.º 2, do C.C., ocorreu em 29-06-2021, e no caso não ocorreu qualquer circunstância susceptível de interromper o prazo de prescrição de cinco anos, “resta concluir que o crédito exequendo prescreveu em 04-06-2021”.
Com esta fundamentação, conclui a sentença proferida que “Face ao exposto, procedem totalmente os presentes embargos, declarando-se a prescrição da totalidade da dívida de capital e juros peticionados, extinguindo-se a execução quanto aos executados embargantes”.
*
II – O RECURSO
Não se conformando com o decidido, o exequente reagiu através do presente recurso de apelação, apresentando as suas alegações.
Delimitando o objecto do recurso, o recorrente terminou com as seguintes conclusões:
I. A douta sentença recorrida não deve manter-se, pois não consagra a justa e correta aplicação ao caso “sub judice” das normas legais e dos princípios jurídicos competentes.
II. Consta da factualidade assente na douta decisão que as prestações deixaram de ser pagas a partir de 03/06/2016.
III. A partir da data em que se verificou o incumprimento venceram-se todas as prestações acordadas, nos termos do disposto no artigo 781.º do Código Civil.
IV. Existindo convenção expressa nos contratos de perda de benefício do prazo em caso de incumprimento, e tendo o Banco Recorrente declarado vencidas todas as prestações, ficou sem efeito o plano de pagamentos acordado.
V. Nesta conformidade, os valores em dívida voltaram a assumir em pleno a sua natureza original, ficando, claramente, sujeitos ao prazo ordinário (vinte anos) da prescrição, previsto no disposto no artigo 309.º do Código Civil.
VI. Sem prejuízo da interrupção do prazo de prescrição que se verificou com as diversas notificações efetuadas no ano de 2016 no âmbito do processo de insolvência dos mutuários principais.
VII. Os prazos de prescrição estiveram suspensos entre 9 de março e 3 de junho de 2020 e entre 1 de fevereiro a 05 de abril de 2021, atendendo à Lei 1-A/2020 de 19 de Março e à Lei 4-B/2021 de 1 de Fevereiro.
VIII. Com efeito, e mesmo que se entenda ser defensável que o prazo de prescrição é de 5 anos, a prescrição só ocorreria a 30 de Outubro de 2021.
IX. Resultando claro que tal prescrição não ocorreu, não só porque os Recorridos foram citados a 15/10/2021, mas sobretudo por força do supra disposto no artigo 323.º, n.º 2 CC, a interrupção da prescrição operou ao sexto dia subsequente ao da propositura da presente ação, isto é, em 29-06-2021.
X. A sentença recorrida ao concluir que se aplica ao caso em apreço o regime jurídico estipulado no artigo 310.º, alíneas d) e e) do Código Civil, cujo prazo de prescrição é de cinco anos, violou as disposições legais constantes dos artigos 309.º, 323.º e 781.º do Código Civil e ainda, ao não considerar a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade, violou os artigos 7º da Lei 1-A/2020 de 19 de março e 6º-B da Lei n.º 4-B/2021 de 01 de fevereiro, pelo que deve ser revogada.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, revogando-se a douta sentença recorrida e, em conformidade, ser substituída por outra que determine que a dívida não se mostra prescrita, com todas as consequências legais.”
Pelos embargantes/executados/recorridos não foram apresentadas contra-alegações.
*
III – DA FACTUALIDADE
Os factos a considerar para decisão do recurso resumem-se à tramitação e às incidências processuais que ficaram descritas no relatório inicial, para o qual remetemos – sendo certo que a decisão depende exclusivamente da posição a tomar quanto à questão de Direito que é objecto da polémica suscitada na apelação.
*
IV – DO OBJECTO DO RECURSO
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, tendo em conta as conclusões apresentadas, a questão colocada ao tribunal de recurso traduz-se em saber se deve ou não julgar-se verificada a prescrição declarada na decisão recorrida, com as consequências daí decorrentes.
*
V – APRECIANDO E DECIDINDO
Passamos então a decidir do objecto do recurso, tal como ficou delimitado nas conclusões acima transcritas.
Como se constata, está em causa o acerto da decisão judicial que declarou extinta a instância executiva, por prescrição dos créditos invocados pelo exequente.
Não houve qualquer outra decisão no despacho impugnado, nomeadamente em relação a outros fundamentos de oposição à execução e à penhora constantes da petição de embargos.
Consequentemente, importa apreciar e decidir da questão suscitada, considerando a argumentação exposta pelo apelante.
Em face das conclusões apresentadas, logo se verifica que a crítica do recorrente à decisão impugnada assenta em duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, na consideração de que seria aplicável ao caso o prazo prescricional de vinte anos, diferentemente do que entendeu o despacho impugnado, o que a aceitar-se implicaria que se estivesse ainda muito longe de completar esse prazo prescricional.
Em segundo lugar, e no caso de se aplicar o prazo prescricional de cinco anos, ainda assim não teria ocorrido a prescrição, uma vez que no cálculo efectuado pela primeira instância não foi tido em conta o que resulta das leis excepcionais ditadas pela pandemia COVID, que determinaram períodos de suspensão do aludido prazo, por lapso de tempo que devidamente considerado levaria a concluir pela não verificação da prescrição decidida.
Quanto ao primeiro dos fundamentos utilizados pelo recorrente para basear o seu recurso diremos desde já que não acompanhamos o entendimento defendido, de que é aplicável no caso o prazo prescricional mais longo, de vinte anos.
Essa questão foi largamente debatida, nomeadamente em múltiplos acórdãos desta Relação, e a jurisprudência acabou por culminar no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência que está invocado na decisão recorrida, e do qual não vemos motivo algum para nos afastar.
Consequentemente, acompanhamos a posição tomada a este respeito no despacho impugnado, que reproduz o citado Acórdão do STJ.
Remetemos, assim, para o teor do douto Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2022, de 30-06-2022, proferido no processo n.º 1736/19.8T8AGD-B.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, e para a respectiva fundamentação, que subscrevemos.
Em suma:
“- No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do art.º 310.º al. e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.
- Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do art.º 781.º do Código Civil, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.”
Consequentemente, improcede a primeira das razões invocada pelo recorrente contra a decisão que pretende ver revogada.
Resta examinar o segundo dos fundamentos alegados.
Diz o apelante que os prazos de prescrição estiveram suspensos entre 9 de Março e 3 de Junho de 2020 e entre 1 de Fevereiro a 05 de Abril de 2021, atendendo à Lei 1-A/2020 de 19 de Março e à Lei 4-B/2021 de 1 de Fevereiro.
Assim, e dando por assente que o termo inicial da contagem seria 04-06-2016, nunca o tribunal poderia ter concluído que a prescrição de cinco anos ocorreu a 04-06-2021 (precisamente cinco anos depois).
Recordamos que a decisão recorrida considerou para este efeito que o vencimento das prestações em dívida, incluindo as que respeitam ao vencimento antecipado, ocorreu em 03-06-2016, e que a presente acção executiva foi instaurada em 23-06-2021 e os executados foram citados em 15-10-2021, devendo no entanto ter-se em conta que por força do art. 323.º, n.º 2, a interrupção da prescrição operou ao sexto dia subsequente ao da propositura da acção, isto é, em 29-06-2021.
O apelante não contesta nenhum destes dados de facto, observa tão só que neles não está considerado qualquer período de suspensão do prazo prescricional.
E efectivamente impõe-se dar razão à sua argumentação. O despacho recorrido consigna que não ocorreu nenhuma causa de interrupção do prazo de prescrição em análise, mas nada refere quanto a causas de suspensão.
Ora no período a considerar ocorreram na verdade períodos de suspensão dos prazos prescricionais que estivessem a decorrer, o que implica o seu alargamento pelo período em que ocorreu essa suspensão.
E tendo em conta esse alargamento temporal é forçoso constatar que, partindo da data de 04-06-2016, que o julgador do primeiro grau tomou como ponto de partida, não se tinha completado o prazo prescricional de cinco anos nem no dia 04-06-2021, como foi declarado, nem no dia 23-06-2021, em que a execução foi instaurada, nem no dia 29-06-2021, em que os embargantes devem considerar-se citados, por aplicação do disposto no art. 323º, n.º 2, do Código Civil, e nem sequer no dia 15-10-2021, em que eles foram efectivamente citados.
Com efeito, no âmbito da “legislação Covid-19” foram estabelecidos regimes excepcionais de suspensão dos prazos de prescrição em curso.
Inicialmente, essa suspensão foi introduzida pelos n.ºs 3 e 4 do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, vigorando entre o dia 09 de Março de 2020 até ao dia 03 de Junho de 2020, num total de 87 dias (cfr. art. 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, e arts. 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2000 de 29 de Maio).
Num segundo momento, no decorrer da evolução da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19, voltou a vigorar um regime de suspensão dos prazos de prescrição, agora nos termos do n.º 3 do art. 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que, visto o seu art. 5º, vigorou entre 22 de Janeiro de 2021 e o dia 5 de Abril de 2021, num total de 74 dias (cfr. art. 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, e art. 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril).
Somando os dois períodos de suspensão do prazo em questão, temos um total de 161 dias (ou cinco meses e onze dias), que deverão ser acrescentados ao termo que ocorreria normalmente a 04.06-2021, para que se complete o aludido prazo, obedecendo a esta legislação excepcional.
Por outras palavras, o legislador pretendeu que nos períodos indicados como de suspensão os prazos de prescrição não começassem nem corressem, como dispõe o art. 318.º do Código Civil, recomeçando a contagem dos prazos após o final desses períodos de suspensão. Tal significa que, como os prazos estiveram suspensos durante um determinado período, quando este período termina os prazos da prescrição são alargados pelo período correspondente àquele em que estiveram suspensos.
Sobre esta questão, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-05-2023, no processo n.º 16107/21.8YIPRT-A.G1.S1, relatado por Maria da Graça Trigo (in www.dgsi.pt ) bem como a jurisprudência e a doutrina aí citados.
Como aí bem se explica, a aplicação das leis excepcionais ditadas pela situação epidemiológica determinou a suspensão de prazos de prescrição, pelo que a contagem dos prazos de prescrição tem que ter em conta o tempo em que o prazo não correu, sendo então a duração máxima desses prazos prolongada pelo período de tempo em que vigorou a suspensão excepcional.
Leiam-se também a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-01-2024, no processo n.º 1991/22.6T8MAI.P1, relatado por Rita Romeira; o Acórdão do STJ de 11-07-2023, no processo n.º 3702/20.1T8VCT.G1.S1, relatado por Maria João Vaz Tomé, e o Acórdão da Relação de Guimarães no mesmo processo n.º 3702/20.1T8VCT.G1, proferido a 03-11-2022, tendo como relatora Lígia Venade; o Acórdão da Relação do Porto de 12-07-2023, no processo n.º 3368/21.1T8OAZ.P2, relator Jerónimo Freitas; o Acórdão da Relação de Guimarães de 16-03-2023, no processo n.º 41/21.4T8CLB.G1, relator Pedro Maurício; e o Acórdão da Relação do Porto de 30-10-2023, no processo n.º 2459/22.6T8MTS.P1, relator Nelson Fernandes - todos disponíveis na mesma base de dados supra referida.
Em suma: as leis excepcionais relacionadas com a pandemia COVID introduziram períodos de suspensão dos prazos prescricionais, que abrangem o prazo de prescrição aqui em causa; e os prazos de prescrição que deixem de estar suspensos findos esses períodos de suspensão são alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão.
Assim sendo, o prazo de prescrição de cinco anos aqui em discussão, com início a 04-06-2016, só poderia completar-se já em Novembro de 2021, depois da data de entrada em juízo do requerimento executivo (23-06-2021), depois do dia 29-06-2021, em que os embargantes devem considerar-se citados por aplicação do disposto no art. 323º, n.º 2, do Código Civil, e mesmo depois do dia 15-10-2021, em que eles se mostram pessoalmente citados.
Consequentemente, não se discutindo que a interrupção da prescrição operou ao sexto dia subsequente ao da propositura da acção, isto é, em 29-06-2021, como se diz na decisão recorrida, então conclui-se que esta errou ao considerar que a prescrição ocorreu no dia 04-06-2021, e ao julgar extinta a execução com esse fundamento.
Desse modo, deve a decisão impugnada ser revogada, com as legais consequências (o prosseguimento dos embargos para apreciação das demais questões pendentes, não tratadas no despacho proferido).
Concluindo, em face do exposto, e sem necessidade de mais desenvolvida fundamentação, julgamos ser de atender a apelação em apreço, decidindo-se em conformidade.
*
VI - DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido.
Custas pelos executados, nos termos do art. 527º, n.º 1, do CPC (sem prejuízo do apoio judiciário concedido).
*
Évora, 9 de Maio de 2024
José Lúcio
José António Moita
Maria Adelaide Domingos