Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
335/21.9T8STC.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: RESPONSABILIDADE
ESTADO
ORGÃO AUTÁRQUICO
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O direito de mera ordenação social é um direito distinto e autónomo que – e apenas - apresenta uma vizinhança próxima com o direito administrativo e o direito criminal e tem zonas de sombra na interpretação e aplicação dos seus normativos.
II. A existência de uma fase administrativa não o torna direito administrativo. A vizinhança com o direito administrativo limita-se à definição orgânica de competências para decisão e com particularidades muito próprias, de que a possibilidade de revogação da decisão (artigo 62.º, § 2.º RGCO) é mero exemplo (em contraposição com ao que é regra na decisão judicial).
III. A vizinhança com o direito penal surge por se tratar de direito sancionatório, com um acervo de sanções cada vez mais gravosas quer no seu quantum, quer na sua natureza (sanções acessórias restritivas de direitos, puras privações de direitos, encerramento de estabelecimentos, etc. e, até, a possibilidade de aplicação da pena criminal de «trabalho a favor da comunidade» (artigo 89.º-A do DL n.º 433/82, de 27out.) Mas também porque lhe é subsidiariamente aplicável (quando haja lacuna a integrar) o direito penal e o direito processual penal, mesmo na fase administrativa (cfr. artigos 32.º e 41.º RGC).
IV. O Estado e qualquer outra entidade pública (designadamente os municípios) respondem pelos ilícitos contraordenacionais praticados pelos seus órgãos no exercício das suas funções, na medida em que inexiste norma que lhes atribua impunidade neste tipo de ilícito (artigo 7.º RGC).
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No âmbito do processo de contra-ordenação n.º 31/DAJ/2018 a CCDR (…) condenou o Município de (…), pela prática de uma contra-ordenação ambiental prevista e punível nos termos do artigo 18º, n. 2, alínea a) do Decreto-Lei nº. 46/2008, de 2 de março, na redacção do Decreto-Lei nº. 73/2011, de 17 de junho, e do artigo 22.°, n. 3, alínea b) da Lei nº. 50/2006, de 29 de agosto, na redação atualizada das Leis n. 89/2009, de 31 de agosto, e nº. 114/2015, de 28 de agosto, por infração ao disposto no artigo 3.°, n. 1 e n. 3 do Decreto-Lei n. 46/2008, de 12 de março, na redação do Decreto-Lei n. 73/2011, de 17 de junho, que impõe que, em caso de impossibilidade de determinação do produtor dos resíduos, a responsabilidade pela respetiva gestão recai sobre o seu detentor, podendo ainda ser aplicadas as sanções acessórias previstas no artigo 30.° da referida lei.
Considerando que a infração foi praticada por negligência e entendendo-se ser de se atenuar especialmente a coima nos termos dos artigos 23º-A e 23-°­B da Lei nº. 50/2006, de 29/08, aplicou-se ao arguido Município uma coima no valor de € 6 000, suspensa em 75% pelo período de dois anos, nos termos do artigo 20º-A da Lei n. 50/2006, sem aplicação de sanção acessória.
O auto de notícia é de 18-01-2016 e a decisão da entidade administrativa é de 11-02-2021.
Inconformada com esta decisão, a recorrente impugnou judicialmente a decisão administrativa, vindo o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal (…), por despacho de 04-11-2021 a decidir por despacho pela procedência da impugnação por entender que o Município estava excluído da acção criminal e contra-ordenacional por ser parte do Estado e este não se punir a si próprio.
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Inconformada com uma tal decisão, dela interpôs a Digna magistrada do Ministério Público o presente recurso, com as seguintes conclusões:
A. Não obstante a sentença recorrida ser absolutamente omissa na identificação da concreta norma jurídica aplicada, da interpretação da mesma pode-se, contudo, retirar que o Tribunal a quo aplicou a norma constante do artigo 11.º do C.P..
B. Porém, ao invés do conjecturado na douta sentença, não é convocável o art. 11.º CP porque as pessoas colectivas públicas são passíveis de responsabilidade contraordenacional em matéria de Direito do Ambiente.
C. O fundamento dogmático do ilícito de mera ordenação social encontra-se, quer na ideia de subsidiariedade do Direito Penal, quer no alargamento da actuação conformadora e reguladora da Administração Pública, que tem de estar associada à possibilidade de aplicação de sanções e à maior especialização das entidades que aplicam essas sanções.
D. São razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contra-ordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção: o culminar do processo de ilícito de mera ordenação social é a aplicação de uma coima, sanção pecuniária que é destituída de qualquer ressonância ética e que, ao contrário da pena criminal, não se liga, à personalidade do agente e à sua atitude interna – consequência da diferente natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela contra-ordenação.
E. Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social.
F. Retirando fundamento às considerações da douta sentença por serem fundamentalmente diferentes a natureza do crime e do ilícito de mera ordenação social: direito contra-ordenacional ou de mera ordenação social encontra-se no nosso ordenamento jurídico autonomizado em relação ao direito penal – especificamente em matéria de ambiente –, sem necessidade de recorrer à importação pura e simples das soluções do Direito penal.
G. A imputação de responsabilidade ás pessoas colectivas já é tradição no direito contraordenacional, sendo um princípio fundamental do direito das contraordenações, ao contrário do que acontece no Direito Penal, no âmbito do qual apenas alguns tipos penais são susceptíveis de incriminação das pessoas colectivas.
H. Até porque, em certas áreas, como, por exemplo, o Direito do Ambiente – como é o caso dos autos –, os sujeitos das infracções são maioritariamente pessoas colectivas, sendo que a sua responsabilização é mais fácil no quadro do ilícito de mera ordenação social do que no âmbito do Direito Penal; além de que, a coima relativamente a estas pessoas colectivas permite um tratamento sancionatório igualitário relativamente às pessoas físicas, no sentido de evitar resultados injustos.
I. Aliás, em sede de contraordenações em matéria ambiental, de acordo com a respectiva Lei-Quadro, o regime da responsabilidade das pessoas colectivas, inclusivamente derroga o R.G.C.O., mas ampliando o círculo de pessoas cuja actuação pode dar azo a responsabilidade contraordenacional da respectiva pessoa colectiva, por ser um sector particularmente sensível e em que a possibilidade de efectivar a responsabilidade das pessoas colectivas é essencial, sob pena de inutilidade da própria previsão de contraordenações ambientais.
J. Acresce que a regra geral das contra-ordenações, como se alcança do artigo 7.º do R.G.C.O., é pois, a aplicação de coimas às pessoas colectivas, sem qualquer tipo de destrinça entre elas em função da sua natureza, isto é, independentemente de serem pessoas colectivas públicas ou privadas ou de utilidade administrativa.
K. Pois, ao contrário do que acontece no artigo 11.º do C.P., no R.G.C.O., as pessoas colectivas e as pessoas singulares são colocadas em posição de igualdade: ambas são indiferenciadamente destinatárias das normas que tipificam contraordenações e das coimas nelas cominadas.
L. Pelo que, o artigo 8.º da L.Q.C.O.A., quando define o âmbito de sujeitos da contra-ordenação, não deve ser objecto de uma interpretação literal à luz do artigo 11.º do C.P., mas antes de uma leitura integrada à luz do direito geral das contra-ordenações, devendo ser convocado o artigo 7.º do R.G.C.O..
M. Mal andou o Tribunal recorrido ao julgar integralmente procedente a impugnação judicial e absolver o Município de (…) da contraordenação de que vem acusado, determinando o consequente arquivamento dos autos.
N. Com o que violou o preceituado nos artigos 11.º, n.º 1 do C.P., 7.º do R.G.C.O. e 8.º, n.º 1 e 22.º, n.º, 3 al. b) da L.Q.C.O.A..
O. Pelo que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que, a final, julgue improcedente a impugnação judicial e condene o Município de (…) como vem acusado, pela prática de uma contraordenação ambiental grave, prevista no artigo 18.º, n.º 2, al. a) do D.L. n.º 46/2008, de 12 de Março, por referência ao disposto no n.º l e 3 do artigo 3.º do mesmo diploma legal, alterado pelo D.L. n.º 73/2011, de 17 de Junho, punível nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 3, al. b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, numa coima no montante de EUR 6.000,00, suspendendo a respectiva execução em 75% pelo período de dois anos, acrescida de custas no montante de EUR 51,00.
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A arguida pugnando pela improcedência do recurso, concluindo:
A) O Recurso interposto pela digna Magistrada do Ministério Público deve ser julgado improcedente e deve ser mantida a douta decisão recorrida, proferida pelo Tribunal “a quo”, a qual não merece qualquer reparo e que deve ser mantida na ordem jurídica, sendo válida, lícita e legal.
B) Ao contrário do que afirma a digna Magistrada do Ministério Público, no corpo das suas alegações, a Impugnação Judicial contém as Alegações e as respetivas Conclusões, conforme melhor resulta dos autos, de onde consta (Citius) com a data de 31/05/2021, sob a referência 5789995, o ficheiro em formato pdf denominado “Ofício”, que corresponde ao envio do respetivo processo contraordenacional pela CCDRA, a fls. 11-50 [e bem ainda consta de fls.53-91; 95-133; 135-209; 216-290] e que é constituída por 16 páginas a que acresce o DUC, o comprovativo do pagamento da taxa de justiça [em que em sede do respetivo articulado remete-se para os 16 documentos juntos com a defesa oportunamente apresentada em sede da CCDRA antes da decisão final adotada por esta entidade, e sobre a qual incide a Impugnação Judicial, os quais constam de fls. 375-390; 391-425, tendo a procuração forense sido junta, também, nessa sede].
C) Ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo”, efetuou uma correta interpretação e aplicação do direito aplicável, designadamente, do disposto no nº 1 e nº 3 do artº 3º do DL nº 46/2008, de 12/03, bem como do artº 18º do citado diploma e do artº 22º da Lei nº 50/2006, de 29/08, conjugados ainda com o disposto no artº 11º, nº 2 do CP, artº 10º do CC, artº 1º,artº 2º artº 3º, artº 32º, 41º, artº 43º, artº 54º todos do RGCO (DL nº 433/82, de 27/10), artº 17º, nº 1 e nº 2, artº 20º, nº 1 ambos do DL nº 46/2008, de 12/03 e, artº 66º e 70º, nº 1 do DL nº 178/2006, de 5/09, e bem ainda em conjugação com o disposto no artº 2º, artº 6º nº 2, 12º, nº 2, artº 18º, nº 1, nº 2 e nº 3, artº 29º, nº 1, artº 235º, todos da CRP e artº 1º, nº 1 al. a), nº 2, artº 2º, artº 4º, artº 5º, nº 2, artº 23º, nº 1, nº 2, todos da Lei nº 75/2013, de 12/09, tendo efetuado uma interpretação e aplicação do direito conforme a CRP;
D) Da conjugação do disposto no artº 17º, nº 1 e nº 2 do DL nº 46/2008, de 12/03 com o disposto no artº 20º, nº 1 do citado diploma, e bem ainda do disposto no artigo 66º e do artigo 70º, ambos do DL nº 18/2006, de 05/09, com o disposto nos artigos artºs 1º, nº 1 al. a), nº 2, artº 2º, artº 4º, artº 5º, nº 2, artº 23º, nº 1, nº 2, todos da Lei nº 75/2013, de 12/09 e do disposto nos artigos 2º, 6º nº 1 e nº 2, 9º, 12º, nº 2, artº 18º, nº 1 e nº 2 e 3, artº 29º, nº 1, artº 235º e 237º todos da CRP, com o disposto no artº 11º, nº 2 do CP, artº 10º do CC, artºs 1º, 2º, 3º, 32º, 41º, 43º, 54º todos do RGCO (DL nº 433/82, de 27/10), resulta que o artº 3º, nº 1 e nº 3 do DL nº 46/2008, de 12/03, como bem o artº 18º do citado diploma, e artº 7º do RGCO, artº 8º, nº 1 e 22º da Lei nº 50/2006, de 29/08, quando interpretados no sentido de abranger as autarquias locais, designadamente os MUNICÍPIOS, quando estes exerçam também funções de fiscalização e assim, vestidos de prerrogativas e de poderes de autoridade, como no caso concreto, padecem de inconstitucionalidade material por violação do disposto nos artº 2º, artº 6º nº 2, 12º, nº 2, artº 18º, nº 1, nº 2 e nº 3, artº 29º, nº 1, artº 235º, todos da CRP, e do princípio do Estado de Direito Unitário, e do princípio da legalidade.
E) E, tal interpretação estará também ferida de inconstitucionalidade material tendo ainda presente o disposto no DL nº 228/2012, de 25/10, alterado pelo DL nº 68/2014, de 08/05, DL nº 24/2015, de 06/02, DL nº 27/2020, de 17/06, com a declaração de retificação nº 24/2020, de 26/06 e Lei nº 37/2020, de 17/08, Lei orgânica das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, nomeadamente o que vai disposto, desde logo no artº 3º al. b) e al. d), e nos artigos 3º, nº 1 e nº 2 al. c), 3º-A, nº 1 e nº 3, 3º-B, 7º, nº1 e nº 2 al. a), todos do citado diploma e que aqui se convocam.
F) Não se vislumbra que num Estado de Direito Democrático, possam as CCDR instaurar processos de contraordenação contra as autarquias locais, designadamente contra os Municípios, cujos respetivos membros que integram o respetivo órgão executivo – Câmara Municipal – (Cfr. Lei nº 75/2013, de 13/09) – integram e os respetivos órgãos das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, agravando-se a situação em análise, quando o Município tem atribuições e detém competências próprias de autoridade sobre as mesmas matérias.
G) E, as autarquias locais integram a organização democrática do Estado, as quais são pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos e que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas. – Cfr. artº 6º, nº 1, artº 9º, al. b), artº 235º, artº 237º da CRP; Cfr. artº 1º, nº 1 al. a), nº 2, artº 2º, artº 3º, artº 4º, artº 5º, nº 2, artº 23º, nº 1, nº 2, al. k), todos da Lei nº 75/2013, de 12/09; Cfr. artºs 17º, nº 1, 20º, nº 1 ambos do DL nº 46/2008, de 12/03; Cfr. artº 66º e 70º, ambos do DL nº 178/2006, de 05/09.
H) Da conjugação dos preceitos legais supra expendidos, resulta que o MUNICÍPIO DE (…), detém competências de fiscalização e, ainda de instrução dos processos de contraordenação, em matéria de resíduos, agindo seja ao nível da programação, coordenação, operacionalização, fiscalização e enquanto entidade autuante, no uso de poderes eminentemente públicos.
I) Ao processo contraordenacional são aplicáveis as disposições do código penal em matéria substantiva conforme resulta do disposto no artº 32º, bem como são aplicáveis as disposições do código do processo penal nos termos do disposto no artº 41º, tendo sempre presente a observação do princípio da legalidade. – Cfr. artº 43º do RGCO.
J) No caso presente é de aplicar subsidiariamente, ou, analogicamente o disposto no nº 2 do artº 11º do CP, na parte em que exclui do âmbito da ilicitude para quem assim entenda, ou da punibilidade, o Estado e as pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público, tendo ainda presente o disposto no artº 10º do CC e artº 41º do RGCO.
K) Na verdade, o Estado, neles se incluindo as autarquias locais, quando interpretado em sentido amplo, e todas as demais pessoas coletivas (seja públicas ou não) que exerçam poderes de autoridade ou dito de outra forma detenham prerrogativas de poder público, não podem ser objeto de responsabilidade contraordenacional, na medida em que é o próprio princípio da legalidade que o proíbe. – Cfr. artº 1º, artº 2º, artº 3º, artº 6º todos da CRP.
L) E, o Estado bem como as autarquias locais que prosseguem poderes de autoridade, no caso concreto, estão fora do âmbito de aplicação do disposto no artº 3º, nº 3 do DL nº 46/2008, de 12/03, bem como do artº 18º do citado diploma e do artº 22º da Lei nº 50/2006, de 29/08.
M) Pelo que, exclui-se do âmbito de aplicação do disposto no artº 3º, nº 3 do DL nº 46/2008, de 12/03, bem como do artº 18º do citado diploma e do artº 22º da Lei nº 50/2006, de 29/08, para efeitos contraordenacionais, o Estado, enquanto pessoa coletiva de direito interno que tem por órgão o Governo, as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e bem ainda, no tocante a responsabilidade contraordenacional por alegada (o que não se admite mas que se refere por mero dever de patrocínio) violação de certos deveres sancionáveis, por contraordenações instituídas com vista a eficaz realização de certas atribuições administrativas, as pessoas coletivas que integrem a Administração central, regional e local e que a seu cargo tenham tais atribuições, como é o caso do MUNICÍPIO DE (…).
N) Sendo de aplicar ao caso concreto o disposto no artº 11º, nº 2 do CP, subsidiariamente, ou por analogia, sob pena de inconstitucionalidade orgânica e material do disposto no artº 3º, nº 1 e nº 3 do DL nº 46/2008, de 12 de Março, quando interpretado no sentido de nele se abranger as autarquias locais quando também elas investidas em poderes de autoridade, por ofensa do disposto nos artºs nos artº 2º, artº 6º nº 2, 12º, nº 2, artº 18º, nº 1, nº 2 e nº 3, artº 29º, nº 1, artº 235º, todos da CRP.
O) Decorre dos princípios da legalidade e da tipicidade, afirmados nos artºs 1º, 2º e 3º do Regime Geral das Contraordenações, e do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, que são elementos do tipo contraordenacional, o facto (no sentido de conduta), típico (no sentido de correspondente a um tipo), ilícito (no sentido desconforme com a norma), culpável (no sentido de relação subjetiva entre o facto e o autor que permite responsabilizá-lo por aquele) e punível (no sentido de passível de coima), sendo que no caso concreto verifica-se causa de exclusão da tipicidade, da ilicitude, da culpa e bem ainda da punibilidade, pelo que deve a decisão recorrida ser mantida.
P) Em razão de tudo o que supra vai expendido, no caso concreto, não se verificam no caso concreto ações, típicas, ilícitas, culposas e puníveis por parte do MUNICÍPIO DE (…), verificando-se uma causa de exclusão da ação ou da tipicidade, ou, para quem assim entenda, da punibilidade, pelo que, a decisão adotada pela CCDRA objeto da impugnação judicial é nula, devendo ser mantida a douta decisão proferida pelo tribunal “a quo”, em observação do princípio da legalidade ínsito na CRP e em face de todos os preceitos legais já supra identificados e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
Q) SEM PRESCINDIR, por mero dever de cautela e de patrocínio, caso esse Venerado Tribunal entenda dar razão ao Ministério Público, então sempre importa ter presente que na Impugnação Judicial, cujas conclusões vão transcritas no presente articulado, foram alegados e invocados outros vícios à decisão impugnada os quais não foram sequer conhecidos pelo Tribunal “a quo”, designadamente os constantes das alíneas E) a J) - detenção inexistente; alíneas K) e L) sobre a nulidade da decisão impugnada nos termos do disposto no artº 410º, nº 2 al. a) do CPP e /ou errada interpretação e aplicação do direito aos factos; alínea M) sobre a nulidade da decisão impugnada nos termos do disposto na al. b) e c) do nº 4 do artº 410º do CPP; alíneas N) a S) sobre o erro de julgamento e pedido de reapreciação da prova documental junta aos autos, designadamente com a defesa apresentada pelo MUNICÍPIO DE (…).
R) E, não podendo esse Venerando Tribunal conhecer de tais questões, e por forma a garantir o princípio da legalidade, da proteção da confiança e do duplo grau de jurisdição, então ter-se-á de proferir decisão através da qual se determine a remessa do processo ao Tribunal “a quo” para que aí sejam apreciadas todas as demais questões suscitadas e ser proferida nova decisão.
Nestes termos e nos demais de direito que V.Exas. mui doutamente suprirão, deve ser proferida decisão, através da qual se julguem improcedentes todas as conclusões da Recorrente, devendo a douta sentença recorrida ser mantida por não enfermar dos erros de julgamento que lhe são imputados e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso e deve ser confirmada a decisão recorrida, OU, caso se venha a decidir pela procedência do Recurso interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público, - o que não se admite mas que se refere por mero dever de cautela e patrocínio - devem os autos baixar ao tribunal “a quo”.
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Nesta Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:
B.1.a) – É este o teor do despacho recorrido:
«Município de (…), arguido/impugnante nos autos melhor identificado, veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela CCDRA - Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do (…) que, por contraordenação ambiental grave (infração prevista no artigo 3.º, n.º1 e n.º 3 do Decreto-Lei 46/2008, de 12/3) lhe aplicou uma coima no montante de 6.000 euros, suspensa em 75% a respetiva execução pelo período de 2 anos.
Subjacente ao imputado ilícito está, em síntese, que no dia 18 de janeiro de 2016, pelas 11h45, em prédio contíguo ao estaleiro de obra de R…., em (…), …, prédio esse pertencente ao Município de (…), existia um depósito de RCD sem que o detentor - considerado como sendo o Município de (…) - possuísse a necessária licença.
Notificados para o efeito o Ministério Público e o impugnante não se opuseram à decisão por simples despacho.
Cumpre apreciar e decidir.
O presente recurso resolve-se com simplicidade, pois, conforme sustenta o impugnante - e com inteira razão - a responsabilidade pela detenção de resíduos não pode ser imputada ao arguido Município de (…), pessoa coletiva de direito público.
Porque, em suma, o Estado não pode sancionar-se a si próprio, e é o que em termos práticos sucederia neste caso, sancionando o Estado (sob as vestes ou materializado na autoridade administrativa CCDRA - Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do ….) o próprio Estado (sob as vestes ou materializado no Município de ….); quer numa quer noutra forma é o mesmo Estado de que se trata.
O Estado e pessoas coletivas como sendo os municípios estão excluídos da ação, seja de âmbito criminal seja contraordenacional, que esse mesmo Estado prossegue, e nem poderia ser de outra maneira, pois, como se vê, daria origem a um certo paradoxo ou subversão daquilo que está subjacente a essa mesma ação. Damos aqui por reproduzida a argumentação expendida na impugnação judicial a propósito desta questão que se nos afigura inteiramente acerta e dispensa totalmente considerações adicionais.
Termos são os expostos em que julgo integralmente procedente a impugnação judicial e absolvo o Município de …. da contraordenação de que vem acusado, com o consequente arquivamento dos autos.
Sem custas.
Registe e notifique-se.
Comunique-se à autoridade administrativa.»
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Cumpre apreciar e decidir
B.2.1 - Nos termos do art. 75º nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10 (RGCO), nos processos de contra-ordenação, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal funcionará, no caso, como tribunal de revista.
Por outro lado, o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação. Destas resulta que é questão a decidir o saber se o Município de (…) deve ser punido pela contra-ordenação praticada ou, se ao invés, goza de especial privilégio de impunidade.
Quais são os factos? Resíduos encontrados num terreno que se pensou ser de um cidadão sem privilégio de impunidade mas que se conseguiu “safar” daquilo que o ilustre ilhéu, Vitorino Nemésio, designava como “processo, a melhor forma de embrulhar um cidadão em papel”!
Desembrulhado o cidadão com uma deleitável contestação que arrola como testemunha um Presidente de Junta de freguesia e um vereador camarário, o que resta saber é se o Município de (…) merece ou pode ser “embrulhado em papel”.
Diz que não o tribunal recorrido com um fundamento compreensível no século XIX e dois terços do século XX, o de que o ser sancionado é para vulgares cidadãos e empresas privadas, já que o Estado e as entidades públicas têm um privilégio oriundo de um raciocínio redundante mas que aparenta ser muito assertivo: o Estado não se pode condenar a si próprio. Nas palavras do tribunal recorrido, «o Estado e pessoas coletivas como sendo os municípios estão excluídos da ação, seja de âmbito criminal seja contraordenacional, que esse mesmo Estado prossegue, e nem poderia ser de outra maneira, pois, como se vê, daria origem a um certo paradoxo ou subversão daquilo que está subjacente a essa mesma ação.
E por aqui nos ficamos em sede de fundamentação, no vestíbulo da filosofia política, olvidando que a acção punitiva até no Estado – entendido no sentido de Estado-Administração central, autárquico e pessoas colectivas que prosseguem interesses públicos - é (ou seria) elemento determinante da moralização desse mesmo Estado e pessoas colectivas (que este semeou de forma tendencialmente inútil ao longo dos decénios), assim se justificando a existência da ilicitude e a aplicação das sanções previstas por esse mesmo Estado, evitando colocar em risco perante o cidadão a sustentabilidade da ilicitude normativa (só para o cidadão não privilegiado) e o efeito dessas mesmas sanções (com reserva de impunidade para o estado em sentido muito amplo).
Mas fiquemo-nos por estas considerações, igualmente vestibulares, e passemos à análise do ordenamento jurídico que, mal ou bem, rege nesta matéria.
São muitas as normas que serão, eventualmente, aplicáveis ao caso dos autos. Convém expô-las sucintamente para sistematizarmos a aplicação do direito aos factos e saber que direito é aplicável, de onde resulta naturalmente o saber o óbvio, a natureza da sanção a impor, como passo inicial essencial.
A previsão legal da conduta e a previsão da sanção aplicável ao caso, no entendimento da entidade administrativa (o tribunal recorrido remeteu para a fundamentação da impugnação) assenta nas seguintes normas:
O Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março:
- cujo artigo 18.º, nº 2 – na sua al. a) - classifica esta suposta contra–ordenação ambiental como grave [«a) O incumprimento do dever de assegurar a gestão de RCD, a quem, nos termos do previsto no artigo 3.º, caiba essa responsabilidade, com excepção dos casos previstos no n.º 1»];
- cujo artigo 3.º, ns. 1 e 3 concretizam a responsabilidade [«nº 1 - A gestão dos RCD é da responsabilidade de todos os intervenientes no seu ciclo de vida, desde o produto original até ao resíduo produzido, na medida da respectiva intervenção no mesmo, nos termos do disposto no presente decreto-lei; 3 - Em caso de impossibilidade de determinação do produtor do resíduo, a responsabilidade pela respectiva gestão recai sobre o seu detentor»].

A punição da conduta consta da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, cujo artigo 22.º, nº 3, al. b) reza sobre o montante das coimas das contra-ordenações graves (ao sabor das alterações legais):
- na redacção original da Lei - «b) Se praticadas por pessoas colectivas, de (euro) 25000 a (euro) 34000 em caso de negligência e de (euro) 42000 a (euro) 48000 em caso de dolo.»;
- na redacção da Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto - «b) Se praticadas por pessoas colectivas, de (euro) 15 000 a (euro) 30 000 em caso de negligência e de (euro) 30 000 a (euro) 48 000 em caso de dolo.»;
- na redacção da Lei 114/2015 - «b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 12 000 a (euro) 72 000 em caso de negligência e de (euro) 36 000 a (euro) 216 000 em caso de dolo.»;
E estamos de acordo quanto à potencial aplicabilidade destas normas, semeadas em vento forte por vários diplomas de forma a facilitar o seu conhecimento pelo cidadão, leitor assíduo e atento do D.R..
Estamos, pois, face a uma contra-ordenação.

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B.2.2 – Relativamente à criação de uma plêiade de entidades isentas de responsabilização criminal temos o artigo 11º do Código Penal que, no seu nº 2 estabelece:
2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.º-B, 152.º-A, 152.º-B, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 176.º, 203.º a 205.º, 209.º a 211.º, 217.º a 223.º, 225.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 376.º, quando cometidos:
a) Em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou
b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.
Ou seja, o Estado, as pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e as organizações de direito internacional público não são, na óptica da ordem jurídica interna, criminalmente responsáveis nos tipos penais indicados.
E percebe-se que assim seja, sendo irrelevante no caso concreto saber se o conceito de “Estado” ali utilizado tem uma natureza restrita (Estado-Administração) ou ampla. Tratando-se de crimes, a norma não é directamente aplicável ao caso dos autos. Pela simples razão de estarmos perante uma contra-ordenação, pelo que haverá que buscar nos diplomas respeitantes a tal ilícito a norma que rege o caso concerto.
O artigo 7.º (sob a epígrafe «Da responsabilidade das pessoas colectivas ou equiparada») do Dec-Lei nº 433/82, de 27-10 - Ilícito de Mera Ordenação Social – claramente determina que:
1 - As coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidade jurídica.
2 - As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.
Daqui decorre que o Estado (em qualquer sentido) e qualquer outra entidade pública respondem pelos ilícitos contra-ordenacionais praticados pelos seus órgãos no exercício das suas funções na medida em que inexiste norma que lhes atribua impunidade neste tipo de ilícito.
E daqui não advém mal ao mundo, bem pelo contrário! Há aqui um imperativo ético, coisa mal percebida na sociedade portuguesa, que impõe que o Estado e outras entidades públicas respondam igualmente pelas condutas violadoras de normas que elas próprias impõem, sob pena de termos que concluir que vivemos numa autocracia burocrática na qual só os vulgares cidadãos respondem pelos actos ilícitos normativamente definidos pelo Estado, estando delas dispensados os organismos e membros actuantes e responsabilizantes da burocracia estatal e similar.
A conclusão não é diversa se encaramos as contra-ordenações ambientais já que o artigo 8º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto (Lei Quadro das Contra-ordenações Ambientais) apenas prevê um regime de responsabilidade subsidiária. Não há neste diploma qualquer norma que exclua a responsabilidade do Estado e Municípios!
Nem faria sentido que houvesse pois que tais entidades não têm – nem devem ter - licença para delinquir através dos seus agentes, o que seria uma forma de consagrar uma medieval burocracia distinta, com diverso enquadramento do comum cidadão, a melhor forma de corroer o contrato social que constitui a base filosófica de uma sociedade e de um Estado de Direito.
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B.2.3 – O direito de mera ordenação social é um direito distinto e autónomo que – e apenas - apresenta uma vizinhança próxima com o direito administrativo e o direito criminal e tem zonas de sombra na interpretação e aplicação dos seus normativos.
Mas não é direito administrativo, mesmo que a jurisprudência não tenha ajudado a esclarecer esta questão quando falou em “fase administrativa do processo contra-ordenacional”. O reconhecimento da existência de uma fase administrativa não o torna direito administrativo. A vizinhança com o direito administrativo limita-se à definição orgânica de competências para decisão e com particularidades muito próprias, de que a possibilidade de revogação da decisão (artigo 62º, nº 2 do RGCO) é mero exemplo, em contraposição com a decisão judicial regra.
Com o direito penal por surgir como um direito sancionatório “de carácter punitivo”, com um acervo de sanções cada vez mais gravosas quer no seu quantum, quer na sua natureza (sanções acessórias restritivas de direitos, puras privações de direitos, encerramento de estabelecimentos, etc e, até, a possibilidade de aplicação da pena criminal de “trabalho a favor da comunidade” – artigo 89º-A do Dec-Lei nº 433/82, de 27-10).
Mas, repete-se, é um direito “autónomo e distinto do direito criminal” (preâmbulo do Dec-Lei nº 433/82, de 27-10) e a todo o processo contra-ordenacional são aplicáveis o direito penal e o direito processual penal como direitos subsidiários, mesmo na fase administrativa, como limpidamente decorre dos artigos 32º e 41º do R.G.C.O.
Mas, como é natural, o direito subsidiário só opera havendo lacuna a integrar!
Pretende o arguido Município suscitar na sua resposta a necessidade de aplicar o artigo 11º, nº 2 do Código Penal ao caso sub iudicio por interpretação subsidiária ou analógica – suas conclusões I e J.
Mas é patente que as conclusões da resposta do arguido não delimitam nem demarcam o objecto do recurso. O recurso aqui é do Ministério Público! E é esse que determina as matérias a conhecer!
Mas sempre se dirá que nem existe lacuna a integrar por analogia, nem se justifica o recurso ao direito subsidiário por ser patente que o legislador pretendeu diversos regimes de responsabilização das pessoas colectivas consoante o ilícito praticado. O que faz, em sede de política legislativa, todo o sentido. E daí não decorre qualquer lacuna ou inconstitucionalidade.
E desta forma se conclui com a afirmação de que o recurso deve proceder, determinando-se que o tribunal de recurso conheça da impugnação judicial apresentada, com excepção da matéria aqui conhecida, ou seja, ficaram por conhecer as matérias constantes das alíneas E) e seguintes da dita impugnação judicial.
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C - Dispositivo
Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso interposto e, em consequência, determinam o conhecimento pelo tribunal recorrido da impugnação judicial subsistente, com exclusão da matéria da responsabilização do Município arguido, aqui já definida.
Sem tributação.
Notifique e devolva os autos ao tribunal recorrido.
Notifique a entidade administrativa.

Évora, 05 de Abril de 2022
(processado e revisto pelo relator).
João Gomes de Sousa (Relator)
António Condesso (Adjunto)
Gilberto Cunha (Presidente da Secção)