Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | JOÃO GOMES DE SOUSA | ||
| Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL CONSUMAÇÃO PAGAMENTO PARCIAL ERRO NA DECLARAÇÃO RECTIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS | ||
| Data do Acordão: | 12/19/2013 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | I - O momento da consumação criminosa no crime de abuso de confiança fiscal é o momento em que a prestação tributária deveria ter sido paga. II - O mero pagamento parcial no âmbito da condição da alínea b) do n. 4 do artigo 105º do RGIT não exclui a punibilidade. E não exclui essa punibilidade mesmo que o montante ainda em dívida nesse momento [no final do prazo de 30 dias da al. b)] seja inferior aos 7.500 € previstos no nº 1 do preceito. III - Ou seja, consumado o crime, só o pagamento integral das indicadas quantias e no prazo da al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT afasta a punibilidade da conduta. IV - Isto porquanto os 7.500 euros são um “patamar” do tipo de ilícito e este verificava-se – estava preenchido - no momento da consumação do ilícito criminal. Assim, o momento chave para fazer operar o nº 1 do preceito (logo, para verificar o requisito 7.500 €) é o momento da consumação do crime e não o momento de verificação da condição objectiva de punibilidade, já que estas são duas realidades distintas. V - Havendo aceitação e eficácia da declaração de rectificação em sede de direito tributário, a quantia que passou a estar em dívida e que deveria ter sido entregue nos cofres do Estado passa a ser a apurada após essa nova declaração, em novo momento de apuramento da ilicitude e culpa. VI - Assim, se face à declaração de substituição apresentada (bem como ao pagamento parcial efetuado até essa data) a prestação tributária em falta é de montante inferior a 7.500 euros, deixa de ser criminalmente punível, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º do RGIT. VII - O ilícito fiscal assenta no dever e na realidade declarativa e o erro declarativo é aceite pela lógica e ordenamento fiscal. Assim como a rectificação declarativa, com efeitos ex tunc. VIII - Esse erro deve ser atendível e, na medida em que aceite pela ordem jurídica como alterando a realidade fiscal “prestação em dívida”, altera o elemento objectivo de crime com o mesmo nomem iuri.[1] | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: A - Relatório: No Tribunal Judicial de Silves corre termos o processo comum singular supra numerado no qual são arguidos A. e M..., S.A. e a quem foi imputada a prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 1, 4 e 7 do RGIT e deduzido pedido cível. A final - por sentença de 28 de Janeiro de 2013 - veio a decidir o Tribunal recorrido condenar a arguida pela prática de tal crime com penas de multa, com dispensa de pena e a declarar extinto o pedido cível. As arguidas, não se conformando com a decisão, interpuseram recurso formulando conclusões onde impugnam a apreciação da matéria de facto realizada pelo tribunal recorrido e suscitam a nulidade de sentença por omissão de pronúncia, com as seguintes conclusões: A. Vem o presente recurso interposto da Douta sentença proferida nos autos, que condenou as arguidas, ora Recorrentes, como autoras materiais de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), na pena individual de 150 dias de multa, dispensando o Mm.º Juiz a quo as arguidas das penas aplicadas. B. A Douta decisão recorrida padece de nulidade, por omissão de pronúncia, de acordo com o previsto no artigo 379.º, nº 1, alínea c), do CPP, ao não apreciar requerimento apresentado pelas arguidas no início da audiência de 05.12.2012, no qual suscitava a título de questão prévia, a apreciação da questão da extinção do procedimento criminal contra as arguidas, porquanto, a seu ver, a prestação tributária em falta no caso dos autos se cifrar em montante inferior a 7.500 Euros. C. A matéria de facto dada como provada em 10) na decisão sob recurso, quanto ao valor do imposto apurado a entregar ao Estado, resulta de um erro na valoração da prova documental constante dos autos conjugada com a prova testemunhal produzida. D. Como se alcança da prova documental constante dos autos, em concreto do comprovativo da entrega das declarações periódicas, a fls. 53 e 54 dos autos consta uma declaração de substituição submetida em Março de 2012 relativa ao período em causa nos autos – 1104M, na qual foi apurado um montante de imposto a entregar ao Estado de 8.597,66 Euros. E. Factualidade que se mostra igualmente sustentada pela prova pericial junta à acusação, em concreto do relatório pericial junto aos autos a fls. 180 a 189, e sustentada em toda a prova testemunhal produzida. F. A decisão recorrida ao dar como provado que o montante de imposto a entregar ao Estado no período visado é de 8.819,73 Euros, quando resulta dos autos a existência de uma declaração de substituição em que é apurado um montante de imposto a entregar ao Estado de 8.597,66 Euros, incorreu em erro notório na apreciação da matéria dada como provada, na medida em que desconsiderou os elementos de prova documental e não deu relevância ao depoimento da testemunha H, contabilista da sociedade arguida. G. O valor do imposto a entregar ao Estado até 10 de Junho de 2012 era de 8.597,66 Euros. H. Resultou ainda dos elementos constantes dos autos, bem como da documentação junta pelas arguidas à contestação apresentada ao pedido de indemnização civil sob o doc n.º 2, que as arguidas na data referida em 12), ou seja em 19.01.2012 efetuaram um pagamento parcial no montante de 1.500,00 Euros. I. Até ao momento do cumprimento da condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, que se verificou em 20.01.2012, as arguidas efetuaram um pagamento parcial por conta da prestação tributária em falta, no montante de 1.500 Euros. J. Face à declaração de substituição apresentada, bem como do pagamento parcial efetuado pelas arguidas, a prestação tributária em falta no caso dos autos relativa ao período 1104M é de montante inferior a 7.500 Euros, não sendo por conseguinte criminalmente punível, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º do RGIT. Sem prejuízo, sempre se diga que K. Não existe prova documental nos autos que permitisse ao Douto Tribunal a quo dar como provado que todo o montante liquidado foi efetivamente recebido pelas arguidas, sendo certo que toda a prova testemunhal produzida não permite corroborar tal entendimento. L. Importava apurar as quantias efetivamente recebidas e não entregues, como pressuposto objetivo do crime de abuso de confiança fiscal. Posto que, o n.º 1 do artigo 105.º do RGIT faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal do montante mínimo de 7 500,00 €. M. Não ficou provado nos presentes autos quais as quantias efetivamente recebidas pelas arguidas e não entregues e se estas são superiores aos valores atualmente estabelecidos na lei como concretizadores do crime de abuso de confiança fiscal. N. Ao decidir como decidiu, condenando as arguidas pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, a Douta sentença recorrida violou a disposição prevista no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, impondo-se a sua revogação. Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência proferido Acórdão que revogue a Douta Sentença recorrida e substitua por outra que absolva as arguidas da prática de um crime de abuso de confiança fiscal de que vêm acusadas. * A Digna Procuradora-Adjunta junto do Tribunal de Silves respondeu ao recurso suscitando a questão prévia da omissão de pronúncia, nos seguintes termos: 1. Da omissão de pronúncia – questão prévia Estatui o artigo 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal que é nula a sentença “Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.” É pacífico o entendimento que a nulidade da sentença por omissão de pronúncia se refere a questões e não a razões e argumentos invocados pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista. Para que se verifique a nulidade da sentença por omissão de pronúncia exige-se que o Tribunal deixe de conhecer de questões sobre as quais deveria ter tomado posição. Alega a recorrente que o Tribunal fez tábua rasa do requerimento por si apresentado no início da audiência de discussão e julgamento, onde suscitou, como questão prévia, a extinção do procedimento criminal, por não se verificar a condição objectiva de punibilidade – ser a prestação tributária em falta igual ou superior a 7500 euros -, porquanto as arguidas procederam a tal pagamento ainda antes do decurso do prazo previsto na alínea b) do nº. 4 do artigo 105º do RGIT. Com efeito, teremos de concluir que lhe assiste razão. De facto percorrendo a sentença ora colocada em crise, em momento algum foi abordada tal questão. Tal omissão de pronúncia porque directamente ligada e dependente da prova produzida tem, naturalmente, repercussões, na matéria de facto dada como provada. A nulidade decorrente da omissão de pronúncia deve ser arguida e conhecida em sede de recurso, conforme resulta do disposto no artigo 379º, nº 2 do C.P.P.; é de conhecimento oficioso; e, pode o tribunal recorrido reparar ou sustentar o decidido, conforme o disposto nos artigos 414º, nº 4 aplicável ex vi o artigo 379º, nº 2 do C.P.P. Face ao exposto, consideramos que deve a sentença ser declarada nula e substituída por outra que se pronuncie sobre a questão suscitada pelas arguidas. A omissão de pronúncia que, a nosso ver, se verifica na sentença colocada em crise prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas pelas recorrentes, pelo que se torna despiciente a pronúncia do M.P. sobre as mesmas. * A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da procedência da questão prévia de omissão de pronúncia. Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal. B - Fundamentação: B.1.1 – Do que resulta dos autos No início da audiência realizada nos autos em 05.12.2012 a fls. 270-271 por requerimento oral as arguidas suscitaram, a título de questão prévia, a questão da extinção do procedimento criminal contra as arguidas, porquanto, a seu ver, a prestação tributária em falta no caso dos autos se cifrava em montante inferior a 7.500 Euros - limiar da punibilidade, ou seja o limite negativo e quantitativo da incriminação do crime de abuso de confiança fiscal de que as arguidas vêm acusadas. Requerimento que tem o seguinte teor: “As arguidas vêm acusadas em co-autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal p.e p. pelo artº 105º, n.º1, 4 e 7 do RGITE. Só é criminalmente punível a não entrega de prestação tributária de valor superior a 7.500 €. Por prestação tributária entende-se cada prestação de per si, e não a quantia global em divida. Resulta dos elementos constantes dos autos, bem como da documentação junta pelas arguidas à contestação apresentada ao PIC sobre o n.º2 que o montante efetivamente pago pelas arguidas até ao momento do cumprimento da condição objetiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artº 105º foi de 1.500€, e não valor constante do artº 12 da douta acusação produzida nos autos. Com efeito, as arguidas em 19/01/2012 procederam ao pagamento do montante de 1.500€ que deveria ser imputado na prestação tributária em causa nos autos. Tendo as arguidas sido constituídas arguidas nos presentes autos e cumprida a notificação prevista na al. b) do n.º 4 do artº 105º do RGIT em momento posterior. Resulta ainda dos autos, que em Março de 2012 foi apresentada declaração de substituição onde se apurou que o IVA a entregar ao estado é de 8.597,66€. Ora considerando o teor da acusação pública entendemos que o valor da prestação tributária em falta no caso dos autos, se cifra em montante inferior a 7.500€, desde logo em face quer da declaração que foi apresentada quer do pagamento parcial que se referiu, sendo certo que aquele montante, os 7.500€ constitui o limiar da punibilidade, ou seja o limite negativo e quantitativo da incriminação do crime de abuso de confianças fiscal de que as arguidas vem acusadas, impõem-se no entender da defesa a extinção do procedimento criminal contra as arguidas.” A fls. 272-273 o Mm.º Juiz lavrou o seguinte despacho: “Atenta a posição manifestada pelo Ministério Público e o requerimento apresentado pelas arguidas, o Tribunal oportunamente se pronunciará quanto ao teor do mesmo, mais determinando que se proceda á produção de prova. (…)” A sentença recorrida afirmou a inexistência de exceções dilatórias ou questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra ou deva conhecer-se e é omissa sobre o requerimento apresentado pelas arguidas no início da audiência e sobre a questão nela suscitada. * B.1.2 – Dos factos dados como provados pelo tribunal recorrido: 1) A l.ª arguida, à data dos factos infra descritos, exercia funções de administradora única da 2.a arguida, cabendo-lhe todas as decisões atinentes à gestão quotidiana da sociedade, designadamente, a administração dos fluxos financeiros, em termos de recebimentos e pagamentos, tudo em nome e no interesse desta. 2) A 2.a arguida é uma sociedade comercial que desenvolve a actividade de comércio de equipamentos e materiais para a construção civil e ainda para a agricultura. 3) É sujeita passiva de IVA, no regime normal de periodicidade mensal. 4) Pelo que está obrigada a enviar à Administração Fiscal, mensalmente a declaração de liquidação do imposto. 5) Acompanhado do respectivo meio de pagamento. 6) No valor correspondente à diferença entre o imposto liquidado e o imposto suportado. 7) Porém, no que se refere ao imposto devido, liquidado e recebido, em Abril de 2011, apesar do envio da declaração, a l.ª não o entregou. 8) Nem o fez nos noventas dias posteriores ao mês correspondente ao da obrigação de o entregar. 9) Apesar de ter recebido dos clientes o montante do imposto liquidado. 10) Dessa forma, não entregou nos cofres do Estado, a título de IVA, a quantia de 8.819,73€, respeitante ao período 1104M. 11) Que as Arguidas integraram no seu património, bem sabendo que não lhes pertencia e que deveriam entregá-la nos Cofres do Estado nos prazos e valores acima referidos. 12) Por conta da referida quantia, efectuaram, no dia 19/01/2012, o pagamento de 1.109,03€. 13) Agiram de forma livre, consciente e deliberada. 14) Não obstante saberem que a sua conduta era proibida e punida por lei. 15)No dia 20 de Janeiro de 2012 foram notificadas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.° n.º 4 alínea b) do RGIT e nada disseram, fizeram ou requereram, no prazo de 30 dias, após a notificação, nem até à presente data. 16) As arguidas deviam ao Estado a quantia de 7.710,70€ (sete mil setecentos e dez euros e setenta cêntimos), quantia essa que já liquidaram. 17) As Arguidas não têm antecedentes criminais. 18) A Arguida, A, trabalha na M., onde aufere uma remuneração mensal de cerca de 1000€. 19) A Arguida tem 3 filhos, um dos quais estudante e que com ela reside. 20) Vive em casa arrendada e não tem empréstimos. 21) A Arguida M...., S.A., tem um capital social de 300.000 €. * B.1.3 – O tribunal recorrido considerou não existirem factos não provados. * B.1.4 – E adiantou as seguintes razões concretas na fundamentação factual: “… Concretizando. No que tange aos factos elencados no n. 2.1.1), a verdade é que a Arguida, A., depondo sobre os factos, de alguma forma os assumiu referindo, entre o mais, que sendo a gerente da sociedade Arguida se viu enredada na situação em causa neste processo por força do circunstancialismo que rodeia a crise que vivemos, com a consequente falta de pagamento pontual por parte dos clientes. Esclareceu, também, a forma como foi procedendo aos pagamentos das quantias correspondentes ao imposto em dívida. Depondo, ainda, sobre os factos, foram essenciais os depoimentos de JL e FS, ambos inspectores tributários, que depondo em sede de julgamento, de forma isenta, porque circunscrita àquilo que as testemunhas diziam saber e sobre o que depuseram sem hiatos de raciocínio e com respostas circunstanciadas e detalhadas, se referiram à forma como a situação foi detectada, no quadro das declarações periódicas apresentadas pelas Arguidas, tendo, ainda, esclarecido a forma como procederam à notificação das mesmas para que efectuassem o pagamento das quantias em dívida, sendo que explicitaram terem apurado que aquelas efectivamente receberam o dinheiro subjacente aos negócios que estão na base do apuramento do imposto. Na sequência de tais depoimentos, o testemunho de H., contabilista da Sociedade Arguida, referindo-se à substituição das declarações periódicas (em Março de 2012), explicitou que os pagamentos não foram feitos por uma objectiva indisponibilidade de meios financeiros por parte da Sociedade para proceder aos pagamentos. Tais depoimentos foram, ainda, compaginados com a certidão permanente de fls, 21 a 26, de onde resulta a "identificação registal" da sociedade Arguida e o facto de A. ser sua Administradora. Teve-se, ainda, em consideração a síntese cadastral de fls. 27 a 29, de onde se extraiu, entre o mais, o regime fiscal a que a Sociedade Arguida se encontra sujeita, as liquidações de fls. 30 a 32 e o comprovativo de entrega das declarações de fls. 33, 34, 53 e 54, que são a prova fáctica do percurso processual percorrido até à detecção das irregularidades imputadas às Arguidas. Contou-se, ainda, com o detalhe de processo de execução fiscal de fls. 38 a 40, com as facturas, listagem de pagamentos, extractos bancários e extractos contabilísticos de fls.55 a 173, com as liquidações de fls. 174 e 176, com a certidão de dívida de fls. 175, com as notificações de fls. 35 e 36; e com os elementos de fls. 177 a 179 que, indo de encontro aos pontos essenciais dos testemunhos apresentados, corroboram a ocorrência da factualidade apurada tal como ela foi descrita. Foi, ainda, ponderada a informação constante de fls. 281 e ss. prestada pela ATA, onde se refere à liquidação total da dívida em causa. Dito isto, realce-se que a ausência de antecedentes criminais das Arguidas, a que se refere o n.o2.1.2), resultou dos CRC junto ao processo. Já os factos respeitantes às condições pessoais da Arguida A. acolhidos no n.o2.1.3), resultaram das suas próprias declarações, que nos pareceram espontâneas e que, por isso, neste ponto não mereceram qualquer censura, sendo que as reportadas à Sociedade Arguida decorreram, designadamente, da certidão de fls. 21 e ss”. *** Cumpre conhecer. B.2 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. A recorrente invoca omissão de pronúncia e erro notório na apreciação da prova, impugnando de facto a apreciação probatória levada a cabo pelo tribunal recorrido. A omissão de pronúncia refere-se à requerida - em acta de audiência de julgamento – declaração de extinção do procedimento criminal. O Ministério Público em primeira instância suscita a mesma questão qualificando-a como questão prévia de omissão de pronúncia por inexistência de decisão ao requerido pelas arguidas em audiência de julgamento. Esta questão seria indubitavelmente prévia na medida em que se refere à omissão de pronúncia sobre um requerimento suscitado em audiência de julgamento e que, em princípio, deveria ter sido decidido no momento. Mas não sendo o dito requerimento objecto de decisão por despacho porquanto se deveriam apurar factos essenciais ao seu conhecimento – o que era adequado – impunha-se que uma resposta explícita fosse incluída na sentença recorrida, o que não ocorreu. Assim e porque relegada a decisão para a sentença, deixou de ser uma questão prévia por referência a despacho que deveria ter sido lavrado em audiência – o despacho foi lavrado relegando a decisão para momento posterior - e passou a ser a invocação de nulidade de sentença por omissão de pronúncia, já que a sentença é esse momento posterior. E, não há dúvida, a omissão de decisão constituirá omissão de pronúncia nos termos do disposto na al. c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, tendo em vista a previsão do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, já que a omissão se centralizou na sentença recorrida. Em termos práticos, no entanto, não ganha relevo qualificá-la como prévia pois esta nulidade sempre deveria ser em termos metodológicos a primeira a ser objecto de apreciação. Resta saber se os factos provados respondem ao requerido e este se mostra ultrapassado em termos de facto e de direito. O que, por seu turno, implica conhecer dos factos e da apreciação probatória realizada pelo tribunal recorrido. * B.3 – Da colocação do problema. Da análise dos factos dados como provados e dos documentos constantes dos autos resulta que a contestação das arguidas foi desprezada in totum e que há alguns factos que são essenciais e se impõe esclarecer quer para responder ao requerido, quer para a integração jurídica dos factos: qual o montante em dívida – de entre os vários possíveis - nos momentos normativamente relevantes e que já constavam daquela contestação. Esses momentos normativamente relevantes são três: o momento da consumação do crime de abuso de confiança fiscal antes da declaração de rectificação [o momento em que as arguidas deveriam ter pago a sua obrigação tributária, o termo do prazo legal de entrega da prestação a que se refere a alínea a) do nº 4 do artigo 105º do RGIT]; o momento em que finda o prazo de 30 dias previsto na alínea b) do mesmo preceito; [2] a declaração de rectificação. Esses três momentos correspondem à consumação do crime (verificação do tipo de ilícito e o tipo de culpa), ao final do prazo para que se entenda verificada a “condição objectiva de punibilidade” que se contém na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT e, por fim, a resposta sobre a natureza dos efeitos da declaração de rectificação fiscal. Mas para apreciar a relevância destes “momentos” outras datas e valores se devem alinhar para compreensão da questão posta, para além de se revelarem interessantes: Em função da primeira declaração fiscal a quantia inicialmente em dívida – referente a Abril de 2011 - era de 8.819,73 e deveria ter sido paga até Junho de 2011 (fls. 4); Em 23-12-2011 a Autoridade Tributária comunica o ilícito ao Ministério Público (fls. 4), ou seja, mais de 90 dias após aquele prazo de pagamento; Em 19-01-2012 as arguidas terão pago 1.109,03 € (na versão da AT e do Ministério Público) ou 1.500 € (na versão das arguidas) – véspera da notificação; Em 20-01-2012 as arguidas são notificadas nos termos da al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT (fls. 35-36); Em 22-03-2012 as arguidas apresentam declaração de rectificação de onde resulta que a quantia em dívida passou a ser de 8.597,66 € (fls. 53-54); Em 04-04-2012, findo o inquérito, é lavrado relatório final da Autoridade Tributária; Em 23-05-2012 foi deduzida acusação por referência à quantia de 8.819,73 e pedido cível no montante de 7.710,70 por se considerar que as arguidas haviam pago 1.109,03 € em 19-01-2012. De onde resulta que na versão da AT e do Ministério Público, sem considerar a declaração de rectificação, a quantia em dívida inicialmente de 8.819,73 passou a ser de 7.710,70 € (8.819,73 – 1.109,03), mas este último valor apenas com relevo civil. Na versão das arguidas três hipóteses se suscitam: a) Sem declaração de rectificação mas aceitando que pagaram 1.500 € a quantia em dívida passou a ser de 7.319,73 € (8.819,73 – 1.500); b) A haver aceitação e eficácia da declaração de rectificação mas que apenas pagaram 1.109,03 € a quantia em dívida passou a ser de 7.488,63 € (8.597,66 € – 1.109,03); c) A haver aceitação e eficácia da declaração de rectificação e que pagaram 1.500 € a quantia em dívida passou a ser de 7.097,66 € (8.597,66 € – 1.500); Ou seja, na versão do Ministério Público haverá sempre crime e nenhum efeito é atribuído à declaração de rectificação; nas várias versões das arguidas estas pretendem que nunca haverá crime ou, ao menos, que deixou de haver por partirem do princípio de que deixa de haver crime quando o montante baixa dos 7.500 € independentemente da data em que tal ocorra. Quer-nos parecer, no entanto, que havendo duas quantias que se perfilam como dívidas tributáveis em função da apresentação de duas declarações tributárias, a análise a fazer nos autos se deve enquadrar nesses duas realidades jurídicas distintas e sucessivas. E cada uma destas nos dois elementos essenciais que não podem ser olvidados: o momento da consumação criminosa e os efeitos do pagamento, parcial em ambos os casos. No primeiro - após a primeira declaração e após o decurso do prazo de 30 dias da al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT. No segundo caso antes da segunda declaração. * B.4 – A situação após a primeira declaração tributária. O momento da consumação criminosa é o momento em que a prestação tributária deveria ter sido paga, isto é, Junho de 2011 (a que se seguirão os prazos previstos nas duas alíneas do supra referido nº 4). Ou seja, em qualquer das hipóteses colocadas supra houve consumação criminosa porque mesmo nas versões das arguidas a quantia em dívida, antes do pagamento efectuado em 19-01-2012 (qualquer que seja o montante) e da declaração de rectificação, era superior a 7.500 €. Por outro lado, já no segundo momento de análise, em qualquer das hipóteses se trata de mero pagamento parcial e a condição da alínea b) do n. 4 do artigo 105º do RGIT apenas é excludente da punibilidade se o pagamento da prestação tributária for total. Em breve, o pagamento parcial não exclui a punibilidade, sendo certo que ali se prevê uma condição objectiva positiva de punibilidade. E não exclui essa punibilidade mesmo que o montante ainda em dívida nesse momento [no final do prazo de 30 dias da al. b)] seja inferior aos 7.500 € previstos no nº 1 do preceito. [3] Ou seja, consumado o crime, só o pagamento integral das indicadas quantias e no prazo da al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT afasta a punibilidade da conduta. E a razão é simples: estes 7.500 euros são um “patamar” do tipo de ilícito e este verificava-se – estava preenchido - no momento da consumação do ilícito criminal tal como imaginado pelo Ministério Público. Por outras palavras, o momento chave para fazer operar o nº 1 do preceito (logo, para verificar o requisito 7.500 €) é o momento da consumação do crime e não o momento de verificação da condição objectiva de punibilidade, já que estas são duas realidades distintas. [4] Neste aspecto convém ter presente o afirmado no Acórdão (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008: “As condições objectivas da punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer, e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção. (…) para Jeschek, as condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que se encontram em relação directa com o facto mas que não pertencem nem ao tipo de ilícito, nem ao tipo de culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto. (…) a verdadeira essência das condições objectivas de punibilidade como categoria dogmática autónoma no marco dos pressupostos materiais de punibilidade é, na perspectiva substancial, a sua autonomização em relação à ilicitude. O que sucede dado que esta classe de condições se coloca à margem da conduta ilícita e, consequentemente, a sua verificação vem a colocar em relevo tão -somente a questão da necessidade da pena. Nessa sequência, e num plano de conceitos, os elementos do tipo de ilícito e condições objectivas de punibilidade são noções que se excluem mutuamente. A origem histórica do instituto reflecte a necessidade de conciliar exigências contrapostas. Por um lado, existem desde sempre razões de conveniência prática e de oportunidade de política criminal que levam a subordinar a efetiva punibilidade de alguns tipos de comportamentos ao verificar de determinadas circunstâncias: proceder a uma punição incondicionada pode em certos casos conflituar efectivamente com a tutela de outros interesses merecedores de consideração ou, mais vulgarmente, provocar inconvenientes superiores às vantagens que do sancionamento se retiram». Isto é, preenchidos os tipos de ilícito e de culpa, o acréscimo das condições previstas nas alíneas do nº 4, inserindo-se numa política pragmática de cobrança fiscal, que faz depender a punibilidade do agente, pelo crime já consumado, do decurso de um prazo e do pagamento integral das quantias ali indicadas, não afecta a já existente consumação criminosa. E a condição objectiva de punibilidade contida na al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT encontra-se verificada pois que, regularmente notificadas as arguidas (com indicação da prestação tributária e coima respectiva) e decorrido o prazo de 30 dias, não se mostram pagas as quantias referidas no preceito: prestação, coima e juros. Assim e face à primeira declaração tributária ter-se-ia consumado o crime e encontrar-se-ia verificada a condição objectiva de punibilidade, logo o requerido pelas arguidas seria indeferido e as arguidas deveriam ser condenadas. Isto neste momento e nesta realidade jurídica espartilhada. Mas que não é final pois que importa saber quais são as consequências de uma declaração de rectificação, ou seja, saber se a declaração de rectificação faz desaparecer o ilícito criminal, o que será analisado infra. Mas antes de uma resposta cabal haverá que delinear os factos em função da prova existente. Assim, impõe-se apurar se os factos dados como provados devem e podem ser alterados e se há factos que devem ser dados como provados ou não provados por constarem da contestação das arguidas ainda haver nisso relevo por terem significado normativo relevante. * B.5.1 – Regressando aos factos. O tribunal recorrido dá como provado que em 19-01-2012 as arguidas pagaram 1.109,03 €, facto que já constava da acusação e do relatório da autoridade tributária a fls. 182 e da liquidação de fls. 176, referidos pelo tribunal recorrido na sua fundamentação factual. Mas as arguidas alegaram na sua contestação que nesse dia haviam pago 1.500 € e o documento que juntaram a fls. 258 - e que já se encontrava nos autos a fls. 37 - comprova-o. A própria administração fiscal refere a fls. 198 que as arguidas pagaram 1.500 €. Mas mais. A mesma administração fiscal refere a fls. 198 que a quantia em dívida passou a ser de 8.597,66 €, [5] por aumento do direito das arguidas á dedução do IVA no montante de 222,07 €. Estes dois factos essenciais também deveriam estar no acervo de factos provados: a quantia em dívida passou a ser de 8.597,66 € após a declaração de rectificação e as arguidas pagaram 1.500 € em Janeiro de 2012 ou seja, antes da declaração de rectificação. É certo que se pode pensar numa imputação do cumprimento parcial a outro crédito que não o imposto em dívida nos presentes autos, mas essa é matéria que compete ao Ministério Público provar, pois que às arguidas apenas incumbe provar o dito pagamento que se deve presumir imputado ao crédito de imposto em dívida. E esta presunção hominis vem a ser confirmada pelo ponto 7 daquele relatório final. Como, além disto, as recorrentes reclamaram a existência de uma declaração de substituição no seu requerimento lavrado em acta a fls. 271 mas já antes na sua contestação, este também é facto de apuramento essencial para resposta ao requerido e para a comprovação da punibilidade do facto. Isto é, a existência dessa declaração de rectificação e sua eficácia/validade deve ser dada como provada ou não provada, assim como o montante em dívida após a sua validação pela administração tributária. O tribunal sequer considerou a declaração de rectificação – sequer o Ministério Público antes de deduzir acusação – mas é certo que a administração tributária no seu “parecer” de fls. 180-189, no ponto 7.3 a fls. 185 afirma que existiu de facto uma declaração de rectificação, que foi validada e alterou o montante em dívida, que deixou de ser de 8.819,73 € como consta da acusação e dos factos provados (facto provado 10) e passou a ser de 8.597,66 como consta dos pontos 7.3 a 7.5 e 7.9 do relatório final de fls. 180-189. [6] E estas realidades existiam antes da dedução da acusação. E são suficientemente seguras e explicadas devidamente no capítulo 7 do relatório relativo aos elementos de prova. Ora, nem estes factos nem os supra referidos como alegados pelas arguidas na contestação foram dados como provados ou como não provados. Ou seja, foi desrespeitada a vinculação temática do tribunal na vertente do princípio da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente). [7] O que sempre consubstancia uma nulidade da sentença nos termos do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, que abarca necessariamente os factos alegados pela defesa que sejam normativamente relevantes, que não apenas os constantes da acusação. Do exposto resulta que deveria ser lavrada nova decisão com consideração dos indicados factos, com dois objectivos: responder ao requerido; apurar da punibilidade dos factos imputados. [8] Mas dispõe agora o nº 2 do artigo 379º do Código de Processo Penal – na redacção dada pela Lei nº 20/2013, de 21-02 - que o tribunal deve suprir as nulidades e não apenas que lhe é lícito supri-las, como ocorria na anterior redacção. E deve supri-las se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base e porque a prova foi impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412º, como se estatui nas als. a) e b) do artigo 431º do Código de Processo Penal. E tal acontece. * B.5.2 – Alterando os factos. Como se constata que do processo constam todos elementos de prova que serviram de base à decisão, que esta não ponderou todos os elementos de prova que já constavam dos autos, que os factos alegados pela contestação foram desprezados e porque a prova foi impugnada, iremos alterar a matéria de facto nos seguintes termos. [9] Os factos provados passam a ter a seguinte redacção: 12) - Em 19-01-2012 as arguidas pagaram 1.500 € por conta da referida quantia 15) - No dia 20 de Janeiro de 2012 foram notificadas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.° n.º 4 alínea b) do RGIT e nada disseram, fizeram ou requereram, no prazo de 30 dias, após a notificação. 16) – Contra as arguidas foi deduzido pelo Estado um pedido cível no montante de 7.710,70€ (sete mil setecentos e dez euros e setenta cêntimos), quantia essa que já liquidaram. Acrescentam-se os seguintes factos provados: 15-A) - Em 22-03-2012 as arguidas apresentam declaração de rectificação de onde resulta que a quantia em dívida passou a ser de 8.597,66 € (fls. 53-54); 15-B) - Em 04-04-2012, findo o inquérito, é lavrado relatório final da Autoridade Tributária que confirma os valores referidos em 12) e 15-A); 15-C) - Em 23-05-2012 foi deduzida acusação por referência à quantia de 8.819,73 e pedido cível no montante de 7.710,70 por se considerar que as arguidas haviam pago 1.109,03 € em 19-01-2012. * B.6 – A situação após a declaração tributária de rectificação. Havendo aceitação e eficácia da declaração de rectificação em sede de direito tributário a quantia que passou a estar em dívida e que deveria ter sido entregue nos cofres do Estado em Junho de 2011, era não o montante de 8.819,73 €, sim 8.597,66 €. E sabe-se também que até essa data, data em que se deve entender que a declaração de rectificação produz efeitos, as arguidas tinham pago 1.500 € e a quantia em dívida passou a ser de 7.097,66 € (8.597,66 € – 1.500). E a declaração de rectificação tem efeitos ex tunc. Assim, face à declaração de substituição apresentada, bem como ao pagamento parcial efetuado pelas arguidas, a prestação tributária em falta no caso dos autos relativa ao período de Abril de 2011 (1104M) é de montante inferior a 7.500 euros, não sendo por conseguinte criminalmente punível, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º do RGIT. Consequentemente, na data em que foi deduzida a acusação não existia crime. E mesmo o que se considerou anteriormente como crime assentou num erro de um dos elementos do tipo de ilícito, o valor da quantia em dívida. Destarte a afirmação de que o crime existiu é duvidosa, pois que essa asserção assenta num erro de facto. Esse erro é devido a uma errada declaração das arguidas, é certo, mas contra essa realidade – assim como dos efeitos da segunda declaração – não podemos fugir. O ilícito fiscal assenta no dever e na realidade declarativa e o erro declarativo é aceite pela lógica e ordenamento fiscal. Assim como a rectificação declarativa, com efeitos ex tunc. A situação reconduz-se, então, à seguinte realidade: um crime tido por consumado deixa de ser crime por ter ocorrido um erro de facto sobre um elemento objectivo do tipo, erro de facto esse que o ordenamento jurídico permite corrigir com efeitos rectroactivos. É uma realidade inabitual mas permitida pela ordem jurídica num tipo de ilícito criminal que, pela sua natureza, assenta num comportamento declarativo e numa realidade quantificável e, como tal, passível de erro. Esse erro deve ser atendível e, na medida em que aceite pela ordem jurídica como alterando a realidade fiscal “prestação em dívida”, altera o elemento objectivo de crime com o mesmo nomem iuris. É certo que no âmbito do chamado direito penal “clássico” dificilmente se aceitará uma hipótese semelhante, mas nesta vertente penal, o ilícito criminal fiscal assente na declaração quantificada de um montante tributável, a existência de um erro obriga a reconstruir o momento da consumação criminosa. Se até após o trânsito em julgado de uma decisão esta pode ser objecto de revisão – artigo 449º, nº 1 do Código de Processo Penal, pelo menos as alíneas a), c) e d) – e alterada por razões de facto, por argumento de maioria de razão o deverá ser antes desse trânsito em julgado e, como é claro, em plena audiência de julgamento. Ou seja, no momento da segunda declaração que altera o montante tributário em dívida surge uma outra realidade que altera os dados do tipo de ilícito e do tipo de culpa. No caso a conclusão é indubitável: no momento da segunda declaração a prestação em dívida, o patamar mínimo de ilicitude, não se mostra preenchido. E tanto basta para que se conclua juridicamente que as arguidas devem ser absolvidas e deve-lhes ser restituído – nos termos das normas fiscais - o que pagaram em excesso. Nem se mostra necessário – face a isto – determinar se incumbia ou não, à administração tributária voltar a notificar as arguidas nos termos do artigo 105.° n.º 4 alínea b) do RGIT. Sobre a possibilidade – meramente teorética – da existência de um “crime” entre a primeira e a segunda declaração tributárias a declaração impõe-se: essa “ideia de crime” assenta num erro de facto que deve ser extirpado da economia do processo e esse erro arrasta consigo para o esquecimento a “ideia de crime” anteriormente tido por consumado. *** C - Dispositivo Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em: A - Alterar a matéria de facto nos seguintes termos: Os factos provados passam a ter a seguinte redacção: 12) - Em 19-01-2012 as arguidas pagaram 1.500 € por conta da referida quantia 15) - No dia 20 de Janeiro de 2012 foram notificadas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.° n.º 4 alínea b) do RGIT e nada disseram, fizeram ou requereram, no prazo de 30 dias, após a notificação. 16) – Contra as arguidas foi deduzido pelo Estado um pedido cível no montante de 7.710,70€ (sete mil setecentos e dez euros e setenta cêntimos), quantia essa que já liquidaram. Acrescentam-se os seguintes factos provados: 15-A) - Em 22-03-2012 as arguidas apresentam declaração de rectificação de onde resulta que a quantia em dívida passou a ser de 8.597,66 € (fls. 53-54); 15-B) - Em 04-04-2012, findo o inquérito, é lavrado relatório final da Autoridade Tributária que confirma os valores referidos em 12) e 15-A); 15-C) - Em 23-05-2012 foi deduzida acusação por referência à quantia de 8.819,73 e pedido cível no montante de 7.710,70 por se considerar que as arguidas haviam pago 1.109,03 € em 19-01-2012. B – Absolver as arguidas do crime imputado. Sem custas. (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado). Évora, 19 de Dezembro de 2013 João Gomes de Sousa Ana Bacelar _________________________________________________ [1] - Sumariado pelo relator [2] - As arguidas alegam e juntam documentação para prova de pagamentos posteriores ao prazo de 30 dias da al. b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT mas essas alegações só tinham relevância para o pedido cível. As fls. 266 juntaram documento que parece atestar que, em 19-11-2012, a quantia em dívida era de 5.848,11 € e que já haviam pago 3.950 €, mas os documentos juntos pelas arguidas a fls. 259 a 265 mostram-se irrelevantes para a matéria crime, pois que são pagamentos efectuados após o decurso do prazo de 30 dias previsto na citada norma e mesmo muito após a data da declaração de rectificação. [3] - Neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2013 (Proc. 122/09.2IDVIS.C1, sendo rel. a Desemb. Cacilda Sena): «III - … o pagamento parcial da prestação tributária, mesmo que feito no prazo a que se reporta a al. a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, não pode ter a virtualidade de alterar o montante da prestação tributária para efeito de responsabilidade penal do devedor pela prática do crime de abuso de confiança fiscal». [4] - Aliás, na exigência de pagamento das quantias devidas a título de “prestação, coima e juros”, estas duas últimas não dizem respeito à ilicitude penal. [5] - A referência no ponto 9.2 do relatório de fls. 188 ao montante do pedido que o Ministério Público pode deduzir (7.710,70 €), quantia que corresponde à subtracção de 1.109,03, contraria o que consta dos pontos 7 do mesmo relatório. Esta é, no entanto uma questão de menor relevância, pois que aquele relatório é assertivo na afirmação de dois factos essenciais que isto desmentem: a quantia em dívida passou a ser de 8.597,66 € e as arguidas pagaram 1.500 € em Janeiro de 2012. [6] - Aquilo que é apelidado de “Parecer” a fls. 180-189 não é um parecer para efeitos processuais nem, muito menos, uma “perícia” como invocam as arguidas, sim um relatório final de uma entidade administrativa com funções de polícia. [7] - “Alteração substancial dos factos em processo penal”, José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho - Comunicações apresentadas no Colóquio “Questões Práticas na Reforma do Código Penal”, organizado pelo Centro de Estudos Judiciários e realizado em Lisboa no dia 13 de Março de 2009 no Fórum Lisboa, e no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009, no 7º aniversário deste Tribunal. Disponível in “http://www.trg.pt/info/estudos.html”. [8] - Neste sentido, por desconsideração dos factos ou não cumprimento da vinculação temática proposta na acusação, o acórdão do STJ de 02-04-2008 (proc. 07P4197, rel. Cons. Raul Borges). [9] - A circunstância de a contestação ser apelidada de “contestação ao pedido cível” não impede que dela se extraiam e considerem os factos penalmente relevantes. |