Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
197/08-2
Relator: MARIA ALEXANDRA SANTOS
Descritores: CASO JULGADO
Data do Acordão: 06/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
Não deparamos com a excepção de caso julgado quando num pedido anterior o tutor pediu autorização judicial para vender um bem de um interditado a um interessado por determinado valor e, posteriormente, volta a pedir autorização, apresentando não só um interessado diferente como o valor é superior.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 197/08 – 2

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A”, na qualidade de tutor da interdita “B” veio requerer autorização para celebrar escritura de compra e venda do imóvel que identifica, propriedade da interdita, alegando, em resumo, que o produto da venda do mesmo é essencial para que de forma adequada se possa prover à satisfação das suas necessidades já que os seus progenitores com quem ela vive têm manifesta dificuldade em assegurar, por si, a satisfação e prestação de todos os cuidados essenciais ao seu bem-estar, designadamente, a contratação de uma terceira pessoa que auxilie na prestação de todos os cuidados e a realização de algumas obras de adaptação da sua casa de habitação, a fim de promover uma melhor qualidade de vida àquela.
Que não obstante o prédio se encontrar em ruínas, há um interessado na sua compra pelo valor de € 10.500,00.
Citada a mãe da interdita nada disse.
O Magistrado do Ministério Público, por sua vez, contestou, alegando que o requerente não logrou demonstrar qual o rendimento mensal de agregado familiar da interdita, não indicou quais as despesas médias mensais que tem com a mesma, nem quanto importará a compensação monetária de uma pessoa que cuide da incapaz. Refere ainda que o requerente não indicou em quanto importarão as obras na habitação, nem se o mesmo possui outros bens vendáveis, já que sendo pai da interdita e esta solteira e sem filhos, se encontra obrigado a prestar-lhe alimentos.
O requerente respondeu nos termos de fls. 24/26.
Foi, em seguida, proferida a decisão de fls. 30 e segs. que, julgando verificada a excepção de caso julgado, julgou extinta a instância.
Inconformado, o requerente interpôs o presente recurso, alegando e formulando as seguintes conclusões:
A - As disposições legais em vigor estipulam a necessidade de autorização judicial para a alienação de bens da interdita pelo tutor (art°s 1953°, 1938° nº 1 e 1889 nº 1 todos do CC).
B - Tal autorização configura verdadeiro requisito de validade do acto de alienação (art° 1889 nº 1 al. a) do CC)
C - Tendo sido decretada a interdição, o pedido de autorização corre por apenso aos autos principais, não sendo da competência exclusiva do M.Pº (al. b )do art. 2 do art° 2° do DL nº 272/2001 de 13/10)
D - O facto de o tutor ter em momento anterior ao presente pedido apresentado um outro não inviabiliza, por si, o actual pedido de autorização;
E - O presente pedido de autorização judicial para alienação de prédio propriedade da interdita identifica um novo interessado na compra e propõe um novo preço;
F - Ao julgar verificada a excepção de caso julgado, sem conhecimento de mérito, assistimos a uma clara situação de denegação de justiça.
G - Assim, a sentença recorrida violou as disposições conjugadas dos artºs 1935°, 1938° nº 1 al. a) e 1889° nº 1, todos do CC;
H - Uma adequada aplicação das disposições legais plasmadas nos art°s 1935º, 1938° n° 1 al. a) e 1889° n° 1, todos do CC, conjugados com a correcta interpretação do disposto no normativo legal plasmado na al. b) do n° 2 do artº 2° do DL 272/2001 de 13/10, implica, necessariamente, a revogação da sentença recorrida.
O Magistrado do M.Pº contra-alegou nos termos de fls. e 66 e segs., concluindo do seguinte modo:
1 - Se for entendido que o conceito de pedido contido no art° 4980 nº 3 do CPC é no sentido "latu sensu" do termo, em que se abstrai da quantia da venda e se considera tal termo no sentido de efeito jurídico apenas, o recurso não pode proceder.
2 - Porém, se for entendido o conceito de pedido em sentido estrito, abarcando, por isso, também o preço da venda então o recurso deve proceder pois este facto, para além de constituir realidade diferente na base do pedido, também se reflecte na causa de pedir pois torna-a a complexa, afastando, assim, o conceito de caso julgado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente, abrangendo apenas as questões aí contidas (art°s 684 nº 3 e 690 nº 1 do CPC), verifica-se que a única questão a decidir é saber se, in casu, se verifica ou não a excepção de caso julgado.
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Na sua decisão a Exmª Juíza atendeu aos seguintes factos:
A - Por sentença proferida no dia 5/03/2004, já transitada em julgado, foi decretada a interdição, por anomalia psíquica, de “B”, fixada a data de início da incapacidade em 1 de Maio de 1975, data do seu nascimento, e nomeado tutor da mesma o indicado “A” e vogais do conselho de família, as indicadas “C” e “D” (cfr. fls. 47 a 52 dos autos principais).
B - Em 28/09/2006, “A”, na qualidade de tutor da interdita “B”, veio requerer a autorização para celebrar uma escritura de compra e venda relativa ao prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e quintal, com o n° 6 de polícia, sito em …, …, …, descrito na CRP de … sob o nº 00148/240786 pelo preço de € 10.000,00 (cfr. fls. 2 a 5 do apenso A)
C - Por decisão proferida em 4/10/2006, nos autos do apenso A, que conheceu a excepção dilatória inominada de falta de jurisdição, foi julgada extinta a instância que teve início com a apresentação do requerimento id. em B) (cfr. fls. 12 do Apenso A)
D - Em 09/02/2007, “A”, na qualidade de tutor da interdita “B”, veio requerer a autorização para celebrar uma escritura de compra e venda relativa ao prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e quintal, com o n° 6 de polícia, sito em …, …, …, descrito na CRP de … sob o nº 00148/240786 pelo preço de € 10.000,00 (cfr. fls. 2 a 6 do apenso B)
E - Por decisão proferida em 10/05/2007, nos autos do apenso B que conheceu a excepção dilatória de caso julgado, foi julgada extinta a instância que teve início com a apresentação do requerimento identificado em D) (cfr fl. 14 a 20 do apenso B)
F - Em 15/06/2007, “A”, na qualidade de tutor da interdita “B”, veio requerer a autorização para celebrar uma escritura de compra e venda relativa ao prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e quintal, com o n° 6 de polícia, sito em …, …, …, descrito na CRP de … sob o nº 00148/240786 pelo preço de € 10.500,00 (cfr. fls. 2 a 6).
Com base nestes factos entendeu a Exmª Juíza recorrida que ocorre a excepção do caso julgado por se verificar a identidade de sujeitos, a coincidência de pedidos e "paralelamente, a servir de suporte às pretensões deduzidas naqueles autos está o mesmo facto jurídico de onde emerge o direito invocado pelo requerente para praticar o acto, para o qual carece de autorização do tribunal, cujo reconhecimento pretende nos autos e que integra a causa de pedir".

Como é sabido, a excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa estando a anterior decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior - art°s 497° nºs 1 e 2 do CPC.
Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos ao pedido e à causa de pedir - art° 498° do CPC.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Há identidade de pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Há identidade de causas de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
Como escreveu Manuel de Andrade "O caso julgado, por sua parte, só pretende obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas)” a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão, e portanto desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos ou tutelados" (Noções Elementares de Processo Civil, 1993, p. 318)
No caso em apreço, estamos perante um pedido de autorização para a prática de actos pelo legal representante de um incapaz, concretamente, a venda de um bem de sua propriedade, acto cuja validade depende de autorização judicial (cfr. art° 1889° nº 1 al. a) ex vi do art° 1938° n° 1 al, a) do C.C.).
A autorização processa-se nos termos do procedimento previsto no art° 1439° do CPC, sendo dependência do processo de interdição (nº 4) - (carecendo o M.Pº de competência decisória para a mesma - art° 2° nº 2 al. b) in fine do DL 272/2001).
Trata-se, porém, de um processo de jurisdição voluntária, em que o juiz não está subordinado a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar as soluções que julgue mais convenientes e oportunas para o caso (art° 1410° do CPC) o que não dispensa contudo, o respeito pelo cumprimento das normas processuais respectivas.
Para além desta característica em matéria de critérios de julgamento - não sujeição a critérios de legalidade estrita mas sim a ditames "ex-aequo et bono" - os processos de jurisdição voluntária têm também outras características singulares de que se destaca a predominância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art° 1409° nº 1 do CPC) e a alterabilidade das decisões com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art° 1411 ° nº 1 do CPC).
Neste tipo de processos as decisões, ao invés do que sucede nos outros tipos de processos, não são, após o seu trânsito em julgado definitivas e imutáveis.
Elas são alteráveis sempre que se alterarem as circunstâncias em que se fundaram, isto é, trata-se de uma espécie de caso julgado com efeitos temporalmente limitados.
Porém, desta característica de alterabilidade das decisões nos processos de jurisdição voluntária não decorre um menor valor, uma menor força ou uma menor eficácia da decisão pois enquanto não for alterada ela impõe-se tanto às partes como a terceiros afectados pela mesma (art° 671 ° do CPC) e até ao próprio tribunal - caso julgado material e formal - na medida em que, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional (artº 666° do CPC) só podendo ser alterada nos termos prescritos na lei (cfr. Ac. desta Relação de 16/03/2006 in www.dgsi.pt).
A alteração pressupõe um pedido por quem tem legitimidade processual, in casu, o tutor da incapaz, através do processo próprio regulado no art° 1439° do CPC, no qual o juiz só decide depois de produzidas as provas que admitir e de concluídas outras diligências necessárias ( ... )
Ora, consta dos factos provados que por decisão de 10/05/2007, proferida no apenso B, que conheceu a excepção dilatória de caso julgado, foi julgada extinta a instância proposta pelo tutor da interdita para celebrar uma escritura de compra e venda de um imóvel desta pelo preço de € 10.000,00.
Pela presente acção pretende agora o referido tutor, pelas fundamentos constantes da petição inicial, pedir autorização para venda do mesmo imóvel pelo preço de € 10.500,00.
Assim sendo, e pelas razões supra expostas, não se verifica, pois, a declarada excepção de caso julgado relativamente ao pedido de autorização agora formulado, o qual deve ser apreciado nos termos previstos no art° 1439° do CPC. Procedem, nos termos expostos, as conclusões da alegação do agravante, impondo-se a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que dê seguimento à tramitação prevista no apontado normativo legal.

DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo e, em consequência, revogando a decisão recorrida, determinam o prosseguimento do processo.
Sem custas.
Évora, 2008.06.26