Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
42/10.8GBLGS-B.E1
Relator: ANTÓNIO M. RIBEIRO CARDOSO
Descritores: CONFIANÇA DO PROCESSO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
RECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 11/14/2012
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Sumário:
1 – O direito de consulta do processo fora do tribunal, insere-se no âmbito do direito de defesa do arguido.
2 - O despacho que não autoriza a confiança do processo não é de mero expediente já que interfere ou pode interferir, ainda que apenas reflexamente, no conflito de interesses entre as partes e nas garantias de defesa do arguido.
3 – Tendo a recusa ocorrido depois de finda a instrução, o despacho é recorrível.
Decisão Texto Integral:
Inconformado com a decisão que não lhe admitiu o recurso que interpusera do despacho que indeferiu o seu requerimento em que pedira a confiança do processo, veio o arguido R… reclamar da mesma, nos termos do art. 405º do Código de Processo Penal.

Vejamos o histórico dos autos.
Requereu o defensor do arguido a confiança do processo, tendo recaído sobre tal pedido o seguinte despacho:
«É negada a requerida confiança do processo, que não é de uso em processos com arguidos presos. Mas entregar-se-á ao Ilustre Defensor do arguido fotocópia de todas as peças processuais que interessem à defesa, contando-se a final os respectivos encargos. Quanto à apresentação da defesa, caso venha a ser junta a contestação, oportunamente se decidirá. Mas vai admitido o rol de testemunhas junto pelo arguido.»
Inconformado, interpôs o arguido recurso que não foi admitido com a seguinte fundamentação:
«Recursos interpostos:- Nenhum deles recai sobre matéria susceptível de recurso - mas não é tudo. Recorre-se de despacho que denega a confiança do processo, de despacho que não recebe recurso de despacho que não designa segunda data para julgamento e de despacho que não recebe recurso de despacho que não estabelece prévia compatibilização de agendas.
Quanto ao recurso atinente à confiança do processo, recai sob a alçada do artigo 400°, nº 1, alínea a), do C P Penal, logo não é admissível e, por consequência, não vai admitido. Quanto aos dois restantes recursos, (…)»
Reagindo apresentou o arguido a presente reclamação com a seguinte fundamentação:
«R… (T.I.R., fls. 11) ,
apresenta reclamação (art. 405° , nos 1-3 , CPP) ,
o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
(a)decisão reclamada
despacho, de 22/12/2010 , a fls. 765 (§§ 5°-6°), > de não admissão do recurso interposto em 09/12/2010 (fls. 743 , originais em 15/12/2010 a fls. 753) , do despacho de 16/11/2010 , a fls. 707-708 (§ 4°) ,- na parte em que denegou a confiança do processo.
(b)razões que justificam a admissão do recurso, - que assim pede
I.Por razões de economia processual, - dá por reproduzidos:
● o teor do requerimento de confiança do processo, de 29/10/2010 (fls. 685)
● o teor do despacho, de 16/11/2010 (despacho recorrido, fls. 707-708)
● o teor do requerimento de interposição de recurso, de 09/12/2010 (fls. 743, originais em 15/12/2010 a fls. 753)
● o teor do despacho, de 22/12/2010 , a fls. 765 (§§ 5°-6°) , que não admitiu o recurso
2.In casu , o despacho recorrido não pode ser configurado como de mero expediente donde a sua recorribilidade (art. 399° , CPP) .
● para instrução da presente reclamação
as supra mencionadas peças processuais»

Vejamos.
Foi entendimento do tribunal “a quo” ser de mero expediente o despacho que indeferiu a confiança do processo e, por isso, o recurso não foi admitido, nos termos do art. 400º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal.
Efectivamente estabelece o art. 400º, nº 1, al. a) Código de Processo Penal que não é admissível recurso de despachos de mero expediente.
Importa pois saber se o despacho em causa deve ou não ser considerado de mero expediente [1].
O Código de Processo Penal, não define o que é despacho de mero expediente.
Consequentemente, nos termos do art. 4º, teremos que nos socorrer do Código de Processo Civil.
Definindo o conceito, estabelece o art. 156º, nº 4 do Código de Processo Civil que “os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes.
Como ensina Castro Mendes [2], os despachos de mero expediente “são despachos de carácter meramente interno, que dizem respeito às relações hierárquicas entre o juiz e a secretaria (p. ex., o despacho que ordena a conclusão do processo ao juiz); ou em qualquer caso são despachos que dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes (ex: o despacho que marca dia para julgamento). Estes despachos são, em princípio irrecorríveis, só o sendo no caso de desarmonia com a lei”.
Nas palavras de Alberto dos Reis “despachos de mero expediente são os que o juiz profere para assegurar o andamento regular do processo… 1º Por meio deles, o juiz provê ao andamento regular do processo; 2º Não são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros” [3].
Estabelece o art. 89.º do Código de Processo Penal sob a epígrafe “Consulta de auto e obtenção de certidão e informação por sujeitos processuais”:
1 - Durante o inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil podem consultar, mediante requerimento, o processo ou elementos dele constantes, bem como obter os correspondentes extractos, cópias ou certidões, salvo quando, tratando-se de processo que se encontre em segredo de justiça, o Ministério Público a isso se opuser por considerar, fundamentadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas.
2 - Se o Ministério Público se opuser à consulta ou à obtenção dos elementos previstos no número anterior, o requerimento é presente ao juiz, que decide por despacho irrecorrível.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os autos ou as partes dos autos a que o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil devam ter acesso são depositados na secretaria, por fotocópia e em avulso, sem prejuízo do andamento do processo, e persistindo para todos o dever de guardar segredo de justiça.
4 - Quando, nos termos dos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 86.º, o processo se tornar público, as pessoas mencionadas no n.º 1 podem requerer à autoridade judiciária competente o exame gratuito dos autos fora da secretaria, devendo o despacho que o autorizar fixar o prazo para o efeito.
5 - São correspondentemente aplicáveis à hipótese prevista no número anterior as disposições da lei do processo civil respeitantes à falta de restituição do processo dentro do prazo; sendo a falta da responsabilidade do Ministério Público, a ocorrência é comunicada ao superior hierárquico.
6 - Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.
Não oferece dúvidas de que o direito de consulta do processo se insere no âmbito do direito de defesa do arguido, pois que, só conhecendo o conteúdo do processo se pode defender das acusações que lhe são imputados e preparar de forma cabal a sua defesa.
É claro que o direito de consulta tanto pode ser exercido no tribunal como fora dele e, por isso, poder-se-á objectar que se for facultada a consulta no tribunal o direito de defesa consubstanciado no direito à consultas está assegurado.
Mas não é tão líquido.
Efectivamente não é a mesma coisa o defensor consultar o processo no tribunal (que por vezes nem dispõe de instalações adequadas, designadamente de gabinete) ou no recesso do seu escritório. E não o sendo, parece óbvio que o cabal exercício do direito de defesa pode ser, de alguma forma, comprometido.
Seja como for, constitui um direito do arguido, exercido sob condições é certo, consultar o processo inclusive fora do tribunal. Por isso, o despacho que não autoriza a confiança do processo não deve ser considerado de mero expediente já que interfere ou pode interferir, ainda que apenas reflexamente, no conflito de interesses entre as partes.
Sobre a questão da natureza do despacho que recusa a confiança do processo e respectiva recorribilidade e se o direito à consulta dos autos fora do tribunal se insere ou não no âmbito dos direitos de defesa dos arguidos, pronunciou-se já o Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 247/96 de 29.02.1996, proc. nº 77/95 [4], embora visando o art. 89º do CPP na sua redacção inicial dada pelo DL 78/87 de 17/02 [5], tendo julgado inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 89º, nº 3, e 400º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual está em causa um acto de livre resolução do tribunal:
«I - A confiança do processo (e a sua consulta fora da secretaria) não constitui conditio sine qua non do exercício das garantias de defesa. Sem embargo, é irrecusável que a consulta do processo pelo defensor no seu escritório assegura, tendencialmente, uma defesa do arguido mais eficaz.
II - A esta luz se compreende que o nº 3 do artigo 89º do Código de Processo Penal configure, expressamente, como um direito a faculdade de o arguido consultar o processo fora da secretaria, direito este que há-de ter-se, necessariamente, como instrumental das garantias de defesa.
III - O nº 3 do artigo 89º do Código de Processo Penal não contempla, estruturalmente, um direito potestativo, nem a Constituição impõe, no artigo 32º, nº 1, a consagração de um tal direito. Assim, a autoridade judiciária competente pode recusar a confiança do processo, nos termos daquela norma.
IV - Deve ter-se como despacho dependente da livre resolução do tribunal aquele que determina um acto ordenado do processo, insusceptível de afectar o exercício das garantias de defesa.
V - Porém, no caso sub judice, existe um direito que é instrumental das garantias de defesa. E a decisão judicial que incida sobre o exercício desse direito não se pode considerar, por conseguinte, despacho dependente da livre resolução do tribunal.
VI - A autoridade judiciária não está obrigada a autorizar a confiança do processo. Ela poderá recusá-la, mas deverá fundamentar o seu despacho, que será impugnável, nos termos gerais, mediante a interposição de recurso.»[6]
Pese embora a redacção actual [7] do art. 89º do Código de Processo Penal seja substancialmente diferente, entendo que se mantém válido o decidido no referido aresto nomeadamente quanto à natureza e recorribilidade do despacho que recusa a confiança do processo.
É certo que o nº 2 do art. 89º na sua actual redacção expressamente estabelece a irrecorribilidade do despacho judicial que, durante o inquérito, no caso de o MºPº se opor, decide se o processo que se encontre em segredo de justiça pode ou não ser consultado.
Trata-se, todavia, de uma situação excepcional e apenas aplicável durante o inquérito, quando o processo se encontre em segredo de justiça e apenas se o MºPº recusar essa consulta.
Na prática a intervenção do juiz naquelas circunstâncias destina-se a dirimir um conflito surgido entre o requerente e o MºPº.
No caso dos autos nem o processo está na fase de inquérito, nem em segredo de justiça, nem o despacho judicial visa resolver qualquer conflito surgido entre o arguido e o MºPº, estando exactamente na situação prevista do nº 3 do art. 89º na redacção inicial (DL 78/87 de 17/02), pelo que tem plena aplicabilidade o sobredito acórdão e decisão de inconstitucionalidade.
Em suma, o despacho judicial que recusa a confiança do processo não é de mero expediente já que é susceptível de interferir no direito de defesa do arguido.
Sendo proferido depois de findo o inquérito, o despacho é recorrível.
Pelo exposto e sem necessidade de outros considerandos, atendo a reclamação, revogo o despacho reclamado que deve ser substituído por outro admitindo o recurso, caso outros impedimentos não se verifiquem.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 14.11.2012
(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(Vice-Presidente)
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[1] Reedita-se aqui, parcialmente, o que se consignou na reclamação 42/10.8GBLGS-A.E1.
[2] In Recursos, 1980-40.
[3] In Código de Processo Civil anotado, volume V, reimpressão, 1981, pág. 250.
[4] Texto integral acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960247.html.
[5] Artigo 89.º (redacção inicial - DL 78/97 de 17 de Fevereiro
(Consulta de auto e obtenção de certidão por sujeitos processuais)
1 - Para além da entidade que dirigir o processo, do Ministério Público e daqueles que nele intervierem como auxiliares, o arguido, o assistente e as partes civis podem ter acesso a auto, para consulta, na secretaria ou noutro local onde estiver a ser realizada qualquer diligência, bem como obter cópias, extractos e certidões autorizados por despacho, ou independentemente dele para efeito de prepararem a acusação e a defesa dentro dos prazos para tal estipulados pela lei.
2 - Se, porém, o Ministério Público não houver ainda deduzido acusação, o arguido, o assistente e as partes civis só podem ter acesso a auto na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em que devessem intervir. Para o efeito, as partes referidas do auto ficam avulsas na secretaria, por fotocópia, pelo prazo de três dias, sem prejuízo do andamento do processo. O dever de guardar segredo de justiça persiste para todos.
3 - As pessoas mencionadas no n.º 1 têm, relativamente a processos findos, àqueles em que não puder ou já não puder ter lugar a instrução e àqueles em que tiver havido já decisão instrutória, direito a examiná-los gratuitamente fora da secretaria, desde que o requeiram à autoridade judiciária competente e esta, fixando prazo para tal, autorize a confiança do processo.
4 - São correspondentemente aplicáveis à hipótese prevista no número anterior as disposições da lei do processo civil respeitantes à falta de restituição do processo dentro do prazo; sendo a falta da responsabilidade do Ministério Público, a ocorrência é comunicada ao superior hierárquico.
[6] In www.dgsi.pt documento nº TCB19960229962471.
[7] O art. 89º foi sucessivamente alterado pela Lei 59/98 de 25/08 e pela Lei 48/2007 de 29/08.