Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
106/11.0TBCCH.E1
Relator: CRISTINA CERDEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA IN VIGILANDO
EXCESSO DE VELOCIDADE
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 04/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I) - No nosso ordenamento jurídico, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos do artº. 487º, nº. 2 do Código Civil. Nesta conformidade, a diligência relevante para a determinação da culpa há-de ser a de uma pessoa normal colocada perante o circunstancialismo do caso concreto.
II) - Resulta do regime legal da circulação rodoviária e do conceito de culpa a que se reporta o artº. 487º, nº. 2 do Código Civil, que os condutores, antes de iniciarem qualquer manobra, devem previamente certificar-se de que a mesma não compromete a segurança do trânsito e proceder em termos de não a comprometer.
III) - No que respeita à problemática da velocidade a que os veículos automóveis podem circular, além de terem de respeitar os limites gerais e especiais de velocidade, devem regulá-la de harmonia com os locais em que circulam, as circunstâncias dos veículos, da configuração e estado geral das estradas, da sua luminosidade e visibilidade.
IV) - Não se pode falar em culpa de um menor de 22 meses de idade que iniciou a travessia da faixa de rodagem, surgindo na frente de um veículo quando este ia a ultrapassar outro veículo, sem tomar atenção ao trânsito no local, considerando, ademais, que se presume falta de imputabilidade dos menores de sete anos, nos termos do artº. 488º, nº. 2 do Código Civil.
V) - Resultando provado que, antes do atropelamento, o menor saiu de um portão que limitava o terreno de uma habitação, onde momentos antes estava em companhia dos seus pais e de outras crianças que eram permanentemente vigiadas pelo conjunto de vários convidados adultos e especialmente pelos pais do menor, dos quais repentinamente aquele se separou, e cabendo aos pais o dever de vigilância sobre o menor, ocorre uma situação de “culpa in vigilando” nos termos do artº. 491º do Código Civil.
VI) - Deve considerar-se que o condutor do veículo segurado na Ré teve culpa na produção do acidente ao fazer a ultrapassagem de outro veículo, que seguia a uma velocidade entre 40 e 50 Km/hora no interior de uma localidade, circulando o veículo segurado a uma velocidade entre 70 e 80 Km/hora dentro de uma povoação, em que a velocidade máxima permitida por lei é de 50 Km/hora, o que não lhe permitiu evitar o embate no menor que iniciou a travessia da faixa de rodagem, tendo tal condutor agido com inconsideração e de forma temerária, violando o dever geral de cuidado e atenção que se impõe a todo o condutor prudente e diligente, e que sempre é necessário observar quando se efectuam manobras como a de ultrapassagem de um veículo.
VII) - Considerando a actuação de cada um dos intervenientes no sinistro, conclui-se que houve concorrência de culpas – do peão e do condutor do veículo que embateu – para a produção do acidente, afigurando-se adequado fixar a contribuição culposa do condutor desse veículo e do menor sinistrado, para a produção do evento, na percentagem de 40% para aquele motorista e 60% para a vítima.
VIII) - A jurisprudência do STJ, nos últimos anos, tem avançado no sentido de uma crescente valorização do direito à vida, atribuindo valores para o dano morte (perda do direito à vida) que oscilam entre os € 50 000 e € 80 000, chegando mesmo atingir os € 100 000 para vítimas mais jovens.
IX) - Embora a vida não tenha preço, é razoável admitir que seja atribuída uma indemnização mais elevada pela perda de uma criança ou de um jovem, cujas vidas ainda não foram plenamente vividas, do que pela morte de um adulto já na curva descendente da sua existência.
X) - Estando em causa a morte de uma criança com 22 meses de idade que era “saudável, alegre, activa e com muita alegria no convívio”, que certamente teria um longo futuro pela frente, com um projecto de vida próspero e feliz junto da família e amigos, tendo ainda para viver a fase mais fulgurante do seu desenvolvimento físico, e utilizando a equidade e o senso comum, entende-se ser adequado o valor de € 80 000 para compensação da perda do direito à vida do menor.
XI) - A indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos é efectuada também segundo a equidade, sendo atribuída uma importância cuja utilização seja capaz de, senão compensar, ao menos atenuar, de algum modo, os desgostos sofridos com o falecimento do familiar.
XII) - Considerando que o falecimento de um filho é, seguramente, causa de sofrimento profundo, indescritível e inultrapassável, com efeitos desvastadores para os progenitores que vão perdurar ao longo da sua existência e reflectir-se nas suas vidas, entende-se adequado fixar, para cada um dos progenitores, a quantia de € 30 000, a título de indemnização por danos não patrimoniais próprios sofridos com a perda de um filho com 22 meses de idade.

Sumário da relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO
R... e mulher M..., por si e em representação da sua filha menor, A..., intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra Companhia de Seguros ..., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 200 000 a título de indemnização por danos não patrimoniais, sendo € 100 000 pela perda do direito à vida de seu filho menor P... e € 100 000 pelos danos morais sofridos pelos próprios, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos desde a citação.
Para tanto alegam, em síntese, que no dia 6 de Setembro de 2009, cerca das 14 horas, o condutor MA... conduzia o veículo ligeiro de passageiros Audi A4, 1.8 TDI, com a matrícula …-FZ-…, segurado na Ré, dentro da povoação da … e pela Rua da Escola no sentido Biscainho – Canha, sendo que no mesmo sentido, mas à sua frente, seguia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …-…-RB, conduzido por PA… .
Naquele local a estrada é uma grande recta, com bom piso, mede 5,60 metros de largura e tem boa visibilidade.
O condutor MA... aumentou a velocidade da viatura que conduzia para iniciar a ultrapassagem do veículo RB que seguia à sua frente a uma velocidade de, pelo menos, 50 Km/hora, máximo legalmente permitido no local.
Ao iniciar a ultrapassagem, o MA... acelerou e imprimiu ao veículo que conduzia uma velocidade superior a 70 Km/hora.
Nesse referido dia, hora e local e tendo em conta a marcha do FZ e do RB, o menor P... caminhava visivelmente na referida Rua da Escola, da esquerda para a direita, tendo iniciado a marcha partindo de um portão que limitava o terreno da habitação de MC…, onde momentos antes estava em companhia dos seus pais e de outras crianças que eram permanentemente vigiadas e dos quais repentinamente se separou.
Quando o menor começou a atravessar a Rua da Escola, o condutor do FZ encontrava-se a uma distância de cerca de 20 metros, o que lhe permitia avistar a criança, mas não vinha atento à condução do seu veículo.
O condutor MA... não buzinou quando se aproximou do local, nem diminuiu a velocidade, não fez qualquer travagem e foi atingir com muita violência o menor P..., tendo este embate ocorrido por inconsideração, negligência, falta de destreza do condutor do veículo segurado e por este circular a uma velocidade excessiva.
O embate deu-se com a parte dianteira do veículo na parte exterior do braço e perna direitas e cabeça da criança, sendo que esta já tinha percorrido 1,70 metros da berma do lado esquerdo da faixa de rodagem, tendo em conta o sentido de marcha do veículo.
Após o embate, o corpo da criança ficou a cerca de 8 metros do local do embate e junto da berma do lado esquerdo e o veículo FZ imobilizou-se a cerca de 20,60 metros, tendo o respectivo condutor violado várias disposições do Código da Estrada, designadamente as que disciplinam a velocidade e ultrapassagens.
Referem, ainda, que o embate provocou no menor P... lesões craneo–meningo–encefálicas e torácico–abdominais que foram a causa necessária e directa da sua morte.
A proprietária do veículo FZ era VC…, casada com o condutor MA..., veículo esse que circulava com o conhecimento e consentimento daquela.
Os AA. são, respectivamente, os pais e a irmã do falecido P..., que à data do acidente tinha apenas 22 meses de idade, os quais sofreram um profundo desgosto e ficaram em estado de choque com a perda do filho e irmão, por quem sentiam muito amor, afecto, amizade e dedicação, e vão continuar a sofrer no futuro.
Esta família passou a ser assistida e medicada por médicos especialistas da área de psicologia e psiquiatria, sendo ainda assistidos desde 9/09/2009 no Centro Médico e Enfermagem de Coruche e no Hospital Distrital de Santarém.
Os AA. R... e M... gastaram a quantia de € 950,00 com o funeral do filho e € 3 000,00 no arranjo estético e compra de terreno da campa.

A Ré Seguradora contestou, arguindo a ilegitimidade da A. A… (irmã do falecido) por não ser titular do direito de indemnização, e impugnando alguns dos factos alegados pelos AA., nos seguintes termos e em síntese:
O veículo RB circulava à frente do FZ com velocidade inferior a 50 Km/hora.
Não se aproximava dos referidos veículos qualquer trânsito em sentido contrário e, por isso, o condutor do FZ iniciou a ultrapassagem ao RB depois de previamente ter accionado o pisca-pisca esquerdo e de ter verificado que à sua frente, em toda a extensão da estrada, não era visível qualquer trânsito de veículos ou peões.
Refere, ainda, que o MA... acelerou o FZ mas não ultrapassou os 50 Km/hora.
No decurso da ultrapassagem, quando o FZ rodava a par do RB surgiu repentinamente à frente do FZ o menor P..., que saiu por detrás de um muro de uma casa a correr para o meio da estrada, atravessando esta da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do FZ, de forma súbita e inopinada, quando o FZ já estava a menos de 20 metros dele, tendo o menor feito a travessia sem se deter à entrada da faixa de rodagem e sem verificar se se aproximava algum trânsito.
O menor cortou a linha de marcha do FZ de forma brusca e inesperada, metendo-se repentinamente e a curta distância na frente do FZ, não dando tempo do respectivo condutor evitar a colisão com o mesmo.
Acrescenta que, sendo o menor incapaz, dada a sua tenra idade, a culpa do sucedido recai sobre os seus pais, por força da conjugação dos artºs 489º, 491º, 571º e 1878º todos do Código Civil.
Por outro lado, o MA... era o condutor habitual do FZ e não conduzia por conta, nem em relação de subordinação com a sua mulher, não existindo qualquer relação de comitente-comissário entre ele e a sua mulher.
Conclui, pugnando pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

Realizou-se audiência preliminar, na qual foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, que não sofreram reclamações.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.
Após a resposta à matéria de facto constante da base instrutória, que não sofreu qualquer reclamação, foi proferida sentença que julgou a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a Ré do pedido contra ela formulado.

Inconformados com tal decisão, os AA. R… e M... dela interpuseram recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:
«1º - Sobre o condutor do Audi recai a presunção da culpa.
2º - O condutor do Audi não assinalou a sua presença por meio do sinal acústico.
3º - O condutor do Audi animava a viatura Audi com excesso de velocidade e fazia uma ultrapassagem irregular ao Fiat dentro duma rua da Povoação e por força da interpretação dos dados recolhidos e aplicação das leis da fisica, o condutor MA... foi o único e exclusivo culpado na produção do «acidente sub-judice».
4º - O condutor do Audi no momento que antecedeu a ultrapassagem não tomou atenção que na berma da faixa de rodagem, seguia sozinha uma criança com 22 meses de idade.
5º - E por isso em vez de diminuir a velocidade como se impunha a um condutor prudente ao ver uma criança sozinha daquela idade na berma da estrada - aumentou-a, ultrapassando, em muito na ultrapassagem, o limite legal permitido!...
6º - No momento que antecedeu a colisão com a criança, o condutor do Audi não ia com a concentração sensorial dirigida para a faixa de rodagem mas sim para o espelho retrovisor do lado direito.
7º - Pode a criança ter iniciado a travessia quando o Audi ía a par do Fiat - facto que ninguém viu, nem foi perceptivel ao condutor MA..., pois não ia com atenção à faixa de rodagem, mas sim ao retrovisor direito - mas quando foi colhida já a ultrapassagem tinha terminado e o condutor do Audi retomava a faixa direita, tanto assim que foi colhida no eixo da via.
8º - A condução culposa, porque desatenta, imprevidente e imperita do condutor do Audi, que não previu a hipótese mais que provável dentro duma povoação, de uma criança com 22 meses, poder sair da berma da estrada e rua e atravessar a via (acaso dela se tivesse apercebido ..), o que não ocorreu, pois ia totalmente desconcentrado na condução que realizava - tudo isto que não foi ilidido, pelo que se opera, de imediato, o determinado pela presunção do artº 503º, nº 3 do CC, é que originou o drama deste acidente.
9º - Assim, ao absolver a Ré Seguradora, a douta sentença recorrida violou frontalmente os artigos 70.º, 483.º a 486.º e o citado 503.º nº 3, todos do CC e ainda os diversos comandos referentes a Velocidade e Ultrapassagem do Código da Estrada.
10º - Nesta base a Ré Seguradora deve ser condenada a pagar aos AA. a titulo de danos morais e da perda do direito à Vida no global uma indemnização compensatória em conformidade e que se fixa em 200.000,00 (Duzentos mil euros).
Esperam os Autores que a douta sentença seja revogada, com a consequente condenação da Ré, pois só assim se fará a tão habitual, costumada, sã e serena JUSTIÇA ,VENERANDOS JULGADORES

A Ré respondeu à alegação da recorrente, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1 – A douta sentença recorrida não merece qualquer censura, não violou qualquer disposição legal e aplicou corretamente as normas aos factos dados como provados.
2 – E nenhuma das doutas conclusões do presente recurso, que delimitam o seu objeto, colhem .
3 – O menor surgiu súbita e repentinamente na frente do veículo seguro na Ré, a curta distância da frente deste, sem dar tempo nem espaço ao condutor de evitar o acidente.
4 – Sendo certo que quando o Audi iniciou a ultrapassagem a criança não estava próximo da berma da estrada nem era visível
5 – Portanto é inequívoco que “a causa do acidente foi o facto do menor atravessar a via repentinamente e sem olhar ao trânsito o que induz que a decisão da travessia foi imponderada e tomada impulsivamente”, era uma criança de 22 meses e devia estar sob permanência e apertadíssima vigilância, como muito bem se decidiu na douta sentença recorrida.
6 – Por conseguinte, deve manter-se a douta sentença recorrida.
Nestes termos,
Deve negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Para se fazer JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido por despacho de fls. 142.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 660º, nº. 2, 684º, nº. 3 e 685º-A, nº. 1 todos do Código de Processo Civil, na versão anterior à Lei nº. 41/2013 de 26/6, aplicável “in casu”.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pelos AA., delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:
I) - Análise da culpa na produção do acidente.
II) - Quantificação da indemnização pela perda do direito à vida do menor P... e pelos danos não patrimoniais próprios dos Autores.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. No dia 06 de Setembro de 2009, cerca das 14,00 horas, o condutor MA... tripulava o veículo ligeiro de passageiros, Audi A4 1,8 td cinzento, com a matrícula …-FZ-…, segurado na Ré pela apólice … (Al. A)).
2. Conduzia-o dentro da povoação da …, concelho de … e pela Rua da Escola no sentido Biscainho - Canha (Al. B)).
3. No mesmo sentido, mas à sua frente, seguia outro veículo ligeiro de passageiros, Fiat Punto, de matrícula …-…-RB, conduzido por P… (Al. C)).
4. Naquele local, a estrada é uma grande recta, o piso é liso, mede 5,60 metros de largura e tem uma amplíssima visibilidade (Al. D)).
5. Havia sol e àquela hora verificava-se muito calor e o piso estava seco e limpo (Al. E)).
6. O condutor MA... conduzia o aludido veículo na referida rua e aumentou a velocidade para iniciar a ultrapassagem do veículo Fiat, que seguia à sua frente (Al. F)).
7. O veículo FZ, ao iniciar a ultrapassagem do veículo RB, acelerou (Al. G)).
8. O condutor do veículo FZ não buzinou, quando se aproximou do local (Al. H)).
9. O embate do veículo FZ deu-se com a parte dianteira deste na parte exterior do braço e perna direita e cabeça da criança (Al. I)).
10. Os autores são pais do P... (Al. J)).
11. O P... tinha a idade de 22 meses, à data do embate (Al. L)).
12. A ré Companhia de Seguros ... era a seguradora do veículo com a matrícula …-FZ-… responsável pelos danos causados a terceiros (Al. M)).
13. V… era dona do veículo 29-FZ-05 (Al. N)).
14. Veículo este que circulava, com conhecimento e consentimento de VC…, quando era conduzido por MA..., no momento do embate (Al. O)).
15. Os autores R... e M..., aquando do falecimento do P..., tinham, respectivamente, 39 e 37 anos (Al. P)).
16. No local referido em B) da Matéria Assente há limite de velocidade de 50 quilómetros por hora (2.º).
17. O veículo RB, conduzido por PM…, que circulava à frente do FZ, conduzido por MA..., na referida Rua da Escola, seguia, nesse momento a uma velocidade entre 40 e 50 quilómetros por hora (3.º e 32.º).
18. Aquando do referido nas respostas dadas aos artigos 3.º, 4.º, 5.º, 32.º, 36.º, 37.º e 39.º da Base Instrutória não se aproximava dos referidos veículos qualquer trânsito em sentido contrário (33.º).
19. Por isso o MA..., condutor do FZ, iniciou a ultrapassagem ao RB, depois de, previamente ter accionado o pisca-pisca esquerdo (34.º).
20. E de ter verificado que à sua frente, em toda a extensão da estrada, não era visível qualquer trânsito de veículos ou de peões (35.º).
21. O veículo FZ, conduzido por MA..., ao fazer a ultrapassagem do veículo RB seguia a uma velocidade entre 70 e 80 quilómetros por hora (4.º e 36.º).
22. No decurso da referida ultrapassagem, quando o FZ rodava a par do RB, o menor P... iniciou a travessia da Rua da Escola, da esquerda para a direita, atento o sentido Biscainho – Canha, surgindo na frente do FZ (5.º, 37.º e 39.º).
23. O menor fez a travessia sem se deter à entrada da faixa de rodagem e sem verificar se se aproximava algum trânsito antes de iniciar a travessia (40.º e 41.º).
24. O menor P... foi embatido pelo FZ sensivelmente a meio da faixa de rodagem esquerda, atento o sentido Biscainho – Canha (11.º).
25. A estrada no local onde se deu o embate era ladeada do lado esquerdo, atento o sentido Biscainho – Canha, por uma berma em terra batida (42.º).
26. O menor P... saiu de um portão que limitava o terreno da habitação de MC… (6.º).
27. Onde momentos antes estava em companhia dos seus pais e de outras crianças que eram permanentemente vigiadas pelo conjunto de vários convidados adultos e especialmente pelos pais do P... (7.º).
28. Dos quais repentinamente o P... se separou (8.º).
29. Após o embate, a criança ficou a cerca de 8 metros do local onde este ocorreu e junto da berma esquerda, atento o sentido Biscainho – Canha, na faixa de rodagem (12.º).
30. O veículo FZ, após o embate na criança imobilizou-se a cerca de 20,60 metros (13.º).
31. O embate provocou no P... lesões e traumatismo craneo-meningo-encefálico e tórax - abdominal, que foram a causa necessária e directa da sua morte (15.º).
32. Verificada no local, após tentativas de reanimação por parte dos bombeiros e pelos médicos do INEM (16.º).
33. A morte do P... causou aos autores profundo desgosto, ficando em estado de choque (18.º).
34. Os autores nutriam por este filho grande amizade, afecto e dedicação (19.º).
35. Sentindo intensamente a sua perda (20.º).
36. Com efeitos que perduram e se vão ressentir neles ao longo das suas existências (21.º).
37. O P... era uma criança saudável, alegre, activa e com muita alegria no convívio (22.º).
38. A morte do P... continuará a causar, no futuro, repercussões na alegria de viver e no dia a dia dos autores (23.º).
39. Os autores passaram, regularmente, a deslocar-se ao cemitério da Branca, onde a criança ficou sepultada, para aí deixarem em permanência flores em grandes quantidades e variedades (24.º).
40. Os autores despenderam com o funeral do P... a quantia de 950,00 euros (25.º).
41. Os autores choram com saudades e dor, sempre que se fala do seu filho (27.º).
42. Por força do profundo abalo psíquico e sofrimento permanente e contínuo passaram a isolar-se de amigos e familiares (28.º).
43. O autor R... foi assistido numa consulta de psiquiatria no Centro Médico e Enfermagem de …, em 10 de Setembro de 2009, e ambos os autores recorreram ao serviço de urgência do Hospital Distrital de … no dia 10 de Setembro de 2009 (30.º).
44. Os autores perspectivavam uma esmerada educação, um futuro próspero e felicidade para o P... (31.º)».
*
Apreciando e decidindo.
I) - Análise da culpa na produção do acidente:
A sentença recorrida concluiu que a ocorrência do acidente se ficou a dever exclusivamente à conduta imprevidente e temerária do menor P..., por este não ter tomado as mínimas precauções antes de atravessar a faixa de rodagem, tendo atravessado a via repentinamente e sem olhar ao trânsito, “metendo-se à frente do veículo FZ e por forma a que lhe foi impossível evitar o acidente”, infringindo, assim, o disposto nos artºs 3º, nº. 2 e 101º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada.
Apesar da sentença recorrida referir que “de uma criança de 22 meses não se espera que tome tais cuidados. Era um bebé e devia estar sob permanente e apertadíssima vigilância (…). Claro que parece difícil concluir que uma criança de 22 meses possa tomar as precauções que se impõem a um peão nas circunstâncias em que ele se encontrava. O que temos é que afirmar que aquela criança não deveria estar naquele local, sozinha, porque seguramente que não tem qualquer consciência daquilo que estava a fazer (…)”, considerou o Tribunal “a quo” que “não pode, só por esse facto, dizer-se que é o condutor do automóvel o culpado na produção do acidente (…)”. Segundo aquele Tribunal, o comportamento do menor P... “foi descuidado e imprudente, não sendo compatível com o padrão de actuação, em abstracto, de uma pessoa prudente – o paradigma do bonus pater familias – art.º 487.º, n.º 2, do Código Civil. O pequeno P..., neste contexto factual, não usou das cautelas necessárias no atravessamento da via, expôs-se ao dano, sendo-lhe assim imputável a produção do resultado”.
Entendeu, ainda, o Tribunal recorrido que o condutor do veículo FZ iniciou a manobra de ultrapassagem do veículo RB de acordo com as regras estradais previstas no Código da Estrada e, embora se tenha provado que aquele conduzia a uma velocidade compreendida entre os 70 e os 80 Km/hora, numa localidade em que a velocidade máxima permitida era de 50 Km/hora (circulando, portanto, em excesso de velocidade, em infracção ao preceituado no artº. 27º, nº. 1 do Código da Estrada), tal velocidade objectivamente excessiva a que o FZ seguia não foi causal do acidente, considerando que não se apuraram factos que permitam concluir nesse sentido.
Concluiu, pois, o Tribunal “a quo” ser de excluir a responsabilidade do segurado da Ré, em conformidade com o disposto nos artºs 505º e 570º, nº. 2 do Código Civil, acrescentando que “o dever de previsibilidade do condutor de uma viatura automóvel não pode ir para além do normal. Não é de contar com um peão que inicia a travessia da via, invadindo a faixa de rodagem, sem olhar para o lado de onde provém o veículo, de forma repentina (…). Atribuir culpa ao condutor do FZ, seria impor-se-lhe um dever de diligência para além do normal”.
Na sentença recorrida foi também afastada a possibilidade de responsabilidade pelo risco próprio do veículo FZ, por entender que a culpa exclusiva da vítima exclui a responsabilidade pelo risco.
Os AA. insurgem-se contra a sentença recorrida, alegando que o acidente em causa se ficou a dever, única e exclusivamente, à conduta culposa do condutor do veículo Audi FZ, que ao iniciar a manobra de ultrapassagem, não assinalou a sua presença com o sinal sonoro, para além de conduzir com excesso de velocidade dentro de uma povoação e totalmente desconcentrado na condução que realizava, pois no momento que antecedeu a ultrapassagem não tomou atenção que, na berma da estrada, seguia sozinha uma criança de 22 meses de idade, e não previu a hipótese da criança poder sair da berma e atravessar a via, impondo-se a um condutor prudente, naquelas circunstâncias, que diminuísse a velocidade, considerando que existe uma presunção de culpa sobre o condutor do FZ, nos termos do artº. 503º, nº. 3 do Código Civil, uma vez que conduzia o aludido veículo com o conhecimento e consentimento da sua proprietária VC…, recaindo sobre o condutor MA... o ónus de provar que agiu sem culpa, o que não aconteceu “in casu”.
Vejamos se lhes assiste razão.
Considerando a data do acidente, é aplicável ao caso o Código da Estrada aprovado pelo DL 114/94 de 3/5, na redacção dada pelo DL 44/2005 de 23/2.
O princípio básico da lei que regula a circulação rodoviária, aplicável à condução automóvel e aos peões, é no sentido de que as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias (artº. 3º, nº. 2 do Código da Estrada).
No que concerne ao trânsito de veículos, a regra é no sentido de que ele deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas e passeios, a uma distância que permita evitar acidentes, e a excepção é no sentido de poder ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direcção (artº. 13º, nºs 1 e 2 do Código da Estrada).
A propósito da redução de velocidade, mudança de direcção ou início de uma ultrapassagem, expressa a lei que o condutor que assim pretenda manobrar deve assinalar a sua intenção com a necessária antecedência e manter o pertinente sinal enquanto efectua a manobra (artº. 20º, nºs 1 e 2 do Código da Estrada).
Relativamente à problemática da velocidade a que os veículos automóveis podem circular, expressa a lei, por um lado, a regra geral de que os condutores devem regular a velocidade de modo que, atendendo às características e ao estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (artº. 24º, nº. 1 do Código da Estrada).
E, por outro lado, no que ao caso em apreço interessa, a velocidade deve ser especialmente moderada nas localidades, sem prejuízo dos limites máximos fixados na lei (artº. 25º, nº. 1, alínea c) do Código da Estrada).
No que concerne aos limites de velocidade, a lei consagra a regra especial de que os condutores de veículos automóveis ligeiros ou mistos não podem exceder, dentro das localidades, a velocidade instantânea de 50 Km/hora (artº. 27º, nº. 1 do Código da Estrada).
Por outro lado, estabelece o artº. 99º do Código da Estrada que os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas (nº. 1), podendo, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, designadamente quando efectuem o seu atravessamento [nº, 2, al. a)].
O atravessamento da faixa de rodagem só pode ser efectuado nas passagens especialmente sinalizadas para o efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 metros, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem (artº. 101º, nº. 3 do Código da Estrada).
Porém, os peões não podem efectuar esse atravessamento sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitem e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente (artº. 101º, nº. 1 do mesmo diploma legal).

Atentemos, agora, no conceito geral de culpa ou censura ético-jurídica em aproximação ao quadro de facto em causa.
A culpa em sentido estrito, consubstanciada numa censura ético-jurídica, exprime um juízo de reprovação pessoal em relação ao agente lesante por este, em face das circunstâncias especiais do caso, ter omitido a diligência que, em concreto, lhe era exigível e que estava ao seu alcance.
No nosso ordenamento jurídico, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos do artº. 487º, nº. 2 do Código Civil. Nesta conformidade, a diligência relevante para a determinação da culpa há-de ser a de uma pessoa normal colocada perante o circunstancialismo do caso concreto.
Tendo em conta a vertente do regime legal da circulação rodoviária e o conceito de culpa acima delineado, pode concluir-se, em breve síntese, por um lado, que os condutores, antes de iniciarem qualquer manobra, devem previamente certificar-se de que a mesma não compromete a segurança do trânsito e proceder em termos de não a comprometer. E, por outro que, além de respeitarem os limites gerais e especiais de velocidade, devem regulá-la de harmonia com os locais em que circulam, as circunstâncias dos veículos, da configuração e estado geral das estradas, da sua luminosidade e visibilidade (cfr. acórdão do STJ de 19/05/2005, proc. nº. 05B1469, acessível em www.dgsi.pt).
Reportando-nos ao caso “sub judice” e em face da factualidade dada como provada, salvo o devido respeito, não podemos concordar com a sentença recorrida ao excluir a responsabilidade do condutor do veículo FZ na produção do acidente e concluir que o mesmo se ficou a dever única e exclusivamente à conduta imprudente e temerária da pequena e infeliz vítima, pois entendemos que houve concorrência de culpas – do peão P... e do condutor do FZ – para a ocorrência do sinistro, pelas razões que passamos a explanar.
É certo que se provou que o menor P... iniciou a travessia da Rua da Escola, da esquerda para a direita, atento o sentido Biscainho – Canha (e que também era o sentido de marcha do veículo FZ), surgindo na frente do veículo FZ quando este ia a ultrapassar o veículo RB, sem se deter à entrada da faixa de rodagem e sem verificar se se aproximava algum trânsito, tendo sido embatido pelo FZ sensivelmente a meio da faixa de rodagem esquerda, atendo o sentido Biscainho – Canha.
Este facto foi decisivo para na sentença recorrida se ter atribuído toda a culpa ao peão, considerando que a vítima surgiu à frente do condutor do FZ de forma imprudente e imprevista, iniciando a travessia da faixa de rodagem sem previamente ter tomado as cautelas que se lhe impunham, pois em vez de aguardar pela passagem do FZ, atravessou a estrada e cortou a linha de trânsito deste, que não conseguiu evitar o embate.
Ora, resultou provado que, à data do acidente, o infeliz P... tinha 22 meses de idade, pelo que se presume falta de imputabilidade do mesmo nos termos do artº. 488º, nº. 2 do Código Civil, além de que não parece poder afirmar-se que uma criança de 22 meses era capaz de discernir ou entender o perigo a que estava exposta - por forma a poder tomar as precauções que se impõem a um peão nas mesmas circunstâncias em que ele se encontrava - e de querer o facto danoso que veio a suceder.
A imprevidência (tal como é concebida pelos adultos) faz, normalmente, parte do quadro mental de qualquer criança (da idade da dos autos) não sendo exigível que ela possa ou deva prever as consequências de um dado acto usando de uma diligência que ela não tem e muito menos que paute a sua conduta por normas estradais que de todo lhe passam despercebidas.
Como bem se refere na sentença recorrida, de uma criança de 22 meses de idade não se espera que tome os devidos cuidados, sendo que a mesma devia estar sob permanente e apertadíssima vigilância, e não deveria estar naquele local, sozinha, pois seguramente não tinha qualquer consciência daquilo que estava a fazer.
A movimentar-nos no domínio da culpa, esta só poderia ser “in vigilando” nos termos do artº. 491º do Código Civil, no qual se estabelece uma presunção de culpa in vigilando das pessoas que por lei forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural, como acontece com os pais em relação aos filhos menores.
E cremos ser essa a situação dos autos, uma vez que resultou provado que, antes do atropelamento, o menor P... saiu de um portão que limitava o terreno da habitação de MC…, onde momentos antes estava em companhia dos seus pais e de outras crianças que eram permanentemente vigiadas pelo conjunto de vários convidados adultos e especialmente pelos pais do P..., dos quais repentinamente aquele se separou.
Tratando-se de uma criança de 22 meses de idade, desacompanhada de terceiro mais velho - maxime adulto - impunha-se que fosse garantida a sua inacessibilidade à faixa de rodagem, cabendo às pessoas incumbidas da sua vigilância ilidir a presunção de culpa estabelecida no artº. 491º do Código Civil, ao demonstrarem que cumpriram tal dever ou que os danos se teriam produzido ainda que tal dever tivesse sido cumprido.
Trata-se não de uma responsabilidade objectiva ou por facto de outrem, mas por facto próprio, baseada na presunção ilidível de um dever de vigilância (culpa in vigilando). Para a afastar, cabe às pessoas obrigadas à vigilância o ónus de provar que não incorreram em omissão ou incumprimento daquele dever.
Existindo tal dever, cabia aos pais do menor, ora recorrentes, nos termos da supra citada disposição legal, provar que o cumpriram, o que efectivamente não aconteceu “in casu”, sendo aqueles responsáveis pelos factos que vitimaram o seu filho menor, cuja conduta concorreu para a produção do acidente, pois iniciou a travessia da faixa de rodagem, surgindo na frente do veículo FZ, sem tomar atenção ao trânsito no local, violando o disposto no artº. 101º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada (cfr. acórdão da RG de 4/04/2013, proc. nº. 97/05.7TBPVL e acórdãos da RL de 15/01/2008, proc. nº. 4552/2207-1 e de 31/01/2008, proc. nº. 130/08-9, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Todavia, entendemos que a culpa in vigilando dos pais do menor P... não pode considerar-se exclusiva na produção do acidente, porquanto, no caso em apreço, provaram-se outros factos que contrariam a tese da exclusividade da culpa do lesado defendida na sentença recorrida.
Com efeito, no que respeita à responsabilidade do condutor do FZ na ocorrência do sinistro, importa destacar que o acidente ocorreu dentro de uma povoação, onde a velocidade máxima permitida era de 50 Km/hora (por se tratar de uma localidade), tendo o condutor do FZ, que circulava na Rua da Escola sita naquela localidade, aumentado a velocidade do seu veículo para iniciar a ultrapassagem do veículo RB, que seguia à sua frente a uma velocidade entre 40 e 50 Km/hora, e ao fazer essa ultrapassagem, o veículo FZ seguia a uma velocidade entre os 70 e 80 Km/hora.
Não obstante se ter provado que a estrada, naquele local, é uma grande recta com piso liso, mede 5,60 metros de largura e tem uma ampla visibilidade e que, à hora do acidente, o piso estava seco e limpo, não podemos ignorar, face à factualidade apurada supra descrita, que o veículo FZ circulava em excesso de velocidade, em infracção ao preceituado no artº. 27º, nº. 1 do Código da Estrada, uma vez que a velocidade que o animava na altura do embate era superior a 50 Km/hora, correspondente à velocidade máxima permitida para o local, o que, aliás, é referido na sentença recorrida.
Para além disso, apurou-se que o veículo FZ embateu com a parte dianteira na parte exterior do braço e perna direita e cabeça do menor P..., provocando neste lesões e traumatismo craneo-meningo-encefálico e tóracico-abdominal, que foram a causa directa e necessária da sua morte, tendo tal embate ocorrido sensivelmente a meio da faixa de rodagem esquerda, atento o sentido de marcha do veículo.
E após o embate, a criança ficou a cerca de 8 metros do local onde este ocorreu, na faixa de rodagem junto da berma esquerda, atento o sentido Biscainho – Canha, tendo o veículo FZ se imobilizado a cerca de 20,60 metros.
Ora, tais factos apurados permitem concluir que o condutor do FZ seguia a uma velocidade desadequada ao local onde transitava, considerando-se que teve uma conduta temerária ao ultrapassar outro veículo e circular a uma velocidade entre 70 e 80 Km/hora dentro de uma povoação, em que a velocidade máxima permitida por lei é de 50 Km/hora, violando, assim, os artºs 24º, nº. 1, 25º, nº. 1, al. c) e 27º, nº. 1 todos do Código da Estrada, e infringindo também o dever de cautela que uma manobra de ultrapassagem impõe (artº. 35º, nº. 1 do mesmo diploma legal).
Aliás, a projecção da criança sinistrada para cerca de 8 metros do local do embate e a gravidade das lesões por ela sofridas que resultaram na sua morte, só podem resultar de uma pancada muito violenta, apenas compatível com uma velocidade excessiva.
Um condutor normalmente zeloso e cauteloso, naquelas circunstâncias concretas, não iniciaria a ultrapassagem de um veículo, que seguia a uma velocidade entre 40 e 50 Km/hora no interior de uma localidade; antes, reduziria e adaptaria a velocidade do seu veículo por forma a ter podido ver o peão a uma distância que lhe permitisse evitar o embate nele (uma vez que circulava numa recta com boa visibilidade, ladeada do lado esquerdo por uma berma de terra batida, sendo que o menor P... saiu de um portão que limitava um terreno de uma habitação situada exactamente desse lado esquerdo da estrada), ou, mesmo atingindo a criança (dado esta ter iniciado a travessia da Rua da Escola, da esquerda para a direita, surgindo na frente do FZ sem tomar atenção ao trânsito), o impacto seria necessariamente menor e sem as consequências trágicas que infelizmente acabou por ter.
Ademais, um condutor cauteloso, naquelas circunstâncias concretas, não podia deixar de antever a possibilidade de algum peão proveniente daquele aglomerado habitacional pretender atravessar a via e, por isso, lhe poder surgir à frente de forma mais ou menos inesperada.
Trata-se de um risco cujo acautelamento se impunha através de uma regulação da velocidade que lhe permitisse a execução segura das manobras de recurso que se mostrassem necessárias.
Estas são cautelas que o condutor do FZ não adoptou.
Demonstrativo disso é a circunstância de, após o atropelamento, o veículo FZ ter continuado a sua marcha, imobilizando-se apenas a 20,60 metros de distância, não se tendo apurado que existissem marcas de travagem.
Este facto, analisado em conjunto com os restantes factos apurados e as regras da experiência comum, permite-nos concluir que o condutor do FZ não garantia na sua condução as condições de segurança, nomeadamente quanto a velocidade, que a circulação numa localidade impunham, tendo agido com inconsideração, violando o dever geral de cuidado e atenção que se impõe a todo o condutor prudente e diligente, e que sempre é necessário observar quando se efectuam manobras como a de ultrapassagem de um veículo que o mesmo estava a efectuar (cfr. acórdãos da RC de 31/10/90, CJ 1990 – Tomo IV, pág. 100 e da RL de 15/01/2008, proc. nº. 4552/2207-1 e de 1/10/2013, proc. nº. 9115/10.6T2SNT, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
E este comportamento do condutor do veículo FZ impõe que se lhe atribua uma parte da culpa na produção do acidente, nos termos dos artºs 483º, 486º e 487º todos do Código Civil, sendo a Ré responsável pelo ressarcimento dos danos daí advenientes, na proporção da culpa do condutor do veículo por si segurado, tendo em atenção que a proprietária do aludido veículo, Vera Maria Pereira Carlos, transferiu para aquela Seguradora a sua responsabilidade pelos danos causados a terceiros, sendo que o MA..., no momento do embate, conduzia o veículo FZ com o conhecimento e consentimento da respectiva proprietária.
Em face do atrás exposto, teremos de concluir que houve concorrência de culpas – do peão e do condutor do veículo FZ – para a produção do acidente.
Importa determinar qual o grau de comparticipação de cada um deles para a ocorrência do sinistro, em termos de censura ético-jurídica.
Determina a lei que se um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção do dano, cabe ao tribunal, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou excluída (artº. 570º, nº. 1 do Código Civil).
O acto do lesado a que se reporta o mencionado normativo deve, pois, ser uma das causas adequadas do dano que ele sofreu e envolvido de culpa ou censura ético-jurídica.
Considerando todo o quadro fáctico apurado acima descrito e a actuação de cada um dos intervenientes no sinistro em causa nos termos atrás expostos, julga-se adequado fixar a contribuição culposa do condutor do veículo FZ e do menor P... para a produção do acidente dos autos, na percentagem de 40% para aquele motorista e 60% para a vítima.
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II) - Quantificação da indemnização pela perda do direito à vida do menor e pelos danos não patrimoniais próprios dos Autores:
Reclamam os AA., ora recorrentes, uma indemnização por danos não patrimoniais no montante global de € 200 000, sendo € 100 000 pela perda do direito à vida de seu filho menor P... e € 100 000 pelos danos morais sofridos pelos próprios, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos desde a citação.
Tem sido defendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que, para a determinação da indemnização por danos não patrimoniais, ressarcíveis desde “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” (nº. 1 do artº. 496º do Código Civil), o tribunal há-de decidir segundo a equidade, tomando em consideração “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso” (nº. 3 do citado artº. 496º e artº. 494º) – cfr. acórdãos de 23/11/2011, proc. nº. 90/06.2TBPTL, de 31/05/2012, proc. nº. 14143/07.6TBVNG e de 7/02/2013, proc. nº. 3557/07.1TVLSB, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
No que se refere ao juízo de equidade, tem a jurisprudência entendido de modo uniforme que não deve confundir-se a equidade com a pura arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjectivismo do julgador, devendo a mesma traduzir “a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, devendo o julgador “ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida…”.
Sempre que a indemnização seja fixada com fundamento num juízo de equidade, a jurisprudência tem entendido que deverá ser tomado em atenção os padrões de valoração seguidos pelo STJ, não se afastando do equilíbrio e do valor relativo das decisões jurisprudenciais mais recentes, levando em consideração as circunstâncias particulares de cada caso concreto (cfr. acórdãos do STJ de 31/01/2012, proc. nº. 875/05.7TBILH e de 31/05/2012, proc. nº. 14143/07.6TBVNG, acessíveis em www.dgsi.pt).
Como se refere no supra citado acórdão do STJ de 31/01/2012, “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição”.
Finalmente, entende-se que a indemnização a fixar deverá ser justa e equitativa, ou seja, não se apresentar como um montante meramente simbólico ou miserabilista, mas antes representar a quantia adequada a viabilizar uma compensação ao lesado pelos padecimentos que sofreu em consequência do sinistro (cfr. acórdão do STJ de 7/06/2011, proc. nº. 160/2002, acessível em www.dgsi.pt).
Não subsistem dúvidas que o dano da morte é indemnizável, o mesmo sucedendo em relação aos outros danos não patrimoniais sofridos pelos AA., sendo todos abrangidos pelos nºs 1 a 3 do artº. 496º do Código Civil.

Vejamos, em primeiro lugar, a compensação pela perda do direito à vida.
A jurisprudência do STJ tem avançado, nos últimos anos, no sentido de uma crescente valorização do direito à vida, abandonando definitivamente a concessão de indemnizações irrisórias ou miserabilistas.
No que respeita à perda do direito à vida (dano morte), que representa o bem mais valioso da pessoa e simultaneamente o direito de que todos os outros dependem, a compensação atribuída tem oscilado nos últimos anos entre os € 50 000 e € 80 000, chegando mesmo a atingir os € 100 000 para vítimas mais jovens (cfr. acórdãos do STJ de 29/10/2013, proc. nº. 62/10.2TBVZL, de 7/02/2013, proc. nº. 3557/07.1TVLSB, de 31/05/2012, proc. nº. 14143/07.6TBVNG, de 10/05/2012, proc. nº. 451/06.7TBBRG, de 31/01/2012, proc. nº. 875/05.7TBILH e de 8/09/2011, proc. nº. 2336/04.2TVSLB, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
A vida é o bem supremo, a fonte de todos os direitos.
A perda do direito à vida contende com a violação do mais importante e valioso bem da pessoa.
Por isso, a vida humana tem um valor absoluto e inquestionável.
Embora a vida não tenha preço, é razoável admitir que seja atribuída uma indemnização mais elevada pela perda de uma criança ou de um jovem, cujas vidas ainda não foram plenamente vividas, do que pela morte de um adulto já na curva descendente da sua existência.
No caso em apreço, está em causa a morte de uma criança com 22 meses de idade que era “saudável, alegre, activa e com muita alegria no convívio”, que certamente teria um longo futuro pela frente, com um projecto de vida próspero e feliz junto da família e amigos, tendo ainda para viver a fase mais fulgurante do seu desenvolvimento físico.
Ora, tendo em conta todas estas circunstâncias e atendendo a que no caso presente não há que ponderar a situação económica do lesante visto que não é o seu património, mas sim o da Seguradora, que suportará o pagamento da indemnização, e considerando, em especial, a juventude da vítima à data do acidente e o futuro radioso que certamente teria à sua frente, entendemos ser adequado o valor de € 80 000 para compensação da perda do direito à vida do menor P..., montante este que a Ré Seguradora pagará aos AA., mas reduzido a 40% dada a culpa da vítima nos termos supra referidos e face ao disposto no artº. 570º do Código Civil.

Reportemo-nos, agora, aos danos não patrimoniais sofridos pelos próprios Autores.
Os danos morais ou prejuízos de ordem não patrimonial são prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado – por exemplo, a vida, a saúde, a liberdade, a beleza.
Porque não atingem o património do lesado, a obrigação de os ressarcir tem mais uma natureza compensatória do que indemnizatória, estabelecendo o artº. 496º, nº. 1 do Código Civil que apenas “deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”, gravidade esta que deve ser apreciada objectivamente.
A indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos é efectuada também segundo a equidade, sendo atribuída uma importância cuja utilização seja capaz de, senão compensar, ao menos atenuar, de algum modo, os desgostos sofridos com o falecimento do familiar.
No caso em apreço, os factos provados supra descritos nos pontos 10, 11, 33 a 36, 38, 39 e 41 a 44, que aqui damos por reproduzidos, importam para os AA. danos de natureza não patrimonial que merecem tutela jurídica.
O falecimento de um filho é, seguramente, causa de sofrimento profundo, indescritível e inultrapassável. Acresce referir que está provado que os AA. nutriam pelo seu filho P... grande amizade, afecto e dedicação; ainda sentem intensamente a sua perda e choram com saudades e dor, sempre que se fala do filho. Tais efeitos desvastadores para os AA. vão perdurar ao longo da sua existência e reflectir-se nas suas vidas, pois dificilmente ultrapassarão a perda deste filho.
Assim, considerando que são muito graves os danos morais, quer de um, quer do outro progenitor, entendemos ser de fixar, para cada um dos AA., a quantia de € 30 000, a título de indemnização por danos não patrimoniais próprios sofridos pelos mesmos com a perda do jovem P..., valor este que a Ré Seguradora pagará aos AA., mas reduzido a 40% dada a culpa da vítima nos termos supra referidos e face ao disposto no artº. 570º do Código Civil.
Tratando-se de responsabilidade por facto ilícito, a Ré Seguradora constitui-se em mora desde a citação (artº. 805º, nº. 3 do Código Civil). A mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos ao credor (artº. 804º do Código Civil) e, sendo a obrigação pecuniária, a indemnização pela mora corresponde aos juros legais (artºs 806º e 559º ambos do Código Civil e Portaria nº. 291/2003 de 8/4).
Assim, além das importâncias acima referidas, a Ré Seguradora está também obrigada a pagar aos AA. os juros moratórios nos termos acima expostos.
Nestes termos, terá de proceder parcialmente o recurso interposto pelos Autores.
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III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos AA. R... e mulher M... e, em consequência, revogar a sentença recorrida, decidindo:
a) - fixar a percentagem de culpabilidade na produção do acidente dos autos em 60% (sessenta por cento) para o condutor do veículo FZ e em 40% (quarenta por cento) para a vítima P…;
b) - condenar a Ré Companhia de Seguros ... a pagar aos AA. a quantia de € 32 000 (trinta e dois mil euros), como indemnização pela perda do direito à vida de seu filho menor P…, e ainda a pagar a cada um dos AA. a quantia de € 12 000 (doze mil euros), como compensação pelos danos não patrimoniais por eles sofridos em resultado da morte de seu filho menor, acrescidas dos correspondentes juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4% desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
Custas pelos recorrentes e recorrida, na proporção do respectivo decaimento.
Évora, 10 de Abril de 2014
(Maria Cristina Cerdeira)
(Alexandra Moura Santos)
(Eduardo José Caetano Tenazinha)