Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2205/06-2
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO AO AMBIENTE
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário:
Estando em confronto de um lado, um direito à integridade física, à saúde, ao repouso, à segurança e ao ambiente sadio, e, do outro lado, um direito à iniciativa privada (artigo 61º n. 1 da Constituição) – ou mesmo um direito de propriedade (artigo 62º n. 1 da Constituição) – deve dar-se prevalência ao primeiro, já que goza da plenitude do regime dos direitos, liberdades e garantias (artigo 19º n. 6 da Constituição), é de espécie e de valor superior aos segundos.
Decisão Texto Integral:
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Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
Proc.º N.º 2205/06-2
Apelação
2ª Secção

Recorrente:
TRANSPORTES ………………LDA.
Recorridos:
AUGUSTO ……………. e mulher CIDÁLIA……………...
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AUGUSTO ………….. e mulher CIDÁLIA…………….., residentes em………………………., intentaram a presente acção declarativa com processo comum ordinária vs.
TRANSPORTES…………….., LDA com sede em ……………. - Loulé,
Pedindo a condenação desta a: cessar imediatamente a sua actividade no sítio de Alfontes; e a pagar-lhes a quantia de 2 500 000$00 e do que se liquidar em execução de sentença, relativa aos prejuízos que lhe causou.
Alegaram para tal, e em síntese, que são donos de um lote de terreno em Parreira de Ladeira, Alfontes,- Loulé, onde estão a construir um prédio urbano que pretendem via a habitar, o qual confronta com um da R., onde esta construiu um estaleiro para camiões de transporte e aplicação de betão, um parque de estacionamento para aquela frota, limpeza de betoneiras e reparação de máquinas diversas, bem como um posto de abastecimento de combustíveis. Sucede que nenhuma destas actividades foi autorizada por quem de direito, provoca poluição ambiental, degradação das vias de comunicação, insegurança para as pessoas e desvalorização do património existente, nomeadamente, o valor dos imóveis, causando graves perturbações aos AA, tornando as suas condições de habitabilidade quase insuportáveis e colocando em risco a segurança dos seus filhos.
Contestou a R. dizendo que há cerca de dez anos - antes de os AA. terem comprado o seu prédio - que possui devidamente licenciado, um estaleiro e parque de viaturas no local em causa e, mais recentemente, um posto de abastecimento de combustível à viaturas da empresa, sendo falso que tenha edificado novas construções e que as mesmas sejam clandestinas. Acrescenta que não são responsáveis pela degradação da rede viária pública e que não se verificam os alegados prejuízos dos AA.. Conclui dever a acção ser julgada improcedente, com a sua absolvição do pedido.
Em reconvenção, vem pedir a condenação dos M. a pagarem-lhe a quantia de 5 000 000$00 e juros legais vencidos após a sua notificação até integral pagamento, a título de indemnização, dizendo que a conduta dos AA., nomeadamente, junto da comunicação social e da C. M. Loulé. tem prejudicado seriamente o bom nome e a imagem da R ..
Replicaram os AA. negando que a sua conduta tenha prejudicado a R., reafirmando a ilegalidade da actuação desta, a qual tem tido a oposição dos moradores de Alfontes, e não só dos AA., pelo que concluem dever a reconvenção improceder.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal adequado, tendo a final o despacho de fls. 203 e v. decidido a matéria de facto controvertida.
De seguida foi proferida sentença, julgando a acção procedente por provada e em consequência condenou a ré a:
« Cessar imediatamente a sua especificada actividade no sítio de Alfontes, Boliqueime, nesta Comarca;
Pagar aos M. a quantia de 12.469,95 € (doze mil quatrocentos e sessenta e nove euros e noventa e cinco cêntimos) a título de danos não patrimoniais sofridos pelos AA.;
Pagar aos AA. a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença! a título de danos patrimoniais sofridos pelos AA., decorrentes da diminuição do valor venal do seu imóvel identificado nos autos».
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Inconformada com o decidido, veio a R. interpor recurso de apelação, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
conclusões:

«A Ré desenvolve uma actividade económica de interesse concelhio e que garante quarenta postos de trabalho, num terreno sua propriedade.
Os efeitos decorrentes do exercício da sua actividade colidem com os direitos dos A.A, proprietários do prédio confinante.
Todavia tratam-se de efeitos normais e necessários ao desenvolvimento da actividade e que não ultrapassam o âmbito do socialmente suportável.
O facto da actividade não estar licenciada não pode afastar per si nos termos do art. 3350 do C. Civil, o juízo de ponderação sobre os direitos conflituantes, uma vez que se trata de uma questão administrativa que deve ser resolvida noutra sede que não a judicial.
Por outro lado se os A.A. são titulares do direito à integridade moral (art25° da CRP e 70° C. C.) é a Ré também titular do direito à livre iniciativa privada e económicos também com assento Constitucional (610 CRP).
A suspensão da actividade iria ter consequências directas e laterais, que em confronto com os direitos dos A.A., seriam demasiado gravosas e completamente desproporcionais, uma vez que também iria pôr em causa o direito dos trabalhadores e seus agregados familiares.
Nestas situações impõe o art.18 da CRP que seja feito um juízo de proporcionalidade.
A Douta Sentença, violou as seguintes normas jurídicas, Art.61º e Art. 18°, n.º2 da CRP e o Art.335° e Art.1305° do Código Civil».
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Contra-alegaram os recorridos pedindo a manutenção do julgado.
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Os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) [1] salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).
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A apelação, para além da arguida inconstitucionalidade da decisão por violação do princípio da proporcionalidade, tem apenas como objecto a discordância quanto à decisão jurídica. Ora quanto a este aspecto a decisão recorrida merece a nossa inteira concordância o mesmo sucedendo com toda a parte decisória da sentença e os seus fundamentos de facto e de direito, para os quais se remete nos termos do disposto no art.º 713º n.º 5 do CPC.
Quanto à questão da inconstitucionalidade, é manifesta a falta de fundamento do recurso!!
Defende a recorrente que no caso “sub judice”, existe um confronto entre os direitos económicos da Ré – o direito à livre iniciativa privava e ao exercício duma actividade económica – e os direitos de personalidade dos AA. – direito ao repouso, à integridade física e moral e direito à qualidade de vida e a um ambiente saudável - que foi resolvido de forma desproporcional em favor destes últimos o que constitui violação dos art.ºs 61º e 18º da CRP.
A ideia da protecção da pessoa humana, da sua personalidade e dignidade, encontra expressão jurídica em vários preceitos da Constituição da República Portuguesa (o art. 1º fala da dignidade da pessoa humana como fundamento da sociedade e do Estado; o art. 13º, nº 1, refere-se à igual dignidade social dos cidadãos; o art. 24º, nº 1, declara que a vida humana é inviolável; o art. 25º garante o direito à integridade moral e física da pessoa ; o art. 26º consagra outros direitos pessoais e o art. 64º e 66º direitos à saúde e a um ambiente salutar). A Constituição também reconhece e assegura direitos de natureza económica como sejam o da livre iniciativa económica (art.º 61º ) e da propriedade privada (art.º 62º n.º 1). Como se vê, tanto uns como outros têm consagração na nossa lei fundamental.
Os direitos de personalidade, pertencem, como soe dizer-se, à categoria dos direitos absolutos, como direitos de exclusão, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que respeitar, em contraponto com outros direitos, designadamente os direitos económicos que são direitos limitados. Isto porém não significa que aqueles prevaleçam sempre sobre estes e isto, desde logo, porque não são ilimitados pois têm limites internos e externos decorrentes da lei e da sua própria natureza. A lei ordinária tem desenvolvido e regulado tais direitos, avultando quanto aos direitos de personalidade o que dispõe o art.º 70º do C.C. Estabelece-se no nº 1 desse preceito do Cód. Civil (tutela geral da personalidade) que:
"A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral".
Por sua vez o artigo 483 do Código Civil, estipula que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Tanto a doutrina [2] como a jurisprudência têm convergido nesta orientação (v., quanto aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, Castro Mendes, Estudos Sobre a Constituição, 1. volume, 103 e seguintes; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, páginas 55, 56, 136 e seguintes, 471 e seguintes; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, ed. de 1991, páginas 532 e seguintes e 565 e seguintes; quanto aos direitos de personalidade e sua ofensa através do ruído, v. Vaz Serra, R.L.J. 103, páginas 374 e seguintes; Henrich Ewald Horster, Teoria Geral de Direito Civil, páginas 257 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4. edição, página 104; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1995, 17 de Março de 1994, 21 de Setembro de 1993, 16 de Abril de 1991, 13 de Março de 1986, 4 de Julho de 1978, 28 de Abril de 1977, in respectivamente, C. J. do Sup. de 1995, tomo 1, página 155, Novos Estilos, Março de 1994, página 61, C. J. do Sup. de 1993, tomo 3, página 26, Boletim do Ministério da Justiça 406 página 623, 355, página 356, 279, página 124, 266, página 124).
Há, frequentemente, colisão ou conflito de direitos fundamentais que importa solucionar. Não existe um modelo de solução com critérios de solução desses conflitos válidos em termos gerais e abstractos (com base, por exemplo numa ordem de valores ou na distinção entre os direitos sujeitos a leis restritivas e direitos não sujeitos a leis limitadoras (J. J. Gomes Canotilho, R.L.J. 125, páginas 293 e seguintes). Mas há que decidir os casos concretos e, não havendo possibilidade de harmonizar os direitos em conflito, é a solução só pode passar pela prevalência de um deles em relação ao outro. Esta prevalência deve ter em conta as circunstâncias concretas e respeitar a hierarquia decorrente das próprias normas constitucionais. Na verdade, a Constituição concede maior protecção aos direitos, liberdades e garantias do que aos direitos económicos, sociais e culturais e há uma ordem decrescente de consistência, de protecção jurídica, de densidade subjectiva daqueles para estes - ou de aplicação de critérios metódicos abstractos que orientem a tarefa de ponderação e/ou harmonização concretas, tais como "o princípio da concordância prática", "a ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes (Jorge Miranda, obra citada, páginas 135, 145, 146, 301; J. J. Gomes Canotilho, obra citada, páginas 660, 661 e 538). De qualquer modo, no campo da lei ordinária, há um texto concernente à colisão de direitos, o artigo 335 do Código Civil, que dispõe:
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os direitos ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deve considerar-se superior.
Ora, no nosso caso, temos, de um lado, um direito à integridade física, à saúde, ao repouso, à segurança ao ambiente sadio, e, do outro lado, um direito à iniciativa privada (artigo 61º n. 1 da Constituição) – ou mesmo um direito de propriedade (artigo 62º n. 1 da Constituição) - e afigura-se-nos que o primeiro, que goza da plenitude do regime dos direitos, liberdades e garantias (artigo 19º n. 6 da Constituição), é de espécie e de valor superior aos segundos, os quais são direitos fundamentais que apenas beneficiam do regime material dos direitos, liberdades e garantias (Jorge Miranda, obra citada, páginas 145 e 146; J. J. Gomes Canotilho, obra citada, 538). Assim, há que dar prevalência ao direito à integridade física, ao repouso, à tranquilidade, e ao ambiente sadio, como, de resto, a doutrina e a jurisprudência vêm defendendo (Vaz Serra, R.L.J. 103, páginas 374 3 seguintes; Cunha de Sá, Abuso do Direito páginas 528 e 529. Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, página 201; os já citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 1978, 13 de Março de 1986, 17 de Março de 1994 e 26 de Abril de 1995. Por outro lado o direito a que a recorrente se arroga é um mero direito abstracto, porquanto em concreto e nas circunstâncias dos autos não lhe está reconhecido qualquer direito ao exercício da actividade que vem desenvolvendo pois não está sequer licenciada e consequentemente é ilícita.
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Assim concordando-se com os fundamentos de facto e de direito constantes da sentença, para os quais se remete nos termos do disposto no n.º 5 do art.º 713º do CPC, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Registe e notifique.
Évora, em 14 de Dezembro de 2006.

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( Bernardo Domingos – Relator)

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(Silva Rato – 1º Adjunto)

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( Assunção Raimundo – 2º Adjunto)




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[1] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[2] E a este propósito refere Henrich Ewald Horster, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 258, que os direitos de personalidade emanam da própria pessoa cuja protecção visam garantir, resultando isto daquela disposição legal que protege os indivíduos - independentemente de culpa. Estes direitos são, assim, protegidos contra qualquer ofensa ilícita, não sendo precisa culpa para se verificar uma ofensa, nem sendo necessária a intenção de prejudicar o ofendido, pois, decisiva é a ofensa em si - estas soluções, assentes no facto objectivo da violação, compreendem-se perfeitamente, uma vez que a lei pretende a protecção mais ampla possível - Ac. do STJ de 06-05-1998 Proc. N.º 338/98, in http://www.diramb.gov.pt/.