Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | ANTÓNIO JOÃO LATAS | ||
Descritores: | ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA DEPOIMENTO INDIRECTO IN DUBIO PRO REO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 01/30/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I. - Considerando que o juízo sobre a existência do erro a que se reporta o art. 410º nº2 c) do CPP sempre há-de ser um julgamento judicial, a notoriedade do vício há-de ser perspectivada como juízo próprio de quem decide em tribunal, embora exigindo-se que o erro se apresente como evidente, manifesto, perceptível pela mera análise do texto da decisão recorrida. II.- São testemunhas de ouvir dizer, sujeitas ao regime estabelecido no art. 129º do CPP, as que não invocam conhecimento próprio, directo, do facto probando, limitando-se a narrar as declarações incriminatórias que ouviram a um co-arguido. III.- O art. 129º do CPP regula tanto os casos em que se pretenda que o testemunho de ouvir dizer substitua o depoimento originário (cfr. art. 129º nº1 - morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada)., como situações em que ambos os depoimentos coexistam (nomeadamente quando o testemunho indirecto é utilizado como «prova sobre a prova» para colocar em destaque a contradição existente entre o que a testemunha originária narrou em momento anterior e o que declara em tribunal). IV. - As declarações originárias prestadas extraprocessualmente e levadas à Audiência pelo testemunho de ouvir dizer não substituem, não tomam o lugar - quanto ao facto probando sobre o qual versam as declarações originárias – do depoimento posterior prestado em audiência, de tal forma que pudessem ser apreciadas e valoradas como se tivessem sido prestadas em audiência. V –O depoimento de ouvir dizer deve ser valorado em conjunto com a restante prova produzida, de acordo com a livre convicção do tribunal e as regras da experiência comum, quer o depoimento indirecto substitua o depoimento directo de prestação impossível, quer coexistam ambos os depoimentos em audiência (ou em acto processual equivalente, como sucede no caso de declaração para memória futura), pois não existem regras de hierarquização (ou exclusão) apriorísticas, entre o depoimento indirecto e o depoimento directo. VI. - Contrariamente aos sistemas de prova legal, o modelo caracterizado pelo princípio da livre apreciação da prova implica sobretudo que o juiz não se encontre sujeito a regras, prévia e legalmente fixadas sobre o modo como deve valorar a prova, libertando-o das regras rígidas da prova tarifada. VII. - Na valoração da prova em processo penal é válido o critério ou parâmetro - “prova além de toda a dúvida razoável ou proof beyond any reasonable doubt - ao abrigo do qual deve ser resolvido o problema da prova insuficiente ou contraditória. VIII. - Considera-se violado o princípio in dubio pro reo quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido a dúvida que, porém, resulta da análise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios válidos em matéria de direito probatório. Tópicos sugeridos: testemunho de ouvir dizer; dúvida razoável, in dubio pro reo, erro notório | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Rec n.º 2457/06 Após audiência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora I. Relatório 1. - No 1º juízo do Tribunal Judicial da Comarca de …, foi julgado em processo comum com intervenção do tribunal colectivo A. … nascido a 12.10.1982 …, actualmente detido no E.P. do Linhó, a quem o MP imputara a prática de um crime de tráfico de produto estupefaciente agravado, p. e p. pelos arts. 21°, n° 1, e 24°, alínea h), ambos do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-A anexa, em co-autoria com B. …, actualmente preso no Estabelecimento Prisional do Linhó. 2. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento foram os arguidos condenados pela prática do crime pelo qual vinham acusados. O arguido A. …na pena de 10 anos de prisão e o arguido B. … na pena de 8 anos de prisão. 3. –Inconformado, apenas o arguido A. … recorreu, formulando as seguintes Conclusões que se transcrevem: A) O presente Recurso vem interposto da douta Sentença de fls. que, condenou o Arguido como o Autor material de um crime de tráfico de estupefaciente agravado, na pena única de 10 anos de prisão. B) Salvo o devido respeito, entende o ora Recorrente que os Meritíssimos Juízes "a quo" não fizeram uma boa apreciação da prova produzida havendo erro notório na apreciação da prova em Audiência de Julgamento, nem uma correcta aplicação do Direito. C) Ao contrário do referido o produto não foi entregue pelo arguido/ora recorrente, ao arguido B. …. D) O Arguido B. … assumiu que o produto apreendido era só seu, o Arguido, ora Recorrente optou por não prestar declarações, o que não o pode desfavorecer. E) No entanto, os Meritíssimos Juízes "a quo" condenaram o Arguido/ ora Recorrente apenas pelas declarações prestadas pelo Arguido B. … aquando da detenção. F) O Guarda prisional, A.M. refere que "pareceu-lhe ver que o Arguido A. … entregava algo ao B. …, para além de parecer ver, não viu o que era. G) Condenar alguém, como a douta Sentença recorrida fez, por alguém ter mencionado o seu nome é de uma violência bastante grande. H) Assim a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” deverá ser anulada e o processo ser reenviado para novo julgamento. I) Ainda que assim não se entendesse, a medida da pena, a prisão de 10 anos que foi imposta ao arguido, ora recorrente, é bastante elevada. J) O ora Recorrente, à data dos factos, ainda não tinha feito 21 anos de idade, nos termos do artigo 9° do Código Penal "Aos maiores de 16 anos e menores de 21 anos são aplicáveis normas fixadas em legislação especial”. K) No entanto entendeu este Tribunal que não é de aplicar esta lei, se não a aplicamos quando o Arguido ainda se encontra no âmbito da recuperação e inserção social, quando a vamos aplicar? L) Ainda que não se decida pela declaração de nulidade do douto acórdão ora recorrido, consideramos existirem razões suficientes que justifiquem a atenuação da pena concretamente aplicável. M) O Ora recorrente é um Jovem que teve um percurso de vida difícil, não pode é ser prejudicado por isso. N)Assim, tendo em consideração o que resultou provado, e ainda que os Meritíssimos Juízes "a quo tenham tomado em consideração os antecedentes criminais do arguido ora recorrente, bem como a idade do mesmo e a sua situação sócio-familiar este deveria ter sido punido em pena de prisão que não ultrapassasse, os seus limites mínimos. * 4. – Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo apresentou a sua resposta , concluindo pela total improcedência do recurso. 5.- Nesta Relação, o senhor magistrado do MP apresentou o seu parecer de fls 247 a 250, concluindo igualmente pela total improcedência do recurso. 6. – Notificado da junção daquele parecer, o arguido nada acrescentou. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso. Como é pacificamente entendido, são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo, sem prejuízo das questões de que o tribunal de recurso deva conhecer oficiosamente. Pelo presente recurso, o arguido não vem impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, nos termos do art. 412º do CPP, antes vem invocar, no âmbito do chamado modelo de revista alargada, erro notório na apreciação da prova, vício da decisão sobre a matéria de facto a que se refere a alínea c) do art. 410º do C.P.P., para além de matéria de direito relativa à determinação da pena aplicada ao arguido. A primeira questão a decidir é, pois, a de saber se a decisão recorrida enferma do vício de erro notório na apreciação da prova e respectivas consequências jurídico-penais. Na hipótese de resposta negativa, haverá que decidir então se o arguido deve beneficiar de atenuação especial da pena, ao abrigo do regime legal dos jovens delinquentes, uma vez que não tinha completado 21 anos à data dos factos, e se a pena concreta a aplicar-lhe não deve ultrapassar o limite mínimo da pena aplicável, como pretende o arguido. 2. – A decisão recorrida. 2.1.-Na sentença sob recurso, foi dada como provada a seguinte factualidade : a) No dia 10 de Outubro de 2003, pelas 18h 40m, no interior do Estabelecimento Prisional Regional de …, o arguido B. … tinha consigo heroína com o peso bruto de 9,426 gramas e líquido de 9,075 gramas; b) este produto tinha sido entregue ao arguido B. … pelo arguido A. … para que o primeiro o guardasse; c) o arguido A. … destinava tal produto à venda no interior do Estabelecimento Prisional, conforme sabia o arguido B. …; d) ambos os arguidos conheciam as qualidades estupefacientes do produto e sabiam que a sua detenção e venda são proibidas e especialmente no interior de Estabelecimentos Prisionais; e) ambos os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente e sabiam serem as suas condutas proibidas; f) o arguido A. … foi condenado, por acórdão de 19.12.1999, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 2 anos de prisão suspensa por um período de 3 anos e pela prática de um crime de condução ilegal, na pena de 90 dias de multa; por sentença de 15.7.2002, pela prática de um crime de furto qualificado, foi condenado na pena de 90 dias de multa; por sentença de 7.3.2003, pela prática de um crime de desobediência, foi condenado na pena de 70 dias de multa; por sentença de 5.6.2003, pela prática de um crime de condução ilegal, foi condenado na pena de 96 dias de multa; por sentença de 15.5.2003, pela prática de um crime de furto, o arguido foi condenado na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 anos e 6 meses acompanhada de regime de prova; por sentença de 17.5.2004, pela prática de um crime de condução ilegal, o arguido foi condenado na pena de 50 dias de multa; por sentença de 2.12.2004, pela prática de um crime de condução ilegal, foi condenado na pena de 7 meses de prisão; cumpre, presentemente, uma pena única de 7 anos e 6 meses de prisão pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes, detenção de arma proibida e condução ilegal de veículo; g) o arguido A. … foi criado pela avó materna; frequentou a escola até ao 7º ano de escolaridade, altura em que desistiu de estudar e começou a trabalhar com carácter de regularidade como servente de construção civil; de um relacionamento com uma jovem da mesma idade, aos 17 anos tem uma filha que actualmente tem 6 anos de idade; antes da detenção vivia com a companheira e com a filha; h) o arguido B. … foi condenado, por acórdão de 27.2.2004, pela prática dos crime de roubo e de furto qualificado, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 4 anos, acompanhada de regime de prova; por acórdão de 21.5.2004, pela prática de um crime de homicídio e furto qualificados, foi condenado na pena única de 21 anos de prisão; por acórdão de 10.1.2005, pela prática de dois crimes de roubo, foi condenado na pena única de 3 anos de prisão; i) o arguido B. … nasceu no seio de uma família numerosa e extremamente carenciada; cresceu num bairro problemático; após a separação dos pais acabou por ser internado na …, de que acabou por ser expulso devido a problemas comportamentais; possui o 5º ano de escolaridade; viveu quase sempre por si, sem figuras parentais que lhe incutissem regras ou que lhe ser vissem de modelo; está a fazer um percurso positivo no E.P., aderindo a projectos que lhe vão sendo impostos e tentando ultrapassar obstáculos, apesar da total ausência de visitas e de apoio familiar. * * * Provaram-se todos os factos relevantes para a decisão da causa, pelo que não há “factos não provados” a referir. * * * 2.2. - A fixação dos factos provados e não provados baseou-se na globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e de acordo com a livre convicção que o tribunal formou sobre a mesma (sempre tendo em atenção as regras da experiência), atendendo-se à prova pericial, documental e oral que foi produzida e aferindo-se, quanto a esta, da razão de ciência e da isenção de cada um dos depoimentos prestados. Concretizando… O arguido A. … não prestou declarações. O arguido B. … assumiu que tinha consigo a droga que lhe foi apreendida, mas referiu que era para o seu próprio consumo, dizendo que consumia uma grama de heroína por dia. Disse também que o estupefaciente lhe foi oferecido por um amigo que a deu a um recluso que tinha saído de precária para este lha entregar. Referiu ainda que quando foi detido estava a falar com o co-arguido A. … para lhe pedir mortalhas. A testemunha A.M., guarda prisional no E.P. de …, contou que viu ambos os arguidos no bar e achou que ambos tinham um ar comprometido, pelo que os observou e pareceu-lhe ver que o arguido A. . entregava algo ao B.. Abordou-os e o arguido B. … tinha os dois pacotes no bolso. Mais referiu que o arguido B. … quando foi detido afirmou que o estupefaciente pertencia ao A. …. A testemunha M.C., também guarda prisional no E.P. de …, apenas ouviu o arguido B. ... dizer à anterior testemunha que o estupefaciente pertencia ao A. …. Referiu também que o arguido B. .. não recebia visitas. Ambas as testemunhas depuseram com isenção. Por outro lado, o resultado do exame toxicológico que se encontra a fls. 24 ss confirma o peso da heroína apreendida. Da conjugação de todos estes referidos elementos de prova e das apreensões efectuadas nos autos, interpretados, à luz das regras da experiência, verifica-se que a heroína que o arguido B. ... detinha lhe tinha sido entregue pelo arguido A. … e a mesma, atendendo à sua quantidade, elevada no exterior e elevadíssima no interior de um estabelecimento prisional, só podia ser destinada à venda. Acresce que não há qualquer indício de que algum dos arguidos fosse consumidor de estupefacientes. Foram ainda tidos em conta os certificados de registo criminal e os relatórios sociais juntos aos autos. 3. – DECIDINDO. 3.1. – Considerações gerais sobre o erro notório na apreciação da prova. O conhecimento [1] pelo tribunal ad quem dos vícios acolhidos no art. 410º nº2 do CPP, é característico do modelo de revista ampliada ou revista alargada adoptado pelo CPP de 1987, com que, nas palavras originárias, do Prof. F. Dias, se pretendeu instituir um “recurso que …se não restringisse à tradicionalmente chamada «questão-de-direito», mas devesse ser admissível face a contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, a erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, a dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida.” [2] . «O sistema de revista alargada protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente de erro grosseiro na decisão da matéria de facto) e, desse modo, defende-o do risco de uma sentença injusta». – Cfr Ac TC nº 322/93 de 5.5.93, BMJ 427/109. Como nas restantes situações a que se reportam as alíneas a) e b) do nº2 do art. 410º do CPP, o erro notório na apreciação da prova há-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que tais vícios são apenas os intrínsecos à própria decisão, considerada como peça processual autónoma. O nº2 do art. 410º do CPP não permite ao tribunal de recurso reapreciar a prova produzida, ou seja, “ …reexaminar, repensar, emitir um juízo novo e autónomo, decidir em 2ª instância, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (…). O tribunal superior não pode, ao abrigo deste preceito, manifestar convicção diversa da do tribunal a quo face à globalidade do material probatório ao seu dispor mesmo quando a prova vier a ser registada (…). A lei faz depender o funcionamento dos mecanismos do art. 410º de um requisito essencial: os vícios em causa só justificam o alargamento excepcional dos poderes de cognição do tribunal à questão de facto, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida.” – citado no Ac do TC, de 05.05.93, BMJ 427/121. Quanto ao carácter notório do erro, costuma referir-se dever ser o erro «de tal modo evidente que o homem médio o detecta com facilidade» [ cfr. Maia Gonçalves, CPP anotado, 2ª ed-1990 em anotação ao art. 410º]. Maria João Antunes entende verificar-se erro notório na apreciação da prova, “ sempre que, para a generalidade das pessoas , seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no art. 127º do CPP, quando afirma que «a prova é apreciada segundo as regras da experiência». [3] O Cons. Sousa Brito (no supracitado Ac TC nº 322/93, BMJ 427/124) entende que o erro na apreciação da prova pode ser «notório» apenas para o julgador com a especial formação e experiência de um Juiz do Supremo Tribunal de Justiça [ou das Relações, acrescentamos, face à identidade de regime] “ . Considerando que o juízo sobre a existência do erro sempre há-de ser um julgamento judicial, parece-nos que a notoriedade do vício há-de ser perspectivada como juízo próprio de quem decide em tribunal, embora exigindo-se que o erro se apresente como evidente, manifesto, perceptível pela mera análise do texto da decisão recorrida pelo juiz médio [4] a que alude o Cons. Sousa Brito, mostrando-se compatível, portanto, com o recurso às regras da experiência a que se reporta o art. 127º do CPP, bem como com as regras e princípios gerais que regem em matéria de direito probatório. [5] , O art. 410º nº2 c) do CPP contempla, assim, os casos de erro grosseiro de julgamento, evidente a partir do texto decisão recorrida, maxime da respectiva fundamentação, conjugado com as regras da experiência comum. Cumpre verificar agora se - a partir do respectivo texto, maxime da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, incluindo o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal -, a decisão sob recurso incorreu no apontado erro notório de apreciação da prova. 3.2. – Análise da decisão sobre a matéria de facto e respectiva fundamentação. a) Continuando na indagação motivada pela hipótese de erro notório na apreciação da prova no caso presente, vejamos agora, face à fundamentação da decisão, maxime, à análise crítica das provas, quais as provas em que o tribunal a quo fundamentou a decisão sobre a matéria de facto relativa à responsabilidade jurídico-penal do arguido recorrente. Lembremos os factos: a) No dia 10 de Outubro de 2003, pelas 18h 40m, no interior do Estabelecimento Prisional Regional de …, o arguido B. … tinha consigo heroína com o peso bruto de 9,426 gramas e líquido de 9,075 gramas; b) este produto tinha sido entregue ao arguido B. … pelo arguido A. … para que o primeiro o guardasse; c) o arguido A. … destinava tal produto à venda no interior do Estabelecimento Prisional, conforme sabia o arguido B. …; A factualidade respeitante ao arguido A. …, desdobra-se nos seguintes factos atomisticamente considerados:
- o arguido A. … fizera-o para que o arguido B. … guardasse aquele produto estupefaciente; - o arguido A. … destinava aquele produto à venda. “ O arguido A. … não prestou declarações. O arguido B. … assumiu que tinha consigo a droga que lhe foi apreendida, mas referiu que era para o seu próprio consumo, dizendo que consumia uma grama de heroína por dia. Disse também que o estupefaciente lhe foi oferecido por um amigo que a deu a um recluso que tinha saído de precária para este lha entregar. Referiu ainda que quando foi detido estava a falar com o co-arguido A. … para lhe pedir mortalhas. A testemunha A.M., guarda prisional no E.P. de …, contou que viu ambos os arguidos no bar e achou que ambos tinham um ar comprometido, pelo que os observou e pareceu-lhe ver que o arguido A. … entregava algo ao B. …. Abordou-os e o arguido B. … tinha os dois pacotes no bolso. Mais referiu que o arguido B. … quando foi detido afirmou que o estupefaciente pertencia ao A. …. A testemunha M. C., também guarda prisional no E.P. de …, apenas ouviu o arguido B. … dizer à anterior testemunha que o estupefaciente pertencia ao A. ….. Referiu também que o arguido B. … não recebia visitas. Ambas as testemunhas depuseram com isenção. Por outro lado, o resultado do exame toxicológico que se encontra a fls. 24 ss confirma o peso da heroína apreendida. Da conjugação de todos estes referidos elementos de prova e das apreensões efectuadas nos autos, interpretados, à luz das regras da experiência, verifica-se que a heroína que o arguido B. ... detinha lhe tinha sido entregue pelo arguido A. … e a mesma, atendendo à sua quantidade, elevada no exterior e elevadíssima no interior de um estabelecimento prisional, só podia ser destinada à venda. Acresce que não há qualquer indício de que algum dos arguidos fosse consumidor de estupefacientes. c) O facto típico originário imputado ao arguido A. …, do qual derivam os demais dados por provados relativamente a ele, é o de que foi ele quem entregou ao arguido B. … a heroína que foi encontrada em poder deste. Conforme resulta da fundamentação da sentença, os elementos de prova de cuja conjugação, interpretada à luz das regras da experiência, resultou provado que o arguido A. … entregara ao arguido B. ... a heroína que foi encontrada em poder deste, foram: - o depoimento da testemunha A.M., ao declarar que (1) viu ambos os arguidos no bar e achou que ambos tinham um ar comprometido, pelo que os observou e pareceu-lhe ver que o arguido A. … entregava algo ao B. …. Abordou-os e o arguido B. … tinha os dois pacotes no bolso; (2) que o arguido B. … quando foi detido afirmou que o estupefaciente pertencia ao A. …. - o depoimento da testemunha M. C., também guarda prisional no E.P. de …, [que] apenas ouviu o arguido B. … dizer à anterior testemunha que o estupefaciente pertencia ao A. …. Referiu também que o arguido B. … não recebia visitas. Não obstante as declarações incriminatórias prestadas em inquérito pelo co-arguido B. …, perante OPC, (reduzidas a auto), as mesmas não podem ser valoradas por força do disposto no art. 355º, visto não se verificar nenhuma das excepções à proibição de leitura de autos e declarações, contidas nos art.s 356º e 357º, do CPP. Assim, a afirmação atribuída ao co-arguido B. … de que a heroína pertencia ao arguido A. …, só releva em sede de fundamentação da sentença, na medida em que foi transmitida ao tribunal pelos guardas prisionais - testemunhas de acusação – e não enquanto declaração produzida perante OPC em inquérito e devidamente reduzida a auto. Aliás, em passo algum da fundamentação da sentença se alude a tal auto de declarações, pelo que a questão da sua inadmissibilidade nem sequer se coloca enquanto questão a decidir. d) Analisando o depoimento da testemunha A.M., na parte em que depôs directamente sobre factos, a primeira constatação que se impõe em face do estrito teor da decisão recorrida, é que aquela testemunha não afirmou ter presenciado, ter visto, o facto probando, ou seja, que o arguido A. entregou heroína ao arguido B. … Parecer-lhe ver é inquestionavelmente uma expressão dubitativa, reveladora de que a testemunha não pretendeu comprometer-se com a afirmação da realidade do facto em causa, o que significa, de acordo com a experiência comum, que a testemunha não tem a certeza sobre essa mesma realidade. Por outro lado, não pode inferir-se - em termos lógicos ou de acordo com máximas de experiência -, que foi o arguido A. … quem entregou a heroína ao arguido B. …, a partir da circunstância de aquela ter sido encontrada na posse do arguido B. …em acto seguido à suspeita da testemunha A. M., uma vez que a dúvida verifica-se logo quanto à realidade de uma qualquer entrega e não apenas quanto à natureza ou identidade da coisa. 3.3. - Da admissibilidade e atendibilidade dos depoimentos indirectos das testemunhas A . M. e M. C. A testemunha A. M. declarou ainda que o arguido B. … quando foi detido afirmou que o estupefaciente pertencia ao A…. , o que foi afirmado em termos similares pela testemunha M. C., pelo que apreciaremos conjuntamente ambos os depoimentos. Os depoimentos destas testemunhas são testemunhos indirectos, [6] de ouvir dizer, pois não invocam conhecimento próprio, directo, do facto probando, que no caso é um facto principal [7] (o produto estupefaciente pertencia ao arguido A…), limitando-se a narrar o que ouviram a tal respeito ao co-arguido B. …. a) O testemunho de ouvir dizer (hersay evidence rule, na terminologia anglo-saxónica) suscita naturais reservas, quer do ponto de vista epistémico, quer garantístico, na medida em que – contrariamente ao que é regra na prova testemunhal (cfr. art. 128º nº1 do CPP) -, não assenta na percepção directa dos factos a cuja prova se destina, mas antes em percepções de outros. Daí que, embora seja irrestritamente admitida em alguns ordenamentos jurídicos, tal depoimento seja aceite com limitações ou mesmo proibido na generalidade dos sistemas jurídicos que nos são próximos. [8] Os fundamentos da sua admissão com limitações em sistemas como o nosso e, sobretudo, da sua proibição-regra nos sistemas de acusatório puro, próprio dos sistemas anglo-saxónicos, [9] encontramo-los claramente expostos em Parecer de Costa Andrade publicado na CJ A. VI – 1981, T. 1/p. 5-11, retomado e desenvolvido com referências à história do actual art. 129º do C.P.P. e a preceitos similares, nomeadamente do direito italiano e direito alemão, pelo Ac TC nº 213/94 de 02.03.94, BMJ 435/155. Pode ler-se neste Acórdão, reportando-se ao Parecer de Costa Andrade: - « As razões justificativas da incompatibilidade frontal entre um processo acusatório e os testemunhos de ouvir dizer seriam numerosas: "[p]ara além de razões de índole formal - v.g. a impossibilidade de obter o juramento [...] da pessoa concreta ou da entidade abstracta a que se reporta a testemunha que ouviu dizer - e para além duma razão última de fundo que releva da própria essência dum processo dum Estado democrático, incompatível com situações kafkianas e inquisitoriais [...] de não se saber quem diz, o que diz e porque o diz, há que trazer à colação razões que relevam directamente da própria essência do princípio do acusatório, nomeadamente a possibilidade de contra-interrogatório das testemunhas (cross-examination) e o chamado princípio da imediação" (ibidem)» [10] b) No nosso ordenamento jurídico-penal, o testemunho de ouvir dizer encontra-se expressamente previsto no art. 129º do CPP, referindo-se ainda o art. 356º nº7 aos casos, especiais, em que os órgãos de polícia criminal recebam declarações cuja leitura não for permitida, proibindo a sua inquirição como testemunhas sobre o conteúdo daquelas. Independentemente das divergências da doutrina e jurisprudência sobre o enquadramento de declarações orais prestadas pelos arguidos e co-arguidos em momento anterior à prestação de declarações reduzidas a escrito nos autos, [11] in casu não estamos perante prova inatendível ou inutilizável por violação do disposto no art. 356º nº 7 do CPP, desde logo porque as testemunhas (guardas-prisionais) não são órgãos de polícia criminal abrangidas pela previsão legal, [12] sendo certo que as diligências de inquérito (v.g. tomada de declarações) foram levadas a cabo por elementos da GNR, esses sim, OPC. c) Por outro lado, não obsta à aplicação do regime previsto no art. 129º que a prova originária ou directa seja constituída – como no caso presente - por declarações incriminatórias de um co-arguido [13] [14] , em vez de um depoimento testemunhal. Por um lado, é pacificamente reconhecida entre nós a admissibilidade das declarações incriminatórias do co-arguido [15] , embora a sua valoração dependa da disponibilidade do declarante para prestar esclarecimentos a instâncias do defensor do co-arguido incriminado, por imposição do princípio do contraditório constitucionalmente consagrado. – Cfr Ac TC nº 524/97 de 14.07.1997, DR II, de 27.11.97 e www.tribunalconstitucional.pt. Por outro, pensamos que não obstante a pessoa indicada a que se refere o art. 129º nº1 ser, paradigmaticamente, outra testemunha, nada justifica que o regime aí previsto não se aplique igualmente às declarações do co-arguido, na medida em que se mostrem ajustadas às particularidades dessas mesmas declarações, [16] [17] ma vez que, sendo amplamente admitidas, são genericamente valoradas de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, valendo quanto a elas os princípios da imediação e contraditório [18] em termos idênticos – no que aqui importa - aos dos restantes meios de prova, maxime, da prova testemunhal. No caso concreto não se suscitam os problemas ora aflorados, porquanto o co-arguido B. ... (declarante originário) prestou declarações em audiência e não terá recusado prestar quaisquer esclarecimentos sobre os factos atinentes ao co-arguido A. ..., uma vez que nada consta da acta – ou da fundamentação da sentença sob recurso – a tal respeito. d) Vejamos, então, um pouco mais de perto o regime previsto no art. 129º do CPP. Numa perspectiva fenomenológica, quase diríamos, o art. 129º regula tanto os casos em que se pretenda que o depoimento indirecto substitua o depoimento originário, como situações em que ambos os depoimentos coexistem. O testemunho de ouvir dizer pode ser admitido e atendido em substituição da testemunha originária, nos casos em que esta foi devidamente indicada, mas o depoimento originário é impossível por algum dos motivos indicados no art. 129º nº1 (morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada). [19] O depoimento indirecto não é admissível, nem atendível, em substituição do depoimento originário , se este é possível mas não tem lugar: porque o juiz não chamou a pessoa indicada a depor, quer por recusa ou impossibilidade da testemunha de ouvir dizer (cfr nº3 do art. 129º), ou por outro motivo, diverso dos abrangidos pelo nº 1 do art. 129º do CPP. Por último, o art. 129º não proíbe e pressupõe mesmo que o testemunho de ouvir dizer possa ter lugar, não em substituição, mas cumulativamente com o depoimento directo da pessoa indicada (a testemunha originária), o que pode ocorrer contemporânea ou sequencialmente, v.g. quando esta é chamada a depor em resultado do testemunho de ouvir dizer (art. 129º nº1 do CPP) E pode mesmo ocorrer – como sucede in casu - que o testemunho de ouvir dizer seja usado - deliberadamente ou não - como prova sobre a prova. Conforme refere, em termos válidos para o nosso ordenamento, Fernando Gascón Inchausti “ … o próprio testemunho de ouvir dizer (testimonio de referencia, em castelhano) pode ser utilizado como meio de prova sobre a prova, naqueles casos em que se leva à audiência de julgamento a testemunha de ouvir dizer, para colocar em destaque a contradição existente entre o que a testemunha directa lhe narrou em momento anterior e o que essa mesma testemunha directa declara agora em tribunal” [20] . In casu encontramo-nos indubitavelmente perante um caso de coexistência de depoimento indirecto e de depoimento directo. 3.4. – Considerações gerais sobre a valoração dos depoimentos de ouvir dizer das testemunhas A. M. e M. C. Equacionada a admissibilidade e atendibilidade dos depoimentos indirectos dos guardas prisionais inquiridos em audiência, concluímos pela afirmativa, pelo que – nesse plano – nada obstava a que o tribunal a quo pudesse fundamentar a decisão dos factos em causa naqueles mesmos depoimentos de ouvir dizer. Questão diversa da admissibilidade e atendibilidade dos testemunhos é a da respectiva valoração, sendo certo que nos sistemas – como o nosso – em que se admite o depoimento indirecto com relativa amplitude, as mais das vezes será em sede de valoração da prova que terão que decidir-se os problemas suscitados pelas particularidades e mesmo fragilidades do testemunho de ouvir dizer. [21] A este respeito, convém ter presente desde logo que o art. 129º não impõe um determinado valor probatório (legal ou tarifado), nem estabelece critérios específicos de ponderação, nem, tão-pouco, fornece limites de relevância (mínimo e/ou máximo) como resultado do depoimento de ouvir dizer. Entre as teses ou leituras possíveis a partir da ausência de regra específica, [22] afigura-se-nos que, face às regras e princípios básicos de direito probatório, maxime, o princípio da legalidade e liberdade de prova (art. 125º do CPP) e o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), o depoimento de ouvir dizer deve ser valorado, em conjunto com a restante prova produzida, de acordo com a livre convicção do tribunal e as regras da experiência comum, quer o depoimento indirecto substitua o depoimento directo de prestação impossível, quer coexistam ambos os depoimentos em audiência (ou em acto processual equivalente, como sucede no caso de declaração para memória futura). Significa isto que, ao nível da valoração da prova, não são invocáveis regras de hierarquização (ou exclusão) apriorísticas, entre o depoimento indirecto e o depoimento directo, os quais serão apreciados em concreto, de acordo com a livre apreciação da prova e as regras da experiência comum. Escreve Paolo Tonini a propósito do art. 195º do C.P.P. italiano, em termos válidos para o nosso ordenamento: “ Uma vez observadas as condições estabelecidas pelo Código, o juiz pode utilizar, para os fins da decisão, o depoimento indireto e, quando prestado, o depoimento direto. No caso concreto, o juiz deve valorar a credibilidade e idoneidade de ambas as declarações com base nos resultados do exame cruzado de cada declarante e em confronto com outros elementos probatórios já adquiridos.” [23] Em síntese podemos, pois, adiantar as seguintes conclusões, relativamente aos testemunhos de ouvir dizer de A. M. e M. C., e às declarações do co-arguido B. … prestadas em audiência, atinentes à responsabilidade jurídico-penal do arguido recorrente, A. …: - ambos os elementos de prova eram utilizáveis pelo tribunal a quo”; - as declarações directas em Audiência do co-arguido B. …, para além de não excluírem a atendibilidade dos testemunhos de ouvir dizer, não podem considerar-se, a priori, com maior força probatória que aqueles depoimentos; - tanto os depoimentos das testemunhas A. M. e M. C. como as declarações do co-arguido B. …, prestadas em Audiência, devem ser valoradas – juntamente com outros elementos probatórios relevantes, eventualmente existentes – de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP). No caso presente, poderá concluir-se, então, que, tendo a decisão do tribunal a quo em matéria de facto sido tomada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, só por via de reapreciação da prova produzida, na sequência de impugnação da matéria de facto (de acordo com o disposto no art. 412/3), poderia o recorrente pretender alterar o Acórdão recorrido ? 3.5. – Do princípio da livre apreciação da prova. a) Antecipando, adiantamos desde já que não é essa a conclusão a que se impõe chegar no caso presente, pois na apreciação crítica das provas o tribunal colectivo cita trechos decisivos das declarações do arguido B. …e dos testemunhos de ouvir dizer, como aludido, e a própria norma positiva que entre nós proclama o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), traça-lhe os reais contornos ao apelar para as regras da experiência comum e para disposição diversa da lei. Assim, a partir do texto da decisão e da correcta compreensão do sentido e alcance do princípio da livre apreciação da prova entre nós, veremos agora se pode e deve o tribunal ad quem concluir pela existência de erro notório na apreciação da prova que sustentou a decisão da matéria de facto no tribunal a quo, tal como aquela emerge da fundamentação da sentença. b) A apreciação ou valoração da prova, isto é, o juízo formulado pelo tribunal de julgamento quanto à prova dos factos com base nos meios de prova produzidos, pode fazer-se essencialmente de acordo com dois modelos ou sistemas que historicamente se sucederam: o modelo caracterizado pelo princípio da livre apreciação da prova e o sistema, ou sistemas, de prova legal ou tarifada. Estes últimos eram assim designados porque, por um lado, era a lei que estabelecia, de forma abstracta, a suficiência ou necessidade de certos meios para prova de determinados factos, e fixava ou hierarquizava o valor ou força probatória a atribuir a cada meio de prova, impondo ao juiz, sob certas regras, considerar provado um facto, ou o contrário, vedando ao tribunal a decisão sobre a prova dos factos com base na convicção deixada pelo conjunto da prova produzida. Sobre o princípio da livre apreciação da prova entre nós, escrevia o Prof. Eduardo Correia em 1967: “ O sistema segundo o qual a avaliação da prova deverá fundar-se na convicção íntima foi consagrado em Portugal paralelamente à introdução do júri. Nos termos da nossa Reforma Judiciária da primeira metade do séc. XIX (1832, 1836 e 1841), saída da revolução liberal, em todos os processos criminais e nos processos civis onde intervinha o júri, os jurados deviam pronunciar-se «segundo os ditames da sua consciência e da sua convicção íntima»(…) Ligado na sua origem aos jurados, a quem «a lei não pede contas sobre os meios pelos quais se convenceram» tivemos tendência para compreender o princípio como autorização para o juiz decidir com base no «puro instinto», a «pura intuição» ou a «voz da consciência»” [24] Vêem-se ainda hoje referências doutrinárias ao peso destas origens do princípio na prática judiciária, do que é exemplo o seguinte trecho do Prof. Enzo Zappalà [25] . “ A livre convicção do juiz, na verdade, é ainda concebido, sobretudo em algumas aplicações jurisprudenciais, como persuasão sugestiva, certeza moral, íntima convicção do juiz baseada na sua emoção e sentimentos irracionais. Isso é ainda resultado da teoria romântica da prova, a qual encontra o seu fundamento na categoria lógica do juízo como «giuria-verdetto immotivato-persuasione emotiva» (Amodio). Daqui a opinião difundida de que o momento valorativo da prova pertence à área do indecifrável, do não regulável e, logo, do não controlável.”. Não é, porém, este o sentido e alcance com que o princípio é já há muito acolhido na generalidade dos sistemas continentais, nomeadamente o nosso. Contrariamente aos sistemas de prova legal, o modelo caracterizado pelo princípio da livre apreciação da prova implica sobretudo que o juiz não se encontre sujeito a regras, prévia e legalmente fixadas sobre o modo como deve valorar a prova, libertando-o das regras rígidas da prova tarifada. Citando de novo E. Correia, escrevia ele que, “… o princípio da livre apreciação da prova não deve traduzir-se em mais que não aprisionar o juiz em critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, mas não para o isentar de obediência às regras da experiência e aos critérios da lógica. Neste sentido, um elemento de legalidade entra de novo no problema da apreciação da prova. Ainda que não fixadas pela lei, ele implica, na verdade, que certas regras de direito (nas quais podem transformar-se as leis da lógica e da experiência) presidam à avaliação da prova pelo juiz, mesmo onde falamos de livre convicção. Ideia que implica, por um lado, a possibilidade de apreciar em via de recurso a violação de tais leis na apreciação da prova e, por outro lado, (…) conduz à necessidade de motivar as decisões em matéria de facto. (…)”. [26] A decisão do tribunal em matéria de facto, deve, pois, revelar-se objectiva e racionalmente alicerçada nos meios de prova validamente produzidos, [27] impondo a lei que o processo decisório respectivo se expresse claramente na motivação ou fundamentação da decisão da matéria de facto, maxime na fundamentação da sentença, pois a lei constitucional consagra a obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais (art. 205º nº3) e o art. 97º nº3 do CPP o dever de fundamentação de todas as decisões. É com este sentido que deve interpretar-se o art. 127º do CPP, que expressamente consagra o princípio da livre apreciação da prova, ao ditar que salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, conforme aludido. Em síntese, como refere Castanheira Neves, em trecho por demais citado, “ A liberdade de que aqui se fala [princípio da livre convicção] não é nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionisto-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação. Trata-se de uma liberdade para a objectividade – não aquela que permita uma “intime conviction”, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objectividade (…), i.e. uma verdade que transcenda a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros – que tal só pode ser a verdade do direito e para o direito.(…) Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito …ainda no domínio da convicção probatória (…) [ e por isso] não deixará de ser controlável pelos tribunais de recurso com competência apenas “de direito” (STJ como tribunal de revista), sempre que a violação do princípio da objectividade for evidente sem outras averiguações probatórias (….) ». [28] Exige, pois, o princípio da livre apreciação da prova que o tribunal decida com base em convicção objectivável e motivável, capaz de impor-se aos outros. 3.6. – O critério ou parâmetro da prova além de toda a dúvida razoável. Também M. Taruffo se refere ao princípio da livre convicção como próprio de um sistema essencialmente racional, em que o juiz se encontra liberto das regras da prova legal mas não das regras da razão, devendo valorar a prova segundo o que chama de discricionariedade guiada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação racional. Depois de colocar a questão de saber se existem ou não critérios ou parâmetros aos quais o juiz deva atender ao valorar discricionariamente as provas de que dispõe, com vista a estabelecer quando foi, ou não, conseguida a prova de um determinado facto, conclui o autor afirmativamente, adiantando que em processo civil rege o critério da probabilidade prevalente ou seja o do mais provável que não ou prepoderance of evidence, e em processo penal o critério ou parâmetro da “prova além de toda a dúvida razoável ou proof beyond any reasonable doubt.[29] Este critério tem a sua origem no direito processual inglês e posteriormente converteu-se na regra fundamental do direito processual penal norte-americano, se bem que se verifique tendência para a sua aplicação noutros ordenamentos, nomeadamente em Itália. [30] Sobre o seu sentido e alcance, refere ainda F. Stella, comentando decisão jurisprudencial concordante, que : “… a regra “ para além de toda a dúvida razoável” é regra jurídica de decisão, ao abrigo da qual deve ser resolvido o problema da prova insuficiente ou contraditória: as provas são insuficientes quando a acusação não demonstrou a culpa do acusado para além de toda a dúvida razoável…» ( cfr est. cit. p. 100). A propósito da articulação entre este critério e o princípio da livre convicção, diz Enzo Zappalà que, «… os dois princípios, o da “íntima convicção” e “para além de toda a dúvida razoável” não se encontram, de modo nenhum, em alternativa; representam antes dois círculos concêntricos de salvaguarda que o sistema processual penal coloca em defesa do cidadão inocente de não correr o risco de ser condenado. Ambos incidem sobre o momento da valoração da prova pelo juiz; momento verdadeiramente crucial para tornar efectivo o direito individual a ver reconhecida a própria inocência, se não resulta provada a sua culpa. O primeiro círculo, com a afirmação do princípio da livre convicção (..) coloca o momento da valoração da prova a coberto dos efeitos devastadores produzidos pelo sistema precedente da prova legal (…).O acusado, com efeito, não pode sofrer condenação em resultado do emprego de regras probatórias formais, como as que resultam do modelo aritmético da prova e tem, sem dúvida, o direito de exigir que a garantia da sua presunção de inocência seja efectivamente accionada no caso concreto colocado à valoração do juiz. Com o segundo círculo de salvaguarda, procura evitar-se que a livre valoração do juiz se transforme em arbítrio. O juiz não está sujeito a vínculos normativos externos, mas deve chegar à formação da sua convicção através do emprego de critérios racionais, próprios da lógica, da ciência e do conhecimento comum. A certeza probatória que desse modo o juiz alcança (…) [trata-se] naturalmente de uma certeza lógica, aplicada ao caso concreto e modelada segundo um itinerário argumentativo objectivamente susceptível de controlo.” [31] Relativamente ao nosso ordenamento jurídico é o Prof F. Dias que se refere ao critério ou parâmetro da dúvida razoável, a propósito do princípio da livre apreciação da prova, para afirmar que: “Uma tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos este um critério prático adequado, de que se tem servido com êxito a jurisprudência anglo-americana – o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.” [32] 3.7. - O princípio da livre apreciação da prova e o princípio in dubio pro reo. A convicção para além de toda a dúvida razoável traduz, afinal, o resultado a que deve chegar o tribunal, no termo da valoração da prova, para poder condenar o arguido, o que abre a porta para outro ângulo de enquadramento ou compreensão daquele critério ou parâmetro de decisão. Se até aqui procurámos perspectivá-lo enquanto critério ou parâmetro positivo de decisão, imposto pela leitura do princípio da livre apreciação da prova à luz do princípio da objectividade e racionalidade a que se refere Castanheira Neves, F. Dias e a generalidade da doutrina, a ideia ou critério da dúvida razoável, pode ser – e é - igualmente invocado como base ou pressuposto do princípio in dubio pro reo [33] . Ou seja, à convicção para além de toda a dúvida razoável, enquanto critério positivo de decisão, corresponde a conceitualização da dúvida razoável enquanto base ou pressuposto do princípio in dubio pro reo, encarando-se este como limite normativo do princípio da livre apreciação, de alcance tanto mais amplo quanto se encare o princípio in dubio pro reo de forma essencialmente objectiva, por oposição à exigência da dúvida subjectiva ou histórica, efectivamente sentida e expressa pelo tribunal. A este respeito diz Cristina Líbano Monteiro: - “ Ao pedir-se ao juiz, para prova dos factos, uma convicção objectivável e motivável, está-se a impedi-lo de decidir quando não tenha chegado a esse convencimento; ou seja: quando possa objectivar e motivar uma dúvida. Espera-se deste modo que a decisão convença. Convença o juiz no seu íntimo, mas contenha em si igualmente a virtualidade de convencer o arguido e, nele, a inteira comunidade jurídica.” Para tanto, importa menos “… a irrepetível singularidade do juiz da causa – não importa tanto saber se aquela concreta pessoa teve ou não dúvida sobre o facto – do que a ciência e discernimento que deve possuir em comum com qualquer outro julgador e o há-de levar, portanto, a uma avaliação da prova admissível por todos (ao menos no seu conteúdo essencial). Um juiz médio (neste sentido) ter-se-ia convencido da veracidade daquele testemunho, da autenticidade daquele documento, da espontaneidade daquela confissão ? Ou, pelo contrário, não poderia deixar de duvidar, com razoabilidade, da ocorrência de determinado facto perante a prova produzida ? O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no “in dubio pro reo” o seu limite normativo: ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último. Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva.” [34] Entendidos , assim, objectivamente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, sempre será de considerar este princípio violado quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido [35] , mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido a dúvida que, porém, resulta de uma análise e apreciação objectiva da prova produzida à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório ( cfr art. 127º do CPP). [36] 3.8. – Apreciação do caso concreto à luz dos princípios e regras enunciados. a) Despistada a hipótese de inadmissibilidade do depoimento indirecto no caso presente e referida a inexistência de regras positivas – nomeadamente no art. 129º do CPP – que impusessem um determinado valor probatório (legal ou tarifado) ao depoimento directo ou ao indirecto ou estabelecessem critérios específicos de ponderação, ou limites de relevância (mínimo e/ou máximo) como resultado do depoimento de ouvir dizer ( vd supra ponto 3.4.), tal não significa que não possa questionar-se, maxime, à luz da experiência comum se não é possível estabelecer algumas máximas ou regras lógicas e de experiência que possam orientar o julgador, relativamente ao grau de convicção que pode induzir o depoimento indirecto, com vista a fundamentar a convicção para além de toda a dúvida razoável. Ou seja - seguindo de perto nesta parte o estudo supracitado de A. ... Adérito [37] - trata-se de avaliar, aprioristicamente, se o depoimento indirecto tem virtualidades para formar, por si só, uma convicção (maxime de condenação) ou apenas serve para exprimir certos níveis de probabilidade e verosimilhança. Assim, para reconhecer valor probatório ao depoimento indirecto, mesmo quando tenha sido obtido o depoimento directo (como sucede in casu), para além das aludidas condições de admissibilidade, importa garantir condições de eficácia de valoração, designadamente através da testemunha directa ou outra testemunha, ou de outro elemento de prova, mesmo que de natureza indiciária, ou de declarações de leitura permitida, bem como a sufragação pelas regras da racionalidade e da experiência que conferem objectividade à convicção do julgador. Como escreve Carlos Adérito, “Um depoimento indirecto ou mesmo a prova baseada exclusivamente em testemunhos de ouvir-dizer, sem suficiente corroboração, não podem, em princípio, constituir prova bastante para elidir a presunção de inocência de que o arguido beneficia, mesmo no caso de admissibilidade automática da testemunha de referência.” [38] b) In casu, o testemunho de ouvir dizer dos guardas prisionais A. M. e M. C. surge desacompanhado de outras provas que, juntamente com aqueles depoimentos, pudesse fundar, com objectividade, a convicção do tribunal sobre a relação factual entre a heroína e o arguido A. ... Na verdade, lembremo-lo, o arguido A. .. não prestou declarações em Audiência, o co-arguido B. … apresentou em Audiência versão não incriminatória do arguido A. …, quanto à posse do produto estupefaciente, e o testemunho directo do guarda prisional A. M., é dubitativo, pois apenas afirmou que lhe pareceu ter visto. Não foram, pois, considerados outros meios de prova de natureza pessoal ou material, que possam ser convocados para corroborar as primitivas declarações do co-arguido B. …, sendo certo que não se coloca sequer a hipótese de valoração do auto de declarações prestadas em inquérito pelo co-arguido B. …, face ao disposto no art. 356º nº7 do CPP, como aludido supra. Ou seja, in casu, os testemunhos de ouvir dizer constituem-se, praticamente, nos únicos elementos de prova que fundamentaram a decisão do tribunal quanto ao facto típico em causa, sendo certo que os mesmos detêm insuficiente valor de convicção, apresentando nulas ou escassas virtualidades do ponto de vista epistémico, relativamente ao facto principal e típico (a heroína pertencia ao arguido A. …), porque se trata de meio muito frágil de adquirir qualquer tipo de informação ou conhecimento processualmente idóneos. Desde logo, aponta para esta conclusão a regra da melhor prova (the best evidence rule) [39] [se não vale como norma legal de prevalência ou preponderância, conforme aludido, vale como regra ou princípio de direito assente em máximas da experiência] que constitui uma das vertentes do princípio da imediação, na medida em que se pretende que o tribunal tenha acesso aos factos a partir da própria fonte, ou seja, acedendo aos meios de prova mais directamente relacionados com os factos a provar, não se admitindo, em regra, a sua substituição por equivalentes probatórios (v.g., proibindo-se o depoimento testemunhal por intermédio de procurador ou o testemunho de ouvir dizer, precisamente). [40] Por outro lado, apesar de poder afectar negativamente o valor de convicção das declarações do co-arguido B. … em audiência – onde apresentou versão contraditória com a que lhe foi ouvida pelas testemunhas A. e M. - o testemunho de ouvir dizer não tem a virtualidade de transformar as declarações efectivamente prestadas na Audiência em quaisquer outras, nomeadamente nas prestadas originariamente perante as testemunhas de ouvir dizer. As declarações originárias prestadas extraprocessualmente trazidas à Audiência pelo testemunho de ouvir dizer não substituem, não tomam o lugar - quanto ao facto probando sobre o qual versam as declarações originárias – do depoimento posterior prestado em audiência, de tal forma que pudessem ser apreciadas e valoradas como se tivessem sido prestadas em audiência. Aceitar tal equivalência não só violaria regras da lógica e da experiência, como significaria aceitar que valesse em julgamento, para efeito de formação da convicção do tribunal sobre o facto probando, prova concreta não produzida nem examinada em audiência – fora dos casos especialmente previstos e condicionados por certas garantias de procedimento - , com violação da regra geral contida no art. 355º do CPP e dos princípios da publicidade, imediação (em toda a sua dimensão) e contraditório, que lhe subjazem. O arguido não pode contra interrogar as testemunhas sobre a consistência ou motivação do depoimento do co-arguido que lhe imputa a prática de factos típicos, mas apenas, eventualmente, sobre o que as testemunhas efectivamente ouviram ou deixaram de ouvir, o que é bastante limitado, se não mesmo irrelevante, do ponto de vista da sua defesa. Não pode a defesa – ou o tribunal no âmbito dos seus poderes oficiosos - instar a testemunha directa (ou co-arguido, como no caso presente) sobre a inveracidade, motivação ou incongruências do depoimento originário, se a testemunha não mantém tais declarações em audiência. Deste modo, o exercício do contraditório pouco mais será do que formal, o que é tanto mais relevante, do ponto de vista do valor de convicção das declarações originárias do co-arguido B. …, quanto é certo que as declarações de co-arguido são meio de prova especialmente frágil e controvertido. Pronunciando-se sobre a valoração das declarações do co-arguido, Medina de Seiça defende mesmo que “… o conhecimento probatório do co-arguido só deverá servir de fundamento à decisão final a tomar em relação ao outro caso esteja corroborado. A corroboração constitui, deste modo, o complemento integrador da livre apreciação em relação a esta fonte probatória, devendo expressar-se na motivação para que a valoração possa considerar-se correcta.” [41] [42] Embora a ausência de expressa previsão legal que imponha a necessidade de corroboração por fonte probatória distinta da declaração do co-arguido, fundamente as reservas quanto à exigência da mesma no nosso ordenamento jurídico-penal, de iure condito, sempre há-de considerar-se com o citado Autor que, “ …apesar de legitimamente valorável e de assumir numerosas vezes um significado precioso para a descoberta da verdade, constitui uma máxima da experiência (nesse sentido naturalmente fundada) que a informação probatória dos co-arguidos, na parte em que se refere aos outros, há-de rodear-se de particular dúvida” [43] . Significa isto que, em atenção à especial dúvida imanente às declarações do co-arguido, deve o tribunal rodear-se de particulares cautelas na sua valoração, cautelas que devem multiplicar-se quando as declarações originárias do co-arguido apenas chegam ao tribunal por testemunhas de ouvir dizer, como sucede in casu. Sendo conhecido o declarante originário e depondo este em audiência, onde profere declarações não incriminatórias para o inicialmente visado, contrariamente ao que anteriormente fora ouvido pelas testemunhas de ouvir dizer, parece necessário que – de acordo com as regras da experiência comum - aquelas declarações originárias possam ser complementadas com outras provas de carácter incriminatório e coincidente, examinadas em audiência. No caso presente, revela-se temerário ultrapassar a presunção de inocência, considerando (explícita ou implicitamente) ultrapassada dúvida razoável, quanto à prática da factualidade típica pelo arguido A. …, apenas com base em declaração que não pode considerar-se materialmente prestada perante o tribunal de julgamento e contrariada pela defesa. c) É assim no plano dos princípios (maxime princípios da imediação e do contraditório), mas também o que resulta da concreta apreciação da prova produzida tal como a mesma é retratada no texto do acórdão, à luz das regras da experiência comum. Na verdade, ambos os arguidos são reclusos. Ambos têm antecedentes criminais, ambos são jovens e não há regra ou máxima de experiência que permita concluir, decididamente, a favor de uma e contra outras de duas hipóteses explicativas das declarações extraprocessuais do co-arguido B. ..., aqui em causa. É plausível que o co-arguido B. … tenha atribuído inicialmente a propriedade do produto estupefaciente ao co-arguido A. …, por tal corresponder à verdade, alterando a sua versão dos factos com receio de represálias ou na expectativa de evitar outras desvantagens ou colher benefícios de qualquer natureza. É igualmente plausível que as declarações iniciais do co-arguido B. … não correspondessem à verdade e visassem apenas excluir ou atenuar a sua responsabilidade penal, derivando a subsequente alteração das suas declarações da constatação de que, afinal, sempre seria punido de forma significativa, pelo que nada ganhava com a incriminação do outro recluso. Sobretudo no plano das motivações para um ou outro dos comportamentos, é ainda possível conjecturar novas hipóteses, sem nos afastarmos dum quadro de plausibilidade. d) Poderia o tribunal, respeitando as regras da experiência comum e o princípio da objectividade, de que fala o Prof. Castanheira Neves ou o critério ou cânone “para além de toda a dúvida razoável” ou, ainda noutra perspectiva, sem violação do princípio in dúbio pro reo e, em todo o caso, sem violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência e da culpa, dar como provada a versão incriminatória do co-arguido A. … ? Mesmo que o tribunal tenha ficado convencido que o co-arguido B… mentiu em audiência no que respeita à propriedade da heroína, com base nos depoimentos das testemunhas guardas-prisionais e na própria forma como o arguido B. … prestou declarações em audiência, não podia o tribunal concluir, para além de toda a dúvida razoável que, no caso presente, a verdade encontrava-se então nas primitivas declarações do co-arguido B. …, tal como as mesmas foram transmitidas ao tribunal pelas testemunhas de ouvir dizer, dada a impossibilidade de confrontar o co-arguido B. … com as dúvidas suscitadas por tal versão, em virtude de não ter assumido a mesma em audiência. Concluímos, pois, que no caso concreto encontramo-nos face a dúvida razoável e insuperável que, por respeitar a factos desfavoráveis ao arguido, implica que se considerem tais factos como não provados, em obediência ao princípio in dubio pro reo. A igual conclusão chegamos se perspectivarmos o critério, “para além de toda a dúvida razoável”, como parâmetro positivo de decisão que limita e enforma o princípio da livre apreciação da prova. Num processo penal que Vives Anton apelidou de “ Processo Penal da Presunção de Inocência” é esta a conclusão que se impõe, pelo que o Acórdão sob recurso padece do vício de erro notório na apreciação da prova, no que se refere aos factos relativos à propriedade e detenção da heroína apreendida, por parte do arguido A. …, ou seja, no que a este arguido respeita: b) este produto [heroína com o peso bruto de 9,426 gramas e líquido de 9,075 gramas] tinha sido entregue ao arguido B… pelo arguido A. … para que o primeiro o guardasse; c) o arguido A. … destinava tal produto à venda no interior do Estabelecimento Prisional, conforme sabia o arguido B. …; d) ambos os arguidos conheciam as qualidades estupefacientes do produto e sabiam que a sua detenção e venda são proibidas e especialmente no interior de Estabelecimentos Prisionais; e) ambos os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente e sabiam serem as suas condutas proibidas; 3.9. – Verificado o apontado vício e não resultando minimamente dos autos que existam outras provas de que o tribunal a quo pudesse ainda conhecer (cfr art. 340º do CPP), decide-se revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido A. … e - decidindo a causa nos termos do art. 426º [44] -, vai o mesmo absolvido da prática de um crime de tráfico de produto estupefaciente agravado, p. e p. pelos arts. 21°, n° 1, e 24°, alínea h), ambos do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-A anexa, que lhe fora imputada pelo MP, por não resultarem provados os respectivos factos constitutivos. III. Dispositivo Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, A. …, revogando o acórdão sob recurso, na parte em que o condenou na pena de 10 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de produto estupefaciente agravado, p. e p. pelos arts. 21°, n° 1, e 24°, alínea h), ambos do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-A anexa, absolvendo-o desse mesmo crime. Sem custas. Honorários de acordo com a tabela provada pela Portaria nº 1386/2004 de 10 de Novembro. Évora, 30 de Janeiro de 2007 (Processado em computador. Revisto pelo relator.) (António João Latas) (Maria Guilhermina Vaz Pereira Santos de Freitas) (Carlos Jorge Viana Berguete Coelho) _______________________________ [1] Conhecimento oficioso, conforme se entende pacificamente desde o Assento de 19.10. 1995, DR I-A de 28.12.1995 e BMJ 450/72. [2] F. Dias, Para Uma Reforma Global do processo Penal Português in Para uma Nova Justiça Penal, Liv Almedina, 1983, p. [3] Cfr anotação ao Ac STJ de 6.05.1992 in RPCC 4 (1994) p. 120 [4] A propósito do princípio da livre apreciação da prova, Castanheira Neves refere-se a um juiz normal como aquele que tem , “ a cultura e experiência da vida e dos homens que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados probatórios”. – cfr Sumários de processo criminal, Coimbra 1968 p. 54 [5] Cfr Ac do STJ de 15.04.1998, BMJ 476/91 : «Nesta perspectiva a violação, v.g. , do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência só pode ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.» [6] “ O depoimento indirecto respeita não imediatamente aos factos probandos, mas a meio de prova desses factos; é o vulgarmente designado por testemunho de ouvir dizer. (…) O testemunho indirecto não respeita apenas ao testemunho de ouvir dizer, embora seja assim vulgarmente conhecido. Pode resultar, v.g. da leitura de documentos elaborados por outros e são aplicáveis as mesmas regras.” – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Editorial Verbo 1999, p 151 [7] A partir da definição ampla do objecto da prova contida no art. 124º do CPP, podem considerar-se as seguintes categorias de factos entre os que podem e devem ser objecto de prova, no âmbito do processo penal: - a) os «factos directamente importantes» ou principais, que incluem todas as circunstâncias que fundamentam, por si mesmas, a punibilidade ou a excluem; - b) os indícios, que são factos que permitem extrair, a partir deles, conclusões sobre um facto principal ou directamente importante; - c) os factos auxiliares da prova, ou factos acessórios, que são os factos que permitem extrair conclusões sobre a qualidade de um dado meio de prova ou, dito de outro modo, são factos que servem para valorar a fiabilidade de um meio de prova praticado. – Vd Claus Roxin, Derecho Procesal Penal (trad. da 25ª ed. Alemã), Buenos Aires 2000, Editores Del Porto, p. 186-7, Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal II, Reimpressão da Universidade Católica, Lisboa - 1981, p.p. 286 e 288. [8] Carlos Adérito Teixeira, Depoimento Indirecto e arguido: admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova in Revista do Cej nº 2 – 2005, pp. p. 131/2, fala em sistemas de admissibilidade irrestrita ( o francês), de admissibilidade condicionada ( alemão, italiano, espanhol e protuguês, uma vez que postulam uma admissibilidade genérica com imposição de requisitos), e sistemas de proibição geral, grosso modo, os da família anglo-saxónica. [9] Podem ver-se as grandes linhas do regime do testemunho de ouvir dizer, no direito americano e alemão , em Manuel da Costa Andrade, Sobre As Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora-1992, pp. 159-169. [10] Cfr o citado BMJ 435, p. 164. [11] Na jurisprudência, vejam-se, para além de acórdãos posteriores, o Ac STJ de 29.01.92, CJ 1992, T. I/20 sgs (no sentido da inadmissibilidade do testemunho de OPC sobre o ouvido ao arguido nas chamadas «conversas informais») e Ac STJ de 29.03.95, BMJ 445/279 sgs ( no sentido inverso), ambos analisados por Damião da Cunha, O Regime Processual de Leitura de Declarações, RPCC 7(1997) p. 403-443. [12] Em termos que podem levar a uma conclusão diferente, vd Damião da Cunha, est. cit. p. 440-1. [13] Veja-se uma abordagem abrangente sobre o depoimento indirecto “Testemunha-arguido” em Carlos Adérito, est. cit. , pp. 158 e sgs. Em sentido contrário ao ora expresso no texto do acórdão (que versa apenas sobre as declarações incriminatórias de co-arguido e não sobre a admissibilidade e valoração de anteriores declarações confessórias de arguido, que aqui não importam) , conclui-se aí pela inaplicabilidade do art. 129º do CPP ao testemunho de ouvir dizer ao arguido, o qual se entende ser admitido e regido pelo disposto nos arts 125º e 129º, do CPP . - cfr. est. cit. pp. 187 e 191). [14] O Ac Tc 213/94 de 2.03.94, BMJ 435/155 e sgs julgou inconstitucional a norma do art. 129º nº1 do CPP interpretada no sentido de admitir o depoimento de ouvir a dizer a co-arguida que não depôs em audiência por ser impossível encontrá-la, sendo o depoente um agente de polícia judiciária que com ela contactou quando, detida, aguardava o primeiro interrogatório judicial. Pensamos, porém, que desta decisão, não resulta que o Tribunal Constitucional julgue inadmissível o testemunho de ouvir a dizer a co-arguido, estando antes em causa a interpretação do nº7 do art. 356º do CPP no caso concreto. E ainda assim o TC terá fundamentado a violação do princípio constitucional da ampla defesa (art. 32º nº 1 CRP)mais na ideia de que devendo estar e não estando nos autos as declarações originais, estas não existem nem subsistem por via extraprocessual, do que a partir de uma concepção alargada da proibição do testemunho de ouvir dizer . – cfr , nesta última parte, Carlos Adérito, est. cit. p. 179 n. 145. [15] Veja-se, por todos, António Alberto Medina de Seiça, “ O Conhecimento Probatório do Co-arguido, Coimbra Editora-1999, que a p. 160 conclui: “ … apesar de a lei não contemplar expressamente o meio de prova «declarações do co-arguido», não se infere a impossibilidade da valoração probatória das declarações na parte em que se referem (ou também se referem) aos factos de outro arguido. Na verdade, a lei não só não proíbe essa valoração como indica em vários preceitos que ela deve ocorrer (cf. Arts. 146; 343º nº4 ).” [16] Assim, é-lhe aplicável o disposto no nº3 do art. 129º,quer nos casos em que a testemunha de ouvir dizer não chega a referir que a pessoa a quem ouviu é co-arguido, quer nos casos em que não individualiza o co-arguido entre uma pluralidade deles. Igualmente quanto ao nº2 (documento) ou ao nº1 na parte em que o preceito refere que o juiz pode chamar a pessoa indicada a depor. Não no sentido literal, estrito, uma vez que o arguido é sujeito processual a quem a lei garante o direito ao silêncio, não sendo chamado a intervir no processo nem a prestar declarações, mas no sentido em que deve o juiz confrontá-lo com o testemunho de ouvir dizer, solicitando oficiosamente os esclarecimentos que entenda e dando oportunidade à defesa do co-arguido incriminado para que possa requerer-lho. [17] No sentido da inadmissibilidade (e irrelevância probatória) do testemunho de ouvir dizer a arguido ou co-arguido, enquanto sujeitos processuais, vd José Damião da Cunha, O Regime Processual de Leitura de Declarações in RPCC 7(1997), p. 438 : “ … também não parece aceitável testemunhas do que ouviu dizer a um sujeito processual, pois, quanto a este, decisivas são as declarações prestadas na audiência de julgamento – aspecto que, como vimos, deveria ser pacífico estando em causa o arguido…”. [18] Vd Ac TC nº 524/97 de 14.07.1997 supracitado em texto. [19] Sobre a aplicabilidade deste regime a outros casos de impossibilidade vd, em sentido positivo, Carlos Adérito, est. cit. pp. 137 – 142 [20] Fernando Gascón Inchausti, El control de la fiabilidad probatória: «Prueba sobre la prueba» en el processo penal, Valência, Ed. Revista General de Derecho, 1999, p. 90 . Na definição deste autor (em termos que se afiguram pertinentes para o processo penal português), prova sobre a prova consiste na “… actividade processual desenvolvida pelos sujeitos do processo penal cujas finalidade consiste em convencer o órgão jurisdicional de que a eficácia probatória que merece um determinado meio de prova deve aumentar, diminuir ou, inclusivamente, desaparecer, no âmbito da livre apreciação da prova que precede a sentença. Trata-se, portanto, de um meio de prova, cujo elemento distintivo(..) está na finalidade que se persegue com essa prova e o que constitui o seu objecto. A sua finalidade é a de corroborar, diminuir ou anular a eficácia de outro meio probatório ( em regra tratar-se de uma prova directa, mas nada impede que possa tratar-se também de um a prova sobre a prova. E o seu objecto, como o de toda a actividade probatória , é constituído por factos e máximas de experiência, mas que não fazem parte do objecto do processo: são factos (e máximas empíricas) alheios, em si mesmos, ao facto punível em julgamento.”processual penal ”. – Cfr op. cit. p. 29-30 ((tradução livre do relator, o que se repete nos demais trechos traduzidos do francês, castelhano ou italiano) [21] Como pode ler-se em Costa Andrade, Proibições…, p. 164, para a corrente doutrinária que aí identifica “ …mais do que um problema de admissibilidade ou legitimidade, os testemunhos de ouvir dizer suscitam sobretudo um problema de ponderação relativa do seu valor probatório. (…) nestes termos , e à semelhança do que em geral acontece, será em sede de livre apreciação da prova que há-de, em concreto, sindicar-se e acertar-se o peso probatório das testemunhas de ouvir dizer.”. [22] Refere Carlos Adérito (est. cit. p. 143), que a falta de especificação legal permite três teses ou leituras, em abstracto, sobre a valoração deste meio de prova. A tese da subsidiariedade do depoimento indirecto, que “… conduz ao aproveitamento deste apenas quando ocorra alguma das excepções previstas na parte final no nº 1 daquele preceito legal e à inutilizabilidade daquele depoimento nos restantes casos, designadamente, quando se disponha de depoimento directo (reconduzindo a utilidade daquele a estabelecer a ponte para a testemunha directa, logo, indutor de imediação. Por outro lado, admissível é também o entendimento de subalternidade valorativa do depoimento indirecto face ao directo, atenta a idiossincrasia imanente àquele, quando sejam ambos prestados e, por coerência, reconhecendo ao mesmo um reduzido valor quando se mostre impossível a obtenção do depoimento directo. Acresce a via da equiparação relativa de valoração de qualquer dos depoimentos de acordo com o princípio da livre convicção e das regras de experiência. [23] Paolo Tonini, A Prova no Processo Penal Italiano”, trad. portuguesa (Brasil), São Paulo. Editora Revista dos Tribunais-2002, p. 118/9 [24] Eduardo Correia, Les preuves en droit pénal portugais in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XIV, Janeiro-Junho de 1967, nºs 1-2. p. 27-8. [25] In AAVV, Il Libero Convincimento Del Giudiuce Penale. Vecchie e nuove esperienze, Milano –Dott. A. Giuffrè Editore -2004, p. 117. (trad. livre do relator). [26] Est. cit. p. 29 [27] Como escreve Michele Taruffo, “conocimiento científico e estándares de prueba judicial” in Boletin Mexicano de Derecho Comparado, nueva série, año XXXVIII, nº 114, pp. 1285-1313, “ a prova não é um mero instrumento retórico [contrariamente ao que é próprio de um sistema de íntima convicção] mas sim um instrumento epistémico, ou seja, o meio com o qual, no processo, se adquirem as informações necessárias para a determinação da verdade dos factos.” [28] A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), ed. Dactilografada por João Abrantes, Coimbra, 1968, pp. 50-1 [29] M. Taruffo, est. citado. [30] A este respeito diz Federico Stella, « … a regra probatória e de julgamento, “para além de toda a dúvida razoável”, constitui, não obstante o silêncio do CPP de 1989, direito vigente no nosso País ». – cfr “ Oltre Il Ragionevole Dubbio: il libero convincimento del giudice e le indicazioni vincolanti della constituzione italiana” in AAVV, Il Libero Convincimento Del Giudiuce Penale. Vecchie e nuove esperienze, Milano –Dott. A. Giuffrè Editore -2004, p. 99-100: [31] Enzo Zappalà, est. cit. pp. 119-120, [32] Direito Processual Penal, Lições do Prof F. Dias coligidas por Maria João Antunes, 1988-9 (fascículos em vias de publicação), p. 141. [33] Apesar de não se encontrar expressamente afirmado em qualquer preceito da Constituição ou da legislação ordinária, o princípio in dubio pro reo é unanimemente reconhecido entre nós como princípio relativo à temática da prova em processual penal, que se reporta às consequências da não realização de prova sobre a verdade de um facto, ou seja, a um estado de dúvida, de non liquet. Sobre o fundamento do princípio pode ver-se uma síntese comentada das várias posições sobre o tema no Acórdão do STJ de 4.11.1998, CJ STJ, A. VI, T.III/pp. 206-207 . Sem encetar desenvolvimentos que aqui não se justificam sempre se diga, a este propósito que no nosso ordenamento jurídico-penal é inegável a conexão estreita que estabelecem a Doutrina e a Jurisprudência, designadamente a jurisprudência constitucional, entre o princípio in dubio pro reo e o princípio constitucional da presunção de inocência, por um lado, e o princípio da culpa, por si, ou considerado como derivado dos princípios mais amplos da dignidade da pessoa humana e do estado de direito, por outro. O reconhecimento da conexão do in dubio com estes princípios, maxime, a presunção de inocência e o princípio da culpa, parece corresponder à melhor compreensão da questão, sendo certo que os mesmos não se excluem mutuamente na explicação do fundamento do princípio no nosso ordenamento jurídico – tal como nos ordenamentos que nos são próximos. Como escreve Roxin, pode fazer-se derivar o princípio in dubio pro reo, indirectamente “ …do princípio da culpa em conexão com o § 261 [preceito da StPO que consagra o princípio da livre apreciação da prova], pois se de acordo com ele uma condenação exige que o tribunal esteja convencido da culpa do acusado, toda a dúvida sobre este pressuposto deve impedir a declaração de culpa”. Para além disso, diz o mesmo autor, “Também o art. 6, II da C.E.D.H. («O acusado presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada») contém o princípio in dubio pro reo”.- Roxin, Derecho Procesal Penal citado, p. 111. [34] Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e « In Dubio Pro Reo», Coimbra Editora-21997, pp. 51-53 [35] Conforme sintetiza, por todos, Cristina Líbano Monteiro, “ O universo fáctico – de acordo com o « pro reo» passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeitros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige certeza”. – Ob. cit. p. 53. [36] Neste sentido, o Ac STJ de 4.10.06 (acessível em www. stj.pt), em cujo sumário pode ler-se : « II - O vício de violação do princípio in dubio pro reo, enquanto expressão da dúvida, de aplicabilidade em sede de matéria de facto - como é jurisprudência dominante -, liga-se à presunção de inocência, não estando completamente afastada a sua sindicância por este STJ quando se trata de aplicar o direito à matéria de facto, em caso de violação desse princípio estruturante do Estado de Direito ou sempre que, para estabelecimento da coerência interna com o decidido, se trate de, para exarar uma boa decisão de direito, declarar qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. III - Desta forma o STJ exerce controle sobre a violação do princípio in dubio pro reo, enquanto limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, sempre que detecte que, na margem da dúvida, o tribunal decidiu in pejus contra o arguido, ou quando, não reconhecendo o estado de dúvida, ele resulta do texto da decisão recorrida por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, só não sendo declarada por força de erro notório na apreciação da prova.» [37] Est. cit. pp154-155 [38] Est. cit. p. 155. Por admissibilidade automática, refere-se o autor aos casos em que a testemunha de ouvir dizer substitui a testemunha-fonte ou originária nos casos a que se reporta o nº1 do art. 129º do CPP (impossibilidade por morte, anomalia psíquica ou paradeiro desconhecido. -est. cit. p. 136). [39] Como pode ler-se no supracitado Ac TC 213/94, BMJ 435/p. 168, «A proibição da hearsay evidence surgiu por influência jurisprudencial no direito inglês (…) Os tribunais preocuparam-se desde cedo em assegurar que a prova genuína fosse directamente produzida perante o júri, de modo a que a convicção formada pelos jurados acerca da realidade dos factos em discussão não fosse distorcida nem afectada pelo distanciamento entre o meio probatório e os factos probandos. Assim, desde cedo se defendeu que o direito probatório estava penetrado por uma ideia de "melhor prova" (the best evidence rule), É, por isso, que, em matéria documental, autor ou réu não devem ser autorizados a utilizar uma cópia de um documento, a menos que demonstrem que não podem ter acesso ao original. Talvez a partir desta regra, tenha surgido a regra de exclusão do depoimento indirecto (hearsay). Parece claro que, se o pretendido fosse fazer prova de uma afirmação feita por uma pessoa, não com a finalidade de provar tão-somente que tal pessoa fez essa afirmação, mas antes para provar a verdade dos factos constantes da afirmação imputada a essa pessoa, não presente na audiência de julgamento, tal não poderia ser permitido. Tratar-se-ia de uma prova em segunda mão, mais facilmente manipulável.» [40] Como referia o Prof. Cavaleiro de Ferreira a propósito do princípio da imediação das provas, “ Este consiste em primeiro lugar no dever de apreciar ou obter os meios de prova ou mais directos e, em segundo lugar, na recepção da prova pelo órgão legalmente competente. (…) No primeiro sentido, a imediação traduz-se na utilização dos meios de prova originais. Não pode substituir-se o depoimento pela declaração notarial de testemunhas; não deve chamar-se como testemunha, a que fornece somente um aprova indirecta (testemunha de ouvir dizer) quando é possível a audiência da testemunha com conhecimento directo dos factos”.- Curso de Processo Penal II, Reimpressão da Universidade Católica, Lisboa - 1981, p. 317. [41] A.A. Medina de Seiça, O conhecimento probatório do co-arguido, saupracitado, p. 205 e sgs. [42] Esclarecendo o sentido da regra da corroboração diz M. Seiça que a mesma, “ … traduz uma prova legal negativa, na medida em que o juiz só pode condenar quando se verificam as condições da prova legal (no caso, a corroboração da declaração por outros elementos probatórios), mas é livre de absolver, ainda que tal prova tenha sido produzida”. – ob. cit. p. 218. [43] Cfr ob. cit. p. 206. Refere ainda o mesmo autor:: “ Como advertia Mello Freire , traduz indício falível «a indicação do sócio do crime feita pelo réu, que é sempre suspeito; ela pode facilmente partir da maldade deste, ou duma sugestão, ou de qualquer outra causa sinistra», ideia que, afinal, não está muito longe da consideração do STJ quando se refere à «credibilidade (…) naturalmente, mais diluída, das declarações dos co-arguidos.”. – cfr fls 205-6 [44] Conforme pode ler-se em M. João Antunes, est. cit. p. 120-1, “ … o tribunal ad quem continua a poder decidir da causa , não obstante a existência dos vícios referidos no nº2 do art. 410º, pois a consequência do reenvio do processo para outro julgamento (art. 426º do CPP) – relativamente à totalidade do objecto ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio – ocorrerá somente quando não for possível decidir da causa , o que afasta um reenvio automático”. No mesmo sentido, o Ac STJ de 11.12.96, apreciado no Ac TC nº 524/97 de 1.07.97 ( DR II de 27.11.97 e site do TC: www-tribunalconstitucional.pt). |