Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
446/06.0TAENT.E1
Relator:
MARTINHO CARDOSO
Descritores: BURLA PARA OBTENÇÃO DE SERVIÇOS
DÍVIDA CONTRAÍDA
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1- São elementos típicos do crime de burla para obtenção de serviços: a utilização de um meio de transporte; o conhecimento que essa utilização pressupõe o pagamento de um preço; a intenção de não pagar tal preço; a recusa de solver a «dívida contraída».

2. A “dívida contraída” a que se refere o n.º1 do art. 220.º do CP, com referência à alínea c), abrange o preço da viagem acrescido de uma sobretaxa correspondente a metade desse preço, com um limite mínimo de cobrança.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular n.º…, do Tribunal Judicial da Comarca do Entroncamento, o M.º P.º deduziu acusação contra o arguido T., imputando-lhe a prática de um crime de burla para a obtenção de transporte, p. e p. pelo art.º 220.º, n.º 1 al.ª c), do Código Penal.

Os factos constantes da acusação são os seguintes:

No dia 15 de Abril de 2006, na linha do Norte, área desta comarca, o arguido foi interceptado pelo revisor de serviço quando viajava no comboio n° 4427, que constitui um meio de transporte colectivo de passageiros, da empresa "Caminhos de Ferro Portugueses, EP ", que realizava o percurso entre Vila Franca de Xira e Entroncamento, sem que, para tanto, estivesse munido de título válido que o habilitasse a efectuar aquele trajecto em tal meio de transporte público.


Quando detectado pelo revisor o arguido recusou-se a pagar o preço do bilhete que foi emitido, bilhete com o valor de 65 Euros e correspondente ao mínimo de cobrança fixado pela aludida empresa e de harmonia com o disposto no artigo 1° do DL n° 415-A/86 de 17 de Dezembro, quantia que o arguido não liquidou até ao momento, isto apesar de advertido de que apenas dispunha do prazo de oito dias para o efeito.


O arguido tinha perfeito conhecimento que não podia utilizar o referido meio de transporte colectivo de passageiros, sem que previamente adquirisse o competente título que o habilitasse a tal, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.


Agiu livre e voluntariamente.

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Acontece que o tribunal recorrido não recebeu esta acusação, por entender que os factos nela descritos não constituem crime, uma vez que não constam da acusação quaisquer factos de onde se possa retirar que o arguido se tenha negado a pagar o preço correspondente ao preço da contrapartida pelo serviço de transporte prestado - preço do bilhete.

No mesmo contexto, a acusação pública, ao incluir a sobretaxa na recusa do pagamento da dívida contraída pelo arguido e ao enquadrar essa conduta na previsão do art.° 220.º, n.° 1 al. c) é manifestamente infundada.

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Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo rejeitou a acusação pública formulada nos autos por considerá-la manifestamente infundada, invocando que os factos imputados ao arguido não preenchem o tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 220.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal, ou seja não preenchem a recusa em solver a dívida, enquanto elemento do tipo legal de crime

2. A douta decisão formula a presente conclusão por interpretar restritivamente a expressão "dívida contraída" contida no referido ilícito penal, no sentido de que se refere apenas ao valor do preço do bilhete em singelo e já não os acréscimos legais por falta desse bilhete, os quais revestem um carácter sancionatório e não uma contrapartida por um serviço prestado.

3. Diversamente, entende-se que a sobretaxa em causa, legalmente prevista (cfr. artigos 1.° do Decreto-Lei n.° 415-A/86, de 17.12 e artigos 7.° e 14.° da Tarifa Geral de Transportes aprovada pela Portaria n.° 403/75, de 30 de Junho, com a redacção que lhes foi dada pela Portaria n.° 1116/80, de 31 de Dezembro) é uma parte do preço do bilhete de comboio, nele incluída pela única razão de o passageiro não ter efectuado a compra do bilhete antes do início da viagem.

4. No próprio normativo penal o legislador fez menção ao valor da dívida e não ao preço do bilhete, a letra da lei estabelece como necessário que o agente se recuse a solver a dívida contraída.

5. Pelo que, a dívida considera-se contraída quando o arguido, não comprando um bilhete no cais de embarque e embarcando, fica sujeito ao pagamento do aludido preço acrescido de uma sobretaxa, que passa a ser o montante global do preço do bilhete, por não ser adquirido antes daquele embarque.

6. A interpretação da expressão "divida contraída" contida neste ilícito penal com o sentido supra explanado não viola o princípio da tipicidade, ao contrário do que foi afirmado na douta decisão recorrida, uma vez que não se está a efectuar uma interpretação extensiva da expressão supra mencionada, apenas se impõe que a mesma seja concretizada procedendo à competente hermenêutica das disposições legais supra citadas aplicáveis no caso concreto.

7. As normas acima transcritas sujeitam qualquer passageiro não detentor de bilhete válido ao pagamento do valor do mesmo acrescido de uma sobretaxa de 50%, com o mínimo de cobrança fixado na tabela anexa supra-referida.

8. Este bilhete, específico para passageiros nas condições particularizadas no artigo 7.° do diploma supra citado, assume o valor do preço do serviço, tendo sido na situação dos autos o valor que foi exigido ao arguido.

9. Por isso, a dívida contraída, para efeitos do artigo 220.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal, corresponde ao preço do bilhete que deve ser emitido sempre que o passageiro viaje sem título de transporte, ou seja ao preço em singelo do bilhete acrescido da sobretaxa referida.

10. Apesar de ter sido concedido ao arguido prazo para efectuar o pagamento, o mesmo, sabendo que aquele montante lhe era devido, nada fez para solver a sua dívida, na qual se inclui o preço do bilhete em singelo.

11. Por todo o exposto, a acusação contém factos que preenchem suficientemente a recusa do pagamento da dívida contraída, pois que, havendo aquele disposto de dois momentos para o fazer, não solveu a mesma.

12. A descrita conduta do arguido indicia que o seu propósito, ao utilizar o meio de transporte em causa, fora sempre o de não vir a efectuar o pagamento do preço do serviço prestado, propósito este posteriormente confirmado com a sua não efectivação.

14. Deste modo, verificada a intenção do não pagamento, e a recusa tácita na posterior efectivação do mesmo, indicia-se a prática, pelo arguido, de um crime de "burla para obtenção de serviços", p. e p. pelo artigo 220.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal.

15. Assim sendo, a acusação deduzida preenche todos os pressupostos típicos do ilícito penal p. e p. pelo artigo 220.°, n.° 1, c) do Código Penal, pelo qual foi requerido o julgamento do arguido.

16. Por todo o exposto, a decisão recorrida por violadora do disposto nos artigos 220.°, n.° 1, c), do Código Penal, interpretado em conformidade com o plasmado nos artigos 7.° e 14.° da Portaria n.° 403/75 de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.° 1116/80 de 31 de Dezembro e do artigo 338.° n.° 1, do Código de Processo Penal, deverá ser revogada e substituída por outra que marque nova data para a realização de audiência de discussão e julgamento e que aprecie o mérito da causa.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, consequentemente, ser a Douta Decisão recorrida objecto de revogação e substituída por outra que receba a acusação pública deduzida e marque datas para a audiência de julgamento.
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O arguido não respondeu.
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Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

De modo que a questão a desembargar neste caso é a seguinte:

Se a "dívida contraída" a que se refere o art.º 220.º, n.º 1 al.ª c), do Código Penal, abrange apenas o preço do bilhete (caso em que, como decidiu a 1.ª Instância, o arguido não teria cometido o crime, uma vez que não constam da acusação quaisquer factos de onde se possa retirar que o arguido se negou a pagá-lo – e então o Senhor Juiz "a quo" teria agido bem ao rejeitar a acusação nos termos do art.º 311.º, n.º 2 al.ª a) e 3 al.ª d), do Código de Processo Penal) ou se a "dívida contraída" a que se refere o citado art.º 220.º, n.º 1 al.ª c), abrange o preço do bilhete acrescido da sobretaxa devida por quem viaja sem bilhete, a que se refere o art.º 14.º da Portaria n.º 1116/80, de 31-12, vigente à data da prática dos factos (caso em que, ao contrário do decidido na 1.ª Instância, o arguido teria indiciariamente cometido o crime e o Senhor Juiz "a quo" devia ter recebido a acusação).

Vejamos.

Segundo o disposto no art.º 220.º, n.º 1 al.ª c), do Código Penal, comete o crime de burla para obtenção de serviços quem, com intenção de não pagar, utilizar meio de transporte (…) sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e se negar a solver a «dívida contraída».

São elementos típicos deste ilícito: a utilização de um meio de transporte; o conhecimento que essa utilização pressupõe o pagamento de um preço; a intenção de não pagar tal preço; a recusa de solver a «dívida contraída».

E qual é o montante da «dívida contraída» por quem utilizou um comboio, sabendo que essa utilização pressupunha o pagamento antecipado de um preço e não o pagou porque não o quis fazer?

O montante dessa «dívida contraída» está definido na lei:

-- Art.º 14.º, n.º 1, da Portaria n.º 403/75, na redacção da Portaria n.º 1116/80, de 31-12, vigente à data dos factos: «O passageiro que viaje sem bilhete …, pagará o preço da viagem acrescido de uma sobretaxa igual a metade deste preço; o mínimo de cobrança é o fixado no anexo II, n.º 4º».

No caso, os indiciados 65,00 € referidos no ponto 2 da acusação, para cujo pagamento no prazo de 8 dias foi na altura notificado e o arguido nunca pagou.

De resto, as leis são para serem interpretadas de um modo prático, natural e lógico. Daí que o passageiro que se mune do bilhete paga um preço. O que é encontrado a viajar sem bilhete, paga outro, agravado por uma sobretaxa ou correspondente a um mínimo de cobrança. Senão, toda a gente viajava sem bilhete; se não fosse detectada, nada pagava; sendo detectada, pagava apenas o preço inicial do bilhete. Ora não nos parece que tão absurdo resultado tenha sido o que o legislador pretendia acautelar ao elaborar o art.º 220.º, n.º 1 al.ª c) do Código Penal.

Assim, não olvidando embora que a tese defendida na decisão recorrida é uma das duas correntes jurisprudenciais que sobre o assunto se têm defrontado, pensamos, porém, ser a ora defendida a que melhor interpreta a letra e o espírito da lei.

Foi a que defendemos no acórdão desta Relação de Évora de 23-9-2008, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2008, IV-273 – e do qual não vemos razão para nos afastarmos.

(No mesmo sentido: acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 8-1-2003 e 29-6-2005, Colectânea de Jurisprudência, respectivamente, 2003, I-207 e 2005, III-222; acórdão da Relação de Coimbra de 23-9-93, Colectânea de Jurisprudência, 1993, IV-77; acórdão da Relação de Lisboa de 18-1-2006, Colectânea de Jurisprudência, 2006, I-119; e ainda mais os seguintes, todos da Relação do Porto e disponíveis em www.dgsi.pt, sob o descritor *burla* e depois *burla para a acesso a meios de transporte*: de 14-3-2007, processo 0646484, tendo como relator o Ex.mo Desembargador Custódio Silva; de 22-11-2006, processo 0645563, tendo como relator o Ex.mo Desembargador Artur Oliveira; e de 9-5-2007, processo 0646817, tendo como relator o Ex.mo Desembargador Jorge Jacob).

Assim, o recurso merece provimento.

III
Termos em que, concedendo provimento ao recurso, se decide revogar o despacho da recorrido, o qual será substituído por outro que receba a acusação nos seus precisos termos e designe dias para julgamento.

Não é devida tributação.

Évora, 25-03-2010

(elaborado e revisto pelo relator)

Martinho Cardoso (relator)

António João Latas (adjunto)