Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1882/03-1
Relator: MANUEL NABAIS
Descritores: REJEIÇÃO DE RECURSO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
CALOTEIRO
PROVA DOCUMENTAL
CRIME DE IMPRENSA
DIFAMAÇÃO ATRAVÉS DE MEIO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA
CONFLITO DE DIREITOS
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
LIBERDADE DE IMPRENSA
OFENSAS À HONRA
OFENSAS AO BOM NOME
Data do Acordão: 12/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I. Centrando o arguido/recorrente o ataque à decisão sobre matéria de facto, exclusivamente ancorado na interpretação de um artigo publicado num jornal, considerado lesivo da honra e consideração de outrem, deixando incólumes os restantes meios de prova em que o tribunal a quo louvou a sua convicção, designadamente as declarações por ele prestadas em audiência, deve o recurso, na parte respeitante à matéria de facto, ser rejeitado, por manifestamente improcedente.

II. A expressão “caloteiro” reveste-se de carácter objectivamente ofensivo da honra e consideração.

III. O exercício do direito de informação não legitima a ofensa à honra e consideração, consubstanciada na expressão “caloteiro”, dirigida a um apoiante de um candidato à eleição para presidente de uma câmara municipal, inserta num artigo de opinião, publicado num jornal.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I- Submetidos a julgamento em processo comum com intervenção do tribunal
singular, no 1º Juízo da Comarca de …, mediante acusação deduzida pelo assistente A…, acompanhada pelo MP, mas apenas no que ao 1º arguido concerne, foram os arguidos/demandados
    B …,
    a) absolvido da prática de um crime de difamação, p.e p. pelos artigos 180º, n.º 1 e 183º, n.º 2, ambos do Código Penal;
    b) absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante A;
    C…
    a) condenado como autor material de um crime de difamação, p. e p. pelos citados artºs 180º, n.º 1 e 183º, n.º 2, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 7,00 € (sete euros), o que totaliza a quantia de 1.260,00 € (mil duzentos e sessenta euros), a que correspondem, nos termos do artigo 49º, n.º 1 do Código Penal, 120 (cento e vinte) dias de prisão subsidiária;
    b) na parcial procedência do respectivo pedido de indemnização civil, condenado no pagamento, ao assistente/demandante A, da quantia de 1.250,00 € (mil duzentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora, desde a notificação ao mesmo do pedido cível.

Inconformado, interpôs recurso o arguido C, sintetizando o seu inconformismo nas seguintes conclusões, que extrai da respectiva motivação:
    1. O artigo escrito no jornal, deve ser lido no devido contexto integral, não podendo ser retirados os títulos e excertos do respectivo contexto e assim valorados, sendo que, quer para a incriminação, quer para a decisão final, o Tribunal deverá apreciar sempre integralmente o conjunto do escrito.
    2. O artigo escrito, é uma artigo de opinião, de carácter político, próprio das alturas de eleições, já que decorriam as candidaturas para a autarquia de … e respectivas eleições autárquicas.
    3. O arguido visava emitir a sua opinião sobre a condução da Câmara de … pelo candidato D, e desacreditar o candidato E e seus apoiantes.
    4. No seu artigo, o arguido refere-se a …no sentido de concelho e não de Vila, o que se alcança da leitura integral do mesmo.
    5. O arguido, não tendo uma escrita fluida e correcta, utilizou palavras e ideias comuns, tanto mais que não é jurista de formação nem a publicação se destina a um público culto ou de elevado nível académico, sendo um jornal regional.
    6. O artigo deve ser lido objectivamente, e não subjectivamente
    7. Trata-se de um artigo político e opinião, áspero e contundente na crítica, mas não um qualquer artigo de satisfação de curiosidades, lúdico ou de entretenimento.
    8. Calote, significa Pequena dívida que não se paga, ou que se contrai sem a intenção de pagar; Dívida que não se pagou ou que se contrai sem a intenção de a pagar.
    9. Caloteiro significa Aquele que prega calotes, que não paga o que deve; Aquele que caloteia.
    10. Quem atribua uma determinada divida a terceiro, não está necessariamente, só por isso, a difamá-lo ou a injuriá-lo.
    11. Foi junto aos autos o cheque assinado pelo assistente, emitido a J, com o n.º 4024107852, sob o Crédito Agrícola Mútuo, no valor de 60.000$00, com data de 26.02.95, pertencente à conta n.º…, em nome do assistente, devolvido por falta de provisão em 06.03.95.
    12. Nem o Banco de Portugal, nem a instituição de Crédito, rejeitaram o cheque por dúvidas na assinatura, ou tiveram dúvidas na sua autenticidade.
    13. O cheque é um titulo cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis ordem para pagar à vista a soma nela inscrita., sendo pois um titulo de crédito literal, autónomo e completo, representativo de numerário e de que se lança mão para se fazer um pagamento
    14. O arguido, é arquitecto e não tem qualquer formação jurídica, como a maioria do nosso povo, e como cidadão médio deste país, não é exigível o conhecimento perfeito da lei em matéria de títulos de crédito, cheques, relações subjacentes, literalidade e abstracção dos títulos cambiários
    15. O arguido tinha em sua posse o referido cheque, o que significa para o comum cidadão, que existe uma divida que não foi paga, e em boa fé, reputando como verdadeira a afirmação de que o cheque, não tendo sido pago, a divida existia.
    16. Para qualquer cidadão médio um cheque não pago e devolvido por falta de provisão, é uma divida, ou seja, um calote.
    17. Apesar do arguido não ter identificado o visado no artigo, o que manteve em sede de julgamento, não relevando a identidade do visado em tal artigo, a verdade, é que mesmo em relação ao assistente, no exercício da sua defesa da acusação que lhe era movida, logrou fazer prova do preenchimento as alíneas a) e b) do no2 do artigo 180° do CP, não sendo a sua conduta punível.
    Foram violados os artigos 180º, n.º 2, 183º, n.º 2, artº 1º da Lei 2/99, de 13.01, artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Contramotivaram o assistente e o MP, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer em que suscita a questão prévia da rejeição do recurso, na parte respeitante à matéria de facto, por incumprimento do ónus imposto nas diversas alíneas do n.º 3 do artº 412º do CPP - entendimento esse que viria a ser acolhido pelo relator, no despacho preliminar a que alude o artº 417º, n.º 3 do mesmo Cód. -, conclui no sentido de que “nenhum reparo merece a sentença recorrida, quanto à fixação dos factos provados colocada em crise no recurso” e, no mais, adere sem reservas à resposta apresentada pelo Digno Magistrado do MP junto da 1ª Instância.
Cumprido o disposto no artº 417º, n.º 2 do CPP, respondeu o arguido esforçando-se por demonstrar o infundado da posição pelo Ex.º Procurador-Geral-Adjunto assumida.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
*
II- a) A factualidade pelo tribunal a quo dada como provada e a considerada não provada bem como a respectiva justificação são as que a seguir se transcrevem:
Factos Provados
1. O arguido C dedica-se, entre outras actividades, à escrita de artigos de opinião no jornal «… »;
2. O arguido B é director do jornal «… », publicação semanal;
3. São distribuídos gratuitamente entre 400 a 500 exemplares do jornal «…» na localidade de…;
4. No número … do Ano 1, de…, da referida publicação, na página 8, foi publicado um artigo de opinião escrito pelo arguido C, com conhecimento prévio do arguido B, denominado «O que se passa em …», encontrando-se o nome daquele arguido aposto no fim do referido artigo;
5. O artigo versa sobre a candidatura de E à Câmara Municipal de …e ao desempenho que tem vindo a ser feito da presidência pelo actual presidente D
6. Em tal artigo foram inseridas as seguintes expressões: «O facto de algumas poucas pessoas que há 4 anos apoiaram D se colocarem agora ao lado de E também não me espanta. Uma delas é um meu conhecido que 2 semanas apenas após a eleição do actual presidente já se queixava desse... e porquê? Certamente que não esperava que o concelho passasse de 8 a 80 em apenas 2 semanas? Caloteiro como o conheço devia pensar que D lhe iria dar verbas (talvez através do Clube em que é presidente). Claro que D não foi nas histórias, pois já conhecia bem o Concelho e as pessoas antes de ser eleito.»;
7. O queixoso tem exercido as funções de presidente do Clube Recreativo de … desde 1995 e era o presidente em 16.03.2001;
8. Na localidade de … apenas existe o Clube Recreativo de que o queixoso é presidente;
9.Na altura em que o artigo foi publicado, o assistente apoiava a candidatura de E à Câmara Municipal de…;
10. Quatro anos antes, o assistente tinha apoiado a candidatura de D à Câmara Municipal de…;
11. O arguido C ao inserir a menção «...Clube em que é presidente» e ao fazer referência ao «facto de algumas poucas pessoas que há 4 anos apoiaram D se colocarem agora ao lado de E ...», identificou a pessoa ali contemplada como sendo o queixoso;
12. A expressão caloteiro foi utilizada pelo arguido C com intenção de ofender o queixoso na sua honra, como efectivamente ofendeu;
13. O arguido C bem sabia que tal conduta não lhe era permitida e era punida por lei, mas mesmo assim conformou-se com ela e praticou-a;
14. O assistente desenvolve a exploração de dois estabelecimentos de restauração, sendo um estabelecimento de bar em … e outro de restaurante em …, dedicando-se também à compra de propriedades para revenda e ainda à construção de edifícios;
15. Em virtude da presidência do Clube Recreativo da ….e da sua vida comercial, o queixoso é pessoa muito conhecida na área do concelho de …;
16. O queixoso foi confrontado por vários amigos e conhecidos a respeito do artigo em causa, sendo que o mesmo foi comentado em vários locais públicos, tais como cafés, onde foram tecidas considerações sobre a qualificação do demandante como caloteiro;
17. Um dos filhos do queixoso confrontou-o com a qualificação feita no artigo do jornal;
18. A publicação do artigo e a sua qualificação como caloteiro causaram no demandante grande incómodo, sofrimento e angústia;
19. No concelho de … existem os seguintes clubes e associações culturais e recreativas: Clube Recreativo …(em…); Clube Recreativo de …(em…); Associação Cultural e Recreativa da … (em…); Sociedade Recreativa de … (em…); Clube Recreativo da … (em…); Grupo Desportivo de … (em…); e Sociedade Recreativa de … (em…);
20. O arguido C é portador de um cheque assinado, emitido a J, com o n.º…, sob o Crédito Agrícola Mútuo, no valor de 60.000$00, com data de 26.02.95, pertencente à conta n.º…, em nome de A, devolvido por falta de provisão em 06.03.95;
21. O arguido C é arquitecto de profissão, sendo que também é sócio numa sociedade que se dedica à compra e venda de propriedades, noutra que se dedica a investimentos imobiliários, noutra que explora viveiros, e ainda é colaborador em dois jornais;
22. Em média, o arguido C aufere anualmente do seu trabalho e das empresas em que é sócio a quantia de 10.000,00 €;
23. O arguido C tem duas viaturas automóveis, uma de 1979 e outra de 1993;
24. O arguido vive com a sua esposa e com a sua filha de 2 anos de idade e com mais dois enteados, com 17 e 23 anos, respectivamente;
25. A filha do arguido e o enteado mais novo encontram-se a seu cargo e da sua esposa;
26. A esposa do arguido C é sócia numa firma de contabilidade, auferindo de vencimento a quantia de 400,00 € por mês;
27. O arguido C não demonstrou qualquer arrependimento;
28. O arguido B, enquanto director do jornal, aufere 80.000$00;
29. O arguido B habita em casa própria, não tem viatura própria e não tem filhos;
30. Os arguidos não têm quaisquer antecedentes criminais.

Não se provou a seguinte factualidade:
1. Que o jornal «…» é de publicação quinzenal;
2. Que o arguido B sabia que o artigo era ofensivo do queixoso e que apesar de tal facto não impediu a sua publicação, conformando-se com ela, sendo certo que sabia que era seu dever impedir a publicação de tal artigo;
3. Que o arguido B sabia que a sua conduta não permitida por lei, sendo por esta punida;
4. Que a publicação do artigo e a sua qualificação como caloteiro trouxeram ao assistente inconvenientes para a sua vida de negócios;
5. Que o assistente viu a sua imagem na…, bem como em …e…, totalmente denegrida.

Motivação da decisão de facto:
Para prova da factualidade dada como provada, o tribunal alicerçou a sua convicção com base na conjugação critica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como nos documentos juntos aos autos.
Assim, e desde logo, o tribunal assentou a sua convicção:
- no exemplar do jornal «… », junto a fls. 5, onde se lê, na página 8, um artigo intitulado «O que se passa em …», do qual faz parte integrante o texto transcrito no ponto n.º 6 dos mesmos, e de onde resulta, lendo-o na integralidade, o facto dado como assente no ponto n.º 5;
- nas declarações de ambos os arguidos, no que se refere ao facto do artigo ter sido escrito pelo arguido C (aliás, o seu nome encontra-se, desde logo, aposto no fim do artigo), com conhecimento do arguido B, director do jornal;
- nas declarações do arguido B que, com credibilidade e relevância para a decisão da causa, referiu que o arguido C, à altura dos factos, era colaborador do «…», jornal de que aquele é director, e que o artigo em causa foi da total responsabilidade deste (C), uma vez que era um artigo de opinião assinado pelo mesmo. Por outro lado, também referiu que, quanto a este tipo de artigos, o declarante apenas se limita a verificar se os mesmos contêm quaisquer erros ortográficos, respeitando a opinião que neles é expressa pelos seus autores. Também referiu este arguido, com credibilidade e conhecimento de causa, que o jornal «…» é distribuído em todo o concelho de…, sendo certo que na localidade de … são distribuídos entre 400 a 500 exemplares. As declarações deste arguido ainda relevaram para a prova das suas condições pessoais;
- nas declarações do assistente que, apesar de interessado directo na causa, se mostraram sinceras e credíveis, tendo afirmado que exerce as funções de presidente do Clube Recreativo de … desde 1995, único clube existente na localidade de…, e que, nas últimas eleições autárquicas, apoiou E à Câmara Municipal de forma pública, tendo, inclusivamente, sido publicada uma fotografia num jornal em que o mesmo figurava junto de tal candidato num jantar que este organizou de apoio àquele. Contrariamente, a oposição do assistente relativamente a D ficou expresso em sessões públicas de assembleias municipais e de reuniões de câmara, onde aquele defendia o interesse do seu clube, sendo certo que, 4 anos antes, o tinha apoiado na candidatura à referida edilidade. Referiu também que o arguido C tinha conhecimento destes factos, pois o mesmo aparecia em algumas das referidas reuniões, conversando muito consigo (aliás, o próprio arguido C referiu em julgamento que estes factos eram do seu conhecimento). Mais referiu o assistente, também com credibilidade, que em todo o concelho de … não existe mais nenhum clube em que o presidente tivesse apoiado o candidato E à Câmara Municipal e que, 4 anos antes, tivesse apoiado o candidato D, razão pela qual ele é o visado no artigo publicado. Na verdade, perguntado sobre cada um dos restantes clubes e associações existentes no concelho (e que constam do documento de fls. 92), o assistente referiu, de forma pormenorizada, que os diversos presidentes ou não tinham qualquer conotação política assumida publicamente, ou os clubes não estavam em actividade há vários anos, ou que os mesmos não recebiam quaisquer apoios financeiros da Câmara (referindo-se ao facto de no artigo escrito pelo arguido mencionar-se a entrega de verbas para o clube), ou, ainda, que os seus presidentes estariam conotados com o candidato D (como era o caso do Clube Recreativo da …). Mais declarou o assistente que, pelo facto de ser presidente do Clube Recreativo de … e em virtude da sua actividade comercial (referindo que tem um bar em … e um restaurante em…, sendo certo que compra e vende propriedades e constrói edifícios), é muito conhecido no concelho, tendo sido confrontado por vários amigos e conhecidos que lhe perguntaram sobre a razão de ser da expressão «caloteiro» no tal artigo no jornal, incluindo por um dos seus filhos;
- nas declarações da testemunha F que, sendo amigo do assistente, declarou com credibilidade, que o único clube existente na localidade de … é aquele ao qual o assistente preside, sendo certo que era do conhecimento público que este apoiou 4 anos antes o candidato D à Câmara Municipal e que, agora, apoiava o candidato E (tendo mesmo assistido a alguns comícios deste último em que o assistente estava presente). Aliás, esta testemunha também referiu que, de entre todos os presidentes de clubes existentes no concelho, apenas o assistente apoiou publicamente o candidato E, tendo apoiado também publicamente o candidato D 4 anos antes, razão pela qual o artigo publicado visava atingir o assistente na sua honra e consideração. Perguntado, igualmente, sobre os restantes clubes e associações do concelho, esta testemunha, demonstrando conhecimento de causa, referiu o que já tinha sido declarado pelo assistente. Mais declarou de relevante para a causa que a publicação do referido artigo no jornal, foi o tema principal de conversa entre as pessoas da …, nomeadamente, em cafés, sendo que todas se referiam ao assistente como sendo o visado em tal artigo. Referiu também que, tendo conversado com o assistente, constatou que este ficou muito incomodado com tal publicação. Por outro lado, declarou ainda que o assistente é muito conhecido no concelho, devido, principalmente, ao facto de ser presidente do Clube Recreativo de …;
- nas declarações da testemunha G que, apesar de irmão do assistente, demonstrou isenção e credibilidade ao referir que ao ler o artigo em causa associou-o imediatamente ao seu irmão, uma vez que na … apenas existe um clube, sendo este presidido pelo assistente. Mais referiu que o assistente ficou indignado e muito abatido com tal publicação, tendo-lhe causado inúmeros incómodos, inclusivamente a nível familiar. Por outro lado, também declarou que o assunto foi comentado em vários locais durante vários dias, pois o seu irmão é uma pessoa muito conhecida no concelho. Por último, perguntado igualmente sobre os outros clubes e associações do concelho, esta testemunha respondeu no mesmo sentido que o assistente e que a testemunha F, referindo que nenhum outro presidente de clube ou associação do concelho, para além do assistente, apoiou publicamente E à Câmara Municipal após ter apoiado D 4 anos antes;
- nas declarações da testemunha H, amigo do assistente, que foi também convincente ao referir que presenciou o facto do artigo publicado ter sido muito comentado em cafés da …, tendo demonstrado muita convicção ao referir que o mesmo se referia ao assistente, pois este foi o único presidente de um clube do concelho a apoiar o candidato E após ter apoiado D 4 anos antes. Mais referiu que, após ter confrontado o assistente com tal situação, este se mostrou bastante incomodado com a publicação de tal artigo;
- nas declarações da testemunha I, amigo do assistente, que depôs com isenção, relatando os mesmo factos que a testemunha anterior;
- nas declarações do arguido C que, pelas respostas evasivas sobre quem é que visava no artigo que escreveu, deixou no tribunal a plena convicção de que queria referir-se, efectivamente, ao assistente com o propósito de o ofender na sua honra e consideração. Na verdade, o arguido escusou-se sempre a dizer a quem é que se referia no artigo publicado, invocando que se não o fez no artigo, também o não fazia em tribunal. Por outro lado, o arguido não soube esclarecer o tribunal sobre o facto de ter aludido no artigo a alguém que conhecia, que era presidente de um clube no concelho e que tinha sido das poucas pessoas que tinha apoiado agora E quando, há 4 anos, tinha apoiado D, quando, perguntado sobre outros presidentes de clubes ou associações do concelho que conhecesse pessoalmente (pois no artigo diz «um conhecido meu...»), o mesmo apenas soube referir que conhecia a presidente do Clube … e o presidente do Clube Desportivo do …, mas que a primeira apoiou E desconhecendo se tinha apoiado antes D, e que, do segundo, não conhecia as suas conotações políticas. Corroborando esta convicção, o arguido declarou que sabia que o assistente tinha estado num jantar de apoio a E, tal como sabia que ele tinha apoiado a candidatura de D há 4 anos. Acrescente-se também o facto de que o arguido, perguntado sobre se mantinha hoje o que escreveu, respondeu afirmativamente, dizendo que a pessoa que disse ser caloteira é mesmo caloteira, sendo certo que perguntado sobre a razão das testemunhas ouvidas em julgamento terem identificado imediatamente o assistente quando leram o artigo, o mesmo referiu que as mesmas são amigas daquele e que, por isso, o conhecem como uma pessoa que «muda de casaca politicamente» e como caloteiro, como, aliás, ele próprio também considera. E para demonstração de tal afirmação, o arguido exibiu o cheque junto aos autos a fls. 102, dizendo que o mesmo foi emitido e entregue pelo assistente a seu pai, e que foi devolvido por falta de provisão, sem, no entanto, nada se ter apurado quanto à relação subjacente relativa a tal cheque ou mesmo quanto ao facto de ter sido realmente emitido e entregue pelo assistente. Por fim, cabe apenas referir que as declarações do arguido C fizeram fé em juízo quanto às suas condições pessoais;
- no teor do documento de fls. fls. 40 e 41, e no cheque junto a fls. 102;
- nos certificados de registo criminal de fls. 110 e 111 quanto à ausência de antecedentes criminais dos arguidos;
Quanto aos factos não provados, os mesmos ficaram a dever-se ao facto da prova produzida em audiência de julgamento não ter permitido concluir pelos mesmos.
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Exposta a matéria de facto provada e a considerada não provada bem como a respectiva justificação, vejamos qual a resposta a dar às questões pelo recorrente suscitadas nas conclusões que extrai da motivação do recurso pois que, de harmonia com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, são elas que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum.
Liminarmente, porém, há que decidir a questão prévia da rejeição do recurso, no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, suscitada pelo Ex.º Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação, por incumprimento do ónus de especificação estabelecido no n.ºs 3 e 4 do artº 412º do CPP, entendimento esse que viria a ser acolhido pelo relator, no despacho preliminar a que alude o artº 417º, n.º 3 do mesmo Cód.

II-b) Nas conclusões que extrai da motivação do recurso, além de suscitar questões de direito, insurge-se o recorrente contra a decisão sobre a matéria de facto.
Além do reexame da matéria de direito, o recurso visa, pois, a reapreciação da matéria de facto.
E tendo as declarações oralmente prestadas na audiência sido documentadas na acta respectiva, poderia (deveria) a Relação conhecer de facto (artº 428º do CPP).
Prescreve, porém, o n.º 3 do artº 412º do CPP: “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de factos que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
Acrescenta o n.º 4 do mesmo artº que, tendo as provas sido gravadas, “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição”.
Impugnando a decisão proferida sobre matéria de facto tinha, pois, o Recorrente de cumprir as exigências estabelecidas nos n.ºs 3 e 4 do cit. artº 412º.
Ora as conclusões com que o Recorrente encerra a motivação do recurso são omissas quanto às indicações exigidas nos n.ºs 3 e 4 daquele artº.
E se a lei comina com a rejeição do recurso o incumprimento do ónus de especificação das normas jurídicas violadas e demais menções contidas no n.º 2 do cit. artº 412º (embora, neste caso, deva ser facultada a oportunidade de suprir tal deficiência), não faria sentido que, no silêncio da lei, a inobservância das regras contidas nos n.ºs 3 e 4 do mesmo artº - que impõem ao recorrente o apontado ónus, maxime, o de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados - acarretasse sanção menos severa.
Versando esta questão, escreve Augusto Tolda Pinto [1] : “Depreende-se que as formalidades da motivação que verse matéria de facto são menos exigentes, mas, a não serem cumpridas, deverá ter lugar a aplicação do disposto no artº 417º, n.º 3, al. a) - exame preliminar e existência de circunstância que obsta ao conhecimento do recurso - devendo este ser rejeitado por falta de motivação, constituindo, assim, esse dispositivo legal uma “norma disciplinadora” [2] .
Não questionamos que o incumprimento do ónus de especificação imposto nos n.ºs 3 e 4 do artº 412º determina a rejeição do recurso (no que concerne à matéria de facto). Discordamos, porém, que o fundamento da rejeição seja a falta de motivação.
Por outras palavras: entendemos que a omissão das especificações exigidas nos n.ºs 3 e 4 do cit artº 412º gera a rejeição do recurso - não por falta de motivação - mas por manifesta improcedência do recurso (artº 420º, n.º1 do CPP).
Efectivamente, insurgindo-se o recorrente contra a decisão sobre a matéria de facto, mas não cumprindo o ónus imposto nos n.ºs 3 e 4 daquele artº, o tribunal de recurso fica sem saber qual o objecto do recurso e a concreta pretensão do recorrente, no que concerne à matéria de facto, o que inviabiliza a apreciação do recurso, impondo-se, por isso, concluir pela sua manifesta improcedência.
Os tão falados princípios da “igualdade de armas” e de “lealdade processual”, dominantes num processo contraditório, corroboram este entendimento.
Na resposta ao parecer emitido pelo MP, ao abrigo do disposto no artº 416º do CPP, argumenta o arguido, em substância, acerca da suscitada questão prévia da rejeição do recurso, que, “não tendo [...] fundamentado o recurso no depoimento das testemunhas, não há que efectuar qualquer referência aos suportes técnicos nem há lugar à transcrição dos autos”.
Ainda que tal entendimento fosse de acolher (o que, aliás, diga-se entre parênteses, não repugnaria), o recorrente teria omitido a especificação a que alude a al.a) do n.º 3 do cit. art.º 412º

II-c) Admitindo, por necessidade de raciocínio, que alguma flexibilidade nesta matéria se consente (o que, aliás, diga-se entre parênteses, uma vez mais, não repugnaria, in casu, o recurso (na parte respeitante à matéria de facto) estaria condenado ao insucesso, por outra razão (daí a inutilidade de ponderar a hipótese de convite ao aperfeiçoamento).
Com efeito, para dar como provada a factualidade descrita no respectivo elenco (a qual determinou a condenação do Arguido/Recorrente pelo crime, na pena e no montante indemnizatório supra-referidos), louvou o tribunal a quo a sua convicção nos meios de prova indicados na motivação da decisão de facto, supra transcrita, ou seja, “na conjugação crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como nos documentos juntos aos autos” - e não apenas no artigo em questão publicado no jornal “…”, no qual (e apenas nele) o recorrente alicerça o seu ataque à decisão sobre a matéria de facto, deixando incólumes os restantes meios de prova em que o tribunal a quo alicerçou a sua convicção.
Concretamente, para concluir que a pessoa visada no artigo em causa é o assistente, estribou-se o tribunal a quo nas declarações do assistente “que, apesar de interessado directo na causa, se mostraram sinceras e credíveis [...]”; nas declarações da testemunha F que, sendo amigo do assistente, declarou com credibilidade [...]; nas declarações da testemunha G “que, apesar de irmão do assistente, demonstrou isenção e credibilidade ao referir [...]”; nas declarações da testemunha H, “amigo do assistente, que foi também convincente ao referir [...]”; nas declarações da testemunha I, “amigo do assistente, que depôs com isenção, relatando os mesmo factos que a testemunha anterior”[...]; no teor do doc. de fls. 40/41; no cheque junto a fls. 102, exibido pelo arguido/recorrente, no decurso da audiência de julgamento, referido na motivação da decisão sobre a matéria de facto e no ponto 20 da factualidade provada; e, finalmente, nas próprias declarações do arguido C “que, pelas respostas evasivas sobre quem é que visava no artigo que escreveu, deixou no tribunal a plena convicção de que queria referir-se, efectivamente, ao assistente com o propósito de o ofender na sua honra e consideração [...]. Perguntado sobre se mantinha hoje o que escreveu, respondeu afirmativamente, dizendo que a pessoa que disse ser caloteira é mesmo caloteira, sendo certo que perguntado sobre a razão das testemunhas ouvidas em julgamento terem identificado imediatamente o assistente quando leram o artigo, o mesmo referiu que as mesmas são amigas daquele e que, por isso, o conhecem como uma pessoa que «muda de casaca politicamente» e como caloteiro, como, aliás, ele próprio também considera. E para demonstração de tal afirmação, o arguido exibiu o cheque junto aos autos a fls. 102, dizendo que o mesmo foi emitido e entregue pelo assistente a seu pai, e que foi devolvido por falta de provisão, sem, no entanto, nada se ter apurado quanto à relação subjacente relativa a tal cheque ou mesmo quanto ao facto de ter sido realmente emitido e entregue pelo assistente [...].”
Ora, o recorrente centra o seu ataque à decisão sobre a matéria de facto exclusivamente ancorado na interpretação do artigo em questão, deixando incólumes os restantes meios de prova em que o tribunal a quo louvou a sua convicção, indicados na fundamentação da sentença recorrida; o mesmo é dizer que o recorrente se furta a discutir a matéria de facto que considera incorrectamente decidida, no âmbito daqueles meios - que lhe são manifestamente desfavoráveis - transferindo a discussão para o terreno - que, supostamente, lhe seria favorável - da análise daquele artigo.
Mas que melhor meio de prova que os depoimentos das pessoas que directa (ou seja, aquelas que o leram) ou indirectamente (aquelas que dele tiveram conhecimento através de outras pessoas), tomaram conhecimento do artigo permite concluir se a pessoa visada no artigo com a expressão “caloteiro” era o assistente?
Por maior que seja o esforço do intérprete no sentido da objectividade, nunca o conseguirá plenamente; em maior ou menor dose, estará sempre presente uma réstia de subjectividade. Nada, pois, mais seguro que perguntar às pessoas que leram o artigo se identificaram o visado no artigo em questão, porquê e se o identificaram facilmente ou não.
Ora, como flui claramente dos seus depoimentos, o assistente e as testemunhas (que integram o círculo de relações sociais daquele) identificaram imediatamente o assistente como sendo o visado no artigo em causa, com a expressão “caloteiro”. E a razão de ciência invocada (constante da motivação da decisão sobre a matéria de facto, supra transcrita) não deixa margem para dúvidas de que da simples leitura do artigo facilmente se retira essa conclusão.
E - sublinhe-se - o próprio arguido C “pelas respostas evasivas sobre quem é que visava no artigo que escreveu, deixou no tribunal a plena convicção de que queria referir-se, efectivamente, ao assistente com o propósito de o ofender na sua honra e consideração [...] sendo certo que perguntado sobre a razão das testemunhas ouvidas em julgamento terem identificado imediatamente o assistente quando leram o artigo, o mesmo referiu que as mesmas são amigas daquele e que, por isso, o conhecem como uma pessoa que «muda de casaca politicamente» e como caloteiro, como, aliás, ele próprio também considera. E para demonstração de tal afirmação, o arguido exibiu o cheque junto aos autos a fls. 102, dizendo que o mesmo foi emitido e entregue pelo assistente a seu pai, e que foi devolvido por falta de provisão [...].”
Por outro lado, insurgindo-se contra a decisão sobre a matéria de facto - exclusivamente ancorado na análise do texto do artigo em questão, repete-se, desprezando completamente as suas próprias declarações, as declarações do assistente e o depoimento das testemunhas de acusação - o recorrente impugna, na realidade, a convicção do tribunal a quo, fazendo tábua rasa do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 127º do CPP, princípio este ao qual estão, de todo em todo, submetidas as declarações das testemunhas, do assistente, das partes civis e do arguido [3] .
Por força do princípio da livre apreciação da prova - não estando em causa, como, in casu, não está, prova tarifada ou legal - o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova é insindicável pelo tribunal de recurso, havendo apenas que indagar se é contrariado pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica. Não se mostrando (como, no caso vertente, não se mostra) que, de harmonia com tais critérios, seja arbitrária, infundada ou manifestamente errónea, prevalece, nos termos do cit. artº 127º, sendo irrelevante a visão pessoal com que o recorrente ou outros intervenientes processuais tenham ficado.
Face ao aludido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal não tem de formar a sua convicção a partir do depoimento desta ou daquela testemunha ou atribuir maior credibilidade ao depoimento desta ou daquela testemunha. Ao invés, o juiz é livre de louvar a sua convicção no depoimento desta ou daquela testemunha, no depoimento de uma testemunha em desfavor de várias testemunhas cujos depoimentos sejam contrários, no depoimento do assistente em desfavor de testemunhos contrários, inclusive do arguido. Ponto é que a prova produzida não seja arbitrária, discricionária ou caprichosamente valorada, de todo em todo imotivável.
E porque ao perseguir, através da livre apreciação da prova, a verdade material - que, como todas as normas da vida, não tem carácter absoluto, sofrendo os limites impostos pela necessidade de convivência com outros princípios, o mesmo é dizer que a verdade que se persegue no processo penal é, como escreve o Prof. Figueiredo Dias, [4] “uma verdade que, não sendo «absoluta» ou «ontológica», há-de ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida - e porque ao perseguir, através da livre apreciação da prova, a verdade material, dizíamos, o juiz deve obediência a regras de experiência comum e da lógica do homem médio, a norma do artº 127º do CPP está a salvo de qualquer juízo de inconstitucionalidade. [5]
E não se perca de vista, por outro lado, que é na audiência de julgamento na 1ª instância que se realiza em toda a sua plenitude o princípio da imediação da prova, aqui intervindo elementos que se recusam a ser racionalmente explicados (v.g., a credibilidade atribuída a um determinado meio de prova).

II-d) Quanto à carga objectivamente ofensiva da honra e consideração que a expressão “caloteiro” encerra dir-se-á que - se dúvidas houvesse - elas seriam dissipadas pelas declarações do próprio arguido, acima transcritas, pelas fontes por ele invocadas (Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Oliveira e Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira) e até por argumentos por ele aduzidos na motivação do recurso.
Na verdade, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira fornece a seguinte definição de caloteiro: “Aquele que prega calotes, que não paga o que deve”.
Segundo Cândido de Figueiredo (Dicionário da Língua Portuguesa, volume I), caloteiro é “Aquele que caloteia.” Calotear significa “não pagar o que se deve [...] Fazer calote ” e calote, “dívida que se não pagou ou que se contrai sem tenção de a pagar.”
Argumenta o arguido que “os próprios advogados, falam dos calotes dos seus escritórios. Trata-se de uma palavra comum, que no seu uso significa que alguém não paga o que deve.”
E, interrogando-se sobre se “imputar uma dívida (calote) a terceiro, será difamação”, responde que não, invocando em abono da sua tese o Ac. desta Relação, de 2JUL96, publicado in C. J., 1996, t. 4, p. 295, de cujo sumário sublinha o seguinte trecho: “Assim, quem se reclame credor de outrem, e lhe atribua uma determinada dívida não está necessariamente, só por isso, a difamá-lo ou a injuriá-lo; para tanto era necessário que, com esse comportamento, visasse pôr em causa a dignidade, a honra ou a consideração devida a essa pessoa.”
Por mais que o arguido se esforce por despir a expressão “caloteiro” do seu significado pejorativo, não o consegue.
Com efeito, será, porventura, sustentável que a expressão em causa não envolve um juízo lesivo da honra e consideração devidas a qualquer pessoa?
Não hesitamos em responder negativamente, isto é, em afirmar que o vocábulo “caloteiro” se reveste de carácter inequívoca e objectivamente ofensivo da honra e consideração devidas a qualquer pessoa.
“A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ter um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral.
A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos, de o não julgar um valor negativo” [6]
Ora, mesmo numa sociedade, como a nossa, que atravessa uma grave crise de valores morais, dizer que alguém é caloteiro ou, para usar as palavras do arguido, dizer que “alguém não paga o que deve”, é imputar-lhe um comportamento eticamente reprovável.
Salvo o devido respeito, é patente o vício de que enferma o raciocínio do arguido, que a “arte de bem pensar”, na expressão dos filósofos de Port-Royal, designa por ignorância da questão.
É que “caloteiro” não significa, como se viu, “imputar uma dívida [...] a terceiro”, como pretende o arguido, ou reclamar-se “credor de outrem”, como se diz no acórdão por ele invocado, mas pregar calotes, calotear, o que é bem diferente.
Imputar a alguém uma dívida não envolve, explícita ou implicitamente, um juízo de valor ético-social susceptível de beliscar o bom nome, a honra ou a dignidade de quem quer que seja. Poderá ser desagradável, mas nada tem de desonroso pois que a contracção de dívidas, só por si, é um facto corrente e socialmente indiferente. Reclamar o pagamento de uma dívida, judicial ou extra-judicialmente, é um direito que a lei confere ao credor. Só que o arguido não se limitou a imputar uma dívida ao assistente ou a exigir-lhe o respectivo pagamento, como flui do artigo em questão e das declarações que prestou em audiência; foi mais além: rotulou-o de caloteiro, expressão que, tendo o significado que atrás lhe foi assinalado, supõe habitualidade de pregar calotes ou de contrair dívidas sem intenção de as pagar como, aliás, decorre do sufixo nominal “eiro” [calot(e)+eiro], que designa aptidão, profissão [7] .
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa[8] dá-nos a seguinte definição de calote (informal): “Dívida não paga, ou contraída por quem não tinha a intenção de a pagar”; (por extensão): “Logro, burla, trapaça.” Ao vocábulo “caloteiro” atribui o seguinte significado (informal): “Que ou aquele que não paga conta(s) ou dívida(s), especialmente quando de forma proposital ou sistemática; (por extensão):”Diz-se de ou indivíduo enganador, malandro, que vive de expedientes.” Considera ainda “caloteiro” sinónimo de “trapaceiro”.
Na definição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa [9] , “caloteiro” é a “pessoa que contrai dívidas sem intenção de as pagar; pessoa que caloteia, que prega calotes.”
Elucidativo é também o exemplo de como usar a palavra caloteiro naquela acepção, extraído de Urbano Tavares Rodrigues, Insubmissos, p. 266): “Era um caloteiro inveterado e já nem se envergonhava disso.” «Não, não tinha esse direito, com mulher e três filhos à beira da miséria, ele próprio não muito longe de lhe chamarem “crava” ou “caloteiro”, ele que sempre tivera, sempre, sempre!, um nome honrado».
No sentido de que “o emprego das expressões caloteiro e vigarista é facto ofensivo do direito ao bom nome, sendo susceptível de causar à pessoa visada danos, pelo menos não patrimoniais, merecedores da tutela do direito por via da correspondente indemnização”, decidiu o Ac.da RL, de 5MAR96, in www.dgsi.pt.
Impõe-se, pois, concluir que o vocábulo “caloteiro” é ofensivo da honra e consideração devidas ao assistente.
E, arquitecto de profissão, colaborador em dois jornais, dedicando-se, entre outras actividades, à escrita de artigos de opinião no jornal “…”, não é minimamente defensável que o arguido/recorrente desconhecesse o significado corrente daquele vocábulo.

II-e) Alega ainda o arguido/recorrente que, nos termos dos artºs 1°, al. c ), 2°, 3° e ss. do DL 61/99, de 2 de MAR, a prova de que o assistente se dedica à construção de edifícios, só poderia ser feita por junção ou exibição do certificado comprovativo de que o assistente se encontra registado como tal, sendo portador de certificado de classificação de industrial de construção civil válido, emitido pelo IMOPPI, o que não foi feito.
Também a prova de que o assistente se dedica à compra de propriedades para revenda (mediação imobiliária), teria, igualmente, de ser feita documentalmente, nos termos do DL n.º 77/99, de 16MAR, esclarecimento este aditado na resposta ao parecer do MP nesta Relação.
Não colhe tal argumentação.
Efectivamente o cit. n.º DL 61/99 define as condições de acesso e permanência na actividade de empreiteiro de obras públicas e industrial de construção civil, nada estabelecendo quanto à prova do exercício dessas actividades.
Por sua vez, o DL n.º 77/99 limita-se a regular o exercício da actividade de mediação imobiliária.
Daí que a prova do exercício de tais actividades possa ser feita por qualquer meio não proibido por lei e seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (artºs 125º e 127º, ambos do CPP).
Aliás, em processo penal a prova documental nunca é obrigatória, como se deduz do confronto dos artºs 151º e 164º do mesmo Cód. [10]
Face ao exposto e não vindo assacado à sentença recorrida nenhum dos vícios a que alude o artº 410º, n.º 2 do CPP, nem se divisando que a mesma enferme de qualquer um desses vícios ou outro de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada e a considerada como não provada pelo tribunal a quo, supra descritas.

II-f) Decidido o recurso no que tange à matéria de facto, debrucemo-nos de seguida sobre a última das questões suscitadas pela recorrente.
Na tese, aliás douta, do recorrente a sua conduta integra a causa de justificação prevista no n.º 2 do cit. artº 180º, que reza assim: “A conduta não é punível quando:
    a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
    b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.”

Sob a epígrafe “Liberdade de expressão e de informação”, a Lei Fundamental proclama no art. 37º, n.º 1 o direito que a todos é conferido “de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.
Na vertente de “direito de informação”, o direito de informar “consiste, desde logo, na liberdade de transmitir ou comunicar informações a outrem, de as difundir sem impedimentos”, direito que, na sua actuação positiva, implica o “direito a meios para informar” [11] .
No seu art. 38º, a Constituição da República consagra igualmente, de forma expressa, a liberdade de imprensa, modo de ser qualificado, quer da liberdade de expressão, quer do direito de informar, no dizer de G. Canotilho e V. Moreira [12] .
A “liberdade de expressão” configura-se como “direito matricial em relação quer à liberdade de informação quer à liberdade de imprensa, na medida em que todo o regime constitucional do primeiro se projecta nos outros dois” [13]
O direito de liberdade de expressão e de informação não é, porém, um direito absoluto, isto é, um direito que não possa sofrer quaisquer limitações, como se infere do cit. art.º 37º, n.º 3.
Efectivamente, a entender-se que tal direito era absoluto, no sentido assinalado, afastada estava, à partida, a possibilidade de previsão de infracções cometidas no exercício de tal direito, infracções essas que aquela disposição constitucional submete aos princípios gerais de direito criminal (ou do ilícito de mera ordenação social, após a quarta revisão constitucional), entendendo-se por princípios gerais de direito criminal “não só os princípios jurídico-constitucionais penais, mas aqueles que presidem à teoria geral das infracções e das penas”, como se escreveu no Ac. da Comissão Constitucional n.º 175, de 8JAN80 [14] (aliás, diga-se entre parêntesis, que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, emergente da Revolução Francesa de 1789, votada pela Assembleia Constituinte, em 26AGO do mesmo ano, que formalmente consagrou “a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões” - e que é a matriz ordenadora, no que tange às liberdades de expressão e de imprensa, de diversos sistemas jurídicos, maxime europeus e de documentos de direito internacional relativos aos denominados “direitos da pessoa humana” como, v.g., a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 10º, n.ºs. 1 e 2) e o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (art.º 192º n.ºs. 1 e 2), ambos aplicáveis no nosso País (Leis n.ºs 65/78, de 13OUT e 29/78, de 12JUN, respectivamente) - não deixou desde logo, de prever a responsabilização dos cidadãos pelos abusos da liberdade de falar, escrever e imprimir livremente).
O que a Constituição da República Portuguesa não consente é a colocação de quaisquer entraves ao exercício do referido direito, se não se excederem os limites por ela própria pressupostos [15] .
Não há direitos absolutos ou ilimitadamente elásticos, como diz Jorge Miranda [16] .
Pelo contrário, a todos têm de ser impostos limites, ditados pela função que lhes é assinalada e pela necessidade de convivência com outros direitos.
O direito de informar não existe a se: a sua existência é uma exigência do direito (do público) a ser informado.
Vale isto por dizer que o direito de liberdade de expressão e informação não pode postergar outros direitos a que a Lei Fundamental confere igualmente dignidade constitucional, entre estes se contando, nomeadamente (para nos cingirmos, à questão suscitada no presente recurso, ora em análise), o direito à honra, constitucionalmente designado “direito ao bom nome e reputação” (artº. 26º, n.º 1) e o direito à integridade moral (art.º 25º).
A propósito do binómio liberdade de expressão (aliás, direito matricial em relação quer à liberdade de informação, quer à liberdade de imprensa, como se referiu) - direito à honra, teceu o Tribunal Constitucional as seguintes considerações, no Acórdão n.º 81/84 [17] :
“[...] A liberdade de expressão - como, de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem antes, limites imanentes. O seu domínio de protecção para ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional [18]
Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana (v.g., o direito à integridade moral - artº 25º, n.º 1, e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar - art. 26º, n.º 1), haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização.
Dizer isto é reconhecer que, sendo proibida toda a forma de censura (art. 37º, n.º 2), é, no entanto, lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão [...].
O art.º 37º aponta, segundo cremos, no sentido de que se não devem permitir limitações à liberdade de expressão para além das que forem necessárias à convivência com outros direitos, nem impor sanções que não sejam requeridas pela necessidade de proteger os bens jurídicos que, em geral, se acham a coberto da tutela penal. Mas não impede que o legislador organize a tutela desses bens jurídicos lançando mão de sanções de outra natureza (civis, disciplinares...).
Como alcançar concretamente o ponto óptimo da dialéctica “direito à honra” - “direito de informação”, exigido pelo princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculativo em matéria de restrição de direitos fundamentais?
Escrevendo sobre o conflito “teoricamente inevitável e praticamente frequente” entre o “direito à honra” e o “direito de informação, face ao normativo do n.º 3 do cit. art. 37º, observa o Prof. Figueiredo Dias [19] que, “para este conflito abre a própria Constituição uma via de solução ao reconhecer expressamente a existência de limites” ao segundo daqueles direitos, assim se compreendendo a possibilidade de se desenhar a verificação de crimes de injúria ou de difamação. Todavia, para evitar que, por força da tutela jurídico-penal, o cerne da liberdade de expressão e de informação e da própria liberdade de imprensa (cujos núcleos essenciais devem ser salvaguardados) não fique irremediavelmente afectado, “necessário se torna fazer recuar a tutela jurídico-penal da honra, introduzindo-lhe as limitações indispensáveis à conservação do núcleo essencial do direito de informação, maxime, no que fica ao livre exercício da função pública da imprensa”.
A via para realizar concretamente este desiderato não poderá, porém, assentar na consideração de que “nos crimes contra a honra se revelam aumentadas as exigências no que toca à afirmação do tipo subjectivo nem numa outra regulamentação da prova da verdade dos factos narrados na imprensa.
Arrancando destes parâmetros, opina Figueiredo Dias que a resolução do problema terá de encontrar-se no próprio exercício do direito fundamental de informação, ou seja, “o exercício do direito jurídico-constitucional de informação há-de valer como aquele exercício de um direito que [...] o CP [cfr. art. 31º, n.º 1 b)] considera que justifica o facto”.
Por outro lado, “o direito de informação ligado à função pública da imprensa, como causa justificativa da ofensa à honra, define-se decerto, antes de mais, pelo seu conteúdo, mas também pelas condições concretas do seu exercício”.
Daí que, para a concreta justificação pelo exercício do direito de informação, se exija que a ofensa à honra se revele como meio adequado e razoável de cumprimento da função pública da imprensa (formar democrática e pluralisticamente a opinião pública nos domínios social, político, económico e cultural); que, por isso mesmo, o meio utilizado não só não seja excessivo, como se revele “o menos pesado possível para a honra do atingido, podendo qualquer «excesso» ser “suficiente para empurrar a conduta para o âmbito do ilícito” (requisito de continência na ofensa à honra pela imprensa, de que fala a doutrina italiana); que se prove que “a imprensa tenha actuado com o animus ou a intenção (ao menos imanente) de cumprir a sua função pública e, assim, de exercer o seu direito-dever de informação; ou que ao menos não esteja em concreto excluído ter sido um tal cumprimento o motivo da sua actuação”; que a imputação consubstanciadora da ofensa à honra corresponda à verdade (ou que o agente, razoável e fundadamente, tenha acreditado na verdade da imputação, o que implica o cumprimento do dever de esclarecimento, de harmonia com as exigências derivadas das «leges artis» dos jornalistas), com o que se desenhará “um elemento subjectivo da causa justificativa, que deverá considerar-se inexistente, pelo menos, sempre que se verifique ter presidido à conduta uma intenção de difamar ou injuriar - a tanto se reduzindo o conteúdo útil que hoje poderá ainda atribuir-se à velha e [...] ultrapassada fórmula do dolo específico nos crimes contra a honra.”
Por último, no que concerne à prova da verdade dos factos, sustenta o Prof. Figueiredo Dias que a “verdade é [...] apenas um elemento, a par de outros, determinante da forma do exercício do direito de informação - sendo sempre, em definitivo, este direito e não aquela verdade que conforma a verdadeira causa justificativa.”

Analisemos o caso à luz dos princípios expostos, cuja exposição seguiu de muito perto o Ac. desta Relação, de 23JUN98 [20] , de que também foi relator o do presente acórdão.
Em abono da sua, aliás douta, tese argumenta o recorrente, em substância, que “há que indagar sempre se a ofensa foi publicada no exercício do direito e informação.
E para isso deve saber-se se no caso cumpre uma fundamentação pública, no sentido da imprensa como veículo da formação democrática e pluralista da opinião pública em matéria social, política, económica e cultural.
O arguido, no seu artigo, não agiu nos domínios do entretenimento, da satisfação da mera curiosidade do leitor, «da notícia de pura sensação», mas no âmbito da discussão política e de ideias, tentando não só apoiar uma candidatura, mas visando debilitar a credibilidade do outro candidato e seus apoiantes.
Mesmo que fosse o assistente o visado, que apenas se aceita como argumentação, é próprio estado das pessoas públicas que leva à concentração da atenção popular, em tudo o que fazem e dizem.
Relativamente a outras pessoas públicas, é o modo particular de viver a profissão exercida, por força da qual se tomaram personalidades de interesse público, a exigirem que façam da respectiva intimidade uma espécie de «imagem de marca».
No tocante a individualidades notórias a colectividade tem interesse em conhecer-lhes a vida privada e as peculiaridades que esta apresenta na sua vida bem como o seu comportamento, e porque o legislador terá considerado legítimo tal interesse em virtude de se tratar de personagens que, consciente ou inconscientemente, se expõem à publicidade.
[...]
O artigo trata de questões políticas de interesse público para o concelho de …, que haviam suscitado numerosas e apaixonadas discussões sobre a candidatura de um tão conhecido eurodeputado a um concelho como …, e a participação das pessoas e apoiantes dessa candidatura.
As expressões impugnadas tinham, portanto, como fundo uma discussão política anterior às eleições autárquicas de ….”

Não se questiona o interesse social do tema sobre que versa o artigo em causa (análise de uma das candidaturas à presidência da Câmara Municipal de … e do modo como o então presidente da mesma Câmara vinha desempenhando o cargo), em cujo contexto o assistente foi apodado de caloteiro.
Não se divisa, porém, que interesse legítimo - privado ou público - o arguido/recorrente visasse realizar com a expressão “caloteiro”, dirigida ao assistente.
Da argumentação pelo recorrente expendida parece poder concluir-se que o “interesse público para o concelho de…” das “questões políticas” de que trata o artigo e a função da imprensa legitimariam a ofensa à honra e consideração do assistente, consubstanciada na expressão “caloteiro” a este dirigida.
Como se referiu, não há direitos absolutos ou ilimitadamente elásticos. Pelo contrário, a todos têm de ser impostos limites, ditados pela função que lhes é assinalada e pela necessidade de convivência com outros direitos.
Assim, o direito de liberdade de expressão e informação não pode postergar outros direitos a que a Lei Fundamental confere igualmente dignidade constitucional, entre estes se contando o direito à honra.
E, como também se disse, para a concreta justificação pelo exercício do direito de informação, exige-se, além do mais, que a ofensa à honra se revele como meio adequado e razoável de cumprimento da função pública da imprensa; que, por isso mesmo, o meio utilizado não só não seja excessivo, como se revele o menos pesado possível para a honra do atingido, podendo qualquer «excesso» ser suficiente para empurrar a conduta para o âmbito do ilícito; que se prove que a imprensa tenha actuado com o animus ou a intenção (ao menos imanente) de cumprir a sua função pública e, assim, de exercer o seu direito-dever de informação; ou que ao menos não esteja em concreto excluído ter sido um tal cumprimento o motivo da sua actuação.
Nunca o direito de informar poderá ser usado como pretexto para atentar contra a honra e consideração de quem quer que seja.
E sendo cumulativos os requisitos exigidos nas als. a) e b) do n.º 2 do artº 180º, tanto bastaria para se concluir pela improcedência da questão vertente.

II-g) Admitindo, uma vez mais, por necessidade de raciocínio - e só por necessidade de raciocínio se admite - que a imputação foi feita para realizar interesses legítimos, deverá ter-se como verdadeira, para os fins próprios do direito de informação, tal imputação?
Afigura-se-nos que a resposta não poderá deixar de ser negativa.
Para provar a verdade da imputação que fez ao assistente (ou seja, a de que é “caloteiro”), exibiu o arguido/recorrente, na audiência de julgamento, “um cheque assinado, emitido a J, com o n.º 4024107852, sob o Crédito Agrícola Mútuo, no valor de 60.000$00, com data de 26.02.95, pertencente à conta n.º …, em nome de A, devolvido por falta de provisão em 06.03.95.” (facto dado como provado sob o n.º 20 do respectivo acervo), “sem, no entanto, nada se ter apurado quanto à relação subjacente relativa a tal cheque ou mesmo quanto ao facto de ter sido realmente emitido e entregue pelo assistente”, como se refere na fundamentação da sentença recorrida.
Alega o recorrente, em síntese, que “basta que [...] tenha fundamento sério para em boa fé a reputar [a imputação] como verdadeira, não sendo necessário provar em absoluto a verdade da imputação.
[...]
Não foi levantada a questão da veracidade da assinatura, nem pela Crédito Agrícola Mútuo, nem pelo Banco de Portugal.
[...]
O arguido é arquitecto e não tem qualquer formação jurídica, como a maioria do nosso povo.
[...]
Para o arguido, em boa fé, reputava como verdadeira a afirmação de que o cheque, não tendo sido pago, a dívida existia.”
Como se referiu, o referido cheque, sem mais, não prova a existência de uma dívida.
E mesmo que a dívida existisse, daí não decorria que o assistente fosse caloteiro. Só por ociosidade iríamos repetir as considerações tecidas, a propósito do significado do vocábulo em questão.
Como também se disse, arquitecto de profissão, colaborador em dois jornais, dedicando-se, entre outras actividades, à escrita de artigos de opinião no jornal “…”, não é minimamente defensável que o arguido/recorrente desconhecesse o significado corrente daquele vocábulo.
Esgrime, uma vez mais, o recorrente o argumento da ignorância da questão: não está em causa saber se o arguido, “em boa fé, reputava como verdadeira a afirmação de que [...] a [hipotética] dívida existia”, mas se, “em boa fé, reputava como verdadeira a afirmação” de que o assistente é caloteiro.

Conclui-se, pois, que o arguido não tinha fundamento sério para, em boa-fé, reputar como verdadeira tal imputação, o que vale por dizer que não ocorre causa justificativa para apelidar o assistente de “caloteiro”, expressão lesiva da honra e consideração deste.

II-h) Mas, ainda que, por necessidade de raciocínio se admitisse a existência de uma “crença fundada na verdade”, por parte do arguido/recorrente, nem assim o exercício do direito de informação legitimaria, in casu, a ofensa à honra e consideração daquele assistente.
É que, como escreve J. M. Coutinho Ribeiro [21] , “para além da relevância social da notícia e da verdade, impõe-se ainda que a notícia seja dada de forma adequada, isto é, com contenção, moderação e urbanidade. Para que a ofensa à honra seja legítima no exercício do direito de informação, torna-se necessário que não ultrapasse o que é necessário ao cumprimento da função pública da imprensa. Isto é: a ofensa à honra, quando legitimada pelo interesse público ao conhecimento dos factos, deve ser a mínima necessária à sua divulgação.
Do que se diz, conclui-se que quando a imprensa age fora destes limites e ofende a honra ou a consideração das pessoas, nem sequer se coloca uma questão de conflito de direitos: estamos perante um não-direito por parte da imprensa.”
Ainda na linha de pensamento do Prof. Figueiredo Dias, salienta A. Rodrigues da Costa [22] que “[...] nem toda a verdade pode ser dita, isto é, pode justificar uma ofensa ao bom nome e reputação de uma pessoa. É que ela só é dizível, em termos de pôr em causa um bem jurídico da pessoa, quando, por seu turno, a imputação de um facto for requerida pelo próprio interesse público de informar” [23] .
Ora a expressão em causa, lesiva da honra e consideração do assistente, era desnecessária para o fim que o arguido visava com o artigo (“apoiar uma candidatura” à presidência da Câmara de … e “debilitar a credibilidade do outro candidato e seus apoiantes”, isto “no âmbito da discussão política e de ideias”, como refere o recorrente).
Impõe-se, pois, concluir que tal expressão, lesiva da honra e consideração do assistente, repete-se, não constitui “meio adequado e razoável de cumprimento da função pública da imprensa.”

III- Face ao exposto, na improcedência do recurso, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em oito UCs a taxa de justiça.
Honorários do ilustre Defensor oficioso nos termos do ponto 6 da tabela anexa à Portaria nº 150/2002, de 19FEV.

Évora, 9 de Dezembro de 2003.

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Manuel Nabais
Sérgio Poças
Orlando Afonso
Ferreira Neto




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[1] A Tramitação Processual Penal, p. 809.
[2] No sentido de que a omissão das especificações exigidas nas als. a), b) e c) do n.º 3 do artº 412º acarreta a não admissão ou a rejeição do recurso, pronuncia-se igualmente Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª ed., p. 737, e no sentido da rejeição do recurso, no tocante à matéria de facto, podem ver-se, entre muitos, os Acs. da RL, de 22NOV00 (Proc. n.º 0083183), RP, de 13FEV02 (Proc. 0111383), RL, de 17ABR02 (Proc. n.º 0025893), todos in “www.dgsi.pt”, cit. pelo Ex.º Procurador-Geral-Adjunto, e desta Relação, de 18DEZ02 (Proc. n.º 2526/02).
[3] No concernente à confissão do arguido dos factos que lhe são imputados, releva a fase processual e a forma da confissão para determinar os seus efeitos probatórios, muito embora seja sempre válido o princípio de que o valor probatório da confissão será sempre livremente apreciado pelo tribunal. É que, mesmo nos casos em que a lei atribui efeitos especiais à confissão integral e sem reservas, com a consequente dispensa de produção de outra prova, tal apenas sucede num momento posterior ao funcionamento do princípio da livre apreciação da confissão pelo tribunal para determinar se a mesma reveste ou não características de «confissão livre, integral e sem reservas», como diz o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, Pgs. 169/170).
[4] Direito Processual Penal, p. 194.
[5] Cfr. AC. do TC, de 19NOV96, in BMJ, 461-93.
[6] Beleza dos Santos, Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria, in RLJ, Ano 92, p. 166).
[7] Cfr. José Nunes de Figueiredo/António Gomes Ferreira, Compêndio de Gramática Portuguesa, p. 308.
[8] Círculo de Leitores, Lisboa, 2002, Tomo II, p. 748.
[9] Verbo, Vol. I, p. 642.
[10] Ac. do STJ, de 21MAI97, CJ/STJ, ano V, t. 2, p. 214.
[11] Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 225.
[12] Ob. cit., pág. 230.
[13] Leite Pinto, Liberdade de Imprensa e Vida Privada, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 54º, Abril de 1994, p. 54.
[14] In BMJ, 294-161
[15] G. Canotilho/Moreira, ob. cit., pág. 226.
[16] Manual de Direito Constitucional, IV, p. 157).
[17] DR, II Série, de 31JAN85.
[18] Neste sentido, J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pgs. 213 e ss.
[19] Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português, in RLJ, ano 115, n.º 3697, pgs. 100-106, 133-137 e 170-173.
[20] In CJ, 1998, t. III, p.287.
[21] A Nova Lei de Imprensa (Anotada) Face ao Novo Código Penal, p.19.
[22] A Liberdade de Imprensa e as Limitações Decorrentes da sua Função, in Revista do Ministério Público, n.º 37,1989, pg. 30.
[23] Cfr. também J. M. Valentim Peixe e Paulo Silva Fernandes, A Lei de Imprensa Comentada e Anotada, pgs. 85/86 e Acs. do ST J de 7OUT87 e 18FEV88, cit. e da RL, de 10OUT84, CJ, Ano IX, t.4, p.146.