Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
132/13.5TBABF-A.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
LEGITIMIDADE
SUCESSÃO MORTIS CAUSA
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - O preceituado no artigo 54º, nº 1, do CPC, constitui um desvio à regra geral da legitimidade para a ação executiva, podendo esta ser intentada por e contra pessoas que não figuram no título executivo, por, entretanto, ter ocorrido transmissão no direito ou na obrigação, quer inter vivos, quer mortis causa.
II – A redação daquele preceito não impõe a demonstração imediata da alegada sucessão no direito ou na obrigação, dado estabelecer que o exequente deduz no requerimento executivo os factos constitutivos da sucessão.
III - Se o legislador quisesse impor desde logo a demonstração da sucessão, seguramente não expressaria essa obrigação apenas pela palavra “deduz”, mas acrescentaria ainda uma outra com sentido equivalente a “demonstre”.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que AA, S.A. instaurou contra BB e CC, vieram os executados apresentar oposição à execução invocando, além do mais, a sua ilegitimidade, pois embora admitam serem os herdeiros do falecido DD, avalista da letra dada à execução, sustentam que a exequente deveria justificar a qualidade de herdeiros dos executados através do respetivo incidente de habilitação de herdeiros.
Em 15.06.2016, o Sr. Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Conforme o Tribunal explanou aquando da prolacção do despacho em 12/1/2016, os factos relativos à excepção de ilegitimidade alegada pelos Oponentes bulem directamente com direitos indisponíveis, sendo factos que apenas são provados por documento autêntico. Não obstante a crescente desformalização e pragmatização do processo, ainda existem factos cuja prova apenas é efectuada por documento.
Como bem assinala a Exequente, de harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 2091.º do código civil, os direitos relativos à herança de DD apenas podem ser exercidos contra todos os herdeiros.
Os únicos documentos que são aptos a provar tal qualidade de herdeiro são a habilitação notarial ou sentença transitada em julgado em apenso de habilitação de herdeiros.
E é um desses documentos que a Exequente deve juntar, sob pena de emergir a dúvida quanto à legitimidade dos Oponentes, dúvida essa que terá que ser decidida segundo o ónus de distribuição da prova.
Em momento algum o Tribunal exigiu a dedução de qualquer incidente de habilitação.
Pelo contrário, também no já mencionado despacho proferido em 12/1/2016 o Tribunal esclareceu que a questão se reportava ao disposto no n.º 1 do art. 56.º do C.P.C., norma que, pela sua jaez, dispensa automaticamente tal habilitação.
Destarte, deve ser junto aos autos documento que comprove que os aqui Oponentes são parte legítima na acção.
Tal responsabilidade é da Exequente. Não veio esta alegar qualquer dificuldade na obtenção do documento, limitando-se a requerer que o Tribunal notificasse os Oponentes para o efeito. Ainda que tal hipótese efectivamente exista, não se basta com um mero requerimento, mas sim com um fundado requerimento.
Destarte, indefiro o requerido pela Exequente e concedo-lhe o prazo de dez dias para juntar o documento de habilitação de herdeiros de DD, sem prejuízo da alegação da impossibilidade da sua junção.»
Inconformada, a exequente apelou do assim decidido, tendo finalizado as alegações com as seguintes conclusões (transcrição):
«1 - Atendendo ao alegado no requerimento inicial, deve considerar-se adequadamente promovida nos autos a habilitação dos sucessores da pessoa que figura como devedor no título executivo;
2 - Pois, tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda;
3 - A exequente deduziu no próprio requerimento para a execução os factos constitutivos da sucessão;
4 - O tribunal não pode, assim, para considerar os sucessores do devedor inicial habilitados, exigir ao exequente a junção de uma habilitação notarial de herdeiros;
5 - A habilitação é efectuada nos próprios autos, sem necessidade de qualquer instrumento notarial de habilitação;
6 - Ademais, a exequente não pode legalmente promover essa habilitação;
7 - O despacho recorrido violou o artigo 54.º do CPC.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ordenar-se o prosseguimento dos autos com vista à prolação de decisão sobre a habilitação dos sucessores da pessoa que figura como executado no título executivo, os quais, por não terem impugnado o laço sucessório, devem ser considerados parte legítima na presente execução.»

Não se mostram juntas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se a exequente devia fazer a demonstração imediata da alegada sucessão na obrigação por parte dos executados, como se defendeu na decisão recorrida, ou se basta a mera alegação dos factos constitutivos da sucessão, como sustenta a recorrente.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e as ocorrências processuais relevantes para o julgamento do recurso são os descritos no relatório supra, havendo ainda a considerar que:
1. A exequente é portadora de uma letra de câmbio com o nº 500792887081761155, datada de 1 de Abril de 2011, no valor € 48.579,90, com data de vencimento em 22.06.2012, na qual consta como aceitante a sociedade “EE, Lda.”.
2. A referida letra de câmbio foi avalizada por DD, sócio gerente da sociedade aceitante à data da sua assinatura.
3. O referido avalista faleceu em 30.07.2012.
4. No requerimento executivo a exequente alegou que sucederam ao falecido DD os seus filhos, BB e CC, invocando ainda o disposto no art. 2091º, n.º1, do CC, concluindo estar assim assegurada a respetiva legitimidade.

O DIREITO
Nos termos do art. 10º, nº 5, do Código de Processo Civil (CPC), toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
Por sua vez, consoante se estatui no art. 53º, nº 1, do CPC, «[a] execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor».
Portanto, este preceito enuncia a regra geral da legitimidade para a ação executiva, diversa da que vigora para a ação declarativa (art. 30º), conferindo-a a quem figure no título como credor e como devedor, seja este principal ou subsidiário.
É parte legítima como exequente, em regra, a pessoa que no título executivo figura como credor, é parte legítima como executado a pessoa que no título tiver a posição de devedor.
Note-se que o texto legal não diz que é parte legítima como exequente o credor e como executado o devedor; e não o diz, sob pena de confundir a questão de legitimidade com a de procedência.
É que o exequente e o executado podem ser partes legítimas, apesar de não serem credor e devedor.
A legitimidade deriva, em princípio, da posição que as pessoas têm no título executivo. A inspeção deste deve, em regra, habilitar a resolver o problema da legitimidade.[1]
Porque na ação executiva se visa obter a tutela efetiva do direito a uma prestação, o interesse direto em demandar e o interesse direto em contradizer não radica nas pessoas que são titulares da relação material controvertida, tal como esta é configurada pelo autor.
Antes, serão partes legítimas, quem no título executivo figura como credor e como devedor: o exequente é parte legítima (legitimidade ativa) se figura no título como credor da prestação; o executado é, por sua vez, parte legítima (legitimidade passiva) se figura no título como devedor da prestação.
É esta a função de legitimação dos títulos executivos que serve para delimitar subjetivamente a execução.[2]
Mas nem sempre é parte legítima como exequente ou como executado a pessoa a quem o título executivo atribui a posição de credor ou de devedor.
No artigo 54º do CPC, estão previstos desvios à regra geral da determinação da legitimidade, estabelecendo o seu nº 1 - disposição que tem relevância na apreciação do caso em apreço – que «[t]endo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda. No próprio requerimento para a execução deduzirá o exequente os factos constitutivos da sucessão».
Este preceito contempla a figura da habilitação-legitimidade, abrangendo todos os modos de transmissão das obrigações, tanto mortis causa como inter vivos[3], sendo que no caso de a sucessão ter ocorrido antes da instauração da execução, deverá o exequente alegar no requerimento executivo os factos constitutivos da sucessão, devendo essa alegação ter lugar na parte destinada à exposição dos factos[4].
Por sua vez é dispensado o incidente de habilitação no caso de sucessão ocorrida antes da propositura da ação executiva, pois que, como se refere na parte final do nº 1 do artigo 54º do CPC, “no próprio requerimento para a execução deduzirá o exequente os factos constitutivos da sucessão”, que foi, aliás, o que a exequente fez no seu requerimento executivo.
Não ignorando as posições doutrinárias existentes sobre a questão[5]-[6], é nosso entendimento «que a redação do preceito não impõe a demonstração imediata da alegada sucessão no direito ou na obrigação, dado estabelecer que o exequente deduz no requerimento executivo os factos constitutivos da sucessão. Se o legislador quisesse impor desde logo a demonstração da sucessão, por certo não expressaria essa obrigação apenas pela palavra “deduz”, acrescentando-lhe ainda uma outra com sentido equivalente a “demonstre”. A nosso ver, o legislador orientou-se pela economia de meios, deixando para mais tarde a prova da alegada sucessão, se esta vier a ser posta em causa».[7]
Volvendo ao caso concreto e como referimos supra, a exequente alegou no requerimento executivo que o avalista da letra dada à execução faleceu em 30.07.2012, tendo-lhe sucedido os filhos que identificou.
Ademais, na oposição à execução os executados não colocaram sequer em causa a qualidade de herdeiros do falecido, limitando-se a invocar a exceção da sua ilegitimidade com fundamento no facto de a exequente ter de “justificar a qualidade dos executados enquanto herdeiros únicos do falecido, através do respetivo incidente de habilitação de herdeiros”.
Aqui chegados, impõe-se concluir que são parte nesta execução os herdeiros do falecido DD, ora embargantes.
O recurso merece provimento.

Sumário:
I - O preceituado no artigo 54º, nº 1, do CPC, constitui um desvio à regra geral da legitimidade para a ação executiva, podendo esta ser intentada por e contra pessoas que não figuram no título executivo, por, entretanto, ter ocorrido transmissão no direito ou na obrigação, quer inter vivos, quer mortis causa.
II – A redação daquele preceito não impõe a demonstração imediata da alegada sucessão no direito ou na obrigação, dado estabelecer que o exequente deduz no requerimento executivo os factos constitutivos da sucessão.
III - Se o legislador quisesse impor desde logo a demonstração da sucessão, seguramente não expressaria essa obrigação apenas pela palavra “deduz”, mas acrescentaria ainda uma outra com sentido equivalente a “demonstre”.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pelos executados/embargantes.
*
Évora, 08.03.2018
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
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[1] Prof. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1.º, p. 90.
[2] Remédio Marques, in Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Outubro, 2000, p. 110.
[3] Cfr. Lopes Cardoso, Manual da acção Executiva, edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 119.
[4] Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2017, 2.ª ed., pp. 31-32.
[5] Lebre de Freitas, in A Acção Executiva depois da Reforma, 5.ª edição, 2009, pp. 122-123, entende que o exequente deverá liminarmente provar os factos constitutivos que alega.
[6] Em sentido contrário, Lopes Cardoso, ob. cit., p. 121, entende que o exequente não tem de oferecer logo prova deles, embora lhe seja lícito apresentá-la, quando meramente documental. No mesmo sentido, Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 11ª ed., 2009, pp.78-80.
[7] Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, loc. e ob. cit..