Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
94/05.2TBLLE
Relator: JOÃO GONÇALVES MARQUES
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 06/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: LOULÉ-1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
1 - Constando o contrato de um documento particular, a respectiva força probatória depende do reconhecimento da sua autoria nos termos dos artigos 374 e 375º do C. Civil, havendo que distinguir, nos termos dos nºs 1 e 2 do artº 376º, entre a veracidade das declarações atribuídas ao seu autor e a prova dos factos nelas compreendidos.
2 - Se o documento for reconhecido pela parte contra quem for apresentado (tendo como verdadeiras a letra e assinatura dele constantes, ou não as impugnando – artº 374º, nº 1) provado fica que o autor emitiu as declarações que nele lhe são atribuídas, mas só se consideram provados os factos nelas compreendidos se forem contrários aos interesses do declarante.
3 - Uma vez impugnado pela ré, por desconhecimento, um documento em que não teve o mínimo de intervenção, competia à A. a prova não só da respectiva veracidade (artº 374º, nº 2) como dos factos contidos nas declarações dele constantes.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:
M…, LDA, com sede no Entroncamento, propôs acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra I…, LDA, com sede na Rua…, pedindo que se intime a ré a abster-se de fazer agravo à posse da A. no que tange à fracção autónoma designada por letras “CV” correspondente ao quarto andar, porta número A quatrocentos e quatro, para habitação do prédio urbano afecto ao regime de propriedade horizontal, sito em …, Vilamoura, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé sob o nº 2764 e inscrito na matriz sob o artigo 9374, nomeadamente, não lhe dificultando a permanência nela da sua gerência, família desta e funcionários, a partir da citação, nem lhe impedindo o necessário acesso, fixando-lhe a multa no montante de € 50.000,00, caso a gerência desta ou alguém a seu mando perturbar, a partir da citação ou esbulhar a A. no que tange à sua posse sobre a identificada fracção.
Alega, resumidamente que a fracção foi, em 14 de Agosto de 2000 objecto de contrato-promessa de compra e venda pelo qual a sociedade P…, Lda prometeu vender-lha e a A. comprar-lha, que logo recebeu as chaves e a fez habitar pelo seu gerente A… e familiares, sendo que, apesar de ter recebido a totalidade do preço, aquela não se dispôs, até ao presente, a celebrar a escritura de compra e venda, acontecendo que, no passado dia 26.12.2004, o gerente da Ré, intitulando-se proprietário da fracção e munido de uma escritura de compra e venda e de comprovativo do registo de aquisição, pretendeu entrar na fracção, dispondo-se a arrombar a porta, o que foi impedido pela porteira do edifício.
Invoca, neste contexto, um direito de crédito sobre a P… correspondente ao dobro da quantia que lhe pagou a título de sinal e o direito de retenção a que alude a al. f) do nº 1 do artº 755º do CC, acrescentando que não lhe são conhecidos outros bens susceptíveis de responder pela dívida que tem para com a A.
A Ré contestou impugnando o direito de retenção ou posse que lhe seja oponível na sua qualidade de actual proprietária de fracção.
A A. deduziu, entretanto incidente de intervenção provocada da P…, LDA, como associada da Ré, ao que a ré se opôs, e que foi indeferida pelo despacho de fls. 116-120.
Foi oportunamente proferido despacho saneador, seguido do estabelecimento dos factos assentes e da organização da base instrutória.
Instruído o processo, teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida a decisão de fls. 360 – 361 sobre a matéria de facto.
As partes apresentaram alegações escritas sustentando a pretensão formulada nos articulados.
Por fim foi proferida a sentença julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré do pedido.
Inconformada, interpôs a A. o presente recurso de apelação em cuja alegação formula as seguintes conclusões:
1- Andou mal o Meritíssimo juiz a quo quando considerou não ter havido pagamento de sinal.
2- Ao aceitar o teor dos documentos, nomeadamente do contrato-promessa de compra e venda, teria o Meritíssimo Juiz a quo que considerar provado tudo o que lá consta, ou seja a referência (pelo menos) ao pagamento de cinco milhões de escudos a título de sinal (Cláusula Terceira).
3- Passando a existir, pelo menos, um crédito sobre a promitente vendedora P…, Lda, no valor de cinco milhões de escudos.
4- Não pode o Meritíssimo Juiz a quo dar como provado apenas parcialmente o teor do Contrato Promessa de compra e venda descurando factos com relevância notória para a presente acção.
5 – Andou novamente mal o Meritíssimo Juiz a quo quando entendeu que teria de ocorrer por iniciativa da A. a intervenção da promitente vendedor nos presentes autos.
6- Nado obrigava a A. a fazer intervir a promitente vendedora no presente processo, mas a sê-lo, deveria ocorrer por iniciativa da R.
7- Não tinha a A. que obter na presente acção possessória de prevenção a condenação da P…, Lda, no pagamento do sinal em dobro ou qualquer outra penalização decorrente do incumprimento contratual.
8- Mostram-se preenchidos todos os requisitos legais para decretar o direito de retenção da A. diante da Ré.
Termina no sentido de dever ser alterada a decisão quanto à matéria de facto, provando-se ter havido lugar ao pagamento de sinal no âmbito do CPCV e de ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra a condenar a Ré no pedido.
A ré contra-alegou no sentido da confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos e, nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Na douta sentença considerou-se provada a seguinte factualidade:
Da especificação
A) Por escrito datado de 14 de Agosto de 2000, P…, Lda, na qualidade de dona e legítima possuidora da fracção autónoma designada pelas letras “CV”, correspondente ao 4º andar, porta nº A-404, do prédio urbano designado por…, sito em Vila Moura, omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o nº 02764/040888 da freguesia de Quarteira, declarou prometer vender à Autora M…, Lda, que declarou prometer comprar, pelo preço de 25.000 contos (124.699,47 Euros) a referida fracção.
B) No escrito provado em A) foi declarado que a fracção era prometida vender livre de ónus e encargos e que a escritura de compra e venda seria outorgada até 31 de Março de 2001.
C) Mostra-se inscrita a favor da Ré I…, Lda, pela apresentação 40/06122004, a aquisição, por compra, da fracção autónoma designada pelas letras “CV”m correspondente ao 4º andar, porta A.404, do prédio urbano designado por…, sito em Vila Moura, descrito na Conservatória do registo Predial de Loulé sob o nº 02764/040888 da freguesia de Quarteira e inscrito na matriz predial urbana sob o artº 9374.
D) Por escritura pública lavrada em 3 de Dezembro de 2004, no 2º Cartório Notarial de Tomar, A…, na qualidade de gerente e em representação de P…, Lda, declarou vender a R…, na qualidade de sócio gerente e em representação de I…, Lda, que declarou comprar, pelo preço de € 125.000,00, a fracção provada em A) e C).
E) Em 26 de Dezembro de 2004, o gerente da Ré, intitulando-se proprietário da fracção provada em A) e C), pretendeu entrar na mesma, dispondo-se a arrombar a porta.
F) M…, porteira do edifício, impediu-o de entrar na fracção.
Das respostas à base instrutória:
- Não foi outorgada qualquer escritura entre a Autora e a Ré.
- houve insistências da Autora para que se celebrasse a escritura entre esta e a Ré
- Foram entregues as chaves da fracção ao senhor M….
O senhor M… e familiares passaram a habitar na fracção com conhecimento da Ré.
Vejamos então.
Constata-se do conjunto das alegações da apelante que o recurso visa essencialmente a decisão da matéria de facto, o que aliás surge reforçado na formulação da pretensão trazida a este tribunal ou seja a de que “deve ser alterada a decisão quanto à matéria de facto, provando-se ter havido lugar ao pagamento de sinal no âmbito do CPCV e, consequentemente, revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra a condenar a R. no pedido”.
Efectivamente, pretende a apelante remover o obstáculo que, na lógica da decisão recorrida, impediu a procedência da acção, e que foi a ausência de prova da sua qualidade de credora perante a promitente vendedora do imóvel e de quem teria obtido a respectiva tradição.
Como se sabe e resulta das disposições conjugadas dos artigos 690º. nº 1-A e 712 nº 1, als. a) e b)do C. P. Civil, a modificabilidade pela Relação da decisão da matéria de facto proferida na 1ª instancia, pressupõe que, para além da indicação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, sejam indicados os concretos meios de prova constantes do processo ou de gravação realizada que imponham decisão diversa da recorrida.
Com efeito, só se esses meios de prova forçarem decisão diversa é que se pode concluir que a 1ª instância incorreu em erro na apreciação da prova legitimador da sua correcção pelo tribunal Superior. É que não pode olvidar-se que no julgamento da matéria de facto, o tribunal aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto excepto quando a lei exija formalidades especiais pra a prova de determinados factos controvertidos, caso em que tal prova não pode ser dispensada (artº 655º. Nºs 1 e 2 do CPC).
No caso em apreço, não indicando embora os pontos concretos da matéria de facto que tem como incorrectamente julgados, facilmente se apreende que se trata do quesito 1º, em que se perguntava se “A autora já pagou à “P…, Lda, a título de sinal e pagamento do preço € 124.699,47” e que recebeu a resposta de “Não provado”, pretendendo a apelante que se dê ao menos como provado o pagamento da quantia de cinco milhões de escudos a que se faz referência no contrato promessa e com este argumento:
“Ainda que o depoimento das testemunhas tenha sido insuficiente, não podia escamotear o contido em documento escrito e aceite como provado, ou seja, a existência de um pagamento de cinco milhões de escudos, conforme a cima se referiu”, e isto porque “Não pode, em síntese, o Meritíssimo Juiz a quo dar como provado algumas “partes” do Contrato Promessa, fazendo tábua rasa de outras com relevância para a presente acção”.
Vejamos.
Afastado, o recurso à prova testemunhal no que respeita aos pagamentos que a apelante, na qualidade de promitente compradora, invoca ter efectuado à promitente vendedora, prova que ela o própria considera insuficiente, a questão passa a situar-se em torno de saber se deve considerar-se provado o conteúdo da cláusula 3ª do contrato-promessa de fls. 34 a 36 com base no próprio documento em que se contém, ou seja o de que “neste acto o Segundo Outorgante entrega à Primeira a título de sinal e princípio de pagamento o montante de 5.000.000$00”
Como se viu, entende a apelante que sim, por não poder o juiz dar como provadas umas partes de contrato e fazer tábua rasa de outras.
Mas sem razão.
Com efeito, e como se vê do artº 1º da contestação, a Ré, que veio a adquirir, por compra, a fracção à promitente vendedora, uma vez confrontada nesta acção com um contrato promessa a que é absolutamente alheia, impugnou, por desconhecimento, todos os factos invocados pela A. e com ele relacionados, incluindo a própria celebração.
Posto constar o contrato de um documento particular, a respectiva força probatória dependia do reconhecimento da sua autoria nos termos dos artigos 374 e 375º do C. Civil, havendo que distinguir, agora nos termos dos nºs 1 e 2 do artº 376º, entre a veracidade das declarações atribuídas ao seu autor e a prova dos factos nelas compreendidos. Assim, se o documento for reconhecido pela parte contra quem o documento for apresentado (tendo como verdadeiras a letra e assinatura dele constantes, ou não as impugnando – artº 374º, nº 1) provado fica que o autor emitiu as declarações que no documento lhe são atribuídas, mas só se consideram provados os factos nelas compreendidos se forem contrários aos interesses do declarante.
No caso em apreço, uma vez impugnado pela ré, por desconhecimento, um documento em que não teve o mínimo de intervenção, competia à A. a prova não só da respectiva veracidade (artº 374º, nº 2) como dos factos contidos nas declarações dele constantes.
E este entendimento não pode ser afastado com o argumento de se terem dado como provadas “partes” do contrato, como aconteceu com a respectiva celebração, objecto sobre que recaiu, a declaração de que a fracção era prometida vender livre de ónus ou encargos e a data aprazada para a escritura, que, indevidamente, face à impugnação da Ré, foram, na fase da condensação logo levadas ao elenco dos factos assentes.
Portanto, não podendo ter-se como provada a entrega pela apelante à promitente vendedora P…, Lda de qualquer quantia a título de sinal com base na declaração constante da cláusula terceira do contrato, a mesma só o podia ser através de documento que inequivocamente comprovasse o pagamento ou de prova testemunhal, o que no caso não aconteceu, como aquela acaba por reconhecer e já se confirmara com a seguinte passagem da fundamentação da decisão da matéria de facto:
“No tocante ao pagamento de preços e de sinais, as três primeiras testemunhas referem cheques, referem mesmo valores, mas não conseguem convincentemente transpor o obstáculo constituído pela total ausência, nos autos, de documentos, formais ou informais, fiscalmente regulares ou não, capazes de apoiar as suas afirmações, que só por si não bastavam para que o Tribunal se convença do pagamento de quantias tão avultadas “.
Ora, foi com base na ausência de prova de qualquer pagamento da apelante à promitente vendedora que sucumbiu a sua pretensão, na medida em que arredada ficou, no contexto dos artºs 755º, nº 1, alínea f) e 442º do C. Civil, a verificação de um pressuposto essencial do direito de retenção, ou seja, ser a apelante credora daquela.
É que, como se salienta na douta sentença, do cotejo dos referidos preceitos legais, retira-se facilmente que o crédito a que se refere o artº 755º,nº 1, a alínea f) e que justifica o direito de retenção sobre a coisa entregue pela traditio, é o crédito resultante de ter sido entregue um sinal.
E prejudicado ficou, assim, o conhecimento de outras questões que ainda se poderiam suscitar, designadamente quanto a ter existido a própria tradição da fracção para a ora Autora, na medida em que apenas se provou terem as chaves da fracção sido entregues “ao senhor M…”, observando-se, a propósito, na sentença, que se vê que são gerentes da Autora A… e M…, “mas não está determinado se este A… é o mesmo “senhor M…” provado autos”.
Não se alcança, por outro lado, nem o sentido nem a eventual relevância para a decisão da causa das conclusões 5ª, 6ª e 7ª. Na verdade, em nenhuma parte da sentença se afirma que teria de ocorrer por iniciativa da A. a intervenção da promitente vendedora nos presentes autos, até porque tal não faria qualquer sentido, ante a realidade de que, como se deixou referido, a intervenção foi efectivamente requerida mas indeferida.
Por todo o exposto e sem necessidade de mais considerandos na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Évora, 23.06.2010
João Gonçalves Marques
Eduardo José Caetano Tenazinha
Acácio Luís Jesus Neves