Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO RIBEIRO CARDOSO | ||
Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA COMPETÊNCIA DO JUIZ SINGULAR | ||
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Data do Acordão: | 04/12/2016 | ||
Votação: | DECISÃO SINGULAR | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | INCIDENTE | ||
Decisão: | DEFERIDA A ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA | ||
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Sumário: | I - O entendimento do Ministério Público quando faz uso do n.º3 do artigo 16,º do CPP, impõe-se ao juiz de julgamento, não podendo este rejeitar a competência assim fixada (que até foi aceite expressamente no despacho que recebeu a acusação e designou dia para a realização do julgamento). Trata-se de um poder-dever do Ministério Público, e não de uma faculdade arbitrária, que deve ser usada quando "...entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos". É a manifestação desse entendimento pelo Ministério Público, pelo meio e no momento próprios (na acusação, ou em requerimento quando seja superveniente o conhecimento do concurso) que determina a competência do tribunal singular. II - Esta possibilidade é uma concretização da relevância constitucional do princípio da oportunidade. | ||
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Decisão Texto Integral: | O Exmo. Senhor Juiz 3 da Secção Cível e Criminal da Instância Central de Beja, desta comarca, veio suscitar a resolução do conflito negativo de competência surgido no âmbito do processo 241/13.0TABJA, porquanto, quer aquela secção da Instância Central, quer a Secção Criminal da Instância Local, declinaram a sua competência para a realização do julgamento no âmbito dos referidos autos. Foi cumprido o disposto no art.º 36.º do Código de Processo Penal. O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, nesta sede, emitiu o respetivo Parecer, no sentido de que o presente conflito deve ser resolvido atribuindo-se a competência para o efeito à Secção Criminal da Instância Local de Beja. Não se torna necessário recolher outras informações e provas. Cumpre decidir: Com o presente incidente pretende-se, em síntese, obter decisão que resolva definitivamente a quem deferir a competência para o julgamento do processo em causa. Dos elementos juntos aos autos resultam os seguintes factos com relevo para a decisão a proferir: - O Ministério Público junto da Comarca de Beja, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º3, do CPP, requereu o julgamento, em processo comum e por tribunal singular, do arguido A., imputando ao acusado a prática, em autoria material e em concurso efetivo, de três crimes de exposição ou abandono, p. e p. pelo artigo 138.º, n.º1, al. a) e n.º2 do Código Penal, a que corresponde, em abstrato, por cada um deles, pena de prisão de 2 a 5 anos. - Distribuídos os autos a Meritíssima Juiz 1 da Secção Criminal da Instância Local de Beja, esta, por despacho de 11-06-2015, recebeu a acusação para julgamento perante tribunal singular, tendo designado para a realização da audiência o dia 7 de Outubro de 2015, pelas 13,45 horas, ou, em caso de adiamento, o dia 14 do mesmo mês e ano, pelas 13,45 horas (cf.fls.168 e 169 do processo). - Na 1.ª data designada para a realização do julgamento (07-10-2015), após a abertura da audiência e antes da produção da prova arrolada pela acusação e pela defesa, foi pedida a palavra pela Digna Magistrada do Ministério Público e, sendo-lhe concedida, no uso dela, ditou para a ata o seguinte: “O Ministério Público acusou o arguido A. da prática, em concurso efectivo, de 3 (três) crimes de Exposição ou Abandono, p. e p. pelo artigo 138º, n.ºs1, al. a) e 2 do Código Penal, tendo feito uso do mecanismo previsto no artigo 16.º, n.º3 do Código de Processo Penal. Segundo dispõe o artigo 16.º, nº4 do Código de Processo Penal, o Tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a 5 anos, sempre que o Ministério Público, na acusação, faça uso do artigo 16.º, n.º3 do Código de Processo Penal. Acontece que a moldura penal abstracta mínima correspondente ao concurso de crimes imputado ao arguido é de 6 anos, portanto superior ao referido limite de 5 anos referido no artigo 16º, nº4 do Código de Processo Penal, atendendo ao que dispõem os artigos 138º, n.º2 do Código Penal e 77º, nº2 do mesmo diploma. Por isso é legalmente inadmissível, neste caso, o uso do artigo 16º, nº3 do Código de Processo Penal e, consequentemente, a sujeição do arguido a julgamento com intervenção do Tribunal Singular (confrontar artigos 14º, n.2, al. b) e 16º, nº1 al. b) do Código Penal. Só o Tribunal Colectivo tem competência para julgar este processo. Termos em que, de acordo com o disposto nos artigos 32º, nº1, 33º, nº1 e 338º, nº1 do Código de Processo Penal, se requer seja declarada a incompetência deste Tribunal singular, com a consequência de que os autos devem ser remetidos à Instância Central da Comarca de Beja, por ser a competente para a fase de julgamento.” Perante a falta de oposição da defesa, foi proferido, pelo senhor juiz que presidia à audiência, o seguinte despacho: “Pelo libelo acusatório de fls.147 a 151, foi o arguido Francisco Fausto Viegas acusado da prática enquanto autor material e em concurso efectivo de 3 crimes de exposição ou abandono, p.p. pelos artigos 138º, nº1, al. a) e nº2 do Código Penal. Tal ilícito é sancionado com pena de prisão de 2 a 5 anos cada. Pese embora tenha o Ministério Público, na referida acusação, recorrido ao mecanismo previsto no artigo 16º, nº3 do Código de Processo Penal, tal como alerta a Digna Magistrada do Ministério Público na antecedente promoção, tal será legalmente inadmissível, em virtude da moldura penal abstrata mínima em que o arguido incorre (6 anos de prisão) nos termos do artigo 77º do Código Penal, exceder a competência desta Instância Local Criminal de Beja. Assim, declara-se esta Instância Local incompetente para a ulterior tramitação destes autos, incumbindo esta à Instância Central de Beja, para onde os presentes autos deverão ser remetidos, após trânsito do presente despacho. Notifique. Dê baixa” - Remetidos os autos à Instância Central de Beja e distribuídos ao J3 da Secção Cível e Criminal, foram os autos com vista ao Ministério Público, em 19 de Novembro de 2015, que se pronunciou no sentido de que se declare também a incompetência do Tribunal Coletivo/Instância Central de Beja para a tramitação e julgamento dos autos, dizendo, no essencial, o seguinte: “(…) Pela minha parte entendo que o despacho infringe, de forma flagrante, o disposto nos artigos 16.º/3 do Código de Processo Penal e 77.º/2 do Código Penal e que a competência para o julgamento cabe ao tribunal singular (instância local) e não ao tribunal colectivo (instância central). Concordo que “nos casos em que o limite mínimo da pena abstracta é superior a 5 anos, não pode o M.P. singularizar, porque o seu poder de condicionar a pena máxima e determinar a competência do tribunal singular, não envolve o de baixar a pena mínima abstracta. Traduzir-se-ia esta situação, aqui sim, numa verdadeira violação das regras da competência material do tribunal e do princípio da separação de poderes, na medida em que extravasava do intervalo de penas fixado pelo legislador, criando uma punição diferente” [[1]] Só que neste caso isso não se verifica. Ao arguido são imputados três crimes de exposição ou abandono do artigo 138.º/1/a), 2 do Código Penal. De acordo com as normas estabelecidas no artigo 77,º/2 do Código Penal, a pena aplicável ao concurso de crimes tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Como os crimes em questão são punidos com pena de prisão de 2 a 5 anos, o limite mínimo da moldura deste concurso pode ser de 2 anos. E mesmo que o tribunal viesse a punir algum dos crimes com a pena máxima de 5 anos, seria essa a pena mínima aplicável ao concurso (nunca a de 6 anos de prisão). Contrariamente ao referido pelo Mm.º Juiz da instância local da comarca de Beja, não houve, assim, utilização imprópria da faculdade prevista no artigo 16.º/3 do Código de Processo Penal, o mesmo é dizer que não houve uma utilização que acarretasse a redução da pena mínima abstracta aplicável. Nesse pressuposto, que nos parece indiscutível, e como também não estão em causa nenhum dos crimes assinalados no artigo 14.º/1 do Código de Processo Penal que obrigatoriamente são julgados pelo tribunal colectivo, o Mm.º juiz da instância local não podia recusar a competência do tribunal singular posto que, “após a acusação do Ministério Público, onde se fez uso fundamentado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º3 do C.P.Penal e sem que ocorra qualquer situação superveniente que agrave os factos e qualificação aí efectuada, fica a partir desse momento, cravada a competência material e funcional do tribunal singular para o julgamento da factualidade aí descrita” [[2]] - Por despacho de 28 de Janeiro de 2016, o Meritíssimo Juiz da Instância Central de Beja declinou igualmente a competência do tribunal colectivo/instância central de Beja, nos termos e com os seguintes fundamentos (transcrição parcial: “O Exmo. Colega da Instância Local …declarou-se incompetente e ordenou a remessa dos autos, após trânsito do referido despacho a esta Instância Central. Como devidamente se pronunciou o Exmo. Procurador da República junto desta instância Central, tal despacho infringe, de forma flagrante, o disposto nos artigos 16.º n.º3 do CPP e 77.º n.º2 do CP., por isso, nunca poderão os autos ser submetidos a julgamento perante tribunal de estrutura colectiva. Ora, como se refere na promoção de fls.179 a 181, «Nesse pressuposto, que nos parece indiscutível, e como também não estão em causa nenhum dos crimes assinalados no artigo 14.º/1 do Código de Processo Penal que obrigatoriamente são julgados pelo tribunal colectivo, o Mm.º juiz da instância local não podia recusar a competência do tribunal singular posto que,” após a acusação do Ministério Público, onde se fez uso fundamentado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º3 do C.P.Penal e sem que ocorra qualquer situação superveniente que agrave os factos e qualificação aí efectuada, fica a partir desse momento, cravada a competência material e funcional do tribunal singular para o julgamento da factualidade aí descrita”». - As decisões transitaram em julgado – cf. se certifica a fls.2. Apreciando: Dispunha o artigo 16.º do CPP, na redação em vigor à data da dedução da acusação, que: “1 - Compete ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie. 2 - Compete também ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que respeitarem a crimes: a) Previstos no capítulo ii do título v do livro ii do Código Penal; ou b) Cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão. c) Que devam ser julgados em processo sumário. 3 - Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º, mesmo em caso de concurso de infrações, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos. 4 - No caso previsto no número anterior, o tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a 5 anos.” Por sua vez, o artigo 14.º do mesmo diploma legal, na redação que vigorava na mesma data, preceituava: “1 - Compete ao tribunal coletivo, em matéria penal, julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes previstos no título III e no capítulo I do título V do livro II do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário. 2 - Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes: a) Dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa e não devam ser julgados em processo sumário; ou b) Cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime e não devam ser julgados em processo sumário. A lei n.º 1/2016, de 25 de Fevereiro, introduziu alterações a estes preceitos, mas sem relevo para a decisão a proferir, pois limitou-se a revogar a al. c) do n.º2 do artigo 16.º, bem como a alterar a redação das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 14.º, por forma a se suprimir a possibilidade de julgamento em processo sumário de crimes que seriam da competência do tribunal coletivo, na sequência da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei nº 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição – cf. acórdão n.º174/2014, publicado no DR, 1.ª série — N.º 51 — 13 de março de 2014. Pela sistematização contida no Código de Processo Penal, podemos concluir que, em termos de competência em matéria penal, o regime legal vigente, estruturou a sua atribuição, pelas várias hipóteses, definindo-as, no artigo 13.º, quanto ao tribunal de júri, que ao caso não interessa, no artigo 14.º, quanto ao tribunal colectivo e no artigo 16.º, quanto ao tribunal singular. Compete, então, ao tribunal coletivo julgar: - os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal de júri, respeitarem a crimes previstos no Título III e no capítulo I do título V do Livro II do C Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário, nº.1; - os processos que não devendo ser julgados em tribunal singular, respeitarem a crimes, dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa, ou, cuja pena máxima, abstratamente aplicável, for superior a 5 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime. No que se reporta à competência do tribunal singular, resulta, então, que lhe compete julgar: - os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie, júri ou coletivo; - os processos que respeitarem a crimes previstos no capítulo II do Título V do Livro II do C Penal; - os processos cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão; - os processos por crimes previstos no artigo 14.º, n.º2, alínea b) do Código Penal, mesmo em caso de concurso de infrações, quando o MP, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos. A competência do tribunal singular surge, então definida, de forma residual. Compete ao tribunal singular julgar todos os processos que não couberem na competência dos tribunais de outra espécie, de júri ou coletivo. As regras sobre a competência, digamos funcional, dos tribunais judiciais, em matéria penal, está definida, em regra, para o caso de unidade criminosa, seja de um único crime, a ser julgado em cada processo. Para o caso de concurso de crimes, regem apenas as regras contidas nos artigos 14.º, n.º2, alínea b), 15.º e 16.º, n.º3, únicas daquele universo, onde a situação está prevista. Assim, da interpretação conjugada destas três normas resulta que compete, em caso de concurso, ao tribunal coletivo julgar os processos que respeitem a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável for superior a 5 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime, salvo se o Ministério Público entender que, no caso concreto, não deve ser aplicada pena superior aquela. Isto será assim, o que, de resto, constitui o cerne do suscitado conflito, independentemente de no concurso fazerem parte crimes que, se julgados sozinhos, pelo critério definido no artigo 16.º, fossem da competência do tribunal singular, por força do critério qualitativo. Porém, quando a competência do Tribunal singular ou coletivo seja definida, apenas, em função da pena aplicável ao concurso de crimes, há que atender à pena máxima abstratamente aplicável a esse concurso de infrações julgadas no mesmo processo; e não à pena aplicável a cada um dos crimes. Neste enquadramento sistemático, a competência que é deferida ao tribunal singular nos termos do n.º 3 do artigo 16.º apenas poderá corresponder à sua intervenção em processo comum. Pretende-se dizer que o tribunal singular julga, em processo comum, os processos que respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a cinco anos de prisão, mesmo em caso de concurso de infrações – competência que originariamente pertence ao tribunal coletivo nos termos do artigo 14.º, n.º 2, alínea b) -, desde que o Ministério Público requeira a limitação da pena a aplicar em concreto ao máximo de cinco anos. O requerimento do Ministério Público destina-se, pois, a operar uma modificação de competência quando se trate de crimes a que seja aplicável abstratamente pena superior a 5 anos de prisão, que normalmente caberiam na competência do tribunal coletivo, como ocorre no caso concreto. E, ao fazê-lo, está o Ministério Público a exercer a ação penal, que surge tendencialmente como um dos seus monopólios, ou por outras palavras, é da sua competência exclusiva.[3] Daqui resulta, a nosso ver e com todo o respeito por diversa opinião, que o despacho proferido em sede de julgamento pelo senhor juiz da instância local de Beja violou de modo flagrante o princípio da legalidade do processo, na versão decorrente do artigo 2.º do C. P. Penal, pois os crimes aqui em causa não fazem parte do elenco daqueles que o legislador reservou exclusivamente para o tribunal coletivo. E isto porque vai estender a determinação judicial da pena ao correspondente limite máximo legal, que antes, por via da opção inicial do M. P., estava balizada no limite de cinco anos – segundo o citado artigo 2.º do C. P. Penal “A aplicação de penas e de medidas de segurança criminais só pode ter lugar em conformidade com as disposições deste Código”. Não se ignora que têm sido objeto de alguma controvérsia as normas do artigo 16.º, n.º 3 e 4, defendendo alguns autores que violam os princípios do juiz natural, da jurisdição, da legalidade e da igualdade, mas o Tribunal Constitucional tem considerado de modo uniforme que elas não colidem com qualquer das garantias do processo criminal consagradas na Constituição. «...Não faltará porventura quem queira entrever a possibilidade de uma tal manipulação na circunstância de, nos termos do artigo 16º-3, pertencer ao juiz singular a competência para julgar crimes cuja pena aplicável é superior a três anos de prisão [atualmente superior a cinco anos] (e que seriam portanto, em princípio, da competência do colectivo) se o MP entender que, no caso concreto, a medida da pena a aplicar não deve ser superior a três anos. Pensar assim seria, com todo o respeito por opinião diversa, um erro, só explicável pela desabituação da nossa doutrina e jurisprudência, motivada pela tradição legislativa, ao chamado método de determinação concreta da competência que é corrente em boa parte dos países estrangeiros - e de países onde está simultaneamente consagrado o princípio do juiz natural. A verdade é que nenhuma das razões que explicam, histórica e substancialmente, o princípio do juiz natural - proibição de tribunais de excepção e especiais, vetos à "raison d'État" como determinante da competência e à violação do princípio da igualdade - estão presentes na regulamentação contida no artigo 16º, nº 3, do Código; regulamentação em si mesma geral, abstracta, materialmente justificada e estranha a discriminações - tanto mais quando é certo serem hoje os critérios de determinação concreta da pena critérios dogmaticamente objectivados e controláveis e de forma alguma dependentes da arte de aplicação do juiz. De resto: não há qualquer razão para supor que, em julgamento que tenha lugar por força do artigo 16º, nº 3, perca aplicabilidade o disposto no artigo 359º...». Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Processual Penal, edição do Centro de Estudos Judiciários, 18-20. De simples critério de fixação da competência pelo método da determinação concreta, "o artigo 16º, nº 3 e 4, acaba por ser uma importante manifestação do princípio da oportunidade, ao permitir ao Ministério Público decidir, sem possibilidade de controlo judicial, que a pena a aplicar num caso concreto há-de ser inferior à que é abstractamente prevista na lei". Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, I, pág. 183. Como referiu Maia Gonçalves, em anotação ao artigo 16.º do CPP (in Código Processo Penal, Anotado, 17.ª Edição- 2009, pág. 104) “Nem a Comissão que elaborou o Projeto do CPP nem a AR nem tão-pouco o Tribunal Constitucional, este em já longa série de acórdãos, detectaram na disposição qualquer inconstitucionalidade, apesar de a questão ter sido apreciada em todos os seus ângulos. Sucede ainda que numerosas outras disposições condicionam a intervenção do tribunal, e limitam mesmo os seus poderes até em questões de dosimetria penal – máxime disposições sobre proibição de reformatio in pejus, sem que, ao que nos conste, tais disposições tenham sido assacadas de inconstitucionais.” Em conclusão: A razão está do lado do senhor juiz da Instância Central de Beja. O entendimento do Ministério Público quando faz uso do n.º3 do artigo 16,º do CPP, impõe-se ao juiz de julgamento, não podendo este rejeitar a competência assim fixada (que até foi aceite expressamente no despacho que recebeu a acusação e designou dia para a realização do julgamento). Trata-se de um poder-dever do Ministério Público, e não de uma faculdade arbitrária, que deve ser usada quando "...entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos". É a manifestação desse entendimento pelo Ministério Público, pelo meio e no momento próprios (na acusação, ou em requerimento quando seja superveniente o conhecimento do concurso) que determina a competência do tribunal singular. Esta possibilidade é uma concretização da relevância constitucional do princípio da oportunidade. Como se diz no acórdão n.º 339/92 do Tribunal Constitucional, “O Ministério Público, ao usar daquela faculdade, condiciona a fixação concreta da pena, mas ao proceder assim, actua enquanto "porta-voz que é do poder punitivo do Estado" e "no exercício de um poder expressamente previsto na lei", não invadindo por qualquer forma a competência do juiz ou limitando a sua independência”. Em face do exposto, decido o presente conflito, deferindo a competência para o julgamento dos factos, com a qualificação jurídica feita pelo Ministério na acusação, ao tribunal singular/J1 Juiz 1 da Secção Criminal da Instância Local de Beja. Comunique aos senhores juízes das secções em conflito e notifique nos termos do art.º 36.º, n.º 3, do CPP, comunicando-se também ao Senhor Juiz Presidente do Tribunal da Comarca de Beja Sem tributação. (Texto processado informaticamente e integralmente revisto pelo relator) Évora, 12 de Abril de 2016 Fernando Ribeiro Cardoso (Presidente da Secção Criminal) _________________________________________________ [1] - Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal anotado, 2015, Almedina, pág.32. [2] - Acórdão do TRP de 21 de Junho de 2006, processo 4179/04, www.colectaneadejurisprudencia.com. No mesmo sentido v. o acórdão do TRL, de 12 de Maio de 2005, processo 2278/05, alojado na mesma base de dados. [3] - Como salienta o Exmo. Senhor Conselheiro A. Henriques Gaspar, no Código de Processo Penal, Comentado, Almedina, a fls.77, em anotação ao artigo 16.º, “ O n.º3 constitui uma norma de determinação concreta de competência, com base em critérios que são próprios do Ministério Público como titular da ação penal e órgão da acusação, compreendida ainda como manifestação directa do princípio acusatório: o MP no uso dos poderes, processuais, e estatutários, de sujeito processual na conformação material da acusação, determina a fixação de um máximo para a medida da pena aplicável perante as circunstâncias do caso. A formulação do juízo pelo MP pressupõe uma compreensão e avaliação prévias da dignidade penal e da gravidade do caso objeto de acusação, situando-os em concreto, com fundamento em motivação objectiva, dentro de uma sub-moldura da pena inferior à moldura prevista para o respectivo tipo legal de crime. (…) A posição do MP tomada no uso da faculdade prevista no n.º3 é verdadeiramente conformadora do processo; uma vez tomada a decisão no ato de acusação, a decisão é definitiva, não sendo suscetível de modificação por via de determinação hierárquica. (…)” Defende, contudo, que “A decisão do Ministério Público poderá ser, porém, sujeita à verificação do juiz no que respeitar, não à aplicação de critérios de discricionariedade vinculada, mas à legalidade processual.” |