Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1332/06-3
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: COMPROPRIEDADE
ARRENDAMENTO SEM INTERVENÇÃO DE TODOS OS PROPRIETÁRIOS
ABUSO DE DIREITO
PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 07/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
I - O contrato de arrendamento, celebrado por dois dos comproprietários, sem assentimento dos restantes, apenas o torna ineficaz relativamente aos proprietários não contratantes mantendo plena eficácia perante aqueles que o celebraram.
II – A ineficácia em relação aos não intervenientes, é de natureza relativa, já que não opera ipso jure nem pode ser invocada por qualquer interessado, mas, tão só, pelos consortes não participantes na outorga do contrato.
III – Tendo o autor, durante mais de 23 anos, de boa fé, explorado a terra em contrapartida do pagamento de uma renda anual e no âmbito de um contrato de arrendamento, sem que os demais comproprietários pusessem em causa o seu direito, isso pode ser revelador do seu assentimento tácito. Ou, no mínimo revela por parte dos comproprietários da terra uma inacção, determinante da convicção por parte do autor da plena validade e eficácia do aludido contrato.
IV – Questionar tal validade nestas circunstâncias configura uma situação de abuso de direito e por isso, estando o autor de boa fé, designadamente, no que refere ao cumprimento dos seus deveres enquanto arrendatário e à posse exercida sobre o locado justifica-se, sem margem para dúvidas, que a sua confiança seja devidamente tutelada reconhecendo-lhe de pleno o s direitos de arrendatário, designadamente em matéria de exercício do direito de preferência na aquisição do locado.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real de Santo António, ANTÓNIO …………. casado, agricultor, residente em Manta Rota, Vila Nova de Cacela, intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra CABRAL ………….., LDA., sedeada em ………….., na qualidade de compradora, e contra MARIA ………………JOSÉ LUÍS ………….. e mulher MARIA SANTANA………… ou MARIA ROSÁRIO ……….., LUÍS ……………. e mulher JUANA…………, FRANCISCO ……….. e mulher ENCARNAÇÃO………, EULÁLIA ……………….., MARIA DEL CARMEN……………., FRANCISCO …………………, MARIA CELESTINO………………..e marido JUAN……….. e AGOSTINHO ………….. e mulher MARIA DA ENCARNAÇÃO…………….., todos identificados nos autos, na qualidade de vendedores, pedindo que seja reconhecido ao Autor o direito de preferir na transmissão, já efectuada por escritura de compra e venda outorgada no dia 25 de Novembro de 1997 no Cartório Notarial de Vila Real de Santo António, entre a sociedade, 1ª Ré, e os restantes Réus do prédio misto sito na Quinta de Manuel Alves, no Alto da Manta Rota, freguesia de Vila Nova de Cacela, concelho de Vila Real de Santo António, alegando em síntese, ser arrendatário do aludido prédio desde Janeiro de 1974, e ter tomado, informalmente conhecimento da venda, já que nunca foi notificado pelos vendedores para, querendo, usar do direito de preferência.
Citados os réus, apenas a 1ª ré veio contestar, por excepção, invocando não cumprimento, pelo autor, da obrigação de depositar o preço devido nos oito dias seguintes ao despacho que ordenou a citação e, por impugnação, alegando que só com a citação soube que o autor era arrendatário do prédio, no âmbito de um contrato celebrado apenas por dois dos proprietários, à revelia dos outros, por tal, arguindo a anulabilidade do mesmo e sustentando a existência de abuso de direito na litigância do autor, concluindo pela improcedência da acção.
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Tramitado o processo foi, na fase, do saneamento do mesmo considerada a ilegitimidade de todos os réus, à excepção da 1ª ré, sendo por tal absolvidos da instância.
Foi, também, julgada improcedente a excepção relativa à questão do depósito do preço.
Realizado o julgamento em sede de 1ª instância foi proferida sentença que julgou improcedente a acção absolvendo a ré do pedido.
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Desta decisão foi interposto, pelo autor, o presente recurso de apelação no qual se requer que seja dado provimento ao mesmo, revogando-se a sentença, terminando o recorrente por formular as seguintes conclusões:
1ª) O arrendamento de um prédio celebrado apenas por dois dos comproprietários, sem intervenção nem assentimento dos restantes, não é nulo nem anulável, mas apenas ineficaz em relação aos demais proprietários não contratantes.
2ª) Pois o n° 2 do art.º 1024.° do Código Civil não é norma de carácter imperativo e destina-se apenas à defesa dos interesses dos comproprietários não intervenientes no contrato.
3ª) Daí que para quaisquer outros efeitos, designadamente o exercício de direito de preferência pelo arrendatário em caso de alienação do prédio, o contrato se tenha por válido.
4ª) Solução que se mantém ainda que se entenda tratar-se de nulidade mista ou sujeita a regime especial, apenas arguível pelos comproprietários não contratantes, traduzida numa invalidade relativa do acto, insusceptível de conhecimento oficioso e de invocação pelos contratantes ou por terceiros estranhos ao contrato.
5ª) Tendo o contrato sido celebrado há mais de 20 anos e sido regularmente cumprido durante todo esse tempo, sem notícia de oposição dos demais comproprietários, deve presumir-se o seu assentimento e ter-se o contrato por tacitamente convalidado ou confirmado, para efeitos dos artºs 217°, n. ° 1, 288°, n. ° 3 e 1024°, n.° 2 do Código Civil.
6ª) E podendo por isso o arrendatário preferir na venda do prédio ao abrigo do art.º 28° do Decreto-Lei 385/88 de 25 de Outubro.
7ª) Julgando em contrário, a douta sentença recorrida violou por erro de interpretação e aplicação os referidos art.º 28º do Decreto-Lei 385/88 e 1024°, n.° 2 do Código Civil, e deve por isso ser revogada e substituída por outra que reconheça ao apelante o direito de preferência na venda do prédio, efectuada através da escritura de 25/11/1997.
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A recorrida contra alegou pugnando pela manutenção do julgado.
Estão colhidos os vistos legais.
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Apreciando e decidindo
Na sentença recorrida foi considerado como provado o seguinte quadro factual:
1. Por escritura de 25-11-1997, a Ré Sociedade adquiriu aos restantes Réus o prédio misto composto de cultura arvense, com árvores e prédio urbano destinado a habitação, sito na Quinta de Manuel Alves, no Alto da Manta Rota, freguesia de Vila Nova de Cacela, concelho de Vila Real de Santo António, descrito na Conservatória do Registo Predial dessa cidade sob o n° 625 de 25-5-1988 e inscrito na respectiva matriz, a parte rústica sob o art. n° 97, secção AS, com o valor patrimonial de 194.088$00, e a parte urbana inscrita sob o art. n° 2.241, com o valor patrimonial de 292.032$00 (Alínea A dos Factos Assentes);
2. O preço total da aquisição foi de 68.000.000$00, sendo 56.000.000$00 o relativo à parte rústica e 12.000.000$00 o relativo à parte urbana (Alínea B dos Factos Assentes);
3. Ao Autor não foi dado conhecimento de tal negócio (Alínea C dos Factos Assentes);
4. Os Réus, à excepção de Cabral, Lda eram os donos do prédio (Alínea D dos Factos Assentes);
5. Na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António, à data mencionada em 1 supra, encontrava-se inscrita a favor dos primitivos Réus Maria Augusta Celestino, Maria Joaquina Cermeño, Joaquina Cermeño Moita, José Luís Celestino Vaz e mulher Maria Santana Cruz, Luís Celestino Vaz e mulher Juana Bella Landero Pandolfo, Francisco Celestino Vaz e mulher Encarnação Camacho Eugénio, Eulália da Encarnação Bartolomeu, Maria del Carmen Eugénio Jara, Francisco José Celestino y Eugénio, Maria Celestino Joaquim e marido Juan Garcia Ortiz e Agostinho Rosa Celestino Baptista e mulher Maria da Encarnação Pereira do Brito a aquisição do prédio supra referido em comum e sem determinação de parte ou direito (Documento de fls. 11 a 14);
6. Desde 1974 e mediante a entrega de 2.000$00 anuais a uma das donas do prédio, a qual, juntamente com pelo menos uma outra dona do mesmo, nisso consentiu, vem o Autor cultivando parte daquele prédio, colhendo frutos e no mesmo apascentando gado ovino e caprino (Resposta aos artigos 1º e 2º da Base Instrutória);
7. Datado de 20 de Maio de 1989, o Autor António da Rosa (sob a menção “O Rendeiro”), Eulália da Encarnação Bartolomeu e Maria Augusta Celestino (sob a menção “As proprietárias”) e Agostinho Rosa Celestino Batista (sob a menção “A testemunha”) firmaram o escrito que consta dos autos a fls. 15, com o seguinte teor:
“Arrendamento
Maria Augusta Celestino e Eulália da Encarnação Bartolomeu, residentes na freguesia de Vila Nova de Cacela, declaram por si e pelos restantes proprietários que arrendaram ao Sr. António da Rosa, morador na mesma freguesia, as suas terras, sitas na Quinta de Manuel Alves – Manta Rota, nas seguintes condições:

A terra deve andar bem tratada e pode servir para nela pastar o gado do rendeiro.
O Rendeiro não pode cortar árvores sem autorização do dono.
O Rendeiro pagará a renda de 2.000$00 (Dois Mil Escudos por ano no dia 10 de Outubro.
Este arrendamento já vem de traz desde 1974, mas só agora foi feito por escrito por dizerem que agora tem de ser assim.
Eu António Rosa concordo com o que acima está escrito e comprometo-me a pagar a renda dentro do prazo.” (Acordo das partes e documento de fls. 15);
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Tudo visto e analisado, tendo por base as provas existentes e em atenção o direito aplicável, cumpre decidir, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso, tendo por base as disposições combinadas dos artºs 660º n.º 2, 661º, 664º, 684º n.º 3 e 690º todos do Cód. Proc. Civil.
Assim, as questões essenciais que importa apreciar, são as seguintes:
1ª – Saber se o contrato de arrendamento de imóvel em compropriedade, efectuado, apenas, por alguns dos comproprietários sem o assentimento dos restantes é válido.
2ª – Saber se o contrato celebrado e cumprido, no decurso de há mais de 20 anos, sem que haja notícia de qualquer oposição dos comproprietários não contraentes, se deve considerar tacitamente convalidado por presunção de assentimento tácito.
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Conhecendo
No âmbito da locação, a regra é que esta constitui, para o locador um acto de administração ordinária, excepto se for celebrada por prazo superior a seis anos é o que decorre do n.º 1 do artº 1024º do Cód. Civil. No entanto, prevê-se no n.º 2 do mesmo artigo que, excepcionalmente, no que respeita à situação de compropriedade, que o arrendamento de prédio indiviso feito pelo consorte ou consortes administradores só se considera válido quando os restantes comproprietários, manifestem antes ou depois do contrato, o seu assentimento, ou seja, não se demonstrando este, o contrato, por interpretação à contrario, há-de considerar-se não válido.
Para caracterizar esta “não validade” tem surgido diversas orientações, discutidas na doutrina e na jurisprudência, para caracterizar o vício que inquina o contrato, cujas divergências assumem maior relevância a nível conceptual do que, propriamente, prático, defendendo-se que se trata duma pura e simples nulidade; [1] de mera anulabilidade; [2] de nulidade sujeita a regime especial; [3] de nulidade com regime misto, com traços do regime próprio da nulidade e características especiais de anulabilidade; [4] de ineficácia em sentido estrito relativamente aos comproprietários que não se mantiveram no acto; [5] ilegitimidade ou invalidade atípica. [6]
Independentemente da defesa ao nível conceptual de qualquer uma das teses defendidas nas orientações referidas, temos para nós que o vício que afecta o contrato de arrendamento, como o do caso em apreço, celebrado por dois dos comproprietários, sem assentimento dos restantes, apenas o torna ineficaz relativamente aos proprietários não contratantes, [7] mantendo plena eficácia perante aqueles que o celebraram, sendo que, tal ineficácia reveste natureza relativa, já que não opera ipso jure nem pode ser invocada por qualquer interessado, mas, tão só, pelos consortes não participantes na outorga do contrato, não se inspirando a norma em razões de interesse ou ordem pública, cuja violação importe por si a nulidade total do acto, apenas se destinando a acautelar os direitos dos outros comproprietários. [8]
Na decisão sob recurso, o Mmo Juiz a quo não obstante salientar que o contrato é ineficaz, apenas relativamente aos comproprietários não participantes ou não concordantes, podendo, no entanto convalidar-se a todo o tempo, entendeu que não ficou demonstrado que os comproprietários não contratantes tivessem manifestado o seu assentimento, referindo estar-se perante uma nulidade do contrato que aproveita à ré, concluindo pela inexistência de direito de preferência por “não ter chegado a haver contrato de arrendamento rural”.
Não podemos perfilhar tal entendimento, mesmo aceitando que a ré (terceiro relativamente ao contrato de arrendamento rural) enquanto adquirente do prédio pode gozar dos direitos concedidos aos anteriores comproprietários não contratantes, para impugnar a eficácia do contrato, pois, na altura em que foi adquirido pela ré o prédio em questão, reconhecidamente, estava verificada a situação de assentimento concedida ao negócio – contrato de arrendamento rural – pelos consortes do imóvel, não contratantes.
Da matéria de facto assente resulta que:
Desde 1974 e mediante a entrega de 2.000$00 anuais a uma das donas do prédio, a qual, juntamente com pelo menos uma outra dona do mesmo, nisso consentiu, vem o Autor cultivando parte daquele prédio, colhendo frutos e no mesmo apascentando gado ovino e caprino, e que, datado de 20 de Maio de 1989, o Autor António da Rosa (sob a menção “O Rendeiro”), Eulália da Encarnação Bartolomeu e Maria Augusta Celestino (sob a menção “As proprietárias”) e Agostinho Rosa Celestino Batista (sob a menção “A testemunha”) firmaram o escrito que consta dos autos a fls. 15, com o seguinte teor:
“Arrendamento
Maria Augusta Celestino e Eulália da Encarnação Bartolomeu, residentes na freguesia de Vila Nova de Cacela, declaram por si e pelos restantes proprietários que arrendaram ao Sr. António da Rosa, morador na mesma freguesia, as suas terras, sitas na Quinta de Manuel Alves – Manta Rota, nas seguintes condições:
1ª- A terra deve andar bem tratada e pode servir para nela pastar o gado do rendeiro.
2ª- O Rendeiro não pode cortar árvores sem autorização do dono.
3ª- O Rendeiro pagará a renda de 2.000$00 (Dois Mil Escudos por ano no dia 10 de Outubro.
4ª- Este arrendamento já vem de traz desde 1974, mas só agora foi feito por escrito por dizerem que agora tem de ser assim.
5ª - Eu António Rosa concordo com o que acima está escrito e comprometo-me a pagar a renda dentro do prazo.
Para além destes factos, há que ter em conta atento o teor dos documentos juntos aos autos e não impugnados que quer em 1974, quer em 1989 eram apenas cinco os comproprietários do prédio em causa, e que 1997, o autor enviou cartas registadas com A/R a cada um, dos então, actuais comproprietários solicitando um documento outorgado no notário atestando a existência do contrato de arrendamento, cartas que todos eles receberam, à excepção de Maria Celestino Joaquim.
O assentimento a que alude o n.º 2 do artº 1024º do Cód. Civil pode ser dado expressa ou tacitamente, ou seja, nesta última realidade, dedutível de factos que com toda a probabilidade o revelem, não necessitando de forma especial (já que ao caso não é imposto a celebração do contrato mediante escritura pública), tendo eficácia retroactiva, mesmo em relação a terceiros – disposições combinadas dos artºs 288º n.º 3 e 217º n.º 2 do Cód. Civil.
Está, assim em causa, perante o quadro factual apurado e todo o circunstancialismo que o rodeia, sem esquecer o período temporal em que materialmente se concretizou o contrato celebrado entre o autor e os comproprietários do prédio, determinar o alcance que um declaratário normal, posto no lugar do real declaratário, atribuiria à acção/omissão dos comproprietários não contratantes de modo a aquilatar da sua vontade, de harmonia com as regras do artº 236º do Cód. Civil.
Não é crível, por resultar do senso comum, que qualquer proprietário normal e sensato, colocado na situação dos comproprietários não contratantes estivesse mais de vinte e três anos sem se importar em saber que destino tinha sido dado ao bem de sua propriedade, nomeadamente se estava a ser amanhado e por quem. O comportamento omissivo, também, se pode e deve considerar concludente para aferir da vontade de concessão de assentimento, já que é preciso não descurar o critério prático aliado ao critério lógico e impõe-se ao juiz que perante cada caso concreto tente encontrar uma conclusão altamente provável, [9] ajustada à realidade em questão de modo a consubstanciar o alcance da vontade do visado.
Para nós, o facto de terem decorrido mais de 23 anos (tendo com referência a data da apresentação da contestação), desde a data em que o autor iniciou o cultivo e amanho das terras, a recolha dos frutos e apascentamento de gado, sem qualquer oposição, bem como a referência que consta do contrato celebrado em 1989 no qual se consignou que a declaração nele constante era feita pelos proprietários subscritores, não só por si, mas também pelos restantes, é determinante para que se possa concluir, que todos comproprietários tinham conhecimento da situação e a aceitaram. Pois, não faz qualquer sentido, se assim, não fosse, que perante as cartas registadas que o autor enviou a cada um deles, em Julho de 1997, não tivessem tomado qualquer atitude perante uma realidade que lhes dizia directamente respeito e que onerava um bem de sua propriedade e, que lhes seria, até então, totalmente desconhecida. Também, há que relevar o facto de não se ter provado que foram, apenas, dois donos do prédio quem combinou com o autor que este passaria a explorá-lo (resposta negativa ao quesito 6º), aliado à constatação de nenhum dos comproprietários (à excepção de Agostinho Batista, indicada pelo autor) ser indicado como testemunha nos presentes autos.
Assim, não podemos deixar de concluir que se verificou o assentimento a que se alude no n.º 2 do artº 1024º do Cód. Civil, por parte dos proprietários não contratantes.
Mas, mesmo que tal entendimento não fosse de sufragar, temos para nós, que sempre se configurava no caso em apreço, uma situação de abuso de direito prevista no artº 334º do Cód. Civil, por parte da ré, que no que respeita à sua pretensão, reafirma ser titular de direitos dos anteriores comproprietários.
Não se pode olvidar a situação do autor, durante mais de 23 anos, de boa fé e no convencimento que explorava a terra em contrapartida do pagamento de uma renda anual no âmbito de um contrato de arrendamento, sem que por qualquer forma fosse posta em causa tal realidade por quem quer que fosse. Tal revela por parte dos comproprietários da terra uma inacção, determinando a manutenção de plena validade e eficácia do aludido contrato. Por tal, estando o autor de boa fé, designadamente, no que refere ao cumprimento dos seus deveres enquanto arrendatário e à posse exercida sobre o locado [10] justifica-se, sem margem para dúvidas, que a sua confiança seja devidamente tutelada, já que "o não exercício prolongado está na base quer da situação de confiança quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inacção. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objectiva." [11]
Assim, também, por este fundamento não reconhecer ao autor o seu direito de arrendatário no âmbito de um contrato de arrendamento rural, com plena eficácia seria injusto, violento, desproporcionado e excessivo no que se refere aos limites impostos pela boa fé.
De tudo o exposto, decorre que mantendo o contrato de arrendamento plena validade e eficácia e cumprindo o autor, enquanto arrendatário, todas as exigências legais impostas para usar do direito de preferência ao abrigo do disposto no artº 28º do Dec. Lei n.º 385/88 de 25/10, haverá que reconhecer-lhe esse direito de preferir na transmissão e, consequentemente, julgar procedente a apelação.

DECISÂO
Pelo exposto, decide-se conceder provimento à apelação e consequentemente revogar a sentença recorrida, reconhecendo-se, assim, o direito, ao autor de preferir na venda realizada por escritura pública de 25/11/1997, relativa ao prédio descrito na CRP de Vila Real de Santo António em 25/05/1988, sob o n.º 625.
Custas pela apelada.

Évora, 13/07/2006

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Mata Ribeiro
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Rui Moura
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Rui Vouga




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[1] - Isidro de Matos in Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, 284; Ac. Relação de Évora de 10/05/90 in Col. Jur., tomo 3 , 268.
[2] - Vieira Miller in Arrendamento Urbano, 24.
[3] - Pires de Lima e A. Varela in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 3ª edição, 368; Ac. Relação de Évora de 14/03/91 in Col. Jur., tomo 2, 327.
[4] - Pereira coelho in Arrendamento, 1977, 2º edição, 911; Pais de Sousa in Extinção do Arrendamento Urbano, Almedina, 1980, 78; Ac. STJ de 30/05/89 in BMJ 387º, 538.
[5] - Vaz Serra in RLJ ano 112º, 146; Rui Alarcão in Confirmação, 199, Januário gomes in Arrendamento Urbano, 287; Pinto Furtado in Arrendamentos Vinculisticos, Almedina, 1984, 279.
[6] - Ac. STJ de 30/01/2001 in www.dgsi/pt no processo n.º 01A2110
[7] - Ac. STJ de 20/11/1973 in www.dgsi/pt no processo n.º 064360
[8] - Ac. STJ de 15/04/93 in BMJ 426º, 450.
[9] - v. Rui Alarcão in Confirmação dos Negócios Anuláveis, 218.
[10] - Não se está perante uma situação de mera tolerância dos proprietários da terra na ocupação da mesma por parte do autor, a titulo precário, sabendo este que a terá de desocupar, quando lhe for determinado.
[11] - v. Menezes Cordeiro in tratado de Direito Civil Português, tomo 4, 324.