Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
301/11.2GBODM.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INSIGNIFICÂNCIA PENAL
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - O recurso não é a sede própria para introduzir novos factos a julgamento. A impugnação da decisão da matéria de facto não pode abranger factos que não foram conhecidos pelo tribunal recorrido.

II – Considerando que no crime de violação do domicílio o bem jurídico protegido pela incriminação é a privacidade/intimidade, considera-se como altamente duvidoso que a conduta em causa (com o agente concentrado na mudança da fechadura, alheio ao espaço situado para lá do seu raio de acção), sem mais (que a prova produzida não demonstra), bastasse para que se devesse ter o mesmo como violado.

III – E ainda que formalmente essa conduta possa preencher o elemento objectivo típico da introdução não consentida em habitação alheia, nem a esfera pessoal de reserva íntima dos moradores do local resultou invadida de forma relevante nem era esse o propósito que lhe subjazeu (que era, claramente, o de obstar a que a ofendida e os filhos continuassem a utilizar a dita habitação, privando-os de a ela acederem através da colocação de uma nova fechadura, de cujas chaves não dispunham), razão pela qual, não assumindo a gravidade suficiente para alcançar o patamar mínimo pressuposto pela ilicitude inerente ao tipo legal em causa, não se reveste de dignidade penal, enquadrando-se o caso no conceito que a doutrina denomina de insignificância penal, que exclui a tipicidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório
Na secção de competência genérica – J2 da instância local de Odemira, da comarca do Alentejo Litoral, em processo comum com intervenção de tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido F, devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu absolvê-lo do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º nºs 1 e 2 do C. Penal por cuja prática vinha pronunciado.

Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o MºPº, pugnando pela sua revogação e substituição por outra decisão que condene o arguido ou, em alternativa, que determine o reenvio do processo para novo julgamento, para o que apresentou as seguintes conclusões:

1º. A prova produzida em audiência não consente a selecção da matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida.

2º. A decisão recorrida violou o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do Código de Processo Penal, uma vez que considerou como não provados factos que as testemunhas LP e FC vieram relatar, o que veio a infirmar toda a subsequente motivação da sentença.

3º. Embora o tribunal a quo tenha formado a sua convicção de acordo com as regras da experiência e da livre convicção do julgador, tal prova produzida em audiência, lida de acordo com as referidas regras da experiência, não consente na selecção dos factos dados como provados e não provados, conforme seleccionados pelo Tribunal a quo.

4º. Da prova produzida – como decorre das passagens transcritas – não se pode dar como não provada os restantes factos da acusação.

5º. Deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:

1) Que na noite de 17 de Setembro de 2011, o arguido, aproveitando o facto de a assistente se encontrar no Algarve e dos seus filhos estarem ausentes da casa da Rua da …, deu instruções e acompanhou o serralheiro LP àquela morada, para que procedesse à mudança da fechadura da casa, impedindo assim que a assistente e os filhos de ambos lá entrarem.

2) Dias mais tarde, ainda no mês de Setembro de 2011, o arguido acedeu ao interior da residência sita na R…, acompanhado pelo seu empregado, FC, abriu os armários onde se encontravam as roupas da assistente e dos filhos de ambos e colocou-as no interior de sacos do lixo, ordenando a FC que colocasse os referidos sacos no exterior, debaixo do telheiro.

3) O arguido introduziu-se na residência da assistente e dos filhos, sabendo que não o podia fazer sem prévia autorização de quem dela podia dispor, e que aquele espaço não era de livre acesso à generalidade das pessoas.

4) O arguido agiu deliberadamente, de forma livre e consciente, com intenção de entrar na residência da assistente e dos filhos e de lá permanecer.

6º. O tipo objectivo preenche-se com a introdução ou permanência de uma pessoa na habitação de outra sem o consentimento desta.

7º. O arguido contratou um serralheiro para, no dia 17 de Setembro de 2011, o acompanhar e proceder ao arrombamento do canhão e troca das fechaduras da residência da assistente e dos seus filhos.

8º. Segundo as regras de experiência comum, um serralheiro, para proceder ao arrombamento do canhão e troca de fechadura da porta de uma residência, tem necessariamente de se introduzir, ainda que parcialmente, na entrada da residência.

9º. O arguido, como autor mediato, através de arrombamento efectuado pelo serralheiro, LP, segundo as suas ordens, introduziu-se ilicitamente no domicílio da assistente e dos seus filhos e perpetrou o crime p.p. pelo art. 190º do CP.

10º. Dias mais tarde, o arguido, acompanhado pelo seu funcionário, FC, acedeu, sem autorização, ao interior do domicílio da assistente e dos seus filhos, retirando dos armários as suas roupas e objectos pessoais e colocando-os em sacos, tendo o seu funcionário depositado os mesmos no exterior da residência.

11º. O Tribunal a quo, na sua apreciação crítica das provas, não fundamenta o motivo por não ter considerado a parte do depoimento da testemunha FC que relatou o constante na conclusão supra.

12º. A omissão de tal facto não se ficou a dever à falta de credibilidade da testemunha FC, pelo que apenas nos resta a solução de que se terá tratado efectivamente de um erro de julgamento.

13º. Impõe-se, assim, em face do exposto, a reapreciação das provas gravadas pelo V. Tribunal da Relação, alterando a matéria dada como provada e não provada, dando como provados os factos descritos na conclusão 5ª.

14º. Com base na alteração da matéria dada como provada e não provada, deverá o arguido ser condenado pela prática de um crime de violação de domicílio, p.p. pelo art. 190º do Código Penal.

O recurso foi admitido.

O arguido apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção da sentença recorrida, concluindo como segue:

A) A motivação consubstanciada nas conclusões do Recorrente, Ministério Público, são infundadas e não merecem o provimento peticionado a final das mesmas, por a douta decisão recorrida não merecer o menor reparo e dever manter-se nos termos formulados.

B) Não existiu a violação do “princípio da livre apreciação da prova”, prevista no Artigo 127º do C. P. Penal demonstrado na fundamentação do Tribunal “a quo” que alicerçou a sua decisão na matéria de facto e teve por base a opção criteriosa da actividade judiciária na valoração dos depoimentos prestados, nomeadamente o depoimento das testemunhas LP e FC, como à multiplicidade de factores ocorridos, que com vista à imparcialidade e razão de ciência e espontaneidade dos depoimentos prestados e nas duvidas que lhe advieram na ocorrência dos factos, teve em consideração o principio “in dúbio pró reo”, corolário lógico do principio Constitucional da presunção da inocência, considerando, e bem, como não provados os factos desfavoráveis ao Arguido.

C) Perante a conjugação de todos os elementos probatórios existentes e das considerações que dos factos retirou na livre apreciação da prova e de acordo com a experiência comum, considerou o Tribunal “a quo” a inexistência do ilícito criminal de que o Arguido fora objecto de acusação, devido à falta dos pressupostos dos elementos constitutivos do crime de violação de domicilio e ter considerado que a factologia existente e objecto de discussão, eram merecedores da tutela civil enquadrada no Esbulho e defesa de posse, sendo infundadas as conclusões nºs 2, 3, 4 e 5 do Recurso.

D) As conclusões do Recorrente dos nºs. 7, 8, 9 e 10, não enquadram o “tipo objectivo” do crime previsto no Artº. 190º, nºs 1 e 3 do C. P. Penal, por ser o serralheiro a trocar o canhão da fechadura e mudar as chaves, sem que o Arguido tivesse entrado na residência e na mesma tivesse permanecido por tempo algum.

E) A conclusão do ponto nº 8 do Recorrente, manifesta uma visão inconsistente da realidade, por a mudança de canhão na fechadura da residência não implicar necessariamente a introdução na residência, mesmo que parcial, pelo serralheiro, autor da execução do trabalho.

F) Não tendo o Arguido penetrado na residência da Rua da…, em Milfontes e não sendo o executor da mudança do canhão da fechadura, não pode ser considerado “autor mediato”, por em causa estar a entrada ou não no espaço habitacional da residência.

G) As declarações da Assistente (Faixa 2, voltas 0:00 a 8:40) e dos seus dois filhos (Faixa 5, voltas 0:00 e 10:50 e Faixa 6, voltas 0:00 a 18:00) verifica-se que quer a Assistente, quer os seus filhos, no dia imediato à substituição do canhão da fechadura (ou seja, 18 de Setembro de 2011) foram à casa da Rua da…, donde retiraram as roupas e material escolar dos filhos na companhia da GNR e sem que o Arguido estivesse presente.

H) O Tribunal “a quo” esteve bem ao não considerar o depoimento da testemunha FC, que se deslocou à casa da Rua…, semana e meia após a ocorrência de 17.Setembro.2011, para se certificar duma ainda possível existência de roupas da Assistente e objectos dos filhos e, na sequência da entrada daqueles na residência em data anterior.

I) A conclusão do Recorrente no ponto nº 11, não tem o menor fundamento, que contraria a fundamentação de fls. 316, que as diligências da testemunha FC (empregado do Arguido) e que foi quem efectuou as pinturas na casa da Rua da…, no Ano de 2010 por ordenação do Arguido, que lhe deu a chave para execução dos trabalhos, encontrando-se a casa desocupada há anos, como se verifica nas declarações de FC (Faixa 11, voltas 0:00 a 22:20 da gravação).

J) Na conclusão motivada pelo Ministério Público no ponto nº 13 das conclusões, pretende o Recorrente, sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sobrepor-se à convicção do julgador do Tribunal a quo”, que apreciou as provas, segundo as regras da experiencia no âmbito da livre convicção, nos termos do Artº. 127º do C. P. Penal, não tendo “in casu”, razão que fundamente a alteração da matéria de facto dada como provada e não provada.

K) A douta decisão recorrida, quer na fundamentação da matéria de facto, quer no Direito aplicado, consagrou a correcta aplicação do Direito aos factos com grande profundidade de conhecimento técnico-jurídico, não merecendo o menor reparo, devendo manter-se na íntegra, por conforme à aplicação do Direito em toda a sua plenitude.

Nesta Relação, a Exmª Srª. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no qual - considerando que a prova produzida consente concluir que o arguido, sabendo que a casa em questão constituía a residência da assistente e dos filhos de ambos desde que ocorreu a separação do casal, quis violar a privacidade e a intimidade da vida pessoal e familiar da sua ex-companheira e dos filhos, que mudou as fechaduras da porta de entrada em casa e do portão do quintal, com o intuito conseguido de impedir que eles ali voltassem a residir e a ter o centro da sua vida, acedendo e permanecendo no seu interior, sem autorização e consentimento deles, procurando e mexendo nas suas roupas pessoais, colocando-as em sacos e ordenando à testemunha FC que os depositasse debaixo do telheiro no exterior da habitação e, que, dessa forma, cometeu o crime de violação de domicílio – se pronunciou no sentido da procedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., tendo o arguido/recorrido apresentado resposta, na qual uma vez mais veio defender a manutenção da sentença recorrida essencialmente por, em seu entender, não se mostrarem preenchidos os elementos típicos do ilícito criminal em causa na medida em que não existiu de facto a violação da habitação, tendo-se ele limitado a dar instruções a um serralheiro para mudar a fechadura da casa e, mês e meio volvido, para substituir a fechadura do quintal, sem que nela tivesse entrado ou nela alguma vez tivesse permanecido, e tendo agido no convencimento de o fazia no exercício de direito que lhe assistia devido ao acordo que havia feito com a assistente e para devolver a habitação em causa aos legítimos proprietários, seus pais, que a exigiam. Pelo que entende não ter praticado o crime de violação de domicílio, tendo apenas violado a posse da assistente e dos filhos de ambos, pelo que àquela assiste apenas o recurso aos meios civis, especificamente à acção de manutenção e restituição da pessoa prevista no art. 1278º do C. Civil.

Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.

2.Fundamentação

Na sequência do arquivamento do inquérito decidido pelo MºPº, e tendo a assistente requerido a abertura da instrução, realizada que foi a mesma, veio a ser proferido despacho que pronunciou o arguido pela prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º nºs 1 e 3 do C. Penal por terem sido considerados como suficientemente indiciados os seguintes factos:

1) A assistente e o arguido viveram em união de facto, durante 15 anos, desde 1995 a Outubro de 2010.

2) Desse relacionamento nasceram dois filhos, um em 16 de Abril de 1996, o GD e outro em 10 de Fevereiro de 1999, o SE.

3) A assistente tem, ainda, outro filho, fruto de uma relação anterior, de seu nome PJ, nascido em 30 de Abril de 1982, que conviveu com o arguido e a ofendida desde os 14 anos até cerca dos 25 anos de idade.

4) Não obstante a separação do casal, a assistente e os dois filhos menores continuaram a residir num imóvel, pertença dos pais do arguido, sito na Rua da …, em Vila Nova de Milfontes, freguesia do concelho de Odemira.

5) Na noite de 17 de Setembro de 2011, o arguido, aproveitando o facto de a ofendida se encontrar no Algarve e os seus filhos ausentes da casa da Rua da…, arrombou e mudou a fechadura daquela, impedindo a ofendida e os filhos, de ambos, de lá entrarem.

6) A partir desse momento o arguido ficou com o domínio do imóvel mencionado em 4) e não mais a assistente e os filhos, de ambos, puderam lá residir.

7) O arguido agiu deliberadamente, de forma livre e consciente, com intenção de entrar na residência da assistente e de lá permanecer.

8) Sabia que não o podia fazer sem prévia autorização de quem dela podia dispor e que aquele espaço não era de livre acesso à generalidade das pessoas.

9) O arguido agiu deliberadamente, de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era vedada e punida pela lei penal e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

Realizado que foi o julgamento, vieram a ser considerados como provados, na sentença recorrida, os seguintes factos:


A Assistente e o arguido viveram em união de facto durante 15 anos, desde 1995 a Outubro de 2010.

Desse relacionamento nasceram dois filhos, GD, em 16.04.1996 e SE, em 10.02.1999.

A assistente tem ainda outro filho, fruto de relação anterior de seu nome PJ, nascido em 30 de Abril de 1982, que conviveu com o arguido e a assistente desde os 14 até cerca dos 25 anos de idade.

Pelo menos desde aquela separação, a assistente e os dois filhos comuns passaram a residir no imóvel da propriedade dos pais do arguido, sito na Rua da…, em Vila Nova de Milfontes, com o acordo destes e do próprio arguido.

Na noite de 17 de Setembro de 2011, o arguido, aproveitando o facto de a assistente se encontrar no Algarve e dos seus filhos estarem ausentes da casa da Rua da …, deu instruções a um serralheiro para que procedesse à mudança da fechadura da casa, impedindo assim a assistente e os filhos de ambos de lá entrarem.

A partir desse momento, o arguido ficou com o domínio do imóvel e não mais a assistente e os filhos de ambos puderam lá residir.

O arguido não tem antecedentes criminais.

O arguido explora um estabelecimento de Turismo Rural, que dispõe de dezanove quartos e dois bungalows, sendo ainda proprietário de uma residência pré-fabricada nesse mesmo complexo onde para si trabalham pelo menos de três funcionários.

O arguido explora ainda um restaurante em Vila Nova de Milfontes, tendo neste momento 12 funcionários a seu cargo
10º
O arguido dedica-se ainda ao ramo da construção civil, sendo que num loteamento que construiu em Vila Nova de Milfontes pelo menos desde 2005 que ainda tem apartamentos para vender.
11º
Contraiu empréstimos junto também do seu pai e encontra-se a pagar às instituições bancárias que o financiaram prestações trimestrais e semestrais na ordem dos 40 mil euros.
12º
Aufere ainda rendimentos não apurados da venda da cortiça proveniente da sua Herdade e declara rendimentos mensais a título individual, da exploração do turismo rural no valor de cerca de € 500,00.
13º
É proprietário de um veículo automóvel de marca Mercedes, classe E, do ano de 2007.
14º
Encontra-se a pagar a pensão alimentícia devida aos seus dois filhos no valor total de € 505,00.
15º
Tem dívidas de valor não apurado à Segurança Social, que se encontra a liquidar em prestações.

E, como não provados, vieram a ser considerados os seguintes factos:

Da acusação:
O arguido agiu deliberadamente, de forma livre e consciente, com intenção de entrar na residência da assistente e dos filhos e de lá permanecer.

Sabia que não o podia fazer sem prévia autorização de quem dela podia dispor e que aquele espaço não era de livre acesso à generalidade das pessoas.

O arguido sabia que a sua conduta era vedada e punida por lei e tinha capacidade de se determinar com esse conhecimento.

Da contestação, com interesse à boa decisão, não resultou provado que:

- A assistente prontificou-se a devolver a casa da Rua da … no final do Verão de 2011, informando o arguido que ia habitar uma das casas por si compradas ao seu 1º filho, -PJ.

- Do dinheiro extorquido pela assistente ao arguido cuja acção crime segue seus termos, comprou a assistente três andares para poder viver com os seus filhos e na constância da nova relação, facto que levou ao rompimento da relação com o arguido.

- O arguido dias antes de 17 de Setembro de 2011 havia confirmado com a assistente a transferência dos seus objectos pessoais e roupas para a nova residência (um dos andares do filho) o que fora confirmado fazer após as férias do Verão.

- Verificando o arguido a longa ausência da assistente e dos filhos na casa da Rua da …, convenceu-se que a assistente já havia feito a mudança dos seus bens pessoais e, logrou mudar a fechadura, a fim de poder restituir a casa a seus pais, em conformidade do acordo gizado, e porque insistentemente o interpelavam neste sentido.

- O arguido ordenou ao serralheiro LP a mudança de fechadura na boa fé, porque a casa havia semanas que estava fechada, tendo a mudança sido feita em horas úteis do dia e à vista de toda a gente, nomeadamente de vizinhos que conheciam os factos e os confirmavam.

- No mesmo dia 17 de Setembro, o arguido foi ao encontro da assistente e informou-a de que iria entregar a casa a seus pais e que até lá deixava-lhe duas chaves da nova fechadura, pretendendo entregar a terceira chave a seus pais, e isto para fazer prova de que a casa a breve trecho lhes seria entregue e por outro lado para facultar tempo à assistente de retirar os objectos pessoais que ainda lá estivessem.

- O que a assistente recusou porque também queria a terceira chave, acrescentando que já tinha uma da casa que comprara ao filho, mas que só saía quando quisesse.

- O arguido considerou que a ofendida já havia retirado do imóvel todos os seus bens pessoais e roupas.

- Os filhos do arguido não ficaram provados porque coabitavam ora com o irmão na respectiva casa, ora com o pai no Hotel…, onde tinham os livros, objectos pessoais e computadores e utensílios de desporto e acompanhavam a mãe no andar para a mesma já comprado.

- O arguido agiu na base dos acordos firmados com seus pais na autorização temporária da habitação da assistente e na base do compromisso desta em devolver o imóvel, tendo o seu acto sido cometido no âmbito do acordo e procurou minimizar os prejuízos resultantes da detenção injustificada da assistente, que, tendo previamente adquirido um andar para habitar, lograva, com a casa da Rua da … fechada, retardar a reposição da legalidade face a seus pais.

- O arguido agiu na boa fé e jamais teve intenção de prejudicar a assistente e filhos, pelas razões expostas, defendendo apenas os interesses legítimos dos seus pais muito idosos e doentes, tendo a mãe sido sujeita a operação cardiovascular, e minimizar os prejuízos e stress provocados com toda a situação.

- O arguido goza no meio de Vila Nova de Milfontes de prestígio pessoal e social merecendo o maior respeito não só dos amigos mas também das autoridades locais e com quem contacta, pelo seu porte de cidadania, honra pessoal e constante auxílio aos mais pobres e desprotegidos, o que demonstra a elevada nobreza humana.

- O arguido agiu devido à provação da ofendida em quebrar o acordo mútuo, de que adveio prejuízo para os seus pais, pessoas idosas e sem defesa, facto ofensivo da sua dignidade e do apoio devido aos seus progenitores.

- O arguido encontra-se arrependido pois era desconhecedor dos meios jurídicos de recuperação do imóvel, sendo pessoa com poucos conhecimentos.

A motivação da decisão de facto foi explicada nos termos que de seguida vão transcritos:

O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica da globalidade da prova realizada em audiência, que se valorou de acordo com as regras da experiência comum e segundo a nossa livre apreciação.

De salientar prima facie que a existência de queixas criminais recíprocas entre o arguido e a assistente, disponibilizando-se esta a desistir do procedimento destes autos caso o arguido desistisse da queixa que juntou à sua contestação, o que mereceu a oposição do arguido, desde logo revela um clima de animosidade e de tensão entre ambos e um uso indevido do processo criminal.

Em audiência o arguido quanto aos factos constantes da pronúncia, optou por se remeter ao silêncio, pese embora ter apresentado uma contestação formal e escrita.

Do teor desta peça processual descreve-se uma defesa contraditória entre si, por um lado sustenta-se que se desconhecia e sem culpa que a assistente ainda residisse com os filhos na casa da Rua da---, julgando que a mesma já se tivesse mudado para a casa do filho e levado consigo os seus bens e por outro lado refere-se que no dia em que o arguido decidiu mudar as fechaduras daquela casa abordou a assistente e entregou-lhe duas chaves da nova fechadura, facultando à assistente tempo para que ela ainda pudesse retirar da casa os seus objectos pessoais que ainda lá estivessem.

De outra banda refere que agiu com base num acordo firmado com a assistente mas no entanto alude ao facto de que a mesma não aceitou as chaves novas da casa e que minimizou os efeitos de uma detenção injustificada da casa pela assistente.

Diga-se ainda que é irrelevante se o ex-casal morava na constância da união de facto de forma permanente na residência situada no Hotel ---, na Herdade do Zambujeiro, porque na verdade em face da separação do casal, ocorrida em Outubro de 2010 e com o acordo do arguido e dos proprietários da casa, que até providenciou pelas reparações necessárias a tornar a casa mais confortável, quer a assistente, quer os filhos comuns passaram a residir na residência da Rua da …, em Vila Nova de Milfontes. Disso nos deu conta, quer as declarações da assistente, quer as dos seus filhos SP e GD e até de FC (funcionário do arguido que diligenciou a pedido do patrão em Setembro de 2010 por efectuar pinturas na casa da …, mudar loiças de casa de banho e outros arranjos com o objectivo da mesma passar a ser a residência da assistente e dos filhos, desconsiderando-se o seu testemunho quando concluiu que a assistente “passou a perna ao patrão”, já que a tal conclusão o mesmo terá chegado também por instruções deste, pois desconhecia na verdade os motivos daquela alteração de morada e problemas do então casal.

E tal residência passou a ser com o acordo dos seus proprietários a residência da assistente e dos filhos, pese embora o pai do arguido tenha negado alguma vez ter tal autorizado, esta testemunha mentiu ao tribunal, negando até que os netos tivessem conversado com ele e que desde a separação do casal não teve qualquer contacto com eles pois que só queriam dinheiro, acabando por se contradizer e se denotar um desconforto e nervosismo dizendo que lhe pediram a casa mas não autorizou, desconhecendo como lá puderam a ficar a residir e o que o seu filho mudou as fechaduras da sua casa.

Em momento algum mencionou que reclamou a casa junto da assistente, apesar de dizer que a “casa é dele!” ou que pressionou o seu filho nesse sentido, até porque segundo este o pai possuirá bens e capitais de valores elevados donde não estaria propriamente carenciado daquela habitação, onde actualmente é aliás o arguido que ali reside.

Na verdade até o arguido em sede de contestação nos diz que os pais autorizaram que a assistente e os filhos morassem naquela habitação da Rua da…, pelo que vir agora JP dizer o contrário só porque existirão outros problemas de ordem financeira entre o arguido e a assistente, sentindo-se aquele defraudado em um milhão de euros, e porque terá financiado o filho pelas dívidas que imputará à assistente, apenas demonstra a falsidade das suas declarações e a tentativa de proteger o seu filho.

Com efeito à data de 17 de Setembro de 2011 e decorrido mais de um ano desde que a assistente para ali foi morar com os filhos, onde estes tinham o seu centro de vida, apesar de poderem ter objectos na casa da Herdade, ali passariam sobretudo períodos de férias e alguns fins de semana, o arguido decidiu, por motivos que se desconhecem, forçar a saída dos filhos e da assistente daquela casa e para isso nem ao seu pai prestou contas.

E aliás já o ameaçara anteriormente, numa ocasião em que de noite terá aparecido embriagado à porta daquela casa, dizendo que não os queria lá, como descreveu GP.

No entanto a desocupação forçada pelo arguido foi pensada e planeada pelo próprio e como podia ele ter falado com a assistente nesse dia e se prontificado a entregar-lhe chaves, se a mesma se encontrava nessa mesma 6ª feira no Algarve?

Sabendo disso mesmo e de que os seus filhos ficariam entregues aos cuidados do irmão mais velho PP, o qual se encontrava em mudanças de uma sua casa para a outra onde iria morar com a sua actual mulher AR, aguardou que os mesmos jantassem na casa da Rua da …, onde a assistente havia deixado as refeições preparadas e dali se ausentassem para instruir o serralheiro LP, que já efectua trabalhos para o arguido há cerca de dez anos, para, fora de horas mudar as fechaduras da casa. E note-se que não o efectuou às 20h00 como referiu a mesma testemunha, porque nesta altura conforme foi unanimemente confirmado pelos filhos da assistente e mulher de PP a essa hora ainda estariam na casa da …, nem que se tenha limitado a mudar a fechadura da casa pois que também a fez quanto à do portão que dá acesso ao quintal, até porque no dia seguinte surpreendidos pelo sucedido, AR foi ter com o arguido pedindo-lhe as chaves da casa e este apenas lhe entregou as chaves do portão do quintal de modo a que dali pudesse retirar o cão, alegando que as coisas eram dele e nem querendo saber onde os filhos iriam ficar.

É claro que os filhos do arguido e a assistente não ficariam a morar na rua pois que contavam com o alojamento da casa do filho mais velho da assistente, do que o arguido também saberia. No entanto foi necessário chamar as autoridades policiais para que os filhos do arguido e a assistente daquela casa recuperassem os seus objectos e bens pessoais de que careciam, inclusive o material que precisavam para a escola.

E quando a assistente no dia seguinte aos factos se confronta com o desaparecimento do veículo em que se fez transportar até ao Algarve, temendo o pior ligou ao seu filho G que nessa sequência contacto o arguido tendo-lhe este confirmado que mudara as fechaduras da casa e que não lhes entregaria as chaves de acesso à mesma.

E perante a narrativa mencionada descrita de forma sincera e sem ressentimentos sobretudo pelos próprios filhos do arguido e por AR, como é ainda concebível que se sustente em sede de contestação estar em erro sobre a circunstância de a assistente ainda morar na casa da Rua da …. O arguido foi premeditado, quis efectivamente prejudicar a ex-companheira e dessa forma prejudicou os filhos, privando-os do espaço onde tinham o seu centro de vida, sem qualquer acordo prévio com estes, sendo irrelevante que lá estivessem de favor, que não fossem nem inquilinos, nem proprietários pois que aquela casa foi-lhes emprestada e lá residiram durante mais de um ano, sem qualquer oposição de ninguém e se a assistente se pretendia apoderar da casa, o que também não resultou provado, não o fez por recurso a qualquer acto de violência, nem esbulhou o seu proprietário, como o arguido acabou por fazer, apesar de nem ser ele o proprietário da casa.

A conduta do arguido foi além do mais cobarde e comezinha pois que se não havia mais permissão daquela ocupação, nos termos de um qualquer acordo que não se provou ter ocorrido, até então legítima, não seria pela via da mudança de fechaduras e à falsa fé, sem conhecimento dos seus moradores, que poderia privá-los do seu espaço mais íntimo e securizante, como é a habitação.

Não é ainda credível que o arguido ignorasse, por alegadamente ter poucos conhecimentos, a forma legal de despoletar um eventual despejo, sendo aliás o arguido um homem que explora vários negócios, desde o ramo turístico, ao da restauração e da construção civil, e ao que leva a crer face ao património que revelou ter com sucesso, pelo que não terá certamente singrado com esses poucos conhecimentos, sendo lamentável que se faça agora de um qualquer ignorante para se eximir às suas eventuais responsabilidades.

O arguido quis mostrar que era ele quem mandava e mandou. Mandou mudarem as fechaduras da casa da Rua da … assim como ordenou que os seus funcionários que consigo trabalham no Turismo rural há já 10 anos, DP (que efectua limpezas no --- e cuidava diariamente dos filhos dos patrões, visivelmente constrangida em ter sido arrolada como testemunha e o já referido FC, testemunhassem numa tentativa de apenas denegrir a imagem da assistente, pois na verdade quanto aos factos que relevavam para a discussão, nenhum conhecimento directo têm, nem poderiam ter.

Em face de tudo o que se expôs a argumentação vertida na contestação, na parte aproveitável, porque balizada nos termos da pronúncia, desconsiderando-se a que a extravasava e que nenhuma relevância para a sua apreciação tinha, apenas poderia ser dada como não provada, não tendo o arguido produzido qualquer outra prova quanto aos demais factos que invocava, muito menos que estivesse arrependido até porque se limitou a referir que seria evitável que os filhos tivessem que vir prestar declarações a tribunal, com o que concordamos, sendo no entanto que tal apenas ocorreu por culpa exclusiva do seu pai, com o qual e apesar de tudo parecem ter uma boa relação, pelo que lhes dêmos ainda mais credibilidade.

Valorou-se o CRC do arguido e a matéria que se deu como provada quanto ao modo de vida do arguido e situação pessoal e profissional, extraiu-se das suas declarações, pese embora através das mesmas não ser possível extrair quais os efectivos rendimentos auferidos pelo arguido, arredada que está a hipótese de auferir apenas aquilo que por conveniência fiscal declara na sua actividade por conta própria, tendo em conta as obrigações que constituiu e os pagamentos que se encontra a efectuar não só os relativos à pensão de alimentos devida aos seus filhos, mas também os derivados de empréstimos bancários traduzem uma grande facturação, olhando até para o número de funcionários que tem de remunerar mensalmente, sendo que até do teor da queixa que apresentou contra o aqui assistente resulta que teria e do que terá sido desapossado, só em depósitos a prazo, mais de € 800,000 euros.

Por fim diga-se que a acta da diligência de conferência de pais junta pela defesa em sede de julgamento não serve como meio probatório no sentido que a defesa pretendia pois que apenas desta se extrai que em Dezembro de 2011, posteriormente ao despejo que o arguido levou a cabo motu próprio, a assistente residia numa casa do seu filho mais velho, para onde a mesma confirmou que foi residir com os outros dois filhos e que o arguido morava na casa da Rua da ….

Os factos que se deram como não provados relativamente à matéria da pronúncia prendem-se com a circunstância de o arguido não ter ocupado fisicamente aquela habitação, limitou-se a impedir, da forma descrita, que os seus moradores lá pudessem regressar, o que constituiu um esbulho, um desapossamento da casa e não qualquer permanência na residência onde morava a assistente e os filhos.

3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2]

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas reconduzem-se ao erro de julgamento e à violação do princípio da livre apreciação da prova.

O recorrente considera ter sido violado este princípio em virtude de a decisão recorrida, não obstante terem sido relatados pelas testemunhas LP e FC e a credibilidade destas não ter sido posta em causa nem sofrer dúvidas, não ter considerado como provados, quando o deviam ter sido, factos que discrimina, ocorridos no dia 17/9/11 e numa outra ocasião dias depois dessa data. Procedendo-se à alteração da decisão da matéria de facto tal como pretendido, de forma a incluir tais factos entre os provados, sustenta que se terá de concluir que o recorrente praticou o crime de violação de domicílio, quer como autor mediato ao acompanhar o serralheiro que contratou para arrombar a fechadura da porta da residência da assistente e dos seus filhos porque tal procedimento envolve necessariamente uma introdução, ainda que parcial, naquele local, quer porque dias mais tarde ali se voltou a introduzir com um funcionário para de lá retirar roupas e objectos pessoais que aqueles ali mantinham, sempre sem a autorização deles, devendo ser condenado em conformidade.

Refira-se, em primeiro lugar, que parte da factualidade que o recorrente defende que deveria ter sido como provada extravasa o objecto do processo, em concreto a que enuncia sob o nº 2 (“Dias mais tarde, ainda no mês de Setembro de 2011, o arguido acedeu ao interior da residência sita na …, acompanhado pelo seu empregado, FC, abriu os armários onde se encontravam as roupas da assistente e dos filhos de ambos e colocou-as no interior de sacos do lixo, ordenando a FC que colocasse os referidos sacos no exterior, debaixo do telheiro.”). De facto, é inequívoco que a mesma não vinha descrita na pronúncia[3], não foi alegada na contestação nem resulta da defesa (em julgamento o arguido remeteu-se ao silêncio), e também não se pode considerar como tendo “resultado” da discussão da causa, não se vislumbrando qualquer alusão à mesma em segmento algum da sentença recorrida, mormente na motivação da decisão de facto, e não tendo sido feita, seja oficiosamente seja a requerimento, ao que resulta das actas de julgamento, qualquer comunicação nos termos dos arts. 358º ou 359º do C.P.P.

Decorrentemente, não sendo o recurso a sede própria para introduzir novos factos a julgamento, a impugnação da decisão da matéria de facto não pode abranger aquela factualidade[4], ficando a nossa análise liminarmente circunscrita aos demais pontos em relação aos quais o recorrente invoca o erro de julgamento.

Assim delimitado o objecto do recurso, e mostrando-se observados, com o complemento que se retira da motivação do recurso, os requisitos formais indicados nos nºs 3 e 4 do art. 412º do C.P.P. para a impugnação ampla da matéria de facto, começamos por lembrar, tal como vem sendo repetidamente frisado nas decisões dos tribunais superiores acerca do âmbito e finalidades do recurso da matéria de facto, que este não é um novo julgamento, mas apenas um remédio jurídico destinado a detectar e corrigir erros de julgamento, mormente aqueles que o recorrente tenha concretamente apontado, que “não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas”[5], que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”[6], que não serve como meio para substituir uma convicção plausível e com adequado suporte probatório por outra convicção, ainda que igualmente plausível e possível, que a existência de versões contraditórias, e até de contradições no seio da mesma versão não é necessariamente impeditiva da formação de uma convicção segura, nada impedindo que esta se firme numa delas ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível e só se justificando a aplicação do princípio in dubio pro reo quando e na estrita medida em que, após a produção de prova, subsistam dúvidas razoáveis ( não uma qualquer dúvida subjectiva ) e inultrapassáveis[7], e, enfim, que a decisão da matéria de facto só pode ser alterada nos casos em que tenha sido produzida prova que aponte inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância ( ou seja, quando a “impõe”, e já não quando apenas a “permite” ) e já não naqueles em que o tribunal recorrido, que beneficiou da imediação e da oralidade, alicerçou a sua convicção em meios de prova permitidos ( seja prova directa, seja prova indiciária[8] ) e explicitou devidamente o percurso seguido na sua formação sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1ª instância tem suporte na regra estabelecida no art. 127º do C.P.P.[9], escapando a qualquer censura.

Revertendo ao caso concreto, e no que concerne aos factos relativos à noite de 17/9/11, a prova do que então sucedeu circunscreve-se ao depoimento prestado pela testemunha LP, o serralheiro que o arguido contratou para proceder à mudança da fechadura da casa onde a ofendida e os filhos do casal até então residiam.

Ouvido esse depoimento, cuja credibilidade conquanto não expressamente afirmada também não foi objecto de qualquer reparo, constatamos que a testemunha afirmou ter sido chamada e contratada para efectuar aquele serviço pelo arguido e que este a acompanhou ao local. Mais afirmou que na altura não viu se se encontrava alguém em casa, porque não passou da porta, tendo-se limitado a trocar a fechadura da porta principal.

Do que dele se colhe haveria fundamento para alterar o ponto 5. dos factos provados de forma a que o mesmo passasse a ter a redacção que o recorrente indica, em concreto no sentido de que, não só o arguido deu instruções a um serralheiro para que procedesse à mudança da fechadura da casa em questão, mas que também nessa ocasião o acompanhou àquela morada, o que, sendo um minus em relação ao que já constava da pronúncia (onde se imputava ao próprio arguido o arrombamento e a mudança da fechadura), nem constituiria alteração factual, ainda que apenas não substancial, a necessitar de comunicação.

No entanto, uma alteração com essa limitada extensão acabaria por resultar perfeitamente irrelevante pois em nada iria influir na decisão de direito, pelas razões que de seguida iremos indicar.

Na verdade, e admitindo-se embora que, de acordo com as regras da experiência comum, a mudança da fechadura da porta (pressupondo que esta abrisse para o interior, como habitualmente sucede) implique uma entrada parcial na residência, certo é que no caso inexiste qualquer prova de que essa entrada não se tenha circunscrito ao limiar da porta – que a testemunha afirmou não ter transposto - e aos procedimentos estritamente necessários para a execução daquele serviço.

Ora, tendo em conta o bem jurídico protegido pela incriminação (a privacidade/intimidade) é, desde logo, altamente duvidoso que a conduta em causa (com o agente concentrado na mudança da fechadura, alheio ao espaço situado para lá do seu raio de acção), sem mais (que a prova produzida não demonstra), bastasse para que se devesse ter o mesmo como violado. Ainda que formalmente essa conduta possa preencher o elemento objectivo típico da introdução não consentida em habitação alheia, nem a esfera pessoal de reserva íntima dos moradores do local resultou invadida de forma relevante nem era esse o propósito que lhe subjazeu (que era, claramente, o de obstar a que a ofendida e os filhos continuassem a utilizar a dita habitação, privando-os de a ela acederem através da colocação de uma nova fechadura, de cujas chaves não dispunham), razão pela qual, não assumindo a gravidade suficiente para alcançar o patamar mínimo pressuposto pela ilicitude inerente ao tipo legal em causa, não se reveste de dignidade penal, enquadrando-se o caso no conceito que a doutrina denomina de insignificância penal, que exclui a tipicidade.

Daí que a natureza da censura de que é merecedora se situe a outro nível, o da ilicitude civil, com a possibilidade de desencadeamento de recurso à tutela dos meios civis, tal como foi considerado na sentença recorrida.

E, assim sendo, conclui-se pelo acerto da decisão absolutória, devendo, em decorrência, improceder o recurso.

4. Decisão
Por todo o exposto, julgam o recurso improcedente, mantendo a sentença recorrida.

Sem tributação.

Évora, 6 de Dezembro de 2016

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(Maria Leonor Esteves)

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(António João Latas)

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[1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).

[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.

[3] Na qual, a imputação da prática do crime ao arguido se circunscreve à seguinte descrição fáctica:

5) Na noite de 17 de Setembro de 2011, o arguido, aproveitando o facto de a ofendida se encontrar no Algarve e os seus filhos ausentes da casa da Rua da …, arrombou e mudou a fechadura daquela, impedindo a ofendida e os filhos, de ambos, de lá entrarem.

6) A partir desse momento o arguido ficou com o domínio do imóvel mencionado em 4) e não mais a assistente e os filhos, de ambos, puderam lá residir.

7) O arguido agiu deliberadamente, de forma livre e consciente, com intenção de entrar na residência da assistente e de lá permanecer.

8) Sabia que não o podia fazer sem prévia autorização de quem dela podia dispor e que aquele espaço não era de livre acesso à generalidade das pessoas.

9) O arguido agiu deliberadamente, de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era vedada e punida pela lei penal e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

[4] Assim, cfr. v.g. Acs. RE

15/3/11, proc. nº 150/08.5GAMAC.E1 (1. Só os factos que na sentença sob recurso foram julgados provados ou não provados podem ser impugnados, uma vez que com esta é visado um julgamento de sentido diverso por parte do tribunal ad quem e a consequente modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, e não que o tribunal de recurso julgue provados ou não provados factos que não foram apreciados e julgados pelo tribunal a quo. ),;

22/11/11, proc. nº 130/10.0JAFAR.E1 (3. Quando impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto, tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto que o tribunal recorrido deu efectivamente como provada ou não provada, quer seja proveniente da acusação, defesa ou resultante da discussão da causa, ou seja, é restrita à decisão realmente proferida e não àqueloutra que o recorrente, na sua perspectiva, entende que deveria fazer parte do elenco factual que foi objecto do julgamento pelo tribunal recorrido.

4. Se a sentença não enumera factos, que, na perspectiva do recorrente, resultaram da discussão da causa e tinham relevância para a decisão, essa omissão não pode ser suprida por uma reapreciação da prova pelo tribunal de recurso. Não foi essa a solução processual querida pelo legislador. A motivação do recurso não é o meio adequado para introduzir factos novos no objecto da acção penal.);

25/6/13, proc. nº 760/09.3GEALR.E1 (I. Não é admissível impugnação em matéria de facto nos termos do art. 412º nº3 do CPP relativamente a factos que o recorrente entende terem resultado provados da discussão da causa, mas que não constam da enumeração dos factos provados e não provados da sentença recorrida. ), 13/5/14 proc. nº 457/12.7PBBJA.E1 (I - Os factos que no entender do recorrente deviam ter sido julgados provados ou não provados, mas que não foram objecto de decisão num sentido ou noutro, não podem ser objeto de impugnação nos termos do art. 412.º, n.º 3, do CPP. )

[5] cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763.

[6] cfr. Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28

[7] Há que ter em devida conta que o princípio dubio pro reo não implica que todas as dúvidas devam ser resolvidas em favor do arguido; de facto, a imposição que dele dimana não cobre qualquer dúvida subjectiva, mas única e exclusivamente as dúvidas insanáveis, razoáveis e objectiváveis.

Conforme faz notar Cruz Bucho, “Notas sobre o princípio “in dubio pro reo”, CEJ, Comunicação apresentada em 6/5/98, numa sessão de Direito judiciário subordinada ao tema “A produção e valoração da prova”, a págs. 11 e 16, “A dúvida deve ser insanável, irredutível, irreparável, inultrapassável, invencível. Quer isto dizer que a falha no esclarecimento definitivo dos factos não pode ficar a dever-se a uma deficiente procura dos meios de prova (…) a dúvida só pode considerar-se razoável se for “a doubt for which reasons can be given”.

Também Cristina Líbano Monteiro, “Perigosidade de Inimputáveis e ‘In Dubio Pro Reo”, pág. 51, afirma que “a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir ‘pro reo’ tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária”.

[8] A demonstração da verdade dos factos juridicamente relevantes não se faz exclusivamente através da prova directa dos mesmos - que frequentemente não existe ou não se encontra disponível -, podendo igualmente alcançar-se através da prova indirecta ou indiciária (No primeiro caso, “a prova incide imediatamente sobre os factos probandos, sobre o tema da prova”; no segundo, “a prova incide sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com auxílio de regras da experiência, uma ilacção quanto a este” - cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pág. 288. ), ou seja, como se refere no Ac. STJ 26/10/11, proc. nº 19/05.5JELSB.S1, da de factos “considerados em si mesmos irrelevantes, mas dos quais se pode, por raciocínio lógico, inferir a existência dos primeiros”. Com efeito, “o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção” ( cfr. Ac. STJ 5/7/07, proc. nº 07P2279 ). Mas, porque é mais difícil e, em regra, menos segura que a prova directa, a prova indiciária requer que a sua apreciação se rodeie de cuidados acrescidos, impondo uma análise cuidadosa do valor probatório dos indícios ( que, “de uma maneira geral, (…) correspondem às presunções naturais em matéria civil”- cfr. Cavaleiro de Ferreira, ob. cit., II, pág. 289. ) e uma correlacionação entre todos os meios de prova disponíveis que permita afirmar com segurança o facto probando, com a exclusão de outras causas a que o(s) indício(s) também possa(m) ser atribuído(s).

[9] O princípio acolhido nesta norma implica que no processo penal, em regra (com algumas excepções, nomeadamente as que respeitam aos arts. 84º, 169º, 163º e 344º do C.P.P., integradas no princípio da prova legal ou tarifada), o julgador não se encontra vinculado à valoração das provas de acordo com regras rígidas, sendo livre de eleger aquelas às quais reconheça relevância e credibilidade para alicerçar a sua convicção, contanto que na respectiva apreciação tenha na devida conta as regras da experiência comum. Mas, como faz notar Maia Gonçalves ( CPP anot., 17ª ed., pág. 354 ), dando conta da orientação uniforme da doutrina ( e seguida igualmente pela jurisprudência ), a livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.

Assim, se a apreciação da prova é discricionária, esta discricionariedade tem limites, decorrentes do dever de perseguir a chamada "verdade material", de tal sorte que a apreciação há-de ser racional, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.

A efectivação desse controlo implica que a apreciação da prova esteja sujeita ao dever de fundamentação que, no âmbito do processo penal, constitui uma das garantias constitucionais de defesa do arguido consagradas no nº 1 do art. 32º da C.R.P., e que é acrescido em relação ao dever geral estabelecido no nº 5 do art. 97º do C.P.P., encontrando-se concretizados na norma do nº 2 do art. 374º deste diploma os conteúdos exigidos para a fundamentação da sentença penal.