Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ MARTINS SIMÃO | ||
Descritores: | MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU RECUSA FACULTATIVA | ||
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Data do Acordão: | 11/20/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU | ||
Decisão: | DEFERIDA A EXECUÇÃO | ||
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Sumário: | A aparente contradição existente entre o art. 2.º, n.º 3, e o art. 12º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 65/2003, prevendo fundamentos, no primeiro caso, para recusa obrigatória e, no segundo, para recusa facultativa, tem de ser resolvida à luz do espírito da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho da Europa, de 13 de Junho e, assim, de que a obrigatoriedade de recusa só exista quando a infracção, além de não ser punível pela lei portuguesa, seja punível no Estado de emissão com pena ou medida de segurança de duração máxima inferior a 3 anos. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 77/12.6YEVR ACÓRDÃO 1. Relatório, O Digno Procurador Geral Adjunto deste Tribunal da Relação veio promover a execução do mandado de detenção europeu do cidadão de nacionalidade inglesa, A (…)com residência no Reino Unido em (…) e em Portugal na (…) para efeitos de ser sujeito a procedimento criminal. Com efeito, o referido cidadão inglês encontra-se aí indiciado pela prática de dois crimes de Violação da Obrigação de Saída para o Estrangeiro previstos pelas Secções 85ª e 86ª da Lei 2003, relativa a Crimes de Natureza Sexual, correspondendo a cada um deles, em abstracto, pena de prisão com duração máxima d e5 anos. O cidadão identificado foi detido pela Polícia Judiciária no dia 23 de Outubro de 2012. Procedeu-se à sua audição nos termos do art. 18º da Lei nº 65/2003 de 23de Agosto, tendo este declarado não aceitar na sua entrega ao Estado requerente e não renunciar à regra da especialidade. Foi validada a detenção do arguido e concedido prazo para a dedução de oposição. O arguido apresentou contestação, pedindo que seja recusada a execução do presente MDE porque ao abrigo do nº 3 do art. 2º da lei nº 65/2003 não é admissível a entrega da pessoa reclamada porque está fora do âmbito de aplicação de tal preceito e que também deve ser recusada ao abrigo da al. a) do nº 1 do art. 12º do mesmo diploma legal. O Digno Procurador Geral Adjunto Público deduziu oposição, mantendo e reproduzindo os pontos 4 a 23 do seu requerimento inicial, onde se encontra já expressa a sua posição, quanto às questões suscitadas pelo arguido. Colhidos os vistos legais cumpre apreciar de decidir. 2. Fundamentação Factos a considerar: Acusação 1- No dia 15 de Agosto de 2010, em Fife Constabulary, Cupar Police Station, Carslogie Road, Cupar, Fife, A, sendo um infractor relevante na acepção da secção 80 (2) da Lei a seguir indicada e estando sujeito às exigências de notificação da Parte II da dita Lei, sabendo em data precisa desconhecida que ia deixar o Reino Unido por mais de 3 dias a 15 de Agosto de 2010 para se dirigir a Portugal, não notificou a Polícia de Fife (Fife Constabulary) da sua intenção de viajar com uma antecedência não inferior a sete dias antes da data da partida; Contrário à Lei de 2003 relativa a Crimes de Natureza Sexual (sexual Offences Act 2003) (Exigências de Notificação de Viagem) Regulamentos de 2004 (Escócia), Regulamento 5 (1) e 2 (a/b) e Lei de 2003 relativa a Crimes de Natureza sexual (Sexual Offences Act 2003) Secção 86(2); Acusação 2- Entre 17 de Setembro de 2010 e 31 de Janeiro de 2012, incluindo ambas as datas, em Cupar Police Station, Carslogie Road, ou em qualquer outro sítio, A, sendo um indivíduo sujeito às exigências de notificação da Parte II da Lei de 2003, relativa a crimes de natureza sexual (Sexual Offences Act 2003) não cumpriu, sem que para isso tivesse desculpa razoável, as exigências de notificação da Secção 85 (1) da dita lei, sendo que não notificou a polícia no prazo de 1 anos a contar do evento indicado na Secção 85 (2) (c) da dita Lei da informação indicada na secção 85 (3) da dita lei; Contrário à Lei de 2003 relativa a Crimes de Natureza Sexual (sexual Offences Act 2003), Secção 85 (1), (2) e 91 (1) (a) - A foi classificado como criminoso sexual registado e alto risco e está considerado como em alto risco de reincidência. - Nos termos do art. 86º da Lei 2003 relativa a Crimes de Natureza Sexual (Sexual Offences Act 2003), um criminoso sexual registado tem de revelar à polícia a data em que sairá do Reino Unido, o país para onde tenciona viajar e toda a outra informação estipulada pelos Regulamentos antes da dada em que tenciona viajar. A informação estipulada está contida no Regulamento 5 da Lei de 2003 relativa a Crimes de Natureza Sexual (Sexual Offences Act 2003) (Exigências de Notificação de Viagem) Regulamentos de 2004 (Escócia). Vejamos se assiste razão ao arguido, de que deve recusada ser a execução do presente MDE, ao abrigo do nº 3 do art. 2º da lei nº 65/2003 e do art. 12º nº 1 al. a) da mesma Lei. O arguido está indiciado da prática de dois crimes de Violação da Obrigação de Notificação de Saída para o Estrangeiro, previstos pelas Secções 85º e 86º da Lei de 2003, relativa a Crimes de Natureza Sexual, correspondendo a cada um deles, em abstracto, pena de prisão com duração máxima de 5 anos. Os factos que integram aqueles crimes não estão previstos, nem são puníveis pela lei penal portuguesa. Os Estados membros da União Europeia têm o dever de cooperarem entre si, de forma a que as relações clássicas que prevaleceram entre eles, devam dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como após o trânsito em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça, como resulta do art. 5º da Decisão-Quadro nº 2002/584/JAI do Conselho de 13 de Junho de 2002. O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal, ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa da liberdade e é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na Lei nº 65/2003 de 23-8 e na Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho de 13 de Junho, art. 1, nº 1 e nº 2 daquela lei. Nem a decisão Quadro nem a lei nº 65/2003 definem o princípio do reconhecimento, mas ele assenta na confiança mútua que pressupõe compreensão, impondo às autoridades de um Estado que aceitem reconhecer os mesmos efeitos às decisões estrangeiras, apesar das diferenças que oponham as ordens jurídicas em causa. Como refere Anabela Rodrigues, no artigo “O mandado de Detenção Europeu – Na via da construção de um sistema pena europeu: Um passo ou um salto?” que consta da “Revista de Ciência Criminal, ano 13º nº 1, pág. 33”, citando Daniel Flore, o núcleo do reconhecimento mútuo reside em que “desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União. Isto significa que, as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente desse Estado”. O princípio do reconhecimento mútuo, ligado a escopos celeridade e simplicidade que devem existir, no âmbito de uma cooperação judiciária própria de Estados que fazem parte de uma mesma União, só através da ausência de exigência absoluta da dupla incriminação, poderia ser concretizado, razão pela qual constam do nº 2 do art. 2, da Lei 65/2003 e da Decisão Quadro de 13 de Junho de 2002 o elenco dos crimes, em relação aos quais se aboliu o controlo da dupla incriminação, desde que puníveis no Estado membro da emissão com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos. Quanto às restantes infracções aí não previstas, o legislador português parece ter optado por sujeitá-las ao princípio da dupla incriminação (art. 2º nº 3 da Lei nº 65/2003). Dispõe este preceito:« No que respeita às infracções não previstas no número anterior só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação». Este preceito face á forma como está redigido e perante a utilização da expressão “só é admissível” parece inculcar a ideia de que, face à lei portuguesa, desde que estejam preenchidos os respectivos requisitos, isto é, desde que a infracção não seja punível face à mesma, a recusa é obrigatória. Por sua vez, estabelece o art. 12º nº 1 al. a) da lei nº 65/2003: « A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando o facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infracção punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infracção não incluída no nº 2 do art. 2º». Para a mesma situação de ser exigível o controle da dupla incriminação, enquanto que a alínea a) do nº 1 do art. 12º da Lei 2003 estabelece uma causa de recusa, que não desencadeia obrigatoriamente a recusa, mas que pode facultativamente implicá-la, o nº 3 do art. 2º da mesma Lei prevê uma causa de recusa obrigatória dessa mesma execução. Perante esta aparente contradição, não se nos afigura que se deva ter por não escrita, a causa de recusa facultativa prevista na al. a) do nº 1 do art. 12º da Lei nº 65/2003, como defende Luís Silva Pereira em “Alguns Aspectos da implementação do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu”, na Revista do Ministério Público, ano 24, Out/Dez 2003, nº 96, a pág. 60, já que contraria o sentido de Decisão-Quadro que a precedeu. Na verdade, os motivos de não execução facultativa não podem transformar-se em motivos obrigatórios, sob pena de se frustrar o espírito da referida Decisão-Quadro de reconhecimento mútuo, de confiança, de abolição de exigências próprias (a dupla incriminação) do processo de extradição, de liberdade, de segurança, de justiça, de celeridade e de simplicidade no espaço da União (Neste sentido, Inês Godinho, citada por Manuel Guedes Valente, em “Do Mandado de Detenção Europeu”, ed. Almedina a pág. 241). As dúvidas de interpretação entre os preceitos 2º nº 3 e 12º nº 1 al. a) da Lei 65/2003 têm de ser resolvidas através da Decisão-Quadro nº 200/584/JAI do Conselho de 13 de Junho de 2002, , que a precedeu e deu origem á àquela Lei. Assim, concordamos com o Digno Procurador Geral Adjunto de que qualquer interpretação das normas terá de ser feita de acordo com “o princípio da interpretação conforme”, de acordo com o Acórdão do Tribunal de Justiça das comunidades Europeias de 16.06.2005, proferido no procº nº C-105/2003, acessível em dgsi.pt/portal para o direito da União Europeia), que veio consagrar, aquele princípio, no seu ponto 43 , relativamente às Decisões-Quadro adoptadas no âmbito do Título VI da União Europeia, nos termos do qual ao aplicar o direito interno, o órgão jurisdicional de reenvio chamado a proceder à sua interpretação é obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do texto e das finalidades da decisão-quadro, a fim de atingir o objectivo visado por esta última e de se conformar, assim, com o art. 34º, nº 2, alínea b) do Tratado. Vejamos, então, o que nos diz a Decisão-Quadro nº 2002/584/JAI relativa ao MDE, acerca da questão em análise. Estabelece o art. 4, sob a epígrafe (motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu):« A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu: 1. Se, num dos casos referidos no nº4 do art. 2, o facto que determina o mandado de detenção europeu não constituir uma infracção nos termos do direito do Estado- Membro de execução; (…)». O art. 2º nº 4 dispõe que “no que respeita às infracções não abrangidas pelo nº 2, a entrega pode ficar sujeita à condição de os factos para os quais o mandado de detenção europeu foi emitido constituírem uma infracção nos termos do direito do Estado-Membro de execução, quaisquer que sejam os elementos constitutivos ou a qualificação da mesma. Do art. 4º nº 1 resulta que o Conselho da União Europeia previu a possibilidade de recusa “quando o facto que determina o mandado de detenção europeu não constituir uma infracção nos termos do direito do Estado-Membro de execução”, situação a que deu expressão, na Lei nº 65/2003, a redacção daquela alínea a) do nº 1 do art. 12º. Por sua vez, o art. 2º nº 4 admite a mera possibilidade de, nos casos das infracções não abrangidas pelo nº 2, a entrega da pessoa reclamada ficar sujeita à condição de os factos para os quais o MDE foi emitido constituírem infracção nos termos do direito do Estado membro de execução (...). As situações referidas foram, assim, consideradas pela Decisão-Quadro como causas de recusa facultativas de execução do MDE. As causas de recusa obrigatória estão fixadas taxativamente no art. 3º da Decisão-Quadro e do mesmo não consta a situação em causa nos presentes autos. Assim, a interpretação adequada do nº 3 do art. 2 da Lei nº 65/2003, tendo por base os pressupostos, que subjazem ao espírito da referida Decisão- Quadro – de reconhecimento mútuo, de confiança, de abolição de exigências próprias (a dupla incriminação), do processo de extradição, de liberdade, de segurança, de celeridade e simplicidade no espaço da União, deve corresponder ao sentido prático que a sua previsão mais não é do que aplicável às situações em que a infracção, além de não ser punível pela lei portuguesa, seja punível no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima inferior a 3 anos (Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Évora de 03-07-2007, em www.dgsi.pt). Aos crimes indiciados corresponde, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, pena privativa da liberdade superior a 3 anos. Assim, não constituindo a ausência de punibilidade dos factos motivo de recusa obrigatória, ela pode proceder se a ponderação a fizer suportar, em termos facultativos. A lei não define no que respeita a esta alínea a) do nº 1 do art. 12º, os fundamentos e os critérios para o exercício da faculdade, que é faculdade do Estado português como Estado de execução poder recusar a entrega. O legislador não estabeleceu os fundamentos e critérios, sendo a lei omissa a este respeito, no entanto, a omissão não pode constituir motivo ou razão de inaplicabilidade da norma. Perante tais lacunas, exige-se ao Estado de execução uma acrescida ponderação dos interesses relevantes com o fim avaliar da necessidade, da proporcionalidade e da adequação das finalidades da entrega tendo em conta os valores em conflito. As exigências de prevenção geral e especial que subjazem aos crimes que fundamentam o registo e a obrigatoriedade legal das notificações previstas nas secções 85ª e 86ª da Lei de 2003 do Reino Unido são elevadas e os crimes de natureza sexual merecem fortíssima censura social. Por outro lado, indicia-se que o arguido mostra ser portador de uma personalidade bem censurável, em que existe um alto risco de reincidência, pelo que inexiste motivo para a recusa da sua entrega. Nestes termos, improcedem as causas de recusa invocadas pelo arguido. 3.Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal do tribunal desta Relação em deferir a execução do mandado de detenção europeu para entrega do cidadão A às competentes autoridades do Reino Unido para efeitos de procedimento criminal, pelos factos e infracções que o motivaram. Sem custas. Notifique-se em conformidade com o art. 28º da Lei nº 65/2003. Após trânsito dê cumprimento ao art. 29º da mesma Lei. Évora, 20 de Novembro de 2012 (Texto elaborado e revisto pelo relator) José Maria Martins Simão Maria Onélia Vicente Neves Madaleno |