Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
19/15.7GAENT.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: DECLARAÇÕES DA ASSISTENTE
AFASTAMENTO DO ARGUIDO DA SALA DA AUDIÊNCIA
Data do Acordão: 02/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A lei prevê a possibilidade do afastamento do arguido da sala de audiência durante a prestação de prova testemunhal se “houver razões para crer que a presença do arguido inibiria o declarante de dizer a verdade” (art. 352º, nº 1. al. a), do CPP).

II - Tendo a assistente transmitido ao tribunal, através da sua mandatária, que a presença do arguido a poderia condicionar no seu depoimento, condicionamento que encontra uma justificação implícita no contexto geral dos factos probandos sobre os quais a declarante iria prestar declaração (respeitantes a agressão corporal infligida pelo arguido na sua pessoa), essa comunicação constitui base factual bastante da decisão do afastamento.

III - O direito de presença do arguido não é absoluto, admite restrições, e o princípio do contraditório permanece assegurado pela presença do defensor durante a prestação das declarações e pela comunicação posterior ao próprio arguido, efectuada pelo tribunal, do que se passou na sua ausência (art. 332º, nº 7, do CPP).

Sumariado pela relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 19/15.7GAENT, da Comarca de Santarém, foi proferida sentença a condenar o arguido JJ, como autor de um crime de ofensa à integridade física simples do artigo 143.°, nº 1, do CP, na pena de multa de 80 dias, à taxa diária de € 8,00, perfazendo o total de € 640,00. Foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente MS e condenado o arguido/demandado no pagamento àquela da quantia global de € 896,70, acrescida dos juros.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

No recurso principal
“1.ª O recorrente foi condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do CP, na pena de multa de oitenta dias, à taxa diária de oito euros, o que perfaz o total de seiscentos e quarenta euros, bem como, a pagar à assistente a quantia de € 896,70, a título de indemnização cível.

2.ª Deu, o tribunal a quo, como provado que, no decurso de uma discussão entre o recorrente e a assistente, esta atirou, a tigela de sopa que aquele se preparava para comer, para o lava-loiças e que, não satisfeito, o recorrente desferiu com a mão uma pancada na face da assistente e lhe puxou, com as mãos, o cabelo, arrastando-a pelas escadas. Tendo a assistente, como consequência da actuação do recorrente, sofrido, na face, equimose arroxeada periorbitária direita e ferida contusa no ângulo externo da fenda orbicular, bem como, dor, tumefação e hematoma com escoriação na região lombar direita.

3.ª O Tribunal a quo, na motivação, refere que o recorrente, optando por prestar declarações, fê-lo de forma simples, espontânea, mas algo selectiva, pelo que, as suas declarações mereceram alguma reserva por parte do Tribunal. Mais diz, a motivação, que, refugiando-se, o recorrente, no desnorte em que se quedou, disse não se recordar do que aconteceu nos momentos posteriores, lembrando apenas que agarrou a assistente para a levar para fora de casa e que, estando bastante alterado/nervoso, decidiu chamar a GNR. O recorrente negou que tivesse agredido a assistente, justificando as lesões físicas que esta evidenciou por eventual queda que terá sofrido sozinha, uma vez que estava alcoolizada.

4.ª Por sua vez, a assistente, segundo a motivação, apresentou-se frágil, nervosa mas espontânea e coerente, merecendo a credibilidade do Tribunal a quo pela forma sentida como relatou os factos. Tendo relatado o motivo da discussão com o recorrente, as agressões de que foi alvo, consentâneas com as lesões evidenciadas e o sofrimento a humilhação e a vergonha que sentiu, o que a levou a esconder-se debaixo da cama do filho quando a GNR apareceu. Relatou ainda que caiu da cama e se lesionou no ombro direito.

5.ª O recorrente, ao abrigo do disposto na al. a), do n.º 3, do artigo 412.º, do CPP, impugna a matéria de facto dada como provada no ponto 2, dos factos provados porquanto, na sua perspectiva, encontra-se incorrectamente julgada.

6.ª Para tanto, alega que, em sua opinião, não corresponde à verdade que as suas declarações tenham sido prestadas de forma selectiva. O recorrente negou, de forma peremptória, que tenha desferido uma pancada com a mão na face da assistente, bem como negou que lhe tenha puxado os cabelos com as mãos, arrastando-a, assim, pelas escadas. Confessou que, após a assistente ter arremessado a tigela de sopa para o lava-loiças, continuou a «agredi-lo» verbalmente e agarrou-lhe nas pontas do cachecol que usava apertando-lho com força o pescoço. Para que a assistente pusesse fim a essa conduta o recorrente empurrou-a, tendo a mesma ido bater com as costas no lava-loiças. Admite como possível que, nessa ocasião, tenha provocado, na assistente, as lesões dadas como provadas no ponto 9, dos factos provados. Tendo o recorrente ainda dito que, para por termo às agressões verbais da assistente, a agarrou pelos colarinhos, a fim de a por na rua. O que o recorrente disse não se lembrar foi que não sabe a forma como a assistente desceu as escadas, o que é compreensível porquanto se encontrava já alterado/nervoso. Pelo que, não se compreende a razão pela qual o Tribunal a quo diz que estranhou que o recorrente se lembrasse dos acontecimentos que antecederam a agressão e não se recordasse do momento preciso em que se terão dado as ofensas porquanto, isto não corresponde ao que realmente se passou na audiência de julgamento. Aliás, a assistente confirmou que puxou pelas pontas do cachecol do recorrente e que lho apertou contra o pescoço, bem como admitiu ter ofendido verbalmente o recorrente.

7.ª Para o tribunal a quo, a assistente apresentou-se espontânea e coerente, apesar de frágil e depôs de forma sentida. O recorrente não partilha desta versão. A assistente, questionada acerca da agressão na face de que disse ter sido alvo, não conseguiu, em momento algum, explicar ao tribunal a forma como o recorrente actuou. Foi evasiva. A assistente preocupou-se mais em explicar ao Tribunal as humilhações que sofreu por ter abandonado a casa em que viveu com o recorrente e por ter tido necessidade de se socorrer do apoio material e financeiro dos seus familiares. A assistente, por este facto, mostrava-se ainda ressentida, apesar do tempo já decorrido.

8.ª Para dar como provado que o recorrente desferiu com a mão uma pancada na face da assistente, o Tribunal a quo, socorreu-se do depoimento destes e do teor do relatório médico-pericial. O recorrente negou ter praticado tal facto. A assistente, não soube explicar ao Tribunal o modo como o recorrente agiu. Disse apenas que o recorrente a agrediu e mostrou-se, ainda, deveras ressentida com este.

9.º De facto, as lesões evidenciadas pela assistente são consentâneas com as agressões de que diz ter sido alvo. Mas, será, no caso em apreço, suficiente para condenar o recorrente? Cremos que não. No dia dos factos a assistente estava alcoolizada, escondeu-se da GNR debaixo da cama do filho, caiu da cama, tendo-se lesionado no ombro direito. Por entre estas «peripécias» sabe-se lá como foram, efectivamente, provocadas as lesões evidenciadas pela assistente. O Tribunal a quo não tomou em consideração todos estes factos. Nem o facto de a assistente ainda ter profundo ressentimento pelo recorrente. Razão pela qual o condenou, ao invés de absolvê-lo.

10.ª Deu-se ainda como provado que o recorrente puxou com as mãos o cabelo da assistente, arrastando-a pelas escadas. Foi junto aos autos uma fotografia onde esta evidencia os cabelos muito curtos. Pelas regras da experiência não é possível arrastar alguém, de cabelos curtos, pelas escadas abaixo e, esse alguém, não apresentar qualquer lesão ou queixa no couro cabeludo. Razão pela qual é de crer que o recorrente falou verdade quando disse que arrastou a assistente pelos colarinhos e não pelos cabelos. Tal facto, só poderia ter sido dado como não provado.

11.ª Quanto à tumefação e hematoma com escoriações na região lombar direita, o recorrente confessou que empurrou a assistente, tendo esta indo embater com as costas no lava-loiça, admitindo que lhe pudesse ter provocado estas lesões nessa ocasião. Não obstante, o recorrente só empurrou a assistente para se libertar da dor que esta lhe estava a provocar ao apertar-lhe o pescoço com o cachecol. Razão pela qual entendemos não dever ser o recorrente condenado por estes factos porquanto agiu de molde a afastar uma agressão de que estava a ser alvo.

12.ª Mais se requer a apreciação do recurso interlocutório, do despacho proferido em audiência de julgamento, que decidiu afastar o recorrente da sala, durante a prestação de declarações pela assistente, sem que para tal existisse qualquer fundamento de facto.”

No recurso do despacho intercalar:

“1.ª Vinha o arguido acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.°, n.o 1 do CP.

2.ª Na audiência de discussão foi requerido, pela mandatária da assistente, o afastamento do arguido, da sala, durante a prestação de declarações daquela,

3.ª Dada a palavra ao Ministério Público, pelo mesmo foi dito nada ter a opor, dada a palavra à Defensora Oficiosa do recorrente, esta opôs-se. No entanto, o despacho de que se recorre decidiu pelo afastamento do recorrente da sola de audiência, aquando da prestação de declarações da assistente.

4.ª Na perspectiva do recorrente, tal decisão viola o artigo 32.°, n.º 5 da CRP, e os artigos 61.º e 352,°, n.o 1, al, a), do CPP porquanto, embora os direitos conferidos ao arguido comportem excepções, os mesmos não podem ser-lhe retirados sem que haja fundamentos para tal.

5.ª No caso em apreço, a Ilustre mandatária da assistente refere tão somente que a presença do arguido poderá condicionar o depoimento da assistente, Sendo que no despacho recorrido inexistem quaisquer factos objectivos, que, em concreto, fundamentem a retirada ao recorrente dos direitos que legalmente lhe são conferidos.

6.ª Pelo exposto, violou o Tribunal a quo os artigos referidos na conclusão 4.ª porquanto, deveria ter decidido pelo não afastamento do arguido da sala da audiência e não o contrário.

O Ministério Público respondeu aos dois recursos pronunciando-se sempre no sentido da improcedência, e concluindo, no recurso principal, e em síntese, que este deve ser rejeitado por falta de cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto do art. 412º, nº 3, do CPP; no recurso intercalar, que, a ter sido cometida irregularidade, ou mesmo nulidade, esta teria de ser arguida no próprio acto, encontrando-se agora sanada.

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta acompanhou as respostas ao recurso.

Não houve resposta ao parecer.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. No dia 11/02/2015, pelas 20h45, no interior da residência sita …., Vila Nova da Barquinha, no decurso de uma discussão entre o arguido e a sua companheira MS, esta atirou a tijela de sopa que o arguido se preparava para comer para o lava-loiças.

2. Não satisfeito, o arguido desferiu, de imediato, com a mão uma pancada na face da assistente e puxou-lhe com as mãos o cabelo, arrastando-a pelas escadas,

3. Tendo só cessado a sua conduta quando JM, filho da assistente, se colocou à frente do arguido e ordenou que largasse a sua mãe.

4. Como consequência necessária e directa desta actuação do arguido, a assistente sofreu: na face, equimose arroxeada periorbitária direita, ferida contusa com 5 mm de comprimento a 1 cm do ângulo externo da fenda orbicular.

5. Tal lesão determinou 5 (cinco) dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho por 3 (três) dias.

6. Ao proceder como descrito o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente a ofendida.

7. O arguido actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

8. Nas referidas circunstâncias, o arguido guardava num móvel da sala da estar da residência, uma besta com comprimento de 62 cm, dotada de mecanismo de disparo que se destinava a lançar virotão.

9. Mercê da actuação do arguido, a assistente ainda sofreu dor, tumefacção e hematoma com escoriação na região lombar direita,

10. Necessitando de assistência /tratamento médico e medicamentosa,

11. E acompanhamento psicológico,

12. A propósito do que já despendeu a quantia total de € 96,70 (noventa e seis euros e setenta cêntimos).

13.Bem como teve que realizar deslocações aos hospitais de Abrantes e Braga, centro de saúde de Vila Nova da Barquinha e da Póvoa do Lanhoso, ao Tribunal, à GNR da Póvoa do Lanhoso e ao escritório da sua mandatária,

14. Despendendo quantia não inferior a € 50 (cinquenta euros).

15. Como consequência da actuação do arguido, a assistente, para além da dor física, sofreu forte abalo psíquico, desgosto, mágoa, constrangimento, angústia, humilhação, vergonha e impotência,

16. O que ainda hoje vivencia sempre que se lembra do sucedido.

17. A assistente deixou de trabalhar, tendo que abandonar a casa onde vivia com o arguido e regressar à sua localidade sita na Póvoa do Lanhoso, distrito de Braga.

18. O arguido é licenciado, economista. Aufere o valor correspondente ao SMN. Não tem despesas fixas mensais, para além das correntes. Vive com uma companheira, reformada, financeiramente autónoma. Não tem antecedentes criminais.

E foram considerados como não provados os factos seguintes:

“1. Que o arguido tenha desferido a pancada aludida 2. dos factos provados com a palma da mão;

2. Que o arguido conhecesse as características do objecto aludido em 8. dos factos provados, sabendo que o mesmo podia servir de arma de agressão e, apesar de não ter justificação para o ter a sua posse, quis mantê-lo em seu poder.

3. Que o arguido soubesse que não poderia deter o referido objecto, actuando sabedor que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;

4. Que, como consequência da actuação do arguido, a assistente tenha sofrido uma limitação funcional do ombro direito;

5. Necessitando de receber tratamento médico na especialidade de ortopedia, atentas as persistentes dores sentidas no ombro direito, despendendo a quantia de € 50 (cinquenta euros);

6. Que a assistente tenha utilizado transporte particular nas deslocações aludidas em 13. dos factos provados;

A motivação da matéria de facto foi a que segue:
“Para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu a uma análise ponderada e crítica de todas as provas produzidas em audiência de julgamento, livremente apreciadas e valoradas em conjugação com as regras de experiência comum.

Dir-se-á, desde logo, que foram determinantes, no que concerne à demonstração da factualidade típica do crime de ofensa à integridade física, as declarações do próprio arguido, conjugadas com as declarações da assistente e com o depoimento da testemunha JM, corroborados e reforçados com o relatório médico junto aos autos (fls. 45-46 e 72-73). Para prova dos factos atinentes à demonstração do pedido de indemnização cível deduzido, o Tribunal socorreu-se das declarações da própria assistente, e dos depoimentos das testemunhas JM e MO, indicadas a respeito, assim como à prova documental junta pela demandante.

No respeita às características da arma encontrada na residência do arguido, o Tribunal considerou o auto de apreensão e de exame de fls. 60 e 158.

O arguido JJ, optando por prestar declarações, fê-lo de forma simples, espontânea, mas algo selectiva. Por isso, as suas declarações mereceram alguma reserva por parte do Tribunal. Contextualizando os factos no tempo e no espaço, contou que, chegando a casa ao final do dia, após uma discussão matinal com a assistente, com quem vivia há cerca de dois anos, gerou-se uma nova discussão, em que a sua companheira, de forma algo descontrolada, começou a provocá-lo, ofendendo-o, e remessando a tijela de sopa, que acabara de aquecer, contra a parede. E que, nesse contexto a empurrou, perdendo ele também o controlo. Refugiando-se no desnorte em que se quedou, disse não se recordar do que aconteceu nos momentos posteriores, lembrando apenas que a agarrou para a levar para fora de casa e que não chegou a concretizar tal intento por intervenção do filho da assistente que estava em casa. Mais referiu que, estando bastante alterado/nervoso, decidiu chamar a GNR: "- antes que me desse o tilte" (sic), colocando-se, assim, termo à contenda. Desta forma, negou que tivesse agredido a assistente, justificando as lesões físicas que ela evidenciou por eventual queda que poderá ter sofrido sozinha, uma vez que estava alcoolizada, mais procurando demonstrar que nunca poderia ter desferido uma bofetada no rosto, atenta a posição em que ambos se encontravam no momento em que tal terá ocorrido. Ora, o Tribunal estranhou que, lembrando-se o arguido dos acontecimentos que antecederam a agressão, não se recordasse do momento preciso em que se terão dado as ofensas físicas.

Explicou ainda o contexto em que adquiriu a besta, numa feira, em Braga, para a oferecer ao filho da assistente pelos anos, assim como a utilização lúdica e decorativa que lhe deram, desconhecendo da sua proibição.

MS, assistente/demandante cível, apresentou-se frágil, nervosa, mas espontânea e coerente. Mereceu-nos credibilidade atenta a forma sentida com que relatou os factos. Explicou o motivo que subjazeu a discussão com o arguido, iniciada no dia de manhã, a troca de palavras que existiu entre ambos e as agressões que foi alvo, consentâneas com as lesões evidenciadas. Relatou a surpreendente bofetada que o arguido lhe desferiu quando atirou a tigela de sopa contra o lava-loiças, os momentos que se seguiram, em que o arguido a agarrou pelos cabelos e a puxou pelas escadas a baixo com o objectivo de a levar para a rua, altura em que pediu auxílio ao filho, que estava em casa, tendo a agressão terminado por interferência deste. Mais aludiu ao sofrimento, à humilhação sentida, à vergonha que a inundou e que levou-a a esconder-se debaixo da cama do filho quando a GNR apareceu. Esclareceu que caiu da cama e que se lesionou no ombro direito, razão pela qual o Tribunal considerou que esta lesão e o ressarcimento pedido a respeito não são imputáveis ao arguido, que não lhes deu causa. Mais expendeu sobre a mudança de vida que teve que vivenciar após esse dia, em que saiu de casa, sem condições para refazer a sua vida, e a decorrente necessidade de regressar à sua terra natal, procurando a ajuda dos familiares, o que a transtornou: "- Tinha vergonha da família, dos amigos, da sociedade. Recomeçar de novo foi muito duro." (sic). Descreveu os tratamentos médicos que careceu na decorrência da agressão cometida pelo arguido, as despesas despendidas com medicação, deslocações e o sofrimento psicológico que padeceu e ainda padece. Neste contexto, e porque corroborada pelos demais elementos de prova, o Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos dados como provados.

Corroborou com o arguido quanto à justificação para a detenção da besta.

JM, filho da assistente, numa postura própria da idade da adolescência, mas seguro na descrição dos factos que presenciou, declarou que, ouvindo um estrondo, foi ao encontro da mãe, quando viu o arguido a agarrar a mãe pelos cabelos, puxando-a escadas a baixo, estando ambos muito nervosos e a sua mãe muito chorosa e raivosa, altura em que o arguido parou com a agressão e chamou a GNR. Confirmou que a sua mãe se escondeu debaixo a sua cama, envergonhada com a situação, assim como despendeu sobre as alterações que a sua vida e da sua mãe sofreram, regressando à Póvoa do Lanhoso, onde foram acolhidos por familiares, numa altura em que a mãe andava deprimida, triste, sem trabalho, humilhada.

Reiterou a explicação dada pelo arguido e pela mãe relativamente à posse da besta.

MS, irmã da assistente, de jeito simples, declarou ao Tribunal que acolheu a irmã após os factos, que se apresentava fragilizada, debilitada, chorosa, deprimida, dorida, incapaz sequer de fazer a lide da casa. Mais referiu os ferimentos que observou na assistente, designadamente nas costas, carecendo de tratamento médico, medicamentos, o que lhe causou despesas.

JL, médico oftalmologista, amigo do arguido há mais de vinte anos, não tendo presenciado qualquer facto, sequer convivido com o arguido e com a assistente após os factos, depôs apenas sobre a possibilidade de uma bofetada causar as lesões que a assistente padeceu no rosto, dizendo ser as mesmas possíveis, tudo dependendo da força empregue no desferimento da pancada.

No que respeita aos factos demonstrados, respeitantes às condições sócio- económicas do arguido, o Tribunal atendeu às declarações prestadas pelo próprio, as quais se revelaram sérias e credíveis. Relativamente à ausência de antecedentes criminais, relevou o respectivo certificado de registo criminal.

Quanto aos factos não demonstrados, dir-se-á o seguinte: no que respeita aos atinentes ao crime de detenção de arma proibida, o arguido, a assistente e o filho desta, foram unânimes na explicação que a referida arma foi adquirida numa feira, aberta ao público em geral, para oferecer ao filho da assistente pelos seus anos, assim como que a mesma era usada como mero elemento decorativo e lúdico, desconhecendo-se, pois, a proibição da sua detenção. Esta explicação mereceu-nos credibilidade, atenta a espontaneidade e coerência com que a mesma foi prestada.

No que respeita aos demais factos, os mesmos resultaram de falta de prova, sendo que, no que contende com as dores no ombro direito da assistente e as despesas suportadas a respeito, tendo aquela declarado que, já depois da agressão perpetrada pelo arguido, caiu da cama e se magoado nesse ombro, o Tribunal não considerou que tivesse sido a actuação do arguido a causar tal dor e despesa, não sendo, por isso, ele responsável pelo seu ressarcimento.”

O despacho intercalar recorrido é do seguinte teor:

“Tendo a assistente, através da sua Mandatária, declarado que a presença do arguido durante a prestação das suas declarações a inibirá de dizer a verdade, e não contendendo com a defesa do arguido, uma vez que o Tribunal lhe dará conhecimento do sucedido na sua ausência, conforme requerido, determino que o arguido se ausente da sala de audiências enquanto a assistente prestar declarações.
Notifique.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são as seguintes: no recurso do despacho intercalar, a invalidade da prova por declarações da ofendida porque prestadas na ausência do arguido; no recurso principal, a impugnação da matéria de facto.

Da (in)validade da prova por declarações da ofendida prestadas na ausência do arguido

Refere o recorrente que, na audiência de discussão e julgamento, foi requerido pela mandatária da assistente o afastamento do arguido da sala, durante a prestação de declarações da ofendida.

E com a anuência do Ministério Público mas com a sua oposição, o tribunal decidiu-se efectivamente pelo seu afastamento da sala, aquando da prestação das declarações da assistente.

Defende o recorrente que esta decisão viola o art. 32.°, n.º 5 da CRP e os arts. 61.º e 352°, n.º 1, al. a), do CPP porquanto “embora os direitos conferidos ao arguido comportem excepções, os mesmos não podem ser-lhe retirados sem que haja fundamentos para tal”.

Questiona o recorrente, em suma, a existência de base factual bastante para essa fundamentação.

No art. 352°, n.º 1, al. a), do CPP, a lei prevê “o afastamento do arguido da sala de audiência durante a prestação de depoimento”, devendo o tribunal ordená-lo (“o tribunal ordena…”) se “houver razões para crer que a presença do arguido inibiria o declarante de dizer a verdade”.

O preceito visa “assegurar que as declarações a prestar por certas pessoas se processem sem inibição, sem intimidação ou qualquer outra perturbação, bem como salvaguardar a integridade física e psíquica de quem depõe” (Oliveira Mendes, CPP Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 1ª. ed., p.1112).

No caso presente, estará sobretudo em causa a primeira situação, tendo-se pretendido resguardar a desinibição e a ausência de intimidação da declarante, de modo a assegurar a autenticidade e a maior fidedignidade das suas declarações.

Tendo sido transmitida pela assistente, através da sua mandatária, que a presença do arguido a poderia condicionar no depoimento, condicionamento que encontra justificação implícita desde logo no contexto geral dos factos probandos sobre os quais a declarante iria prestar declaração (respeitantes a agressão corporal infligida pelo arguido na sua pessoa), mostra-se factualmente justificado o afastamento.

Ouvidas a acusação e a defesa, decidiu o tribunal que Tendo a assistente, através da sua Mandatária, declarado que a presença do arguido durante a prestação das suas declarações a inibirá de dizer a verdade, e não contendendo com a defesa do arguido, uma vez que o Tribunal lhe dará conhecimento do sucedido na sua ausência, conforme requerido, determino que o arguido se ausente da sala de audiências enquanto a assistente prestar declarações”. Decisão que se encontra factual (como se disse) e também juridicamente sustentada, cumprindo as legais exigências de fundamentação das decisões judiciais, em geral.

A simplicidade e linearidade da questão em análise não suscitava grande controvérsia e não exigia maior fundamentação.

O princípio do contraditório mostra-se também integralmente assegurado, não só pela presença do mandatário do arguido durante a prestação das declarações, como depois no cumprimento atempado do disposto no art. 332º, nº 7, do CPP (comunicação ao arguido do que se passou na sua ausência).

A norma à luz da qual se procedeu consagra uma derrogação ao direito de presença do arguido, a qual é “perfeitamente admissível, porque tal direito não é absoluto e admite restrições”. A disposição visa precisamente garantir, e conciliar, por um lado, a liberdade na prestação das declarações e a genuinidade destas e, pelo outro, as garantias de defesa e o contraditório, “que ficam garantidos pela norma do nº 2” (Maia Gonçalves, CPP anotado, 17ª ed. p. 801).

Não foi, por tudo, cometida ilegalidade, nem se mostram violados norma ou princípio constitucional.

Da impugnação da matéria de facto
O recorrente pretende impugnar a matéria de facto, anunciando fazê-lo “nos termos da al. a), do n.º 3, do artigo 412.º do CPP”.

Como decorre da lei e os tribunais há muito enunciam, a impugnação da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº2, do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada; e por via do recurso amplo, ou efectivo, da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP.

O sujeito processual que discorda da sentença de facto e dela recorre pode, assim, optar, no seu recurso, pela invocação de um erro notório de facto, que é o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (e os vícios da sentença podem também ser conhecidos oficiosamente, independentemente de arguição e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ de 19.10.95) ou de um erro não notório, que a sentença, por si só, não demonstre.

No primeiro caso, a discordância deve traduzir-se na invocação de um vício da sentença e este recurso pode ser ainda considerado como sendo em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de se socorrer das provas produzidas ou examinadas em audiência.

Do art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP decorre que, quando opte pelo recurso amplo, o recorrente deva especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação tem de fazer por referência ao consignado na acta de audiência de julgamento, indicando o recorrente as passagens em que se funda a impugnação. E na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” segundo jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012). A via da impugnação ampla da matéria de facto distingue-se da fiscalização através do texto, por ser uma fiscalização através das provas.

No presente caso, é evidente que o recorrente se absteve totalmente de recorrer a prova gravada e de proceder às legais especificações. Não especificou nenhuma prova produzida em julgamento já que a especificação se tinha de efectuar, repete-se, através da indicação das passagens em que o recorrente funda a impugnação ou através da referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente.

Resta, assim, à Relação proceder à sindicância da “sentença de facto” - constituída pelos factos provados, pelos factos não provados e pelo exame crítico das provas - através do exame do próprio texto da sentença

O erro notório na apreciação da prova consiste em considerar-se provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador de regras da experiência comum. “Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74).

Se os enunciados descritos na sentença como “factos provados” decorrem naturalmente da motivação da matéria de facto da mesma decisão, se esta descreve um processo de formação de convicção que não padece de erros de raciocínio evidentes, de nada serve a invocação de um erro notório. Se a livre convicção se mostra explicada na sentença segundo regras de lógica, de ciência e de experiência corrente, e ainda em obediência aos princípios processuais e regras legais de prova, não é possível vislumbrar (e declarar) tal erro, na sentença. Nestes casos, restará à Relação decidir que a sentença não enferma de vício de texto, particularmente o invocado, e confirmar a decisão de facto proferida em 1ª instância.

E é o que sucede, com evidência bastante, no presente.

Contrariamente ao que o recorrente denuncia, a sentença revela que o tribunal atendeu devidamente à versão da assistente, que foi confirmativa de todos os factos provados, e apenas destes. Os factos não provados resultaram de uma ausência de prova, desde logo por não terem sido confirmados pela própria assistente. Note-se que a assistente não confirmou alguns dos factos que seriam até abstractamente favoráveis à sua posição, esclarecendo-os de um modo que beneficiou o arguido, o que se coaduna bem com a credibilidade que o tribunal lhe reconheceu.

O tribunal explicou devidamente porque considerou verosímil a versão relatada pela assistente e mais credível o relato feito por ela. Explicou-o, não só atendendo ao modo como esta depôs (e aqui a imediação assume a importância que é reconhecida pela jurisprudência), como à corroboração encontrada no contexto geral da prova.

O tribunal atentou também no sentido das declarações do arguido, explicando por que razão, na parte da negação dos factos dados como provados, não convenceram.

Por último, retiraram-se de todas as restantes provas, maxime dos exames médicos e dos depoimentos das testemunhas (o depoimento do filho da assistente, testemunha presencial, e do médico, amigo do arguido) as ilações que se justificavam, de acordo com as regras de racionalidade, de lógica e de normal acontecer. Destaque-se que, de acordo com a prova corroborante das declarações da ofendida, as lesões sofridas por esta mostram-se compatíveis com a acção do arguido (assim resulta do exame médico e do depoimento do médico ouvido em julgamento).

Assim, do cotejo da motivação do recurso com a fundamentação de facto da sentença, resulta que o tribunal atentou em todas as provas em que deveria ter atentado, não revelando erros de apreensão e de percepção de provas, erro esse que o recorrente nem conseguiu enunciar devidamente.

E não sendo, em concreto, detectável desconformidade ou incorrecção no processo de leitura e de avaliação das provas efectuado pelo tribunal de julgamento, tendo este justificado adequadamente as suas conclusões probatórias, de acordo com uma apreciação livre mas sempre objectivamente justificada e motivada, a decisão tomada na sentença subsiste em recurso como hipótese prevalecente.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal da Relação de Évora em:

Julgar improcedentes os dois recursos, confirmando-se a sentença.

Custas pelo recorrente que se fixam em 5UC (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/5 e Tab. III RCP).

Évora, 06.02.2018

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)