Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1247/05-1
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: OMISSÃO
CAUSALIDADE
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 12/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO PROVIDO
Sumário:
I - Intimamente ligado à violação do dever objectivo de cuidado, traduzida na criação de perigo para um bem jurídico protegido está o princípio da confiança, hoje reconhecido por todo o direito penal, sobretudo no âmbito da circulação rodoviária.
II - Em traços gerais, consiste ele na ilação de que quem se comporta de acordo com a norma de cuidado que o direito impõe, pode confiar que o mesmo os outros farão, sempre e quando não existam indícios concretos para supor o contrário.
III - Os delitos de omissão podem ser de omissão própria (neles, o dever de actuar surge, no plano objectivo, da presença de uma situação típica, p. ex. a omissão de auxílio) ou de omissão imprópria (comissão por omissão), estes caracterizados pela falta de menção expressa no tipo respectivo do comportamento omissivo determinante da produção do resultado proibido, sendo necessário que o agente tenha uma obrigação de impedir o resultado típico em virtude de determinados deveres cujo cumprimento haja assumido ou lhe incumbem por razão do seu cargo ou profissão, isto é, a que o artigo 10.º chama “dever jurídico pessoal”. Esta especial obrigação converte o agente em garante de que não se produza o resultado, como se o tivesse ocasionado mediante uma acção positiva.
IV - Os delitos de omissão imprópria podem cometer-se por negligência sempre que o respectivo tipo de comissão assim o preveja, coincidindo, em parte, o dever de garante e o dever objectivo de cuidado.
V - Decorrendo da matéria de facto provada que:
- o co-arguido A... (dono da obra, detentor do domínio sobre a nova edificação) teve conhecimento da instalação de um esquentador numa casa de banho, se tendo apercebido da forma deficiente como esse objecto tinha sido instalado por pessoa (co-arguido B...) para o efeito não habilitada (para além do local da instalação, o tubo de evacuação de gases para o exterior estava mal colocado);
- o arguido A..., verificada a existência do esquentador na “nova” casa de banho, não diligenciou no sentido de recolher informação sobre os requisitos técnicos e legais da sua instalação no mencionado local e não ordenou a sua imediata remoção, apesar de saber que tal espaço seria utilizado, como foi, por diversas crianças,
destes factos decorre que sobre o co-arguido A... impendia o dever de garante da não produção do resultado típico que, em concreto, se traduziu na ofensa à integridade física de uma criança, provocada por intoxicação aguda por monóxido de carbono.
VI - Não pode valer-se do princípio da confiança para afastar a violação do dever objectivo de cuidado quem, como o arguido, contribuiu decisivamente para a criação de perigo para a vida e integridade física das crianças (entre elas, a ofendida) que utilizaram a casa-de-banho onde fora instalado o esquentador.
VII - Em sentido estrito, entende-se por causalidade cumulativa a concorrência conjunta de cursos causais que em separado não seriam suficientes e cuja realização não estava previamente acordada.
VIII - O problema de concorrência de riscos surge da circunstância de o comportamento não permitido poder respeitar a uma situação que por sua vez já está ameaçada pelo risco. Em tais situações, para verificar a responsabilidade pelo delito consumado deve-se determinar se se realizou o risco daquele que há-de responder como autor, ou outro risco.
VIII - A causa posta pelo autor não necessita ser a única, nem a última, nem tão pouco a mais efectiva, no sentido de uma causa efficiens.
IX - Se quanto às actuações do co-arguido B... e do co-arguido A... não existe seguramente qualquer concorrência de causas, mas actuações independentes, relevantes cada uma de per si para o resultado que se verificou (o primeiro colocou deficientemente o esquentador, em local indevido, e o segundo, sabendo da sua existência, nas preditas condições de perigosidade, nada fez para o remover), no que concerne às outras circunstâncias enunciadas (palha e outros materiais de ninhos a obstruírem o tubo de exaustão de gases e o número de banhos), ainda que tivessem ocorrido, não se vê que elas pudessem ser de algum modo autónomas (decorreriam tão só de uma situação de perigo potenciada pelo co-arguido A...) e, a sê-lo, por condescendência de apreciação, sempre seriam irrelevantes, pois que o decisivo é determinar se pode ser objectivamente imputável um resultado causado por uma acção humana (no sentido da teoria da condição) quando a mesma criou, para o seu objecto protegido, uma situação de perigo juridicamente proibida, e o perigo se materializou no resultado típico.
X - Em face do exposto, fica indelevelmente determinada a culpa do co-arguido A., o qual incorreu na prática do crime de ofensa à integridade física por negligência do art. 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao art. 144.º, als. b) e d), ambos do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, os Juizes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.

I. No Tribunal Judicial da Comarca de …, foram submetidos a julgamento os arguidos:
-A. …, e B…,pronunciados da prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 137.º do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelos n.ºs 1 e 3 do artigo 148.º, por referência às alíneas b) e d) do artigo 144.º, ambos do citado diploma.
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Por sentença de 4 de Fevereiro de 2005, o tribunal (singular) julgou parcialmente procedente o despacho de pronúncia e, em consequência:
- condenou o co-arguido A. … pelo cometimento, em autoria material, de um crime de infracção de regras de construção, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 277.º do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 50 do Código Penal, sob condição do arguido proceder à entrega da quantia de € 1 000 (mil euros), no prazo de 6 (seis) meses, aos Bombeiros Voluntários do ...,;
- absolveu o arguido A. … da agravação pelo resultado, nos termos do disposto no artigo 285 do Código Penal;
- absolveu o co-arguido B. …, da prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º do Código Penal;
- absolveu o co-arguido B. ..., da prática do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelos n.ºs 1 e 3 do artigo 148.º, por referência às alíneas b) e d) do artigo 144.º do Código Penal.
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Relativamente ao pedido de indemnização civil que fora deduzido pela assistente C. ...,, foi o seu conhecimento remetido para os meios civis, por despacho de fls. 2404 a 2406.
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Inconformado com a decisão, dela recorreu a assistente C. ...,, extraindo da respectiva motivação as conclusões que se passam a transcrever:
«1. O co-arguido B. …, solicitou ao co-arguido A. … que realizasse obras de transformação de um espaço de passagem (entre uma sala e o exterior do edifício) num espaço apto a funcionar como casa de banho.
2. O co-arguido B. ..., não providenciou por informar-se acerca dos condicionalismos legais e técnicos da transformação e também não obteve as necessárias licenças camarárias.
3. O co-arguido B. ..., conhecia bem as características do espaço transformado em casa de banho (utilizava como dono o complexo habitacional da Herdade de ...) e, por isso, sabia que a mesma não tinha condições de arejamento.
4. O co-arguido B. ..., sabia que era legalmente exigível obter licenciamentos camarários para a realização das obras de transformação em causa nos presentes autos.
5. O co-arguido B. ..., sabia que o esquentador fora montado no interior da casa de banho (aliás chegou a utilizá-la) e nada fez para o remover e assim neutralizar as causas do perigo.
6. O co-arguido B. ..., sabia que o co-arguido A. … apenas fora contratado para exercer funções de pedreiro.
7. O co-arguido B. ..., podia ignorar que era proibido instalar esquentadores no interior de casas de banho, mas tinha obrigação de saber e sabia que tal instalação era perigosa, pois, além de ter sido alertado para esse perigo, muito antes do acidente, pelo Sr. …, é uma pessoa licenciada o que lhe garante um grau de informação superior ao cidadão comum.
8. Apesar do esquentador ter sido instalado no interior da casa de banho o co-arguido B. ..., considerou que as obras estavam “como devem ser”.
9. É do conhecimento comum que a instalação de esquentadores a gás no interior de casas de banho envolve um elevado grau de perigosidade, aliás é público desde há muito os “media” participam em campanhas de alerta para esse perigo.
10. O co-arguido B. ..., não previu como podia e devia que em virtude da forma e do local onde foi instalado o esquentador, pudessem resultar lesões graves na saúde da C. …, as quais constam dos diversos relatórios médicos e que aqui se dão por reproduzidos.
11. O co-arguido B. ..., não pode invocar em seu beneficio o principio da confiança porque foi ele o primeiro a não acautelar o perigo ao solicitar ao co-arguido a realização de uma obra de transformação sem previamente ter reunido as necessárias condições legais e técnicas.
12. O co-arguido B. ..., é considerado uma pessoa exigente e responsável, pelo que se lhe impunha um comportamento diferente daquele que adoptou, sobretudo impunha-se-lhe um reforço de cuidados já que sabia que aquele local ia ser utilizado por cerca de 50 crianças.
13. O co-arguido não adoptou o comportamento adequado a evitar as consequências normais e previsíveis da sua conduta, isto é, não fez o que lhe era exigível para evitar a verificação do resultado típico.
14. Os resultados só se verificaram porque tendo em conta as “regras gerais de experiência” e “os conhecimentos concretos do co-arguido” este não procedeu com o cuidado que se lhe impunha, primeiro porque não obteve as licenças, segundo porque não mandou retirar o esquentador instalado na casa de banho, o que fez com que a C. ..., inalasse o monóxido de carbono expelido pelo dito esquentador.
15. A inalação do monóxido de carbono libertado por um esquentador a gás instalado dentro de uma casa de banho é causa adequada a causar a morte ou lesões à saúde de uma pessoa.
16. No caso das ofensas à integridade física causadas à C. ..., não existem factos interruptivos da causalidade, entendidos estes como aqueles que, de per si, são capazes de causar o resultado (tenha-se presente que a eventual falta ou deficiente assistência médica por falta do “ambu” na ambulância não se coloca no que concerne à C. ...,, já que esta foi transportada por carro particular para o Centro de Saúde de …).
17. A própria sentença recorrida considerou que não eram factores interruptivos do processo causal a existência de um ninho no tubo de exaustão e o facto de 18 ou 20 outras crianças terem, momentos antes, tomado banho naquelas instalações.
18. Deve ser imputado ao co-arguido B. ..., a lesão do bem jurídico (integridade física) porque esta surge como uma consequência normal e previsível da violação de um dever objectivo de cuidado e não como uma mera coincidência das circunstâncias.
19. No caso da C. ..., não houve nenhuma intervenção de terceiros nem causas interruptíveis do processo causal.
20. O comportamento displicente do co-arguido B. ..., revela um acentuado juízo de reprovação ético/social e não só potenciou o risco como deu causa adequada aos resultados verificados.
21. O co-arguido B. ..., actuou com elevado grau de ilicitude atento o perigo concreto criado para a vida e integridade física de C. ..., e das demais crianças que frequentavam o “campo de férias”.
22. O tribunal a quo fez uma errada interpretação do art. 10.° n.° 2 do Código Penal, na medida em que considerou, por um lado, que o co-arguido B. ..., tinha o dever de actuar por forma a evitar o resultado e, por outro lado, decidiu absolvê-lo da prática do crime pelo qual vinha pronunciado.
23. Os factos provados preenchem os requisitos de punibilidade do co-arguido B. ..., e não obstante isso o Tribunal a quo proferiu uma sentença absolutória e com isso violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 10.°, n.° 2, 15.°, 143.°, 144.° e 148.°, todos do Código Penal.
24. A decisão do Tribunal a quo está em contradição clara e inequívoca com a fundamentação utilizada nos seus diversos parágrafos que, a título de exemplo, se transcreveram no capítulo II (Do Direito), ponto 3 desta peça processual e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
25. A contradição entre a fundamentação e a decisão resulta do texto da própria sentença e constitui um vício previsto no artigo 410.°, .° 2 al. b) do Código de Processo Penal.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e consequentemente ser proferido douto acórdão que, acolhendo as presentes conclusões, revogue a sentença proferida pelo Tribunal a quo condenando o co-arguido B. ..., pela prática do crime de ofensas à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelos arts. 148.º, n.º 1, por referência aos arts. 143.º e 144.º do Código Penal».
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O Digno Procurador Adjunto do Tribunal de 1.ª Instância apresentou resposta à motivação do recurso, concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
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Igualmente respondeu o arguido B. ...,, pugnando pela improcedência do recurso, com base nas conclusões seguintes:
«1. Tomando em atenção os factos dados por provados e por não provados, que a recorrente não impugna, e por isso são definitivos, outra não poderia ser a decisão que não a absolvição do Arguido Portela de Morais.
2. O Recorrido não deu indicação ao Arguido A. …, para colocar esquentador dentro da casa de banho.
3. O Recorrido apenas solicitou ao Arguido A. …, que transformasse um determinado espaço da casa principal numa casa de banho, o que este fez.
4. O modo como o esquentador foi montado, foi iniciativa do Arguido A. …, incluindo a escolha e compra dos materiais, a contratação de serventes e a direcção dos trabalhos.
5. O Recorrido informou-se acerca dos condicionalismos legais e pediu autorização para a realização da obra em causa.
6. Autorização essa pedida antes de se iniciar a obra em concreto e antes de solicitar a mesma ao Arguido A. ….
7. A obra em causa enquadrava-se num conjunto mais vasto de obras a realizar na Herdade de ....
8. A autorização para a realização da obra foi deferida com indicação expressa de que nem careciam de licenciamento.
9. O que estava em causa não era a violação de um dever objectivo de cuidado relativamente à obtenção dos devidos licenciamentos das obras, mas a pronúncia do Recorrido pelos crimes de homicídio e ofensas à integridade física, na sua modalidade de comissão por omissão, por não ter alegadamente neutralizado, mediante acção adequada, o perigo associado à utilização de um esquentador instalado na sua própria casa.
10. E saber se a mera “detenção de uma fonte de perigo”, por si só, geraria um dever de garante.
11. Tendo havido, ou vindo a haver, condenação com base na falta de obtenção de licença, estaríamos face a uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, nos termos do artigo 358.° do Código de Processo Penal, que, a não ser respeitado, redundaria em aplicação de norma inconstitucional.
12. Mesmo a alegação do dever de garante por “mera detenção de uma fonte de perigo”, nunca procederia, pois a detenção de fontes de perigo não pode, por si só, criar qualquer dever de garante, sob pena de violação do princípio da legalidade e da reserva de lei, todos com consagração constitucional.
13. Nos presentes autos não existe nenhuma disposição legal que legitime a criação de um dever de garante do Recorrido, com fundamento na “detenção de uma fonte de perigo”.
14. O Recorrido tinha razões suficientes e legítimas para confiar que a pessoa contratada seria competente para realizar a obra e, acima de tudo, seria competente para realizar a obra em conformidade com os padrões de qualidade, conforto e segurança exigidos.
15. O Recorrido é economista de formação e actividade, não dominando conhecimentos de construção civil e confiando em quem contrata.
16. O Recorrido confiou legitimamente, que o Arguido A. … tinha deixado a casa de banho apta a funcionar como casa de banho moderna e segura, que a tinha deixado “como deve ser”.
17. No seguimento da comunicação à Câmara Municipal de ..., a casa da Herdade de S. …, quando e depois da realização das obras de beneficiação de 1995 e 1996 (aí se incluindo a da casa de banho do acidente), foi visitada por funcionários da Câmara Municipal de ....
18. O facto de os serviços de fiscalização da Câmara Municipal de ... não terem levantado qualquer objecção, crítica ou reparo às obras efectuadas, depois de terem realizado uma acção de inspecção ao local, verificando que os esquentadores estavam instalados dentro da casa de banho, reforçou intensamente a convicção do Recorrido e de que tudo estava bem relativamente àquela e às demais casas de banho da Herdade.
19. Tendo o Recorrido obtido todos os cuidados necessários para se informar e obter o licenciamento devido, não podem ser afastadas as consequências do Princípio da Confiança.
20. Não é possível estabelecer um nexo causal juridicamente relevante entre a conduta do Recorrido e o resultado.
21. O concurso de causas que levaram ao resultado são a instalação do esquentador no interior da casa de banho, a deficiente instalação do tubo de exaustão, a existência de um ninho naquela tubagem e o número de banhos previamente tomados.
22. O Recorrido não poderia, num juízo de prognose póstuma, representar como possível um resultado que preenche um tipo de crime, quando para a verificação daquele resultado concorreu uma série de factores e causas que não eram passíveis de um raciocínio ex ante e não resultou provado que pela simples omissão do dever de cuidado o resultado tivesse ocorrido e que, por isso, lhe pudesse ser imputado.
23. Nos termos da teoria da causalidade adequada, a única que permite verificar se nos crimes de resultado se pode atribuir o resultado em causa à conduta do agente, a imputação penal não pode nunca ir além da capacidade natural do homem de dirigir e dominar os processos causais.
24. Não existe uma relação de determinação entre a violação do dever de cuidado e a produção do resultado, não pode o resultado ser imputado ao Recorrido por não estar estabelecido o nexo causal e a imputação objectiva do resultado à sua conduta.
25. Não há contradição entre a fundamentação utilizada e a decisão proferida».
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto, louvando-se na motivação da assistente, emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, o assistente e o arguido B. ..., não exerceram o seu direito de resposta.
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Efectuado o exame preliminar, colhidos os vistos legais e realizada a audiência de julgamento, cumpre agora apreciar e decidir.
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II. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
1. O co-arguido B. ...,, à data dos factos, encontrava-se inscrito na certidão da matrícula comercial da E …, como vogal do conselho de administração.
2. Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de ..., mediante inscrições G-29, G-30 e G-33 e apresentações n.ºs 17/210694, 02/150197 e 05/111198, a aquisição a favor de E. ...,, por compra, do prédio denominado por Herdade de ..., sito na freguesia do ...,, concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 00207/261186, da freguesia de ...,, concelho de ....
3. A E. ..., tem por objecto social a exploração agrícola, pecuária, cinegética e silvícola de prédios rústicos e a comercialização de produtos resultantes dessa exploração.
4. O complexo habitacional existente na Herdade de S. … é utilizado, desde a sua aquisição pela E. ...,, pela família do co-arguido B. ...,, a título particular, para férias e fins-de-semana.
5. A família do co-arguido B. ..., é composta por cinco filhos e tem por hábito convidar grandes grupos de pessoas para aí passarem alguns dias ou para se reunirem em convívio.
6. O complexo habitacional em causa foi sujeito a diversas obras de beneficiação, em parte executadas pelo co-arguido A. …, o qual exerce a profissão de pedreiro, sendo, como tal, reputado na região.
7. Em 1996, em data não concretamente apurada, o co-arguido B. ..., solicitou ao co-arguido A. … que transformasse um determinado espaço da casa principal numa casa-de-banho, o que este fez.
8. Essa casa-de-banho, que antes configurava uma zona de passagem entre uma sala e o exterior do edifício, tem 6,44 m2 (3,68mx1,75m), duas cabines de chuveiro separadas entre si por uma parede, um lavatório, uma sanita, um bidé, um quadro eléctrico, um esquentador e duas portas, sendo que uma dava acesso à casa-de-banho pela sala contígua e a outra, com o número de porta 18, dava acesso ao exterior da casa, e que não era utilizada.
9. O esquentador foi instalado por cima do bidé e da sanita ali existentes e era alimentado por uma botija de gás que se encontrava no exterior da casa.
10. O esquentador que ali foi colocado era de marca “...”, modelo …, fabricado em Setembro de 1995.
11. Nas instruções do aparelho, o fabricante indica que “(...) o troço de tubo vertical, imediatamente a seguir à gola do aparelho, deve ter, pelo menos, 30 cm”.
12. O co-arguido A. … montou aquele tubo com um percurso descendente - ao que se dá a designação de “pescoço de cavalo” -, o que dificulta a exaustão dos gases da combustão do esquentador para o exterior.
13. A gola do aparelho é fêmea e, por isso, a conduta de evacuação deve ser colocada por dentro e isolada e não, como aconteceu, por fora, dando origem a que por aquele ponto se possam libertar produtos de combustão para o interior da casa de banho.
14. Na saída do tubo de exaustão de gases não foi colocada qualquer rede ou grelha.
15. À data dos factos, o tubo de exaustão dos gases de combustão do esquentador podia estar obstruído com palha e outros materiais de construção de ninhos.
16. O arguido A. … não tem formação técnica para montar esquentadores e, previamente à montagem do acima identificado, não se informou quanto ao modo correcto de o fazer.
17. O co-arguido B. ..., sabia que o co-arguido A. … era pedreiro.
18. O co-arguido B. ..., aceitou o trabalho realizado, tal como ficou feito.
19. Durante o mês de Julho de 1997, os filhos do co-arguido B. ..., convidaram um grupo de cerca de 30 crianças com idades compreendidas entre os 9 e os 14 anos para consigo passarem uns dias de férias na Herdade de S. ….
20. Como o evento referido em 19. foi do agrado das crianças, no ano seguinte os filhos do co-arguido B. ..., pediram autorização a …. para repeti-lo e esta, por sua vez, obteve o assentimento daquele co-arguido.
21. Foram, então, contactadas cerca de 50 crianças e jovens, com as mesmas idades referidas, de entre os conhecimentos pessoais dos filhos do co-arguido B. ...,, ou por intermédio daqueles, sendo, muitos deles, colegas de escola do Colégio … ou do Colégio ….
22. O encontro deveria decorrer entre 2 e 10 de Julho de 1998 e as crianças ocupar-se-iam com actividades desportivas e lúdicas variadas, que realizariam de acordo com a sua vontade.
23. G. ...,, filha do co-arguido B. ...,, elaborou um panfleto que intitulou de “Campo de férias S. ”, no qual era feita referência ao tipo de actividades que seriam praticadas durante essa semana (baseball, volei, futebol, equitação, beach-rugby, hóquei em campo, ski, ciclismo, natação, jogos de matraquilhos, snooker, curso de culinária...), à existência de um seguro de acidentes pessoais e ao preço de Esc. 50.000$00 (cinquenta mil escudos) por cada participante, referindo-se ainda que o programa incluía estadia, alimentação e transporte.
24. O panfleto referido em 23. foi enviado aos pais de algumas crianças, através destas, com os quais não existia uma relação próxima, com o objectivo de persuadi-los a deixarem os filhos participar na semana de férias.
25. Por cada criança, era paga a quantia de Esc. 50.000$00 (cinquenta mil escudos), quantia que se destinava a suportar despesas com alimentação, transportes, pagamento a empregados e outras inerentes às actividades que se viessem a realizar.
26. Cerca de seis jovens de entre os mais velhos, entre os quais se encontrava G. ...,, seriam responsáveis pela organização das actividades e por cuidar das crianças mais novas.
27. No dia 2 de Julho de 1998, partiu um autocarro, cedido por um amigo do co-arguido B. ...,, a seu pedido, da Praça de Espanha, em Lisboa, com destino à Herdade de S. ..., transportando o grupo de crianças.
28. Entre as crianças do grupo encontravam-se D. …em 1985, e C. ...,, em 1985 sendo que esta já tinha participado na “semana/campo de férias” do ano anterior.
29. No dia 3 de Julho de 1998, no final da tarde, as crianças tomaram banho, após o que se deslocaram, por grupos acompanhados pelos mais velhos, para o local onde tomavam as refeições, situado a uma distância de cerca de 200 (duzentos) metros das casas-de-banho utilizadas pelas raparigas (de entre elas a casa-de-banho onde ocorreram os factos sub judice).
30. Tal distância percorria-se, de carro, em menos de um minuto, em passo normal, em cerca de 3 minutos e 30 segundos e em menos de 1 minuto a correr (considerando a preparação física de um ser humano médio, em normal condicionamento físico).
31. A C. ..., e a D. ..., foram as últimas raparigas - de um grupo aproximado de vinte - a tomar banho, o que fizeram juntas, na casa de banho referida em 8..
32. Enquanto tomavam banho, o esquentador ali instalado libertou gases de combustão, de entre eles o monóxido de carbono, o qual se acumulou no interior da casa-de-banho.
33. Quando na sala de refeições foi dada pela sua falta, primeiro …. e depois a sua irmã … resolveram ir procurá-las.
34. M. … dirigiu-se de imediato à casa-de-banho onde se ouvia a água a correr e, quando abriu a porta, viu a C. ..., e a D. ..., deitadas no chão, inconscientes.
35. Correu, então, a chamar os pais e outras pessoas que se encontravam na sala-de-estar situada a poucos metros, os quais retiraram C. ..., e D. ..., da casa-de-banho e tentaram reanimá-las.
36. Como a C. ..., deu sinais de vida, transportaram-na de carro para o Centro de Saúde de ....
37. O co-arguido B. ..., ou alguém da família, chamou uma ambulância que transportou a D. ..., para o mesmo Centro de Saúde, onde chegou já sem vida.
38. Aquando da chegada dos bombeiros chamados ao local, D. ..., ainda apresentava sinais de vida.
39. D. ..., foi, de imediato, transportada para ... pelos bombeiros.
40. No percurso tentaram a reanimação, sem sucesso.
41. Na ambulância não havia o “ambu” pequeno (aparelho bocal de dimensões mais reduzidas para facultar uma conveniente respiração assistida), pelo que foi interrompida a respiração.
42. Nessa mesma noite, os pais das restantes crianças foram contactados pelo co-arguido B. ..., e outras pessoas – tendo-lhes sido comunicado o ocorrido e solicitado que fossem à Herdade de S. ... buscar os filhos.
43. Nos dias seguintes, foram devolvidos os Esc. 50.000$00 (cinquenta mil escudos) a todos os pais que já os haviam pago, pelo co-arguido B. ..., ou pelos seus familiares.
44. A D. ..., sofreu intoxicação aguda por monóxido de carbono, a qual foi causa necessária e directa da sua morte.
45. A C. ..., deu entrada no Centro de Saúde de ... em estado de coma, tendo-lhe sido diagnosticada “intoxicação por monóxido de carbono” e tendo sido de imediato enviada para o Hospital de S. Bernardo, em Setúbal, por o seu estado ser considerado grave.
46. Daí foi transferida para o Centro de Medicina Hiperbárica da Marinha, onde deu entrada no dia 4 de Julho de 1998, num estado de coma superficial, reagindo à estimulação dolorosa, tendo-lhe sido ministrado oxigénio.
47. No mesmo dia, foi transferida para o Hospital de Santa Maria, permanecendo durante três dias na unidade de cuidados intensivos dos serviços de pediatria.
48. Enquanto aí esteve, a C. ..., apresentava-se confusa, com uma resposta motora em fuga e abria os olhos com estimulação dolorosa.
49. No final desses três dias, saiu do estado de coma e foi transferida, a pedido dos pais, para o Hospital da CUF.
50. Neste hospital foi internada na unidade de cuidados intensivos do serviço de nefrologia, revelando encefalopatia pós-anóxica, provocada por intoxicação por monóxido de carbono.
51. C. ..., teve alta em 27 de Julho de 1998, sem deficit motor, com alguma labilidade emocional e sob terapia da fala.
52. Em 4 de Novembro de 1998, C. ..., foi submetida a exame neuropsicológico, apresentando um quadro caracterizado por alterações de grau acentuado na capacidade mnésica, principalmente ao nível da aprendizagem na evocação de informação recente e defeito de grau moderado no controlo mental, na memória visual e na capacidade de iniciativa verbal.
53. Salientou-se ainda a presença de diminuição no rendimento escolar e aumento fácil de ansiedade e insegurança, tendo-lhe sido aconselhado que, durante o ano lectivo em curso, estudasse apenas duas ou três disciplinas, por curtos períodos de tempo.
54. Em 22 de Setembro de 1999, C. ..., foi submetida a novo exame neuropsicológico, continuando a apresentar um quadro caracterizado por alterações de grau moderado/acentuado na capacidade mnésica, principalmente a nível da aprendizagem e na evocação espontânea de informação recente e defeito de grau moderado no controlo mental, na memória visual e na capacidade de iniciativa verbal.
55. As referidas alterações limitaram o rendimento escolar de C. ...,.
56. Em 17 de Abril de 2000, a C. ..., foi submetida a observação clínica, da qual se retiraram as seguintes conclusões:
a) “... persistência das alterações mnésicas de grau moderado, que interferem na capacidade de iniciativa verbal e no rendimento de trabalho, as quais são imputáveis ao quadro de encefalopatia pós-anóxica com CO diagnosticado à data do incidente de 3.07.98.”
b) “... arbitra-se em 180 dias o tempo de doença, com 60 dias de incapacidade para o trabalho em geral. “
c) “Da ofensa resultaram alterações cognitivas, nomeadamente mnésicas, de grau moderado, que poderão persistir por tempo indeterminado, embora seja de admitir uma melhoria lenta e gradual.”
d) “Da ofensa resultou, em concreto, perigo para a vida da ofendida...”.
57. Terá contribuído para a acumulação de monóxido de carbono na casa-de-banho referida em 8. o facto da exaustão dos gases estar executada em forma de “pescoço de cavalo”, poder estar cheia de palha e outros materiais de construção de ninhos, haverem tomado banho cerca de 20 (vinte) crianças, antes de C. ..., e D. ..., e a casa-de-banho não ter meios de arejamento.
58. Tais circunstâncias dificultaram ou até mesmo impediram a saída dos produtos de combustão para o exterior.
59. O arguido B. ..., apercebeu-se da forma como o tubo de evacuação de gases para o exterior estava colocado e que não existia qualquer grelha de protecção no exterior e nada fez.
60. O co-arguido B. ...,, ao solicitar o referido em 7., não providenciou por informar-se acerca dos condicionalismos legais da transformação.
61. A libertação de monóxido de carbono é causa adequada a provocar a morte ou lesões à saúde de uma pessoa.
62. O co-arguido A. … não previu, como podia e devia, que, em virtude da forma e local onde foi instalado o esquentador, pudesse resultar a morte da D. ..., e as lesões acima descritas na saúde da C. ...,.
63. O arguido B. ..., não previu, como podia e devia, que, em virtude da forma e local onde foi instalado o esquentador, pudesse resultar a morte da D. ..., e as lesões acima descritas na saúde da C. ...,.
*
64. Em meados de 1994, o co-arguido A. … foi contratado pela E. ..., para proceder à execução de determinadas obras de beneficiação a efectuar na Herdade de ..., no exercício de funções de pedreiro.
65. O co-arguido A. … exerceu funções de pedreiro na Herdade de ... até Julho de 1999.
66. O co-arguido A. …, auferia Esc. 7 000$00 (sete mil escudos), por cada dia de trabalho, sendo o pagamento efectuado mensalmente, em dinheiro ou cheques subscritos ora pelo co-arguido B. ...,, ora por F. ...,.
67. Em Setembro de 1996, F. ..., deu instruções ao co-arguido A. … para que colocasse um esquentador no interior da casa-de-banho onde ocorreram os factos sub judice.
68. O co-arguido A. … indagou F. ..., sobre a localização do esquentador, atenta a existência de um quadro eléctrico na casa-de-banho.
69. Os trabalhos efectuados pelo co-arguido A. …., na construção da casa-de-banho, tiveram o apoio de Jesuíno Canhoto, servente de pedreiro, a exercer funções na Herdade de ....
70. O co-arguido A. …J desconhecia a proibição legal de instalação de esquentadores na casa-de-banho.
71. Se o co-arguido A. … soubesse da proibição legal referida em 70. dos factos provados não teria colocado tal esquentador.
72. O co-arguido A. … sabia que não era habitual, nem usual a instalação de esquentadores dentro de casas-de-banho.
73. O esquentador em causa foi o único que montou no interior de uma casa-de-banho, sendo o único que montou em toda a Herdade de ....
74. O co-arguido A. … não foi contratado para exercer funções de montagem de esquentadores.
*
75. O co-arguido A. … era conhecido e reputado na região onde ocorreram os factos pela sua actividade na construção civil.
76. O co-arguido A. … encarregava-se de obras com algumas de envergadura, como a construção e equipamento de habitações.
77. O co-arguido A. … antes de realizar as obras na casa-de-banho sub judice já havia realizado outras obras de beneficiação da casa da Herdade de ....
78. Obras estas que foram do agrado do co-arguido B. ..., e dos seus familiares, nunca tendo havido qualquer problema com as mesmas.
79. O facto referido em 78. dos factos provados determinou que o co-arguido B. ..., recorresse aos serviços do co-arguido A. … para a realização das obras na casa-de-banho sub judice.
80. Foi então solicitado ao co-arguido A. … que tornasse aquela parte da casa (divisão) apta a funcionar como casa-de-banho, com dois duches.
81. O co-arguido B. ..., não deu indicações ao co-arguido A. … para colocar o esquentador dentro da casa-de-banho sub judice nem sobre aspectos das obras a realizar.
82. O co-arguido B. ..., e os familiares utilizaram a casa-de-banho em causa e as demais existentes em sua casa, as quais tinham idênticas características, em matéria de esquentadores.
83. O co-arguido B. ..., é economista de formação e actividade.
84. Não domina conhecimentos de construção civil.
85. Não tem por hábito imiscuir-se nas questões de construção civil.
86. O co-arguido B. ..., confia em quem contrata.
87. O co-arguido B. ..., tinha esperança que o co-arguido A. … desempenharia bem o cargo, como anteriormente ocorrera.
88. A forma como o esquentador foi montado decorre de uma decisão do co-arguido A. ….
89. O co-arguido A…, quando concluiu a obra, considerou que estava tudo “como deve de ser”.
90. O co-arguido A. …, não instalou a garrafa de gás dentro da casa-de-banho.
91. O co-arguido A. …, colocou o exaustor de fumo no esquentador, com saída para o exterior.
92. O co-arguido B. ..., não estabeleceu limites de gastos nas obras de beneficiação da Herdade de ....
93. A montagem do esquentador dentro ou fora da casa-de-banho não representaria custos acrescidos significativos.
94. À data dos factos, o co-arguido B. ..., não sabia que não era permitido instalar esquentadores no interior das casas-de-banho.
95. Actualmente existem casas-de-banho, em Portugal, que possuem o esquentador montado no seu interior.
96. A porta da casa-de-banho que dá acesso para a rua possui algumas folgas e orifícios.
97. Na carta dirigida à Câmara Municipal de ..., datada de 19 de Maio de 1995, resulta que:
“E. …, desejando proceder a obras de reparação e beneficiação na sua propriedade sita na Herdade de S. ..., freguesia do ...,, do concelho de ..., vem mui respeitosamente solicitar a V. Exª se digne autorizar as referidas obras.
Pede Deferimento,
..., 19 de Maio de 1995,
(Carimbo da sociedade)
                        Não se vê inconveniente no deferimento, não carecendo licenciamento, nos termos da lei, devendo ser mantidos os materiais e cores existentes.
                        Devem os S. de Fiscalização acompanhar os trabalhos.
(assinatura) 95.06.09

“Memória descritiva e Justificativa
As obras de reparação e beneficiação de cuja autorização carecemos, são basicamente as seguintes:
1- Reparação de telhado, incluindo substituição de telhas partidas, barrotes e asnas.
2- Reparação de paredes, incluindo substituição de partes de reboco, substituição de janelas e portas podres e pintura e caiação das mesmas.
3- Reparação das casas de banho, incluindo substituição de canos e louças, substituição de azulejos partidos e limpeza e desentupimento das fossas.
4- Reparação e conservação de bebedouros para gado e suas canalizações, depósito de água e construção de protecção a furos e reparação e conservação de poços.”
98. A conduta do tubo de exaustão do esquentador é visível do exterior da edificação.
99. À data dos factos, dos certificados do registo criminal dos co-arguidos nada consta.
100. O co-arguido A. …, trabalha por conta própria, aufere em média € 1000 (mil euros) mensais, o seu agregado familiar é composto por mulher e dois filhos, sendo que aquela se encontra desempregada.
101. Os encargos médios mensais, suportados pelo co-arguido A. …, são superiores a € 520 (quinhentos e vinte euros).
102. O co-arguido A. …, é considerado um bom profissional, respeitado e considerado no seu meio social.
103. Tem a 4.ª classe de escolaridade.
104. O co-arguido B. ..., é empresário, gere um património pessoal avaliado em vários milhões de euros, vive com a mulher e um filho.
105. Mensalmente tem poucos encargos em proporção aos seus rendimentos.
106. É considerado uma pessoa exigente, que confia, delega bastante as funções em terceiros, mas responsabiliza.
107. É licenciado.
108. Ambos os co-arguidos apresentam elevada capacidade de censura e análise crítica dos factos que lhes são imputados.
*
Na sentença, foram tidos por não provados os seguintes factos a seguir transcritos:
«1. O co-arguido B. ..., solicitou ao co-arguido A. …, que colocasse um esquentador no interior da casa-de-banho onde ocorreram os factos sub judice.
2. À data dos factos, os co-arguidos B. ..., e A. …, sabiam que não era permitido instalar esquentadores no interior de casas de banho.
3. Para aparelhos como o identificado em 10. dos factos provados, a concentração de gases perigosa para a vida humana é de dois minutos, quando a conduta está totalmente obstruída, e de oito minutos, quando está parcialmente obstruída.
4. O co-arguido B. ..., sabia que o co-arguido A. …, não tinha formação técnica especializada para montar esquentadores e, ainda assim, incumbiu-o de o fazer.
5. Que a quantia de Esc. 50.000$00 (cinquenta mil escudos), referidos em 23. e 25. dos factos provados, pudesse ser paga antes ou após a semana de férias.
6. M. … deslocou-se de carro para a zona das casas-de-banho e dos quartos de dormir das raparigas aquando do referido em 33. dos factos provados.
7. Enquanto C. ..., e D. ..., tomavam banho, o esquentador ali instalado apagou-se e, consequentemente, iniciou-se a libertação de monóxido de carbono para o interior da casa-de-banho.
8. Quando as crianças foram retiradas da casa de banho sentia-se um forte cheiro a gás.
9. Os co-arguidos A. …, e B. ..., sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
10. O co-arguido A. …, celebrou um contrato individual de trabalho de forma verbal com os administradores da E. ...,.
11. O co-arguido B. ..., e F. ...,, apesar do referido em 68. dos factos provados, insistiram na montagem do referido esquentador, ordenando ao co-arguido A. ..., que procedesse à colocação do mesmo.
12. O co-arguido A. ..., ao instalar o esquentador na casa-de-banho apenas fez o que lhe ordenaram, no cumprimento do dever de obediência inerente ao mencionado contrato individual de trabalho.
13. Nos trabalhos de montagem do esquentador na casa-de-banho, o co-arguido A. ..., teve o apoio de Jesuíno Canhoto.
14. O co-arguido A. ..., teve receio de ser despedido caso não acatasse as ordens emanadas pelo co-arguido B. ..., e F. ...,.
15. O co-arguido A. ..., quando contratado pela E. ..., encontrava-se desempregado há algumas semanas.
16. Por razões económicas, com vista ao seu sustento e do agregado familiar, o co-arguido A. ..., teve de obedecer às ordens referidas em 67. dos factos provados, 11. e 12. dos factos não provados, de forma a salvaguardar o seu posto de trabalho na Herdade de ....
17. O co-arguido B. ..., e F. … sabiam que o co-arguido A. ..., não tinha credenciais técnicas para montar o esquentador a gás.
18. O co-arguido A. ..., realizou obras na casa-de-banho onde ocorreram os factos sub judice na qualidade de empreiteiro.
19. O co-arguido A. ..., não era um simples pedreiro, mas alguém que tomava obras de empreitada.
20. O co-arguido B. ..., solicitou ao co-arguido A. ..., que colocasse a divisão “como deve ser” para funcionar como casa-de-banho moderna e segura, com esquentadores dos mais modernos e seguros, para essa e também para as outras casas-de-banho da casa.
21. O co-arguido B. ..., deixou a escolha e a compra dos materiais, a contratação de serventes e a direcção dos trabalhos a cargo do co-arguido A. ...,.
22. A montagem do esquentador dentro da casa-de-banho foi uma decisão do co-arguido A. ...,.
23. O co-arguido A. ..., assegurou ao co-arguido B. ..., que havia comprado esquentadores dos mais modernos e seguros que, inclusive, estavam equipados com um sistema de corte de abastecimento de gás que impedia quaisquer concentrações tóxicas.
24. O conhecimento da proibição de instalar esquentadores no interior de casas-de-banho não é generalizado no nosso país.
25. A casa-de-banho em causa tinha as necessárias condições de ventilação e arejamento.
26. A casa-de-banho em causa não era uma zona de passagem.
27. A sociedade “E. ...,” comunicou a obra e pediu autorização para a sua realização à Câmara Municipal de ....
28. Os funcionários da Câmara que visitaram a casa da Herdade de ..., em sede de acção de fiscalização, constataram que o esquentador estava instalado dentro da casa-de-banho.
29. Após a referida vistoria, a Câmara Municipal de ... nunca dirigiu ao co-arguido B. ..., ou à “E. ...,” qualquer reparo, conselho ou injunção relativamente ao modo como os esquentadores estavam instalados nas casas-de-banho da Herdade, incluindo aquela onde viria a ocorrer o acidente de 3 de Julho de 1998.
30. As pessoas que visitaram a casa, entre 1995 e 1998, nunca fizeram qualquer reparo ou crítica à instalação dos esquentadores dentro das casas-de-banho.
*
Relativamente à fundamentação da decisão de facto, consignou-se:
…….
***
III. Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Na realidade, os recursos são legalmente definidos como juízos de censura crítica -sobre concretos pontos de facto e matéria de direito de que conheceu ou deveria ter conhecido a decisão impugnada -, e não como «novos julgamentos».
Não obstante terem sido gravadas as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento e, por via disso, poder, em princípio, este Tribunal conhecer de facto e de direito (arts. 363.º e 428.º do CPP), as únicas questões que o recorrente submete a apreciação são as seguintes:
- Ocorre o vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP?
- Em função do acervo factológico provado, impõe-se a condenação do arguido B. ...,, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo art. 148.º, n.º 1, por referência aos arts. 143.º e 144.º do CP?
*
Por razões de precedência lógica e necessária, começamos por abordar a primeira questão, vista a consequência abstracta que da verificação de qualquer um dos vícios do citado n.º 2 do art. 410.º pode decorrer.
Dispõe esta norma:
«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
«c) Erro notório na apreciação da prova».
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”. [1]
Relativamente ao invocado vício - contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão -, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
Perante o que fica dito, há que verificar, então, se se prefigura ou não o supra indicado vício.
Percorrendo o n.º 3 da motivação de recurso (págs. 2663 a 2666), facilmente se vislumbra que os aspectos questionados pela recorrente radicam em questões de valoração jurídica tecidas pelo tribunal a quo, com base em determinado conspecto fáctico. Dissertando sobre a imputação objectiva dos resultados ocorridos (morte de D. ..., e ofensa à integridade física na pessoa da assistente), na parte que se relaciona com a culpabilidade do arguido B. ...,, o tribunal de 1.ª instância aplicou o direito que teve por adequado, entendendo, em síntese conclusiva, dever o referido arguido ser absolvido, por não ser possível, no seu ponto de vista, estabelecer uma imputação objectiva do resultado sofrido pela assistente à conduta daquele arguido.
As diversas aplicações e interpretações contraditórias e/ou incorrectas de direito que eventualmente existam na fundamentação jurídica da sentença recorrida constituirão, quanto muito, para o aspecto ora considerado, errada aplicação do direito ao caso concreto e que, em sede oportuna, serão analisadas, sem que haja, obviamente, contradição entre a fundamentação probatória e a decisão sobre a matéria de facto.
*
Apreciando a segunda questão objecto do recurso, vejamos se o arguido B. ..., incorreu ou não na prática do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo art. 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao art. 144.º, als. b) e d), ambos do CP.
Para fundamentar a decisão de absolvição que proferiu, o tribunal de 1.ª instância consignou na sentença recorrida, relativamente ao imputado crime de ofensa à integridade física grave (pág. 2632):
«...Dando por reproduzido o que anteriormente se afirmou a respeito quer do crime de violação das regras de construção» - imputado ao co-arguido A. ..., -, «quer a respeito do crime de homicídio por negligência, no que ao caso se reporta, uma vez que não é possível nos crimes negligentes punir o agente relativamente ao resultado, quando não é possível estabelecer uma imputação objectiva do resultado à conduta do agente, impõe-se a absolvição do co-arguido B. ..., da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência».
Anteriormente, no decurso da análise jurídica da conduta do co-arguido A. ...,, em íntima conexão com a imputação objectiva do resultado, tendente ao preenchimento da circunstância agravante qualificativa prevista no art. 285.º do CP, ficou escrito na mesma peça processual (págs. 2613 a 2619):
«(...) C. ..., sobreviveu à anóxia, contrariamente a D. ...,. (...) Porém sempre subsistirá uma dúvida: se a ambulância estivesse equipada com o “ambu” (mecanismo bocal que permite a respiração assistida de crianças), será que D. ..., não teria sobrevivido?
(....) Porque não existem certezas que o resultado morte se tivesse verificado caso a D. ..., tivesse beneficiado de uma assistência médica perfeita, o resultado não se poderá imputar ao agente (...). Ou seja, não existe um nexo directo entre a conduta do agente e o resultado (...) .
Face a isto, porque não existem certezas que o resultado morte se tivesse verificado caso a D. ..., tivesse beneficiado de uma assistência médica perfeita, o resultado não se poderá imputar ao agente, sendo, porém, passível de punição pela forma tentada. Ou seja, não existe um nexo directo entre a conduta do agente e o resultado, mas a conduta, na forma tentada, seria apta a causar o resultado típico.
Vejamos se a existência de um ninho no tubo de exaustão do esquentador e o número de crianças que utilizaram a casa-de-banho são verdadeiros factos interruptivos do nexo causal, ou seja, se os resultados morte e ofensa à integridade física, ainda assim, se teriam verificado caso não existisse o ninho no tubo de exaustão e não tivessem tomado banho tantas crianças (determinando a saturação da atmosfera ambiente).
Ora a interrupção da causalidade não tem em vista um qualquer facto que haja contribuído tout court para a verificação do resultado. Um facto interruptivo da causalidade terá que ser de per si capaz de causar o resultado, que se vem a verificar independentemente de factos anteriores. Ora, nem o facto de existir um ninho num qualquer mecanismo de exaustão de gases resultantes de uma combustão, nem o facto de 18 ou 20 outras crianças haverem tomado banho naquelas instalações sanitárias são, de per si capazes de determinar uma morte ou uma ofensa à integridade física por anóxia à inalação de monóxido de carbono.
(....)
Quanto muito, serão causas concorrentes e catalíticas da verificação do resultado, o que não excluem a causalidade adequada da montagem de um esquentador no interior de instalações sanitárias relativamente aos resultados verificados.
(....)
Como não é possível determinar se as duas primeiras causas concorrentes, cuja autoria é imputável ao co-arguido A. ...,, foram isoladamente capazes de determinar a verificação dos resultados, não se podem imputar os resultados ao agente, sobrevindo a possibilidade de punir pela forma tentada... .
(....)
Significa isto que o co-arguido A. ..., se pode ser condenado pela prática do crime de infracção de regras de construção, na forma negligente, já não poderá ser censurado criminalmente pela agravação pelo resultado prevista e punida pelo art. 285.º do CP.
E isto porque:
- não é possível estabelecer um nexo causal directo e absoluto entre a sua conduta - omissiva dos deveres de cuidado, porém comissiva por acção quanto à montagem do esquentador, de forma incorrecta, no interior da casa de banho - e os resultados;
- os resultados poderiam não se ter verificado não fosse a existência de um ninho no interior do tubo de exaustão de gases de combustão e os 18 ou 20 banhos que precederam os de D. ..., e C. …;
- a morte de D. ..., poderia não ter sobrevindo se a assistência médica ou paramédica tivesse sido perfeita;
logo, a conduta do agente apenas seria punível na forma tentada - atenta a intervenção de terceiros e o concurso de causas no percurso causal - o que contende com a sua prática negligente».
Mais adiante, quanto ao crime de homicídio por negligência imputado ao arguido B. ...,, exarou-se na sentença recorrida (págs. 2622 a 2630):
«(...) Importa analisar em que medida a lei impõe ao co-arguido B. ...,, em virtude das suas funções e posição no plano das relações fácticas, ainda que não de direito, a obrigação de zelar por determinados bens jurídicos, perante as fontes de perigo que lhe é permitido e possível controlar.
(....)
O co-arguido …, enquanto “proprietário de facto” da Herdade de ... e vogal da administração da sociedade “E. ...,, S.A.” deveria zelar pela regularidade das alterações materiais que se procediam nas edificações daquele imóvel, de modo a evitar a criação de perigo a todas as pessoas que convivem naquele espaço e bens materiais nele existentes, o que omitiu.
Sendo certo que, como resultado provado, foi quem determinou ou solicitou a transformação de uma área ou espaço originariamente de passagem, numa casa de banho, incumbindo de tal tarefa um pedreiro.
Violou, deste forma, o disposto nos termos conjugados dos artigos 1.º e 3.º do DL n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção introduzida pelo DL n.º 250/94, de 15 de Outubro que dispunham (...).
Omitiu, assim, deveres de informação e de obtenção de licenciamento que lhe eram exigíveis antes de solicitar a realização da transformação do espaço de passagem em casa-de-banho, deveres esses que lhe eram impostos por lei e que tinha obrigação de conhecer e capacidade de os cumprir (...).
Acaso houvessem sido observados os formalismos legais, obtida a informação e submetida a licenciamento, a questão da instalação de equipamentos de gás seria objecto de um projecto de alimentação e distribuição de energia eléctrica e projecto de instalação de gás e de um projecto de chaminés de ventilação e exaustão de fumos ou gases de combustão, e os deveres de cuidado haveriam sido respeitados pelo co-arguido B. ...,, afastando a sua responsabilidade.
(...)
Evidentemente o legislador, ao impor as regras supra transcritas a respeito do licenciamento das obras visou exactamente criar um processo de controlo da regularidade das obras face às exigências técnicas, estéticas e de segurança que devem estar presentes em quaisquer trabalhos de construção civil, simultaneamente responsabilizando quem intervém na qualidade de garante da regularidade e desresponsabilizando quem orientou o seu comportamento em conformidade com as regras legais.
Não obtendo os elementos necessários (informativos ou permissivos) à realização das obras em causa, o co-arguido B. ..., deveria ter omitido o comportamento de solicitar a realização das obras de transformação ao co-arguido A. ..., ou, em alternativa, verificada a instalação do esquentador no interior da casa-de-banho, haver ordenado a sua imediata remoção, neutralizando as causas de perigo, de modo a garantir a integridade dos bens jurídicos ameaçados, assumindo, evidentemente, uma posição de controlo.
Aquela primeira omissão, imputável ao co-arguido B. ...,, é prévia à solicitação da realização da obra ao co-arguido A. ...,, donde o princípio da confiança na boa execução das obras por parte deste último não permite afastar a responsabilidade daquele.
(....)
É óbvio que o visado pelo referido princípio é a afirmação que, por regra, não se responde pela falta de cuidado alheio, numa clara alusão à auto-responsabilidade de terceiros, o que não é manifestamente o caso, pois há uma falta de cuidado imputável ao próprio co-arguido B. ...,.
(....)
O crime de homicídio por negligência, previsto e punido no art. 137.º do Código Penal parece exaurido, porquanto o co-arguido não predispôs o seu comportamento em conformidade com o dever objectivo de cuidado adequado a evitar as consequências perigosas inerentes à sua conduta, sendo certo que o circunstancialismo da sua actuação impunha uma abstenção ou omissão, que devia e podia, em concreto, ter adoptado.
Assim sucede porque é razoável estabelecer uma relação objectiva de causa/efeito entre a omissão de um dever de cuidado que se consubstancia na não instrução de um procedimento administrativo de informação e/ou licenciamento - da responsabilidade do co-arguido B. ..., -, e o resultado morte por anóxia, em virtude de intoxicação por monóxido de carbono acumulado no interior de uma casa-de-banho onde foi instalado um esquentador, à margem das regras legais, cujo cumprimento zeloso seria sindicado por aquele procedimento.
Porém, à semelhança do que atrás foi dito (...), a consumação de um tipo na forma negligente impede (...) qualquer punição na forma tentada, a qual pressupõe, pelo menos, o dolo eventual.
Significa isto que o co-arguido … não pode ser condenado pela prática deste crime.
Isto porque:
- não é possível estabelecer um nexo causal directo e absoluto entre a sua conduta - omissiva dos deveres de cuidado, porém comissiva por acção de ordenar a transformação de um espaço de passagem em casa-de-banho - e o resultado morte;
- o resultado poderia não se ter verificado não fosse a iniciativa do co-arguido A. ..., em montar, por ele próprio, o esquentador no interior da casa-de-banho, sem atender às instruções constantes do manual que acompanhava o aparelho; a existência de um ninho no interior do tubo de exaustão de gases de combustão; e os 18 ou 20 banhos que precederam os de D. ..., e C. ...;
- a morte de D. ..., poderia não ter sobrevivido se a assistência médica ou paramédica tivesse sido perfeita;
logo a conduta do agente apenas seria punível na forma tentada - atenta a intervenção de terceiros e o concurso de causas no percurso causal - o que contende com a sua prática negligente.
Significa isto que o co-arguido B. ..., não poderia, num juízo de prognose póstuma, representar como possível um resultado que preenche um tipo de crime, quando para a verificação daquele resultado concorreu um série de factores e causas que não eram possíveis de raciocínio ex ante e não resultou provado que pela simples omissão do dever de cuidado o resultado tivesse ocorrido e que, por isso, lhe pudesse ser imputado».
*
Dispõe o art. 148.º do Código Penal:
«1. Quem por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias;
(....)
3. Se do facto resultar ofensa à integridade física grave o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias».
Por sua vez, decorre do art. 144.º do mesmo diploma que ofensas à integridade física grave são aquelas que:
(...)
«b) tiram ou afectam, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem;
(....)
d) provocam perigo para a vida;
(.....)».
A negligência está configurada no art. 15.º, n.º 1, do C P, nos seguintes termos:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo legal de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».
Actua negligentemente quem realiza o tipo de uma lei penal como consequência da infracção involuntária de um dever de cuidado, não o prevendo, pese a sua obrigação ou tendo-o por possível, confia, contrariando o seu dever, em que não se produzirá o resultado.
Porém, como acentua Figueiredo Dias [2] , não falta quem prefira, neste aspecto, substituir um tal elemento pelo da criação, pelo agente, de um perigo não permitido.
É nomeadamente o caso de Claus Roxin, [3] que vislumbra na sua diferente perspectiva dogmática sobre o elemento em causa as seguintes vantagens:
«O elemento da infracção do dever de cuidado não conduz mais além do que os critérios gerais de imputação. É mais vago que estes e portanto prescindível. Em rigor é “erróneo do ponto de vista da lógica da norma”, pois produz a impressão de que o delito comissivo imprudente consistiria na omissão do cuidado devido, o que sugere a sua interpretação errónea como um delito de omissão. Não obstante, o sujeito não se reprova por haver omitido algo, mas sim por haver criado um perigo não amparado por risco permitido e assim abarcado pelo fim de protecção do tipo, que foi realizado num resultado típico.
Jakobs diz com razão: “No âmbito da comissão não se prescreve v. g. o manejo cuidadoso de serras, mas sim que se proíbe o manejo descuidado; não existe um dever de manejar”».
De uma forma ou de outra, como esclarece Figueiredo Dias, «as duas formulações são substancialmente equivalentes: ao menos no sentido de que, sempre que o agente, com o seu comportamento, não tenha criado um perigo não permitido, também aí não será possível divisar a violação de qualquer dever objectivo de cuidado; e inversamente: sempre que o agente crie com a sua conduta um perigo não permitido, tanto parece bastar para que possa comprovar-se a violação do cuidado objectivamente devido» [4] .
*
De todo o modo, é hoje dogmaticamente aceite por toda a doutrina em geral que o tipo do delito culposo contém dois grupos de elementos típicos objectivos. Por um lado, aqueles que descrevem o prejuízo do bem jurídico. Por outro lado, aqueles não escritos que apreendem a sua evitabilidade geral.
Assim como o resultado, também a relação de causalidade entre este e a acção formam o tipo (objectivo) do delito culposo, sendo certo que, como nos factos puníveis dolosos, também o tipo dos factos culposos contém uma descrição do sujeito e o objecto do facto.
Como elemento não descrito no tipo objectivo temos a conduta que infringe o dever de cuidado adequado a evitar a ofensa do bem jurídico protegido pela norma penal.
«Devem utilizar-se meios que permitam evitar a realização típica. Quem actua da dita maneira, utiliza o cuidado objectivo necessário para proteger o respectivo bem jurídico, impedindo finalmente o prejuízo do bem jurídico, mediante a utilização do cuidado interno que constitui o objecto da norma. Em contrário, quem de este modo e actuando com infracção do dever de cuidado provoque o prejuízo de um bem jurídico, haverá podido evitar este último actuando adequadamente.
(....)
Por conseguinte, o tipo objectivo do facto punível culposo inclui uma acção descuidada referida ao bem jurídico prejudicado.
(....)
O elemento tendente a evitar o tipo objectivo, onde se inclui o dever de cuidado, deve ser determinado sobre a base de um critério geral, sem consideração das capacidades individuais do autor.
(....)
Este critério geral encontra o seu fundamento nas exigências que admissivelmente se podem colocar a qualquer pessoa que se encontre na mesma situação e frente às mesmas tarefas que o autor.
(....)
Em correspondência com esta opinião, na jurisprudência e na doutrina predomina a ideia segundo a qual cada sujeito deve utilizar o cuidado que “o homem consciente e ponderado, que forma o círculo ao qual pertence o autor” haveria feito predominar ex ante na concreta situação do autor» [5] .
No mesmo sentido, refere Figueiredo Dias [6] «o que serve de critério é a não correspondência do comportamento àquele que, em idêntica situação, teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e cuidadoso; o que conduz directamente a que este modelo seja diferenciado de acordo com o círculo de actividade em causa», e preconiza Claus Roxin [7] : «o ulterior meio auxiliar para a determinação do perigo não permitido é o “modelo diferenciado”. É dizer: pergunta-se como se haveria comportado na situação concreta uma pessoa consciente e cuidadosa pertencente ao sector de tráfico do sujeito».
Por outro lado, se o que a norma quer é evitar prejuízos a bens jurídicos, cometidos por pessoas em geral, então o que constitui este objecto não são quaisquer prejuízos fortuitos de bens jurídicos, mas somente aqueles que se apresentam como o resultado da evitabilidade.
Como se escreveu exemplarmente no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 1999 [8] «A previsibilidade, em concreto, da realização do facto - que só pode afirmar-se quando esta é a consequência normal, típica ou adequada da conduta levada a cabo pelo agente - constitui o limite mínimo abaixo do qual já não se pode falar em negligência (como é óbvio, não pode exigir-se que se evite o imprevisível)».
O decisivo é contar com que a acção contrária ao dever de cuidado conduza ao posterior e efectivo desenvolvimento dos acontecimentos, incluída a produção do resultado; o ponto de relação deste juízo é o instante da execução da acção. Este requisito pode faltar quando o prejuízo do bem jurídico foi produzido com independência da conduta concretamente contrária a este bem (ausência da relação real ou, nas palavras de Roxin, falta da realização do perigo).
Tal questão pode ser perspectivada de modo aceitável com recurso à fórmula da teoria da adequação, sobre a base de uma prognose objectiva e posteriori, mediante o juízo atento de um observador objectivo que estabeleça se cabe contar com o resultado efectivamente produzido enquanto realização do perigo criado pelo sujeito actuante.
«Do dito se depreende que a imputação objectiva depende de um acontecimento fáctico e do seu juízo. O acontecimento fáctico, a imputar, está constituído pela provocação de uma situação de perigo com infracção do dever de cuidado (...) e a sua realização em prejuízo de um bem jurídico. Se se criou um perigo e se este foi concretizado é algo que deve ajuizar-se mediante o recurso às regras vigentes respectivas (conhecimentos científicos-naturais, máximas de experiência, etc.)». [9]
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Intimamente ligado à violação do dever objectivo de cuidado, traduzida na criação de perigo para um bem jurídico protegido está o princípio da confiança, hoje reconhecido por todo o direito penal, sobretudo no âmbito da circulação rodoviária.
Em traços gerais, consiste ele na ilação de que quem se comporta de acordo com a norma de cuidado que o direito impõe pode confiar que o mesmo os outros farão, sempre e quando não existam indícios concretos para supor o contrário.
«Como regra geral, não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie em que os outros cumprirão os deveres de cuidado» - Figueiredo Dias, obra citada, pág. 365 [10] .
Porém, quem pôs em perigo com a sua conduta incorrecta outros intervenientes na circulação e contribui de este modo para um acidente não pode invocar o princípio da confiança. [11]
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Para responder penalmente por um crime negligente, exige-se, por fim, que o resultado que se verificou pudesse ser evitado pelo sujeito.
Como escreve Jescheck [12] , «também na negligência é objecto do juízo de culpabilidade a censurável atitude interna do autor frente ao direito (...). Aqui, as exigências do ordenamento jurídico orientam-se no sentido de que todos façam uso das suas faculdades pessoais no marco de limite objectivo da responsabilidade para poder prever e evitar a tempo os perigos relativos ao bem jurídico protegido.
Na imprudência consciente o juízo de culpabilidade refere-se a que o autor actuou descuidadamente, pese haver previsto a realização do tipo como consequência possível do seu comportamento.
Mas tão pouco na culpa inconsciente constitui uma ficção o juízo de culpabilidade. Este repousa em o autor não prestar suficiente atenção a uma situação perigosa, ou não concedeu ao conhecimento da colocação em perigo atenção bastante ao adoptar a decisão.
A actuação negligente só é merecedora de pena quando a atenção insuficiente responde a defeitos da actividade interna, v. g., desconsideração, indiferença, falta de cuidado ou, dito com outras palavras, quando provém do fracasso funcional do sentimento valorativo (...).
Na negligência inconsciente a culpabilidade radica também numa deficiência da atitude interna, o mesmo é dizer, em não prestar-se o mínimo de atenção que o ordenamento jurídico exige objectivamente para evitar danos em valores e bens da comunidade, sempre que a idade, as forças, a profissão e a experiência vital do autor façam aparecer a exigência como atendível».
Assim, para que se possa imputar ao agente o juízo de reprovação ético-social por não conformar a sua actuação com a ordem jurídica, é necessário que ele possa e seja capaz, face às circunstâncias do caso e às suas capacidades pessoais, de prever correctamente a realização do tipo legal de crime.
Neste domínio, o direito não se basta com o critério do homem médio, mas sim com o critério do homem concreto “individualizado”, no sentido de determinar se outra pessoa com as mesmas qualidades do agente não teria rodeado a sua conduta com as precauções devidas para evitar o resultado e como tal actuado de modo diverso.
A este propósito, diz-nos o Professor Figueiredo Dias, «do que aqui se trata é apenas da conclusão de que, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e tê-la-iam evitado. O que significa apenas, por outras palavras, que o conhecimento real das consequências de uma acção e a capacidade de as evitar correspondem à experiência média e que portanto, relativamente ao agente concreto que as não representou ou evitou, se comprova uma deficiência perante o tipo normal. Só que este tipo - e aqui deparamos com o famoso critério subjectivo - não é o tipo “médio”, mas o tipo de homem da espécie e com as qualidades e capacidades do agente» [13] ; «está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se fosse de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar assim a respectiva punição». [14]
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Em certos casos, o juízo de imputação subjectiva a título de negligência encontra-se intimamente ligado não só com a violação de deveres de cuidado genéricos, mas também com a omissão de cuidados específicos, especialmente definidos e directamente impostos por lei, os quais têm em vista a regulação de certas actividades potenciadoras de riscos para a vida e/ou a integridade física das pessoas em geral.
«O primeiro e mais importante elemento concretizador do cuidado objectivo devido deriva obviamente das normas jurídicas de comportamento existentes - sejam elas gerais e abstractas, contidas em leis ou regulamentos, sejam individuais, contidas em ordens ou prescrições da autoridade competente, digam respeito a matéria jurídica de carácter penal ou de qualquer outro carácter. A violação das normas deste teor constituirá indício por excelência de uma contrariedade ao cuidado objectivamente devido, mas não pode em caso algum fundamentá-la definitivamente: quando o perigo típico de um comportamento pressuposto pela norma jurídica falte excepcionalmente, em virtude da excepcional configuração do caso concreto, não pode um tal comportamento ser considerado como contrário ao cuidado objectivamente devido.
(...)
Inversamente, pode excepcionalmente devisar-se uma violação do cuidado objectivamente devido em casos em que foram observadas todas as prescrições legais e regulamentares e, todavia, o conhecimento ou a suspeita fundada de um perigo típico, não considerado pelas normas, obrigue a cuidados acrescidos». [15]
*
Como é sobejamente conhecido, os comportamentos delituosos podem ser activos ou omissivos.
Pela “compreensão natural das coisas”, exceptuando os casos de crimes (de resultado) “ambivalentes” ou de “duplo significado” - nos quais é relevante, à partida, tanto uma acção como uma omissão (nomeadamente, a omissão de um comportamento imposto para afastar um resultado típico) -, a distinção entre acção e omissão não levanta particulares dificuldades.
«Tratando-se em toda esta matéria de uma questão do ilícito típico e, mais concretamente, de imputação objectiva, exacto parecer ser que o critério decisivo da delimitação não deve ser senão um critério de ilicitude típica e de imputação objectiva (...); ao agente deve ser imputada uma acção sempre que criou (ou aumentou) o perigo que vem a concretizar-se no resultado; uma omissão sempre que ele não diminuiu aquele perigo (...)». [16]
«A delimitação entre fazer e omitir não se rege nem pelo “centro da gravidade” da censura jurídica nem pelo “sentido social da acção” (...). Na verdade, o único ponto a constatar é se um fazer positivo é causal em relação ao resultado; e, se a resposta for afirmativa (...), apenas fica por averiguar se esse fazer é negligente segundo as regras gerais:
Ao invés, se o fazer não é causal nem negligente, dever-se-á ainda examinar se o agente omitiu outra conduta juridicamente exigida que teria impedido o resultado». [17]
Dispõe o art. 10.º do CP, com a epígrafe “Comissão por acção e por omissão”:
«1. Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2. A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3. No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada».
«O legislador poderia criar preceitos autónomos, que imporiam certas condutas com vista a evitar a produção de resultados, mas essa técnica conduziria a um dualismo da lei, o que nada aconselha e por isso o legislador procede à tipificação indirecta». [18]
Os delitos de omissão podem ser de omissão própria (neles, o dever de actuar surge, no plano objectivo, da presença de uma situação típica, p. ex. a omissão de auxílio plasmada) ou de omissão imprópria (comissão por omissão), caracterizados pela falta de menção expressa no tipo respectivo do comportamento omissivo determinante da produção do resultado proibido, sendo necessário que o agente tenha uma obrigação de impedir o resultado típico em virtude de determinados deveres cujo cumprimento haja assumido ou lhe incumbem por razão do seu cargo ou profissão, isto é, a que o artigo citado chama “dever jurídico pessoal”. Esta especial obrigação converte o agente em garante de que não se produza o resultado, como se o tivesse ocasionado mediante uma acção positiva.
«Os deveres de garante relevantes para o Direito Penal podem caracterizar-se e delimitar-se, segundo a teoria tradicional (teoria formal do dever jurídico) com base na fonte de que surge o dever jurídico de evitar o resultado: a lei, o contrato e o actuar perigoso precedente; e, segundo a teoria das funções, pelo recurso a critérios materiais, quais seja a existência, para o garante, de uma função de protecção de um determinado bem jurídico ou da obrigação do controlo de uma fonte de perigo» [19] .
Dentro da tendência doutrinal que fundamenta a posição de garante de maneira menos formalista, pode dizer-se que só aquelas pessoas que têm as referidas vinculações especiais ao bem jurídico protegido podem ser consideradas garantes da integridade desse bem jurídico, mesmo que não exista um precito legal, contrato ou a actuação precedente concreta que fundamente expressamente esse dever.
Com o consenso generalizado da doutrina hoje dominante [20] , para evitar um formalismo excessivo das fontes da posição de garante, devem considerar-se as fontes que podem fundamentar a posição de garante num sentido menos rígido, reduzindo-as aos preditos dois grandes grupos.
«Dentro do segundo grupo de posições de garante, o da responsabilidade por determinadas fontes de perigo, há que distinguir de outras situações, o dever de garante que deriva de fontes de perigo situadas no próprio âmbito social de domínio, independentemente de concorrer uma acção anterior contrária ao dever. A sua fundamentação reside no facto de que a sociedade deve poder confiar em que, quem exerce o poder de dispor sobre um espaço delimitado que se encontra aberto a outros ou a partir do qual é possível incidir sobre outros, domine os perigos que, no referido âmbito podem proceder de objectos, animais, instalações ou maquinaria». [21]
Os delitos de omissão imprópria podem cometer-se por negligência sempre que o respectivo tipo de comissão assim o preveja, coincidindo, em parte, o dever de garante e o dever objectivo de cuidado.
*
Feito este excurso teórico, passemos, então, à análise do caso concreto.
Seguindo o raciocínio jurídico constante da sentença, podemos desdobrar em duas fases sucessivas, mas distintas, o comportamento do co-arguido B. ...,: a primeira, circunscrita à omissão de deveres de informação e de obtenção de licenciamento da obra em causa e realização desta e, a segunda, reportada à não remoção do esquentador do local onde estava instalado (interior da “nova” casa de banho).
Tendo em conta a complexidade da matéria de facto provada, o comportamento do arguido B. ..., assenta ab initio num fazer positivo, consubstanciado na construção da casa-de-banho, embora com omissão das regras de licenciamento (decorre do art. 97.º do acervo factológico provado que as obras a que se reporta a carta dirigida à Câmara Municipal de … , datada de 19 de Maio de 1995, não incluíam a construção de uma casa-de-banho).
E ainda que se antolha ser esta omissão reveladora de violação do dever objectivo de cuidado que as concretas circunstâncias impunham - como está referido na sentença recorrida, o legislador ao impor as regras constantes dos arts. 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, a respeito do licenciamento das obras “visou criar um processo de controlo da regularidade das obras face às exigências técnicas, estéticas e de segurança que devem estar presentes em quaisquer trabalhos de construção civil”; “caso houvessem sido observados os formalismos legais, obtida a informação e submetida a obra a licenciamento, a questão da instalação de equipamentos de gás seria objecto de um projecto de instalação de gás e de ventilação e exaustão de fumos ou gases de combustão e, assim, os deveres de cuidado haveriam sido respeitados” -, afigura-se-nos não ser esta conduta, se isoladamente considerada, causal do resultado verificado, ou seja, no que agora importa considerar, ofensas no corpo e na saúde da ofendida /assistente C. …,
Na realidade, o arguido B. ..., contratou o co-arguido A. ..., para a construção da casa-de-banho, mas sem que esteja provado ter tido o primeiro qualquer posição de domínio, por decisão ou ingerência, correlacionada com a montagem do esquentador na casa-de-banho. Pelo contrário, extrai-se dos factos provados que: - foi F. ..., (não se sabe se por sua iniciativa ou cumprindo ordens do arguido B. ...,), quem instruiu o co-arguido A. ..., para a colocação do referido aparelho (ponto n.º 67); - o co-arguido B. ..., não deu instruções ao co-arguido A. ..., para colocar o esquentador dentro da casa-de-banho (ponto n.º 81).
Deste modo, o juízo póstumo do homem médio, consciente e ponderado, no círculo de vida do arguido, não se orienta no sentido de a construção de uma casa-de-banho, não licenciada, constituir um risco para a vida e/ou integridade física dos utilizadores desse espaço físico.
Entender de outro modo, seria aceitar o que hoje em dia é inaceitável: a preponderância de todas as condições, apanágio da ultrapassada teoria das condições equivalentes.
Diferente raciocínio há que fazer quando perspectivada a omissão de remoção do esquentador por parte do arguido B. ...,.
Esse objecto foi instalado na “nova” casa-de-banho pelo pedreiro que realizou as obras, o co-arguido A. ...,, com preterição dos mais elementares deveres de cuidado e previdência, como ex abundanti decorre da matéria de facto provada e da fundamentação de direito da sentença do tribunal a quo.
O co-arguido B. ..., aceitou o trabalho realizado, tal como ficou feito, apercebendo-se da forma como o tubo de evacuação de gases para o exterior estava colocado e que não existia qualquer grelha de protecção no exterior e nada fez (pontos 18., 59. da matéria de facto provada), donde se conclui, sem margem para qualquer dúvida, que o arguido B. ..., teve conhecimento da instalação do esquentador na “nova” casa-de-banho, antes do fatídico dia 3 de Julho de 1998.
E ainda que não soubesse, à data dos factos, que não era permitido instalar esquentadores no interior das casas-de-banho (ponto 94) [22] , o arguido B. ..., não podia deixar de conhecer (assim o reconheceria qualquer pessoa medianamente atenta e diligente no ciclo de vida daquele) a perigosidade para bens jurídicos pessoais decorrente da colocação do supra indicado objecto no interior desses espaços, especialmente nas particulares condições evidenciadas nos autos (o arguido sabia que o executor da obra era tão só pedreiro) ou, pelo menos, pôr em dúvida, esclarecendo-se a propósito, a situação existente. Tanto mais que, desde há muitos anos, vêm sendo divulgadas, nos vários canais informativos, notícias relacionadas com eventos trágicos, advindos da incorrecta utilização de aparelhos de gás, nomeadamente da colocação de esquentadores dentro de casas de banho.
Não obstante, verificada a existência do esquentador na “nova” casa-de-banho, o arguido não diligenciou no sentido de recolher informação sobre os requisitos técnicos e legais [23] da sua instalação no mencionado local e não ordenou a sua imediata remoção, eliminando as probabilidades de ocorrência de resultados lesivos da vida e/ou da integridade física de outras pessoas, o que também não fez posteriormente, ao saber que a “nova” casa-de-banho seria utilizada, como foi, por diversas crianças.
É, deste modo, evidente que, detendo o arguido o domínio sobre a edificação em causa, à qual tinham acesso outras pessoas, sobre ele impendia o dever jurídico de remover o esquentador, de molde a eliminar os perigos resultantes da sua utilização.
Como tal, o arguido dispunha do dever de garante da não produção do resultado típico que se traduziu na violação de bens jurídicos protegidos pelo direito penal.
Como bem se salienta na sentença recorrida, não releva o facto (provado) de o arguido “não ter por hábito imiscuir-se nas questões de construção civil” e “confiar em quem contrata”.
Reafirmando o que já ficou escrito, não pode valer-se do princípio da confiança para afastar a violação do dever objectivo de cuidado, quem, como o arguido, contribuiu decisivamente para a criação de perigo para a vida e integridade física das crianças que utilizaram a casa-de-banho onde fora instalado o esquentador.
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Embora com fundamentos não inteiramente coincidentes, a esta conclusão jurídica chegou também a sentença de 1.ª instância, radicando a decisão de absolvição na impossibilidade de ao arguido ser imputado o resultado que se verificou na pessoa da assistente C. …, pela concorrência de várias causas determinantes das ofensas que esta sofreu.
E que causas concorrentes são essas, no entender do M.mo Juiz de 1.ª Instância?
A montagem pelo co-arguido A. ...,, por iniciativa deste, do esquentador no interior da casa-de-banho, sem atender às instruções constantes do manual que acompanhava o aparelho, a existência de um ninho no interior do tubo de exaustão de gases de combustão e os 18/20 banhos que precederam os das vítimas D. ..., e C. ...,
Afigura-se-nos que, nesta parte, não é acertada a decisão recorrida.
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Antes de mais, um reparo há que fazer à matéria de facto intimamente relacionada com a questão agora em aberto.
«15. À data dos factos, o tubo de exaustão dos gases de combustão do esquentador podia estar obstruído com palha e outros materiais de construção de ninhos;
«57. Terá contribuído para a acumulação de monóxido de carbono na casa-de-banho referida em 8. o facto da exaustão dos gases estar executada em forma de “pescoço de cavalo”, poder estar cheia de palha e outros materiais de construção de ninhos, haverem tomado banho cerca de 20 crianças, antes de C. …, e D. ..., e a casa-de-banho não ter meios de arejamento;
58. Tais circunstâncias dificultaram ou até mesmo impediram a saída dos produtos de combustão para o exterior».
Facilmente se detectam nos citados excertos insuficiências e contradições que só pela via do reenvio do processo para novo julgamento seriam superadas, não fora a irrelevância que eles assumem para a boa decisão da causa, como a seu tempo se verá. [24]
Insuficiências, na medida em que não decorre como provado ou não provado que as circunstâncias tidas por concorrentes ocorreram efectivamente, surgindo apenas como causas hipotéticas.
Deveria o Tribunal a quo ter apreciado os referenciados aspectos, segundo as regras da experiência comum e a sua livre convicção (art. 127.º do CPP) - levando também em conta a disposição do art. 163.º do mesmo diploma -, dando-os por provados ou não provados.
Contradição que se verifica da simples concatenação dos pontos 57.º e 58.º supra citados.
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Em sentido estrito, entende-se por causalidade cumulativa a concorrência conjunta de cursos causais que em separado não seriam suficientes e cuja realização não estava previamente acordada.
Para todo o dano cabe assinalar um risco.
O problema de concorrência de riscos surge da circunstância de o comportamento não permitido poder respeitar a uma situação que por sua vez já está ameaçada pelo risco. Em tais situações, para verificar a responsabilidade pelo delito consumado deve-se determinar se se realizou o risco daquele que há-de responder como autor, ou outro risco.
Vários autores podem ser, também juntos, responsáveis de um risco que se realiza, o que é corrente quando concorre a actuação de várias pessoas. [25]
A causa posta pelo autor não necessita ser a única, nem a última, nem tão pouco a mais efectiva, no sentido de uma causa efficiens.
Se quanto às actuações do co-arguido A. ..., e do co-arguido B. ..., não existe seguramente qualquer concorrência de causas, mas actuações independentes, relevantes cada uma de per si para o resultado que se verificou (o primeiro colocou deficientemente o esquentador, em local indevido, e o segundo, sabendo da sua existência, nas preditas condições de perigosidade, nada fez para o remover), no que concerne às outras circunstâncias enunciadas (palha e outros materiais de ninhos a obstruírem o tubo de exaustão de gases e o número de banhos), ainda que tivessem ocorrido, não se vê que elas pudessem ser de algum modo autónomas (decorreriam tão só de uma situação de perigo potenciada pelo arguido B. ...,) e, a sê-lo, por condescendência de apreciação, sempre seriam irrelevantes, pois que o decisivo é determinar se pode ser objectivamente imputável um resultado causado por uma acção humana (no sentido da teoria da condição) quando a mesma criou, para o seu objecto protegido, uma situação de perigo juridicamente proibida, e o perigo se materializou no resultado típico.
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Em face do exposto, fica indelevelmente determinada a culpa do arguido B. ...,, o qual incorreu na prática do crime de ofensa à integridade física por negligência do art. 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao art. 144.º, als. b) e d), ambos do CP, porquanto as lesões que advieram para a assistente C. ..., afectaram-lhe de maneira grave as capacidades intelectuais e a linguagem e provocaram perigo para a vida da mesma.
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Há que apurar agora as consequências jurídicas resultantes da prática pelo arguido do aludido crime, o qual é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Antes de mais, torna-se necessário considerar a possibilidade de atenuação especial da pena, em obediência à disposição do art. 10.º, n.º 3 do CP.
Dispõe o art. 72.º do CP revisto: «o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente ou a necessidade da pena».
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo elenca exemplificativamente circunstâncias várias que, correlacionadas com os requisitos contidos no n.º 1, ainda do mesmo normativo, potenciam a atenuação especial da pena.
Deste modo, foi criada pelo legislador uma válvula de segurança para situações particulares, que tem sido justificada nos seguintes termos: «Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena». [26]
«Hipóteses que em muitos casos, o próprio legislador prevê, mas que a apontada incapacidade de previsão leva ainda a suprir com uma cláusula geral de atenuação especial».
O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber: - Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, necessidade da pena e, em geral, das exigências de prevenção ; - A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, “lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios”». [27]
A via trilhada pelo legislador ao elaborar as aludidas normas foi a de elencar exemplificativamente circunstâncias atenuantes de especial valor, a fim de dar ao juiz critérios mais rigorosos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral. Ou seja, sem criar obstáculo à necessária liberdade do juiz, põem-se à disposição deste princípios delimitadores mais sólidos e facilmente apreensíveis para que, em cada caso concreto, se decida pela aplicação ou não do instituto em causa.
Porém, há que evidenciar que as situações a que se referem as diversas alíneas do n.º 2 dos citados artigos não têm, por si só, a virtualidade de conferir poder atenuativo especial, impondo-se o seu relacionamento com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.
Na presente situação, ainda que o arguido não possua antecedentes penais, detenha um quadro familiar e social plenamente estável e equilibrado e haja manifestado um sentido de elevada capacidade de censura e análise crítica dos factos, apesar deste quadro manifestamente atenuativo, são acentuadas as exigências de prevenção geral ou de integração, num contexto temporal em que é preciso reafirmar as expectativas comunitárias na validade das normas que protegem bens jurídicos pessoais, afectados por omissões decorrentes do exercício de instalações/actividades perigosas.
Por outro lado, e ainda que os elementos fácticos já descritos impliquem a diminuição da necessidade da pena, não é de tal modo acentuada essa diminuição, no quadro do circunstancialismo global - revelador da gravidade do ilícito -, que importe a impossibilidade da adequação concreta da pena dentro da moldura normal.
Por todo o exposto, não se justifica a atenuação especial da pena.
Há que analisar, agora, no seguimento da orientação inserta no art. 70.º do Código Penal, se será de dar preferência à pena de multa em detrimento da pena de prisão.
O critério legal a seguir é simplesmente este: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa (de multa) sempre que verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa...se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição.
O que o mesmo é dizer que a aplicação de uma pena alternativa à pena de prisão, no caso a pena de multa, depende tão somente de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».
«...Sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie da pena. Por outras palavras: a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da pena de prisão..., quer da medida da pena alternativa (...).
Em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa...quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o...carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração».
A prevenção geral «deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico..., como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa...só não será aplicada se a execução da prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias». [28]
Reportando-nos ao caso concreto:
A ilicitude espelhada na conduta do arguido é expressiva, considerando as consequências particularmente gravosas para a saúde e integridade física da ofendida C. ...,.
Porém, ainda que no caso em apreciação se acentuem as necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, há que ter em conta a ausência de antecedentes penais por parte do arguido e os próprios contornos do acidente, a permitirem dizer que o acto praticado corresponde a uma situação de mera ocasionalidade, sem ligação a uma personalidade desconforme aos valores tutelados pelo direito, sendo ainda certo que o arguido tem um bom nível de inserção social.
Crê-se, por isso, que a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, cabendo de imediato proceder à sua determinação concreta.
Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).
O art. 71.º do mesmo diploma, estipula, por outro lado, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção» (n.º1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2, do mesmo dispositivo).
Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.
O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Como refere Claus Roxin, em passagens escritas perfeitamente consonantes com os princípios basilares no nosso direito penal, «a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada.
A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade.
Certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.
A pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais». [29]
Passemos então à concretização destes enunciados, sendo certo que, para o efeito, o tribunal deverá atender “a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (art.º 71, n.º 2, do CP).
Assim, ponderando, por um lado:
- A gravidade da violação jurídica cometida pelo arguido apresenta-se com acentuada expressão, consideradas as graves lesões sofridas pela ofendida C. …;
- A premência cada vez maior das exigências de prevenção geral positiva ou de integração, num circunstancialismo temporal em que cada vez se registam mais acidentes directamente conexionados com o manuseamento de substâncias perigosas.
E por outro:
- que o arguido agiu na forma menos intensa de culpa (negligência inconsciente);
- A ausência de antecedentes criminais por parte do mesmo;
- As suas condições pessoais, económicas e sociais (é empresário, gere um património pessoal avaliado em vários milhões de euros e vive com a mulher e um filho; mensalmente tem poucos encargos em proporção aos seus rendimentos);
- O tempo já decorrido (mais de 7 anos);
julgamos adequada a pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de € 250 (duzentos e cinquenta euros) - vista ainda a disposição do art. 47.º, n.º 2 do CP.
Afigura-se-nos que se mostra, assim, respeitado o limite máximo correspondente à medida da culpa e a pena reflecte a consideração equilibrada das exigências concretas de prevenção geral positiva ou de integração, reconhecidamente elevadas, considerando a importância dos valores violados e a frequência com que o são.
Igualmente satisfazem, dentro da «moldura de prevenção geral», as necessidades, reveladas no caso, de prevenção especial de socialização, patentemente diminutas.
***
IV - Assim, por todo o exposto, acordam os Juizes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu B. ...,, condenando-se este arguido, pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelo art. 148.º, n.ºs 1 e 3, por referência ao art. 144.º, als. b) e d), ambos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de € 250 (duzentos e cinquenta euros).
Custas pelo arguido, com 10 (dez) UC´s de taxa de justiça (arts. 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1 do CPP e arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, al. b, do CCJ).
Honorários ao defensor nomeado em audiência, nos termos do disposto no ponto 6 da tabela anexa à Portaria n.º 1387/2004, de 10 de Novembro.
***
Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).
Évora, 6 de Dezembro de 2005
Aberto Mira




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[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo 2000, Vol. III, pág. 338/339.
[2] Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 335
[3] Derecho Penal - Parte General, Tomo I - Tradução da 2.ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, pág. 999 e segs.
[4] Obra citada, pág. 356.
[5] Maurach, Derecho Penal - Parte General, II, Tradução da 7.ª Edição alemã, por Jorge Bofill Genzsch, Editorial Astrea, Buenos Aires, 1995, II Volume, págs.135 e segs.
[6] Ibidem, pág. 361.
[7] Idem, obra citada, pág. 1009.
[8] Proc. n.º 257/99, da 3.ª Secção, publicado nos “Sumários de Acórdãos do Gabinete de Assessoria do STJ”.
[9] Maurach, idem.
[10] Figueiredo Dias, idem, pág. 365.
[11] Claus Roxin, ob. cit., pág. 1005.
[12] Tratado de Direito Penal, Parte Geral, Granada, 1993, págs. 523 a 543.
[13] Mesma obra, pág. 377/378.
[14] Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, C.E.J., 1983, págs. 70/71 e segs.
[15] Figueiredo Dias, Direito Penal, Coimbra Editora/2004, Parte Geral, Tomo I, pág. 642/643.
[16] Figueiredo dias, Direito Penal, Coimbra Editora/2004, Parte Geral, Tomo I, págs. 674 a 676.
[17] Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, 3.ª Edição, pág. 240.
[18] Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, II, pág. 48; Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, I, pág. 105: «A maneira mais simples e clara de resolver o problema será a partir dos próprios preceitos que proíbem a produção de certos resultados, consagrando a ideia de que estes se imputam objectivamente, quer às condutas que os produzem, quer às omissões que os deixam ter lugar».
[19] Ac. da Relação de Guimarães de 9 de Fevereiro de 2004, publicado na “Colectânea”, Ano XXIX, Tomo I/2004, Janeiro/Fevereiro, págs. 296 a 298.
[20] Entre outros, Figueiredo Dias, Direito Penal, Coimbra Editora/2004, Parte Geral, Tomo I, pág. 699 a 716; Francisco Munõz Conde, Mercedes García Arán, Derecho Penal, Parte General, 4.ª Edição, tirante lo blanch libros, pág. 274 e segs. e Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, II Vol. AAFDL, pág. 549.
[21] Ac. da Relação de Guimarães de 9 de Fevereiro de 2004, ob. cit.
[22] De acordo com a previsão normativa do art. 16.º do Código Penal, o erro sobre a proibição exclui o dolo, ficando, porém, ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.
[23] v. g., o n.º 3 do art. 87.º do Regime Geral das Edificações Urbanas, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 650/75, de 18 de Novembro, que dispõe: «Em caso algum será prevista a utilização de aparelhos de combustão, designadamente esquentador a gás, nas instalações sanitárias», o Decreto-Lei n.º 262/89, de 17 de Agosto, que estabelece o Regime Jurídico relativo ao projecto, execução, abastecimento e manutenção das instalações de gás combustível em imóveis, visando a comodidade e a segurança necessárias na utilização desta fonte de energia, como é referido no preâmbulo do diploma e o Decreto-Lei n.º 263/89, de 17 de Agosto, que aprovou o Estatuto das Entidades Instaladoras e Montadores de Redes de Gás, estabelecendo o seu n.º do art. 6.º que «ao mecânico de aparelhos de gás compete executar as montagens e as reparações de aparelhos de gás».
[24] Cfr. arts. 410.º, n.º 2 e 426.º, ambos do Código de Processo Penal.
[25] Günter Jakobs, Derecho Penal, Parte General, 2.ª Edição corrigida, Madrid, 1997, págs. 269/270.
[26] Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 444, pág. 302.
[27] Ac. do STJ de 08-11-2001, proferido no proc. n.º 1099/01 - 5.ª Secção e Figueiredo Dias, obra já referenciada, § 444, § 451 e § 454.
[28] Jorge de Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, § 497, 499 e 500, págs. 331 a 333.
[29] Derecho Penal - Parte General, Tomo I, Tradução da 2.ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas), págs. 99/101 e 103.