Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2846/07-1
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: OBJECTO DO PROCESSO
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
NE BIS IN IDEM
DUPLICIDADE DE INQUÉRITOS
Data do Acordão: 03/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1 - O objecto do processo penal é, pois, delimitado nas suas dimensões quantitativa e qualitativa a partir da acusação ou no despacho de pronúncia. O objecto do processo pode também ser delimitado pela pretensão do queixoso, mesmo na fase do inquérito.

O simples facto de se fixar o objecto do processo e fixá-lo para o futuro, é uma exigência do princípio do contraditório. Daí que só uma perspectiva teleológica permita evitar, que se caiam em soluções que acabem por perder de vista o interesse da defesa.

2 - O facto criminoso é o mesmo, se a desaprovação social for a mesma, pese embora se tenham multiplicado, eventualmente, os juízos de censura jurídico-penal.

3 - Nos crimes, como os dos autos, em que a queixa é condição de procedibilidade (cf. art. 49.º do CPP, 190.º, 191.º e198.º do Código Penal), o objecto do processo é delimitado por ela, mesmo na fase do inquérito, relativamente aos factos praticados, ou seja, à acção, mas não ao esclarecimento dos seus elementos essenciais e acidentais.

4 - A investigação dos factos objecto de queixa não pode ser limitada pelo queixoso, salvo tratando-se de crime particular e desde que a amputação dos factos não implique alteração substancial dos cometidos e dos que são objecto de queixa, devendo no inquérito praticar-se todas as diligências que forem tidas por indispensáveis para o seu pleno esclarecimento, para a descoberta da verdade.

5 - Em caso de hipótese de arquivamento do inquérito nos termos do art. 277.º do CPP, pode manter-se ainda numa certa indefinição, quanto ao objecto do processo, que tem como consequência que em caso de reabertura do inquérito os factos podem ser ampliados, restringidos ou ser qualificados diversamente. É que o art. 277.º apenas exige a prova de que os factos noticiados, com os desenvolvimentos que o inquérito entretanto propiciou, não constituam crime ou que não se indicie suficientemente que o constituam, mas não que não constituam um determinado crime. Só não é assim relativamente aos crimes dependentes de queixa ou participação das autoridades em que a decisão de arquivamento por inexistência de crime ou insuficiência de indiciação se há-de reportar ao crime objecto da queixa ou participação.

6 - O arquivamento do inquérito, ao abrigo do disposto no art. 277.º do CPP, não tem efeitos preclusivos, pois o inquérito pode ser reaberto nos termos do art. 279.º n.º1 do mesmo diploma, ou seja, caso surjam novos factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento. O despacho de arquivamento neste âmbito é da exclusiva competência do Ministério Público e nele não há qualquer intervenção judicial. A decisão não é, pois, jurisdicional e consequentemente, não é susceptível de recurso, nem de trânsito em julgado.

7 - Em termos conceptuais, entende-se que o despacho de arquivamento produz efeitos extraprocessuais (ao contrário do que sucede com a acusação que produz efeitos endoprocessuais), pois, decorridos os prazos peremptórios para a sua impugnação/revogação (através da abertura da instrução ou intervenção hierárquica), tem a força de caso decidido, apenas mutável e susceptível de reavaliação se surgirem novos elementos que ponham em causa os efeitos da decisão de abstenção, no âmbito do mesmo processo.

8 - A relevância da motivação do despacho de arquivamento propaga-se para além dos momentos da sua sindicabilidade (intra-orgânica ou judicial) aos efeitos futuros do despacho que vale como caso decidido, pois os novos elementos de prova têm de por em causa esses fundamentos e não apenas a bondade da decisão. [1]

9 - A regra do « ne bis in idem » (ou « non bis in idem ») é um princípio clássico do processo penal, já conhecido do direito romano, segundo o qual « ninguém pode ser perseguido ou punido penalmente pelos mesmos factos». Esta regra, que responde a uma dupla exigência de equidade e de segurança jurídica, é reconhecida e aplicada na ordem jurídica interna por um conjunto de países respeitadores do Estado de direito.

10 - A Constituição da República Portuguesa consagra, no n.º 5 do artigo 29.º, o referido princípio “ne bis in idem” dizendo que «ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime”. Desta enunciação do princípio decorre a proibição de aplicar mais de uma sanção com base na prática do mesmo crime e também a de realizar uma pluralidade de julgamentos criminais com base no mesmo facto delituoso.

11 - Como defendem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, no seu livro “ CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, em anotação ao art. 29.º, “o princípio “ne bis in idem” comporta duas dimensões:

- (a) Como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo);

- (b) Como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.”

12 - Na tese que subjaz à decisão em recurso, a opção pelos efeitos do caso julgado material acaba por pôr no mesmo plano as absolvições decretadas em julgamento por falta de provas e os casos de mero arquivamento do inquérito com o fundamento em indiciação insuficiente, ou por, no entender do titular da acção penal, existir prova bastante de os arguidos não terem praticado o crime. O paradoxo está em que no primeiro caso, em que de autêntico caso julgado material se trata, já se exigia um qualificado grau de indiciação como pressuposto da acusação e da remessa para julgamento.

13 - O despacho de arquivamento, resultante de não se terem confirmado indícios da comissão de um crime, ou por concluir que os arguidos não o praticaram, não é uma decisão de mérito. E também assim é em todos os casos de não pronúncia, pois tribunal conhece simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo prossiga com a acusação deduzida e submetida à comprovação na fase da instrução; trata-se sempre, pois, de uma decisão de conteúdo estritamente processual.

14 - Em processo penal, a não pronúncia, sendo decisão final, determina o arquivamento do processo, pelo que à possibilidade de instauração de novo processo no domínio do processo civil, quando tenha havido absolvição da instância, corresponde no âmbito do processo penal a reabertura do processo arquivado. Esta conclusão impõe-se por analogia com o que determinam os art. 277.º e 279.º para o arquivamento e reabertura do inquérito.

15 - Participados os factos que foram investigados no âmbito de um determinado processo de inquérito e que foi mandado arquivar, a investigação, perante o surgimento de “novos elementos de prova”, só pode prosseguir a requerimento do queixoso nesse mesmo processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, precedendo conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


1. A.F.M., identificado nos autos, inconformado com o arquivamento do inquérito, constituiu-se assistente e requereu a abertura da instrução contra os arguidos J.C.S. e R.S. S., pedindo, a final, a pronúncia destes pelo crime de violação de domicílio ou de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelos art. 190.º e 191.º do Código Penal, nos termos e com os fundamentos que invoca a fls.139 a 151.

2. Realizada a instrução, a Senhora Juíza veio a proferir com data de 26 de Abril de 2007, a seguinte decisão:

“Declaro encerrada a instrução.

O tribunal é competente em razão da matéria e da hierarquia.

O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal

Da duplicação de inquéritos e princípio da proibição do "ne bis in idem”.

O Digno Magistrado do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento - cfr. fls.129 e 130 dos presentes autos - nos termos do n.º1 do art. 277º, do Código de Processo Penal, invocando o princípio do” ne bis in idem”, por considerar que os presentes autos são mera duplicação dos autos de inquérito que correram os seus termos sob o n.º …/04.1TATVR, que nem sequer traz factos novos que determinassem a reabertura desse.

Inconformado com tal despacho de arquivamento veio o assistente A. F.M. requerer a abertura da instrução (cf. fls.139 a 151), com vista à prolação de despacho de pronúncia dos arguidos J.C.S. e R.S.S..

Em síntese, alega que, em 8 de Março de 2005, participou a prática de certos factos, qualificando-os como ilícitos criminais previstos e punidos pelos art. 190º e 191º, do Código Penal, juntando à dita participação duas notificações judiciais avulsas: uma, feita pelo arguido J.C.M. e mulher e subscrita pelo outro arguido, na qualidade de seu advogado, dirigida ao assistente; e, outra, feita pelo assistente contra aquele J.C. e mulher, documento este que não consta daquele inquérito …/04.1PATVR e segundo o qual, o assistente notificava o arguido (em 17 de Dezembro de 2005) de que o seu anunciado arrombamento com mudança de fechadura constituiria crime.

Além desse documento, que considera um facto novo, o assistente invoca ainda como facto novo do presente inquérito, a existência da acção cível que corre termos sob o n.°…/04.9TBTVR, cuja petição junta aos autos.

Por outro lado, invoca ainda o facto de, naquele inquérito, apenas ter sido apreciada a existência do crime do artigo 190°, do Código Penal e não, o do crime do artigo 191°. Ou seja, no seu entender, enquanto neste inquérito são dois os crimes denunciados, naquele é apenas um.

Por último, o assistente ataca os fundamentos do despacho de arquivamento, no que concerne à invocada convicção errónea por parte dos arguidos, pugnando pela não exclusão do dolo da respectiva actuação.

Quanto ao arguido J.C., considera que o facto de ser Proprietário do imóvel não cria, nem afasta o dolo. No que concerne ao arguido R.S. , realça a sua qualidade de advogado e enquanto tal, conhecedor da qualidade e direitos que o assistente se arrogava titular.

Juntou aos autos os seguintes documentos:

- cópia simples da notificação judicial avulsa, remetida pelo assistente e sua mulher ao arguido J.C. e sua mulher, cujo carimbo de entrada na secção do Tribunal de Tavira é de 23 de Novembro de 2004, com despacho judicial no sentido de se proceder à mesma e certidão da sua realização em 17 de Dezembro de 2004 (cfr. fls. 152 a 159);

- cópia simples da petição inicial relativa à acção cível que corre termos no Tribunal Judicial de Tavira sob o n. , interposta pelo assistente e mulher contra o arguido J. C. e mulher, cuja data de entrada aposta no carimbo é de 19 de Outubro de 2004 (cfr. fls. 160 a 177).

Consta dos autos uma certidão relativa aos autos de inquérito que correram termos sob o n.º …/04.1PATVR (cfr. fls. 17 a 97).

Foi admitida a reinquirição das testemunhas arroladas pelo assistente, tendo resultado confirmados os depoimentos anteriormente prestados (cfr. auto de inquirição de fls. 264 a 268).

Cumpre apreciar e decidir.

O princípio em causa é o consagrado no número 5, do artigo 29°, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

No Código de Processo Penal existem, apenas, duas disposições normativas que se reportam à figura em causa - o caso julgado, que são: o artigo 84º, respeitante à decisão que conhece do pedido civil; o artigo 467°, n.º l, ao estatuir que, as decisões penais condenatórias, logo que transitadas, possuem força executiva.

Assim, mediante recurso à regra do artigo 4°, do Código de Processo Penal, aplicar-se-iam as regras processuais civis previstas nos artigos 493° a 498º, do Código de Processo Civil.

Desta forma, será à luz de tais disposições que cumpre, antes de mais, apreciar se estamos perante uma situação de duplicação de inquérito que implique a violação da proibição do princípio da proibição do "ne bis in idem"

Vejamos os elementos dos autos.

Nos presentes autos foi participado que, no dia 29 de Novembro de 2004, durante a tarde, aproveitando a ausência do assistente e sem a sua autorização, o arguido J.C., acompanhado do R. S. e um carpinteiro, arrombou a porta da residência do assistente, sita na Urbanização …, em Tavira, substituiu o canhão da fechadura e tomou posse do dito imóvel pela sua própria força, impedindo assim a entrada do assistente e de sua família naquela residência. Refere-se ainda que, o arguido J.C. foi apoiado pelo arguido R.S. que subscreveu, em sua representação, uma notificação judicial avulsa anunciando tal propósito e à qual o assistente respondeu, também através de notificação judicial avulsa, no sentido de que, caso levassem a cabo a anunciada conduta, cometeriam um crime de violação de domicílio. Mais se imputa o facto dos arguidos terem agido livre, consciente e deliberadamente, com pleno conhecimento da ilicitude criminal do seu acto e com dolo intenso. Acrescentam-se elementos relativos ao contrato promessa celebrado em 17 de Outubro de 2004 e à acção cível entrada em 19 de Novembro de 2004, à identificação do autor material do facto e aos objectos pertencentes ao assistente que se encontravam no interior da residência.

Saliente-se que, em tal participação, muito embora o assistente comece por enunciar o propósito de prosseguimento criminal pelo crime de violação de domicilio, termina indicando, em hipótese cumulativa, o preenchimento do crime previsto no artigo 191°, do Código Penal.

Ora, a peça processual que dá origem aos autos de inquérito …/04.1PATVR é o auto de notícia que consta a fls. 18, cuja data de elaboração é de 3 de Dezembro de 2004. Em tal auto, surge como ofendido, o ora assistente e figuram como suspeitos conhecidos L.S. O facto denunciado ocorrido no dia 29 de Novembro de 2004 é o arrombamento da porta da entrada da residência do ofendido e substituição do canhão da fechadura, aproveitando a sua ausência e sem autorização.

Logo aí se menciona a pendência de uma acção cível no Tribunal Judicial de Tavira e que, no interior da residência havia ficado objectos pertencentes a um outro indivíduo de nome J.V.. Mais se consigna que uma testemunha teria indicado que os arguidos haviam estado presentes aquando da ocorrência.

Tais factos foram objecto de investigação pelo Ministério Publico, tendo tido lugar várias diligências de investigação que desembocaram na prolação de um despacho de arquivamento (cfr. fls. 61 a 68).

Com relevância para a apreciação desta questão, sublinha-se que, em tal inquérito já constava a cópia da notificação judicial avulsa enviada ao assistente, no sentido da intenção de arrombamento do imóvel (cfr. fls. 34 a 38).

Face a tal arquivamento, o assistente apresentou reclamação perante o Exmo. Sr. Procurador da República de Faro (cfr. fls. 71 a 75), invocando a existência de uma segunda notificação judicial avulsa por si dirigida ao arguido J. C., bem como a existência de uma acção cível (os mesmos documentos que agora apresenta para fundamentar a existência de factos novos) e atacando a alegada convicção errónea do exercício de um direito e os efeitos que o Ministério Público extraiu de tal convicção.

Sobre tal reclamação incidiu decisão de inadmissibilidade legal, por extemporaneidade (cfr. fls. 88 a 93).

Face ao exposto, resulta à saciedade que os factos em investigação nos dois inquéritos são os mesmos.

Na verdade, nos dois autos de inquérito são os mesmos os intervenientes processuais.

Já no que respeita aos limites objectivos, a questão em análise, reveste-se de uma especial complexidade, pois que, há que definir o conceito de "identidade do facto" que, caso se verifique, implicará o funcionamento da regra do "ne bis in idem".

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Maio de 2002, publicado in http://www.dy.si.pt, cita a este propósito os ensinamentos de Cavaleiro de Ferreira, na parte que passamos a transcrever: “(...) o conceito de identidade do facto não irá buscar-se...ao direito material, a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real. (...) Se o facto concreto é totalmente o mesmo, não podem surgir dúvidas. A lei, porém, admite uma identidade parcial (...) A identidade parcial pode verificar-se de modo que o facto, objecto do novo processo, seja mais restrito do que o facto apreciado por sentença transitada em processo anterior.”

E mais adiante, acrescenta-se: "para fundamentar naturalisticamente a identidade, deve atender-se aos factos praticados, ou seja, à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais que constitui objecto do processo, mas não a própria acção ".

Assim, temos que o facto real e concreto cuja prática é imputada aos arguidos, nos presentes autos, identificam-se com aqueles que já foram alvo de investigação e objecto de despacho de arquivamento, transitado em julgado.

Por outro lado, também resulta evidente que a invocação da existência de uma notificação judicial avulsa ou da pendência de uma acção cível não constituem factos novos. Na verdade, por um lado, trata-se são factos que já haviam sido invocados como fundamento da enunciada reclamação e que aquando da primeira participação (a que dá origem ao inquérito …/04.1PATVR) já era do conhecimento do assistente, por outro lado, não são factos essenciais, não se referem a qualquer elementos do tipo, nem assumem qualquer relevância para efeitos criminais.

Ainda que assim fosse, a invocação de factos novos não constitui fundamento de abertura de instrução, mas sim de reabertura de inquérito (cfr. artigo 279°, do Código de Processo Penal). Ou seja, a eventual descoberta de factos novos apenas poderia ter sido apreciada no processo primitivo.

Ora, conforme resulta dos autos, tal tentativa de reabertura do inquérito não teve lugar através da forma processual adequada e, salvo o devido respeito, não se pode agora "vir fazer entrar pela janela, o que não entrou pela porta" .
Por último, sempre se dirá que o Ministério Publico não se encontra limitado à qualificação jurídica indicada pelo participante de certos factos, nem a não apreciação do segundo tipo legal indicado o fará incorrer numa omissão de pronúncia. O que resulta da participação são factos que, no entender do Ministério Público seriam susceptíveis de preencher a factualidade típica do crime de violação de domicílio e, mais nenhum outro.

Pelo exposto, decido:

a) Julgar procedente a aludida excepção;

b) por conseguinte, não conhecer do mérito da causa.

Notifique.

Custas pelo assistente, com taxa de justiça que se fixa em 1 UC - cfr. artigo 84º, do Código das Custas Judiciais.

Oportunamente, arquivem-se os presentes autos.”

5. Inconformado, o assistente veio interpor recurso, nos termos constantes de fls.314 a 331, pugnando pela sua revogação e se ordene a prolação de decisão de mérito.

Concluiu a motivação do recurso nos seguintes termos:

“1 - A decisão instrutória não pronunciou os arguidos por qualquer dos crimes participados, de violação de domicílio nem de introdução em lugar vedado ao público, porque julgou procedente a excepção da proibição do "ne bis in idem”que considera aplicável ao despacho de arquivamento do Ministério Público.

2 - Considerou o despacho recorrido, acompanhando a posição do Ministério Público, que o presente inquérito é uma duplicação de um outro anterior, com o n°…/04.1TATVR, em que é participado um tal L.S. e em que o facto denunciado é o arrombamento da porta da entrada da residência do queixoso e substituição do canhão da fechadura, aproveitando a sua ausência e sem a sua autorização e contra a sua vontade, em virtude de os ora participados terem participado também nesses factos e sobre eles se ter pronunciado já o Ministério Público.

3 - Em consequência, não se pronunciou sequer a decisão recorrida sobre a existência ou não de indícios suficientes da existência de crime nem dos seus autores.

4 - E fê-lo com fundamento no princípio do ne bis in idem e no disposto nós arts 29°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa, 4° CPPenal e 493° a 498° CPCivil.

5 - A decisão recorrida deve ser revogada, por fazer errada interpretação e aplicação dos preceitos que invoca, a saber, desses arts. 29°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa, 4° CPPenal e 493º a 498° CPCivil e ainda dos arts 202º e 219°daCRP.

6 - Por outro lado, só aparentemente é que o presente constitui uma duplicação do processo de inquérito n° …/04. l TATVR. Na verdade,

7 - Embora o contexto geral dos factos em causa seja o mesmo, muitos outros factos novos foram trazidos pela participação que deu origem a este processo, nomeadamente os factos referentes ao elemento subjectivo do crime e que conduziu ao arquivamento do processo por convicção errónea do Ministério Público de que os arguidos agiram na convicção errónea de que actuavam licitamente, afastando com isso o seu dolo. Na verdade,

8 - Na participação que originou este processo, alegou-se que os arguidos participados agiram livre, consciente e deliberadamente, com pleno conhecimento da ilicitude civil e criminal do seu acto, com dolo intenso, por terem pleno conhecimento de que "A ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei.", como se proclama no pórtico do Código de Processo Civil, logo no seu artigo 1°., em paralelo com a norma do art. 336, do Código Civil, onde se consagra igualmente o principio da proibição da auto-tutela, que os denunciados não podiam ignorar, sendo que um dos arguidos é advogado e o outro bancário e ex-autarca, presidente de uma Junta de Freguesia, ou seja, pessoas ilustres e ilustradas, a quem incumbe o dever, não só cívico, mas mesmo legal, de agir em conformidade com a lei e não em acção directa injustificada, fazendo justiça pelas usas próprias mãos.

9 - Estes factos, referentes ao elemento subjectivo do tipo de crime, seja ele o do art. 109 (leia-se art. 190.º) ou do 110 (leia-se art. 191.º), do CPenal, não constam do elenco dos factos do despacho de arquivamento, constituindo factos novos.

10 - Também não consta do elenco dos factos que serviram base ao anterior despacho de arquivamento o facto de a acção cível subjacente a esta questão criminal ter sido interposta pelo ora recorrente contra o arguido J.C. e não o contrário, como é referido no início do despacho de arquivamento que ele afirma, nem que foi feita contra-notificação judicial avulsa.

11 - Importaria ainda apurar, por ter sido alegado no art. 13 do requerimento de abertura de instrução que não há qualquer decisão a declarar que o ora recorrente incumpriu o contrato promessa de compra e venda que estabeleceu com o arguido J.C. ou a ordenar a restituição do imóvel, cuja entrega aliás, se porventura existisse uma tal decisão, caberia ao tribunal efectuar e não aos arguidos executá-la por acção directa.

12 - Assim, a decisão de que este inquérito constitui uma duplicação do anterior n° …/04.1TATVR, assim como a decisão recorrida que julga procedente essa excepção, constituem um, ou dois equívocos, que deverão ser desfeitos, com a revogação da decisão recorrida e ordenando-se que seja proferida decisão de mérito.”
6. O recurso foi admitido por despacho proferido em 20 de Junho de 2007.

7. O Ministério Público junto do tribunal a quo veio responder nos termos constantes de fls.344, dizendo concordar com o despacho recorrido e que deve ser negado provimento ao recurso.

8. Também os arguidos – recorridos vieram responder ao recurso, defendendo que lhe deve ser negado provimento, concluindo nos seguintes termos:

“I - Os ora recorridos já foram alvo de investigação pelos mesmos factos alegados pelo ora recorrente em ambos os inquéritos, tendo sido proferido despacho de arquivamento no primeiro inquérito (…/04.1PATVR), decisão essa definitiva e devidamente transitada em julgado.

II - Os factos trazidos pelo ora recorrente na segunda participação criminal e no requerimento de abertura de instrução, de maneira alguma podem ser considerados como factos novos, uma vez que já eram do conhecimento do mesmo aquando da participação criminal inicial e que deu origem ao inquérito …/04.1PATVR, tendo sido aliás invocados na reclamação feita neste processo e que foi considerada inadmissível por extemporaneidade.

III - Mesmo que tais factos fossem considerados como novos, o caminho legal a seguir seria o da reabertura do inquérito …/04.1PATVR e não o de uma nova participação criminal.

IV - Não tendo assim o recorrente entendido, decorreram todos os prazos legais ao seu dispor para reagir ao arquivamento do inquérito …/04.1PATVR.

V - O recorrente, ao apresentar nova participação criminal contra os ora recorridos, pelos mesmos factos e nos mesmos termos do inquérito …/04.1PATVR, deu origem a uma duplicação de inquéritos.

VI - Neste caso em concreto, existe duplicação de inquéritos porque os intervenientes são os mesmos, os factos alegados são idênticos e inexistem novos elementos com relevância para o caso.

VII - Existindo identidade de factos, verifica-se o funcionamento da regra do "ne bis ín idem".
VIII - Como principio constitucional que é não pode pois ser violado, devendo a decisão recorrida que julga esta excepção ser julgada procedente, e como tal não conhecer do mérito da causa.”

9. Nesta Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos e emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, dizendo, em resumo, que a cada crime não pode corresponder mais do que um único processo.

Participados factos que foram investigados em processo de inquérito mandado arquivar, a investigação poderia, porém, prosseguir perante “novos elementos de prova” – art. 279.º n.º1 do Código de Processo Penal), naturalmente nesse mesmo processo.

Ora, tendo a mesma exacta factualidade sido novamente participada, dando origem a novo inquérito, que veio a ser igualmente arquivado, é inadmissível a instrução requerida pelo assistente no inquérito posterior, pois só no anterior inquérito podia ser pedida.

10. Cumprido o disposto no art. 417 n.º2 do CPP, foi apresentada resposta pelo assistente nos termos constantes de fls.368 a 371, requerendo se declare que nem mesmo a justiça formal impõe o arquivamento do processo, como pretende o Ministério Público, declarando-se, pelo contrário, que deverá prevalecer a justiça substancial, concedendo-se provimento ao recurso.

11. Colhidos os vistos legais, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

12. Delimitação do objecto do recurso.

O recurso é um meio processual que visa provocar uma reapreciação de uma decisão judicial de forma a corrigi-la de imperfeições, que pela sua importância não consentem uma forma de remédio menos solene (cf. Simas Santos e Leal - Henriques in Recursos em Processo Penal - 2ª edição - Rei dos Livros pág. 19).

Os fundamentos dos recursos constam do art. 410.º do C.P.P. e a formulação da motivação e respectivas conclusões, do art. 412.º do mesmo diploma.

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que delimitam o âmbito do conhecimento do mesmo, pois são estas que habilitam o tribunal superior a conhecer as pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (art. 402.º, 403.º e 412.º n.º1, todos do C. P. Penal).

Como é próprio da natureza dos recursos, estes não se destinam a apreciar questões novas, que não tenham sido submetidas pelo recorrente ao tribunal de que se recorre, mas apenas a reapreciar uma questão decidida ou que deveria ter sido decidida pelo tribunal a quo.

A resposta ao parecer emitido pelo Ministério Público não pode ser utilizada para ampliar o objecto de recurso ou suscitar questões novas, pois aquele se estabilizou nas conclusões oportunamente apresentadas. Por isso que não se conhecerá das pretensões aí deduzidas pelo recorrente que excedam o objecto do recurso.

13. O que está em discussão é uma simples questão de direito consistente afinal em saber se instaurado um inquérito para averiguação de um determinado factualismo e perante o arquivamento deste, nos termos do art. 277.º n.º1 do CPP, por ter sido entendido que tais factos não constituem qualquer crime, nomeadamente o do art. 190.º n.º1 e 3 do Código Penal, por exclusão do dolo do tipo, é ou não lícito ao denunciante desencadear outro processo autónomo com vista à averiguação da responsabilidade criminal dos agentes dos factos já denunciados anteriormente e cuja conduta o Ministério Público já havia apreciado.

Para melhor compreensão da questão impõe-se considerar as seguintes ocorrências processuais que resultam dos autos:

1 – O ora assistente A.F.M., no dia 3 de Dezembro de 2004, queixou-se na Esquadra de Tavira contra um tal L.S., afirmando, em síntese, que na tarde do dia 29 de Novembro de 2004, aproveitando a sua ausência e sem a sua autorização, o denunciado arrombou a porta de entrada na sua residência, sita na Urbanização,…, em Tavira, e substituiu o canhão da fechadura, impedindo, assim, a sua entrada, o que foi tipificado como crime de violação de domicílio (cf. fls.17 e 18).

2 – Realizado o inquérito, no âmbito do qual foi constituído como arguido, o denunciado L.M.S. e foram ouvidos, entre outros, os ora arguidos J.C.S. e R.S.S., o Ministério Público proferiu o despacho certificado a fls.62 a 67, determinando o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 277.º n.º1 do CPP, por entender que o comportamento de qualquer dos intervenientes, nos quais engloba os ora arguidos, não configura o crime de violação de domicílio qualificado, dizendo, em resumo, que quer L. M.S., quer J.V., executores materiais do arrombamento e da substituição da fechadura, respectivamente, agiram sem dolo de violação de domicílio, pois agiram na convicção de que o mandante e proprietário do imóvel J. C.S., teria legitimidade, quer para o arrombamento, quer para a introdução na habitação em causa, não sendo punível uma actuação negligente; também o proprietário do imóvel agiu na convicção errónea de estar a coberto do legítimo exercício de um direito, por ser o proprietário do imóvel onde o ofendido instalou a sua residência; aos restantes intervenientes também não pode ser imputado qualquer ilícito típico, porque agiram na convicção errónea de que J.C.S., enquanto proprietário do imóvel em causa, agia licitamente, pelo que o dolo do tipo também é, quanto a eles, excluído (art. 190.º e 16.º n.º1, ambos do Código Penal), não encontrando a negligência aqui qualquer punição.

3 – Notificado do despacho de arquivamento, o queixoso não requereu a abertura da instrução, mas reclamou para o Senhor Procurador da República Junto do Circulo Judicial de Faro, nos termos constantes de fls.71 a 75, requerendo o prosseguimento dos autos contra os arguidos J.C.S. e R.S.S. e, na devida oportunidade, a acusação daqueles, manifestando, desde logo, o propósito de deduzir pedido de indemnização contra os mesmos.

4 – E, sem aguardar pela decisão à reclamação deduzida, o ora assistente, formulou a participação constante de fls.2 a 4 contra os arguidos J.C.S. e R.S.S., que deu entrada no Tribunal Judicial de Tavira no dia 8 de Março de 2005, e que foi distribuída, autuada e registada como inquérito com o n.º …/05.6TATVR.

5 – Por despacho de 1 de Abril de 2005, o Senhor Procurador da República, no entendimento que decorridos mais de 30 dias sobre o despacho de arquivamento e sobre a notificação deste ao denunciante, ficou afastada a possibilidade de intervenção hierárquica, nada ordenou quanto ao requerido.

6 – Por despacho proferido nos presentes autos com data de 2 de Fevereiro de 2006 (a fls.129 e 130), o Ministério Público, no entendimento de que o novo inquérito instaurado é uma mera duplicação do inquérito NUIPC …/04.1TATVR, que nem sequer traz factos novos que determinassem a reabertura desse, por legalmente inadmissível, determinou o seu arquivamento nos termos do art. 277.º n.º1 do CPP.

7 – Inconformado com o decidido, o queixoso constituiu-se assistente e requereu a abertura da instrução nos termos constantes de fls. 139 a 151, pedindo, a final, a pronúncia dos arguidos, em alternativa, pelo crime de violação de domicilio ou pelo de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelos art. 190.º e 191.º do Código Penal.

8 – Realizada a instrução, a senhora juíza proferiu a decisão sob recurso, nos termos que acima se transcreveram.

Quid juris?

A solução da questão reconduz-nos à análise do objecto do processo penal, ou seja, à matéria sobre a qual versa.

O objecto do processo penal é o facto humano de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais, ou seja, o crime na definição dada pelo art. 1.º n.º1, alin.a) do CPP.

O processo, nas suas fases declarativas, recai também sobre a qualificação jurídica dos factos.

A valoração ou qualificação jurídica vai-se progressivamente elaborando no decurso do procedimento, sendo algum tanto fluida (como, aliás, a matéria de facto) até à acusação, mas devendo estabilizar-se nesta (cf. art. 283.º a 285.º) ou no despacho de pronúncia quando tiver lugar a instrução.

O objecto do processo penal é, pois, delimitado nas suas dimensões quantitativa e qualitativa a partir da acusação ou no despacho de pronúncia.

O objecto do processo pode também ser delimitado pela pretensão do queixoso, mesmo na fase do inquérito.

O simples facto de se fixar o objecto do processo e fixá-lo para o futuro, é uma exigência do princípio do contraditório. Daí que só uma perspectiva teleológica permita evitar, que se caiam em soluções que acabem por perder de vista o interesse da defesa.

O facto criminoso é o mesmo, se a desaprovação social for a mesma, pese embora se tenham multiplicado, eventualmente, os juízos de censura jurídico-penal.

Nos crimes, como os dos autos, em que a queixa é condição de procedibilidade (cf. art. 49.º do CPP, 190.º, 191.º e198.º do Código Penal), o objecto do processo é delimitado por ela, mesmo na fase do inquérito, relativamente aos factos praticados, ou seja, à acção, mas não ao esclarecimento dos seus elementos essenciais e acidentais.

A investigação dos factos objecto de queixa não pode ser limitada pelo queixoso, salvo tratando-se de crime particular e desde que a amputação dos factos não implique alteração substancial dos cometidos e dos que são objecto de queixa, devendo no inquérito praticar-se todas as diligências que forem tidas por indispensáveis para o seu pleno esclarecimento, para a descoberta da verdade.

A apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes (cf. art. 114.º do CP).

Se o facto noticiado constituir crime público, entre o crime noticiado e o esclarecido no inquérito pode verificar-se profunda alteração, quer no que respeita aos factos, quer à sua qualificação jurídica, quer aos seus agentes. É que, em qualquer caso, o MP terá sempre legitimidade para prosseguir o processo, pois tem legitimidade para proceder por qualquer crime público.

De igual modo, se no decurso do inquérito sobre o crime se vierem a descobrir indícios de outro crime público e entre ambos existir uma relação de conexão processualmente relevante (art. 24.º do CPP), o objecto do inquérito pode alargar-se aos novos crimes. [2]

Em caso de hipótese de arquivamento do inquérito nos termos do art. 277.º do CPP, pode manter-se ainda numa certa indefinição, quanto ao objecto do processo, que tem como consequência que em caso de reabertura do inquérito os factos podem ser ampliados, restringidos ou ser qualificados diversamente. É que o art. 277.º apenas exige a prova de que os factos noticiados, com os desenvolvimentos que o inquérito entretanto propiciou, não constituam crime ou que não se indicie suficientemente que o constituam, mas não que não constituam um determinado crime. Só não é assim relativamente aos crimes dependentes de queixa ou participação das autoridades em que a decisão de arquivamento por inexistência de crime ou insuficiência de indiciação se há-de reportar ao crime objecto da queixa ou participação.

O arquivamento do inquérito, ao abrigo do disposto no art. 277.º do CPP, não tem efeitos preclusivos, pois o inquérito pode ser reaberto nos termos do art. 279.º n.º1 do mesmo diploma, ou seja, caso surjam novos factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.

O despacho de arquivamento neste âmbito é da exclusiva competência do Ministério Público e nele não há qualquer intervenção judicial. A decisão não é, pois, jurisdicional e consequentemente, não é susceptível de recurso, nem de trânsito em julgado.

Em termos conceptuais, entende-se que o despacho de arquivamento produz efeitos extraprocessuais (ao contrário do que sucede com a acusação que produz efeitos endoprocessuais), pois, decorridos os prazos peremptórios para a sua impugnação/revogação (através da abertura da instrução ou intervenção hierárquica), tem a força de caso decidido, apenas mutável e susceptível de reavaliação se surgirem novos elementos que ponham em causa os efeitos da decisão de abstenção, no âmbito do mesmo processo.

A relevância da motivação do despacho de arquivamento propaga-se para além dos momentos da sua sindicabilidade (intra-orgânica ou judicial) aos efeitos futuros do despacho que vale como caso decidido, pois os novos elementos de prova têm de por em causa esses fundamentos e não apenas a bondade da decisão. [3]

Em face do que fica dito, temos como certo que não ocorre qualquer violação do princípio “ne bis in idem”, como defende o assistente. [4]

A regra do « ne bis in idem » (ou « non bis in idem ») é um princípio clássico do processo penal, já conhecido do direito romano, segundo o qual « ninguém pode ser perseguido ou punido penalmente pelos mesmos factos».

Esta regra, que responde a uma dupla exigência de equidade e de segurança jurídica, é reconhecida e aplicada na ordem jurídica interna por um conjunto de países respeitadores do Estado de direito.

A Constituição da República Portuguesa consagra, no n.º 5 do artigo 29.º, o referido princípio “ne bis in idem” dizendo que «ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime”.

Desta enunciação do princípio decorre a proibição de aplicar mais de uma sanção com base na prática do mesmo crime e também a de realizar uma pluralidade de julgamentos criminais com base no mesmo facto delituoso.

Como defendem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, no seu livro “ CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, em anotação ao art. 29.º, “o princípio “ne bis in idem” comporta duas dimensões:

- (a) Como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo);

- (b) Como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.”

Na tese que subjaz à decisão em recurso, a opção pelos efeitos do caso julgado material acaba por pôr no mesmo plano as absolvições decretadas em julgamento por falta de provas e os casos de mero arquivamento do inquérito com o fundamento em indiciação insuficiente, ou por, no entender do titular da acção penal, existir prova bastante de os arguidos não terem praticado o crime. O paradoxo está em que no primeiro caso, em que de autêntico caso julgado material se trata, já se exigia um qualificado grau de indiciação como pressuposto da acusação e da remessa para julgamento.

O despacho de arquivamento, resultante de não se terem confirmado indícios da comissão de um crime, ou por concluir que os arguidos não o praticaram, não é uma decisão de mérito. E também assim é em todos os casos de não pronúncia, pois tribunal conhece simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo prossiga com a acusação deduzida e submetida à comprovação na fase da instrução; trata-se sempre, pois, de uma decisão de conteúdo estritamente processual.

Em processo penal, a não pronúncia, sendo decisão final, determina o arquivamento do processo, pelo que à possibilidade de instauração de novo processo no domínio do processo civil, quando tenha havido absolvição da instância, corresponde no âmbito do processo penal a reabertura do processo arquivado. Esta conclusão impõe-se por analogia com o que determinam os art. 277.º e 279.º para o arquivamento e reabertura do inquérito.

A situação descrita nos autos é a da mera duplicação de processos contra os arguidos com base nos mesmos factos (ou da mesma “concreta e hipotética acção jurídico-penal”), não tendo sido proferida em qualquer deles decisão final condenatória ou absolutória. A tal conclusão não obsta a circunstância do assistente imputar aos arguidos, para além do crime de violação de domicilio (cujos indícios foram avaliados no processo inicial), também um crime de introdução de lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º do Código Penal, que manifestamente não é preenchido pelos factos vertidos na participação, quer no requerimento de abertura de instrução, como se pode constatar perante uma leitura atenta do preceito em causa e do seu cotejo com factos aqueles imputados. Saliente-se que o assistente até formulou um pedido de pronúncia, em alternativa.

A questão dos autos prende-se, por conseguinte, com a legalidade do processo instaurado em 2.º lugar, ou seja, com a existência destes autos.

Com efeito, determina o art. 2.º do CPP que “a aplicação das penas e medidas de segurança só pode ter lugar em conformidade com as disposições deste Código”.

Participados os factos que foram investigados no processo de inquérito que correu termos sob o n.º …/04.1TATVR e que foi mandado arquivar, a investigação poderia, porém, prosseguir perante “novos elementos de prova” – art. 279.º n.º1 do CPP -, naturalmente nesse mesmo processo.

Ora, tendo a mesma concreta e hipotética acção jurídico-penal sido novamente participada, dando origem a novo inquérito, que veio a ser igualmente arquivado, desta vez por o Ministério Público ter considerado legalmente inadmissível tal procedimento, nos termos do art. 277.º n.º1 do CPP, é inadmissível a instrução formulada pelo assistente no inquérito posterior, pois só no anterior inquérito podia ser requerida, posto que lograsse a respectiva reabertura nos termos do art. 279.º do CPP e em face de uma nova abstenção de acusar [5] .

O exercício da acção penal compete ao Ministério Público que a deve exercer em conformidade com a lei.

A sindicância da legalidade da actuação do Ministério Público, quando se abstenha de acusar, é promovida pelo assistente a quem a lei atribui o direito de submeter à apreciação judicial a decisão do Ministério Público.

Admitida esta fiscalização da decisão do Ministério Público no termo do inquérito, o legislador estrutura esta fase processual a ela destinada em termos de evitar desperdícios processuais e em lugar de aguardar que o Ministério Público formule acusação em conformidade com a decisão do tribunal, admite como legítima a promoção do assistente em substituição do Ministério Público, admitindo-o a exercer uma função pública.

Porém, no caso em apreço, a referida sindicância pelo juiz de instrução deveria ter sido requerida, no devido tempo, no processo instaurado em 1.º lugar.

Não se trata, propriamente, duma situação de litispendência (que o CPP de 1929 previa no art.146.º com contornos diversos em relação ao processo civil, ou seja, só podia verificar-se a partir da introdução do feito em juízo, mediante acusação), pois o primitivo processo encontra-se arquivado, mas de uma violação da lei do processo.

Em face do exposto, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que bem andou a senhora juíza ao não conhecer de mérito em sede da presente instrução, pois o princípio da legalidade do processo penal impunha, no caso, a reabertura do primitivo inquérito e não a instauração de novo inquérito – até porque o direito de queixa já tinha sido exercitado naquele processo e a invocada existência de factos novos só no primitivo processo poderia ser invocada e apreciada.

Esta solução processual é aliás a única compatível com a natureza cognitiva da actividade judiciária sujeita ao primado da verdade e justiça e ordenada pela objectividade e legalidade. Trata-se também de uma questão de economia processual, mas sobretudo de considerações de política criminal atinentes à salvaguarda do valor da paz jurídica do arguido.

Entender o contrário é admitir que reine a incerteza para todos quantos um dia foram denunciados ou constituídos arguidos num processo e que viram o mesmo ser arquivado por o Ministério Público ter concluído de que não se verificou o crime ou que não se colheram indícios suficientes da sua verificação, mas cuja prescrição ainda não tenha ocorrido, de verem ser instaurado outro processo com o mesmo objecto, sem sujeição do denunciante ao controlo do Ministério Público que um pedido de reabertura do inquérito pressupõe (cf. art.279.º do CPP). Seria, como refere a Meritíssima Juíza no despacho recorrido “fazer entrar pela janela o que não entrou pela porta”.

Seja-nos permitido dizer que a descoberta da verdade e a condenação dos arguidos não pode ser investigada e alcançada a qualquer preço, mormente quando esse “preço” é o sacrifício dos direitos das pessoas mas apenas através da observância do devido procedimento.

Como salienta o Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pag. 102, o Código “não considera a busca da verdade como um valor absoluto e, por isso não admite que a verdade seja procurada através de quaisquer meios, mas só através de meios justos, ou seja, de meios legalmente admissíveis”.

“A verdade processual não é absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não é uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida (cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pag.194).

Em face do exposto, ainda que por razões diversas das invocadas na decisão recorrida, a pretensão do recorrente não pode proceder.

14. Improcedente o recurso impende sobre o assistente o pagamento de taxa de justiça (cf. art. 515.º n.º1, alin. b) e 87.º n.º1, alin. b) e n.º3 do CCJ).

15. Decisão:

Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a) Negar provimento ao recurso interposto pelo assistente A. F. M., mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida quanto ao não conhecimento de mérito, com o consequente arquivamento deste processo.

b) Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

(Lido e revisto pelo relator que assina em primeiro lugar e rubrica as demais folhas).

Évora, 2008.03.11
Fernando Ribeiro Cardoso




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[1] - Neste sentido Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, a fls.291 e 292, nota de rodapé n.º 96.
[2] - Vide, a este propósito, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo I, pag.326 e ss.
[3] - Neste sentido Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, a fls.291 e 292, nota de rodapé n.º 96.
[4] - Em sentido contrário, o acórdão da Relação de Lisboa de 2.10.2002, in www.gde.mj.pt, no qual se decidiu que “Arquivado um processo de instrução relativo a determinado crime, a eventual descoberta de novos factos, não pode dar lugar a novo processo atenta a regra "ne bis in idem", só podendo eventualmente ser apreciados no processo primitivo.”
[5] - Neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 6.11.96, proferido no proc.10.425/94, acessível in www.gde.mj.pt/jtrp