Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARTINHO CARDOSO | ||
Descritores: | HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA EXAME CRÍTICO DA PROVA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CULPA IN DUBIO PRO REO DANO MORTE DANOS NÃO PATRIMONIAIS SUBSÍDIO POR MORTE | ||
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Data do Acordão: | 01/20/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
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Sumário: | 1. O acto de conduzir viaturas é um facto voluntário, sendo a forma de condução normalmente o resultado directo ou indirecto da vontade do condutor; só assim não acontecerá se intervier um facto anormal, excepcional, desligado dessa vontade.. 2. Quando um condutor perde o domínio da marcha da viatura e se despista para fora da faixa de rodagem, ressalvada a intervenção de forças ou condicionalismos estranhos e insuperáveis, negligência os seus deveres funcionais, tornando-se por isso alvo de justa censura, mormente quando cause danos irreparáveis. Portanto, apenas perante fenómenos repentinos, absolutamente inesperados e imprevisíveis para o condutor, está arredada a sua culpa. I Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular n.º 139/06.9 GTEVR, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo, em que G, A e I, na qualidade de, respectivamente, viúva e filhas do ofendido JS, bem como, por outro lado, o Instituto da Segurança Social – Centro Nacional de Pensões, deduziram pedidos cíveis contra o Estado Português – Direcção-Geral dos Recursos Florestais, o arguido ML foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática de : -- Um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 1 ano, sob condição de o arguido, no prazo de dois anos, fazer prova nos autos de que procedeu ao pagamento da quantia de 1.000,00 € aos Bombeiros de Montemor-o-Novo; e -- Uma contra-ordenação grave p. e p. pelos art.º 24.º, n.º 1 e 3, 133.º, 138.º e 145.º, n.º 1 al.ª e), do Código da Estrada, na coima de 120,00 € e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de um mês. Mais foi decidido, quanto aos pedidos cíveis, condenar o Estado Português – Direcção-Geral dos Recursos Florestais, a pagar: -- Às demandantes G., A. e I.: 1) 35.000,00 € pela perda do direito à vida de JS; e 2) 25.000,00 € por danos morais. -- À demandante G., 1.599,03 € de despesas com o funeral. -- Ao Instituto da Segurança Social – Centro Nacional de Pensões, a quantia de 7.236,19 €. Inconformados com o assim decidido, quer o arguido ML, quer o Estado Português – Direcção-Geral dos Recursos Florestais, interpuseram recurso, apresentando o do arguido ML as seguintes conclusões: 1. A douta sentença recorrida denota ostensiva e reiterada omissão do exame crítico das provas, o que implica a sua nulidade, face ao disposto nos artigos 374°, n°2 e 379°, n°.1 do Código de Processo Penal. 2. Destarte, invocam-se expressamente os referidos preceitos legais e assim a nulidade da sentença, ora novamente recorrida. Sem conceder, por mera cautela e dever de patrocínio 3. Foram considerados como provados, nomeadamente, os seguintes factos: 5 - O tempo estava bom e o piso da via encontrava-se seco, plano e em bom estado de conservação. 6 - Os órgãos de travagem, direcção e sinalização acústica do veículo apresentavam-se em bom estado. 4. Inexistem quaisquer elementos probatórios que suportem a – alegada prova – dos factos acima elencados. 5. No que se reporta ao facto constante do aludido n°.5, todas as testemunhas afirmaram peremptóriamente que o piso da via, estava cheia de buracos e num péssimo estado de conservação, ou seja, precisamente e inverso do que foi reputado por provado pela Meritissima Juiz "a quo", como decorre dos depoimentos das testemunhas transcritos no art.5°, supra, da presente peça, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido. 6. O piso da via se encontrava-se num péssimo estado de conservação, o que era um facto público e notório, por todos conhecido, mas infelizmente, não reconhecido pela Meritissima Juiz "a quo", por motivos, razões e critérios insondáveis, mas seguramente, à total revelia da prova produzida em sede de audiência de julgamento. 7. Sendo que o depoimento daquelas, contraria frontal e totalmente a idéia que é transmitida pelas fotografias juntas aos autos, de fls.108 a 110, onde assentou a douta decisão. 8. Assim sendo, como é, no ponto n°.5 dos factos reputados por provados, deveria ter-se consignado, ao invés, que "O tempo estava bom e o piso da via encontrava-ser seco, com buracos e em péssimo estado de conservação", devendo tal matéria de facto ser objecto de alteração de acordo com o disposto no art.431° do C.P.P., o que se requer. 9. No que se reporta ao ponto n°.6 dos factos reputados por provados, ficou demonstrado inequivocamente, que não foi levado a cabo qualquer exame pericial, de molde a atestar das condições em que o veículo se encontrava, data do acidente de viação, como decorre, nomeadamente, do depoimento de JV, agente da G.N.R., supra transcrito, concretamente, no art.8° cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais. 10. Destarte, não se poderia ter dado por provado que "Os órgãos de travagem, direcção e sinalização acústica do veículo apresentavam-se em bom estado"., devendo tal matéria de facto ser objecto de alteração de acordo com o disposto no art.431° do C.P.P., o que se requer. Ademais, 11. Resulta do depoimento, nomeadamente, das testemunhas, GS e RB, que o veículo automóvel não oferecia quaisquer garantias de segurança, sendo reputado, inclusivamente, como um veículo a evitar — Cfr. depoimento das aludidas testemunhas, transcritos no art.5°, supra, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais. 12. Pelo mesmo diapasão, afinou a testemunha, A., cujo depoimento foi igualmente transcrito e que aqui se dá por inteiramente reproduzido — Cfr. art.12°, supra. 13. No que diz respeito, à forma como o acidente de viação ocorreu, descrito nos pontos números 7 e 8 da matéria reputada por provada, igualmente, não é aceite, pelo arguido, como decorre do seu depoimento, supra transcrito, concretamente, no art. 13°, supra e cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais. 14. Ou seja, ao contrário do decidido, o arguido perdeu o controle do veículo automóvel, por motivos não a si imputáveis, mas ao veículo automóvel e às condições que a via apresentava, cheia de buracos e irregularidades e deformações. 15. O arguido recorda-se de ter ouvido um barulho ao ter passado por uma das rodas do veículo por um dos buracos e de imediato ter perdido o controle do mesmo, entrando em despiste, o que justificaria o facto do pneu dianteiro, direito, ter sido encontrado vazio. Mais, 16. O facto do malogrado, JS, não fazer uso do respectivo cinto de segurança, contribuiu decisivamente para a sua morte. 17. Os factos considerados como provados, nomeadamente, os elencados sob os números, 7, 8, 10 e 11, são clara e manifestamente especulativos, sem qualquer suporte probatório, devendo tal matéria de facto ser objecto de alteração de acordo com o disposto no art.431° do C.P.P., o que se requer. 18. Não é possível determinar com segurança um nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a morte de JS. 19. Salvo o devido respeito, deveria o arguido ter sido absolvido, em nome do sagrado principio "in dúbio pró reo". Acresce que, 20. O arguido não omitiu quaisquer deveres de cuidado e de diligência. que estaria obrigado segundo as circunstâncias, os seus conhecimentos capacidades pessoais. 21. Não se encontram preenchidos os requisitos do crime pelo qual o arguido vinha pronunciado e agora condenado, devendo o mesmo se absolvido. Por último, 22. A contra-ordenação pela qual o arguido também foi condenado (p.e p. pelos arts24°, n°1 e 3, 133°, 138° e 145° do C.E.) assente no pagamento de uma coima no valor de 120,00 euros e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo prazo de um mês, já se encontra prescrita, segundo o consignado nos arts. 188° e 189° do C.E. 23. Prescrição essa, ora expressamente suscitada, para todos os efeitos legais. 24. A Meritissima Juiz "a quo" violou o correcto entendimento dos preceitos legais, invocados na presente peça. # Por sua vez, o recurso do o Estado Português – Direcção-Geral dos Recursos Florestais, apresenta as seguintes conclusões: a) A sentença limita-se a afirmar no ponto 7 da matéria provada que o arguido circulava distraído e alheio ás características da via e do piso. não adequando a velocidade do veículo a tais circunstâncias. b) No entanto, não resultaram provados quaisquer outros factos que permitam sustentar a distracção ou excesso de velocidade, e consequentemente, a culpa do arguido. Ou seja, não se sabe qual o motivo da distracção, nem qual a velocidade a que o arguido seguia. c) A culpa não se pode presumir, devendo antes resultar da prova de factos que com toda a certeza permitam concluir que o arguido violou um dever de cuidado, que poderia ter agido de outra forma, e que, não o fazendo, merece a censura do direito. d) Ora, salvo o devido respeito, essa prova não foi feita, pelo que não se provou o elemento subjectivo do crime e da contra-ordenação, impondo-se a absolvição do arguido. e) Mas caso V. Exas. assim não entendam, deve considerar-se que a sentença padece, nesta matéria, do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão (410° n° 2 alínea a) do CPP). f) Acresce que, a sentença violou o disposto no artigo 2° n° 1, do DL 48051 de 21 de Novembro de 1967, em vigor à data do acidente, e aplicável por estarmos no domínio de actos de gestão pública, não aplicando aquele preceito (412° n° 2 a), b) e c)). g) O qual dispõe que o Estado apenas responde perante terceiros pelas ofensas resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos seus agentes, no exercício das suas funções, e por causa desse exercício. h) Por um lado, entendemos que a culpa do arguido não resultou provada. i) Por outro lado, não se produziu prova de que o arguido estivesse no exercício das suas funções, ou por causa delas. j) De facto, o arguido deu boleia à vítima a pedido deste último, o qual solicitou ao arguido que o transportasse no jipe do Estado para não ter de levar a sua viatura Mercedes para a estrada de campo dos Baldios, pois tratando-se de um veículo ligeiro não era a mais adaptada para quele tipo de terreno. Ora, um pedido com tal conteúdo apenas beneficiava o arguido. k) E não se provou que a vítima estivesse ao serviço do Estado, nem a que título acompanhava o arguido, ou ainda que a verificação de tabuletas de caça nas herdades dos Baldios lhe tenha sido solicitada pela administração. 1) Não devendo recair sobre o Estado a responsabilidade de indemnizar os danos que resultaram, em última análise, única e exclusivamente da conduta do arguido, ao aceitar dar boleia à vitima, devendo ser absolvido dos pedidos de indemnização civil formulados. m) Acresce que, no que respeita à indemnização peticionada pelas assistentes relativamente a despesas de funeral, no valor de €.1.599,03, entendemos que a sentença não deveria ter considerado tal pedido procedente, porquanto a viúva já havia recebido da demandante ISS-IP/CNP a quantia de €.2.315,40 a título de subsídio por morte, subsídio este que se destina a ressarcir este tipo de despesas, e que excede o valor das despesas de funeral efectivamente suportadas pela assistente (vide as certidões juntas aos autos pela demandante ISS-IP/CNP designadamente as de fls. 432, 446, 450 e 457). n) Ao dar como provado que a assistente, viúva da vítima, sofreu prejuízos materiais respeitantes às despesas de funeral, ignorando o teor das certidões juntas aos autos pelo ISS-IP/CNP que declarou que pagou à assistente o subsídio por morte por ela requerido, a sentença padece do vício de erro notório na apreciação da prova (artigo 410º n° 2 alínea c) do CPP). o) Ao condenar o Estado a pagar à assistente, viúva da vítima, o valor das despesas de funeral, e ao 1SS-IP/CNP a quantia paga a título de subsídio por morte, a sentença condena o Estado a ressarcir os mesmos danos duas vezes, o que não é aceitável, impondo-se mais urna vez, a absolvição do Estado Português do pedido. p) Mas caso V. Exas. assim não entendam, hipótese que se levanta sem conceder, o Estado entende que a sentença fez errada aplicação do artigo 494° do Código Civil, ao não reduzir o valor da indemnização em caso de mera culpa. q) Deveria o Tribunal a quo ter ponderado as circunstâncias de ter imputado ao arguido a prática do crime a título de negligência inconsciente, o que configura um reduzido grau de culpabilidade, o facto de ter sido o próprio arguido a pedir boleia ao assistente com o intuito de poupar a sua viatura automóvel às estradas de terra batida dos Baldios, e o facto de a vítima ter já 70 anos de idade à data do acidente. r) Concluindo pela redução do montante da indemnização, que se configura manifestamente excessivo. O Ex.mo Procurador Adjunto do tribunal recorrido respondeu ao recurso interposto pelo arguido Mário Lourido, concluindo da seguinte forma: 1. O condutor que se despista e (ou) derrapa, assim provocando um acidente de viação, é criminalmente e civilmente responsável pelos resultados, a título de culpa efectiva, por violação dos deveres de cuidado inerentes v. g. à norma que proíbe a "velocidade excessiva", excepto se provar que o facto se deu por causa imprevisível, estranha a uma condução normal (cfr. Acórdãos do STJ de 16/03/1966, BMJ, 155/266, de 28/05/1974, BMJ, 237/231, de 14/05/1981, BMJ, 307/191 e de 06/01/1987, BMJ 363/488, e ainda da Relação de Coimbra de 21/05/1985 CJ 85, III, 81, de 20/05/1986, BMJ 357/497 e de 04/04/1989, CJ 89, IV, 63 e da Relação do Porto de 02/02/1982, CJ 82, I, 268 e de 07/03/1985, CJ 85, II, 212). 2. É o que resulta das regras da experiência comum (cfr. Arts 349° e 351° do Código Civil), uma vez que, prendendo-se as causas e efeitos da derrapagem e despiste. normalmente com a velocidade, a força e o peso do veicule (cfr. Antunes Varela, RLJ 118/209) é licito presumir, sendo as duas últimas variáveis relativamente constantes em cada automóvel, que as mesmas se dêem, em principio, a excesso de velocidade ou a velocidade inadequada às característica da via e do piso. 3. Com efeito, não pode olvidar-se que, ao lado da prova suficiente, que forma a plena convicção do Juiz devido ao alto grau de probabilidade do facto, existe a prova de primeira experiência (prima facie) que, como é sabido, se reconduz, no fundo, à figura da presunção natural (cfr. Vaz Serra, Provas, 21 e 26 e citado Ac. STJ de 14/05/1981). 4. Compreende-se, assim, que o despiste, tal como a derrapagem, seja por muitos chamado de atestado de imprudência e imperícia: mesmo naqueles casos em que, inesperadamente, aparece um pavimento com areia, terra batida ou gravilha, com irregularidades ou humedecido pela chuva ou pelo gelo, em contraste com o estado da via até esse ponto do percurso, não deve excluir-se a culpa do condutor, dado o carácter previsível e frequente dessas situações, que requerem particular atenção e prudência e são domináveis pelo motorista cuidadoso. 5. Apenas perante fenómenos repentinos, absolutamente inesperados e imprevisíveis para o condutor, está arredada a sua culpa. 6. E certo que as presunções naturais cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto (Cavaleiro Ferreira, Processo Penal, II, 315). Mas "in casu" não se vislumbra na factualidade provada constante da douta sentença recorrida – ainda que conjugada com a motivação da decisão de facto – qualquer circunstância que razoavelmente justifique tal dúvida. 7. Acresce que o arguido, no caso dos autos, para além de se ter despistado e perdido o controle do veículo que conduzia, também invadiu a faixa de rodagem de sentido contrário. 8. Do mesmo modo é patente que os factos provados não evidenciam, e nem sequer sugerem, qualquer justificação para tal conduta, objectivamente contra-ordenacional. 9. Como escrevem Pedro Caeiro e Cláudia Santos na RPCC, ano 6, fascículo 1° - 1996, pág. 135: «o tipo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objectivo de cuidado, a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo e a produção do resultado típico quando este surge como consequência da criação ou potenciação, pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado». 10. No caso, o arguido, ao conduzir distraído e alheio às características da via e do piso (estrada estreita, em terra batida) não adequando a velocidade do veículo a tais circunstâncias, e ao perder o controlo daquele, despistando-se para fora da via, violou o dever objectivo de cuidado de que estava obrigado de modo a evitar acidentes, sendo verdade que tinha a possibilidade de prever que daquela sua conduta descuidada e contraordenacional podia resultar, como resultou, um acidente com consequências fatais. 11. Ou seja, dos factos provados conclui-se, com a necessária segurança jurídica, que o arguido deu causa ao acidente dos autos, actuando com culpa negligente inconsciente (art. 15° al. b) do C. P.). 12. Acresce que da prova produzida em sede de julgamento não resultou qualquer dado consistente que permitisse concluir no sentido de que o acidente se deveu a motivos não imputáveis à conduta do arguido, nomeadamente ao estado do veículo automóvel que este tripulava ou às irregularidades e deformações da via. 13. Com efeito, nenhuma das testemunhas ouvidas no julgamento, designadamente as arroladas pelo arguido, afirmou ter presenciado o acidente e que este teve origem directa e necessária nalgum buraco ou deformação da estrada ou em qualquer avaria mecânica ou de funcionamento da viatura tripulada pelo arguido. 14. Ou seja, a versão dos factos apresentada pelo arguido em julgamento (recorda-se de ter ouvido um barulho ao passar com uma das rodas do veiculo por um buraco e de imediato ter perdido o controle daquele entrando em despiste, o que se terá devido ao rebentamento de um pneu), não foi suportada por qualquer outro elemento de prova válido, nomeadamente de natureza testemunhal. 15. Ora, acreditar ou não na versão do arguido é uma questão de convicção. E quem está numa posição privilegiada para o fazer é, sem dúvida, o Tribunal de 1ª instância que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova. 16. O Tribunal de 1ª Instância é que viu o arguido e as várias testemunhas, olhou-os nos olhos, notou as hesitações ou a serenidade com que depunham, como titubeavam ou foram peremptórios. 17. O art. 127° do C. P. Penal dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a convicção da entidade competente, salvo quando a Lei dispuser diferentemente. 18. Certo que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação, que liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objectivável e motivável (cfr. Acórdão do STJ de 04/11/1998, publicado na CJ – AC STJ – 1998 – Tomo 3-pág. 201). 19. Mas quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. Acórdão do STJ de 06/03/2002, "in" CJ – AC STJ 2002 – Tomo II – pág. 44). 20. Ora, analisando de forma objectiva e imparcial o conteúdo da prova produzida em julgamento, conjugada com a presunção natural (presunção de negligência decorrente da violação da Lei) a que atrás se alude e com as regras da normalidade e da experiência comum, nada se pode criticar à matéria de facto assente como provada. 21. Em face do exposto, tem-se por inquestionável que o arguido, não tendo justificado devidamente a sua apurada conduta, violou o preceituado no art. 24° n°1 e 3 do Código da Estrada, pelo que cometeu o crime de Homicídio Negligente p. e p. pelo art. 137° n°1 do C. Penal, pelo que foi acertadamente condenado. 22. A douta sentença recorrida não violou qualquer disposição legal nem merece censura, devendo ser integralmente mantida. # O Ex.mo Procurador Adjunto do tribunal recorrido também respondeu ao recurso interposto pelo demandado cível Estado Português, no que concerne à vertente penal de tal recurso, concluindo da seguinte forma: 1. Como é consabido, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para a matéria de facto dada como provada. 2. Do que se trata na primeira é da insuficiência da matéria de facto provada para decisão justa da causa; na segunda, da insuficiência de prova para a matéria de facto dada como provada. 3. Ali o que se censura é o facto de o Tribunal não ter investigado e apreciado todos os factos que podia e devia; na insuficiência da prova critica-se o Tribunal por ter dado como provado factos sem prova suficiente. 4. Segundo entendimento perfilhado pelos Tribunais Superiores Portugueses (cfr., a título de exemplo o Acórdão da Relação de Évora datado de 20/03/2007, proferido no âmbito do recurso 2.498/06.1) o vício previsto no art. 410° n°2 al. a) do C. P. P. ocorre quando os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permitem integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixam espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. 5. Sintetizando, dir-se-á que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só existe quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixa de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a matéria de facto apurada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação. 6. Ora, in casu (atente-se nomeadamente na matéria de facto dada como provada sob os n°s 7,8,10,11,12) os factos provados são claramente suficientes para a decisão. 7. Com efeito, tal como entendeu o Tribunal recorrido, em fundamentada decisão, o acidente teve a sua causa única e exclusiva em conduta descuidada do arguido. 8. Como escrevem Pedro Caeiro e Cláudia Santos na RPCC, ano 6, fascículo 1° - 1996 – pág. 135: «o tipo de ilícito dos crimes materiais negligentes è constituído por três elementos: a violação de um dever objectivo de cuidado, a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação, pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.» 9. No caso, o arguido, ao conduzir distraído e alheio às características da via e do piso (estrada estreita, em terra batida) não adequando a velocidade do veículo a tais circunstâncias, e ao perder o controlo daquele, despistando-se para fora da via, violou o dever objectivo de cuidado de que estava obrigado de modo a evitar acidentes, sendo verdade que tinha a possibilidade de prever que daquela sua conduta descuidada e contraordenacional podia resultar, como resultou, um acidente com consequências fatais. 10. Ou seja, dos factos provados conclui-se, com a necessária segurança, que o arguido deu causa ao acidente dos autos, actuando com culpa negligente inconsciente (art. 15° al. b) do C. Penal). 11. De referir, neste âmbito, que a jurisprudência maioritária dos Tribunais Superiores Portugueses tem vindo a considerar que em caso de despiste de veículo, com invasão da faixa de rodagem de sentido contrário e de berma, não se provando que o facto se deveu a causa imprevisível, estranha a uma condução normal, é lícito presumir, à luz das regras da experiência comum, a violação pelo respectivo condutor, dos inerentes deveres de cuidado, nomeadamente a nível de imprudência ou imperícia – cfr. a título de exemplo o Acórdão da Relação de Lisboa de 11/05/2005, com o n°9359/2004-3, relator Mário Morgado, disponível in www.dgsi.pt/jtrl. 12. Quando o recorrente refere que não se provou a violação de um dever de cuidado por parte do arguido e, consequentemente, o elemento subjectivo do crime e da contra-ordenação, para além de não estar a identificar factos (e não conceitos de direito, juízos ou conclusões) que deveriam constar da matéria de facto provada, não está, por outro lado, a ter em consideração a factualidade provada na sentença recorrida. Pelo contrário, está a introduzir em lugar impróprio, a discussão do enquadramento jurídico dos factos, questão que, como se sabe, nada tem a ver com o vício invocado, o qual manifestamente não ocorre no caso sub-judice. 13. De salientar, ainda, que ao mencionar que da prova produzida em audiência, designadamente das declarações do arguido efectuadas em julgamento terá resultado que o acidente ocorreu devido a uma causa externa e não em consequência de uma conduta descuidada daquele arguido, o recorrente parece estar a recorrer da matéria de facto. 14. No entanto, não o fez correctamente, pois caso fosse esse o seu desiderato deveria ter especificado, relativamente a cada prova que considerava impor uma decisão diversa da assumida pelo Tribunal, a parte concreta das declarações e/ou depoimentos produzidos em julgamento e gravados em fita magnética, com referência aos respectivos suportes técnicos, não lhe bastando invocar, como fez, menções parciais do depoimento do arguido – cr. art. 412° n°3 e 4 do C. P. Penal. 15. Resulta do disposto no art. 431° al. b) do C. P. Penal que havendo documentação da prova, como no caso se verifica, a decisão do Tribunal de 1ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412° n°3 do C. P. P, o que manifestamente não ocorre no caso em apreço. 16. Não tendo o recorrente cumprido com tal ónus, afigura-se-nos que o Tribunal da Relação está impossibilitado de reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido. 17. A douta sentença recorrida não enferma de qualquer vício processual penal nem merece censura, devendo ser integralmente mantida. # Também as demandantes cíveis responderam ao recurso do demandado cível Estado Português, apresentando as seguintes conclusões: 1) Os pontos 7 e 8 da factualidade dada como provada pela 1.ª instância descreve em pormenor e em concreto a conduta do arguido, nomeadamente que circulava distraído e alheio às características da via e do piso não adequando a velocidade deste a tais circunstâncias, indo embater num talude; e, na tentativa de retomar a via guinou bruscamente o volante para a esquerda, o que originou que a viatura rodasse sobre o seu eixo, derrapando lateralmente e despistando-se para fora da via. 2) Atenta esta factualidade não se vislumbra onde possa existir a alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. 3) Não é exigível que o Tribunal apure, em concreto, a causa da distracção. Basta que dê como provada esta. 4) O Tribunal deu como provado que o arguido era funcionário da Direcção-Geral de Recursos Florestais e que no dia, hora e local em causa se encontrava no exercício de funções públicas, conduzindo um veículo propriedade do Estado Português. 5) No entanto, não se deve confundir funções públicas com actos de gestão pública. 6) Qualquer funcionário público desenvolve funções públicas porque trabalha para o Estado, para a comunidade. No entanto, em concreto, tanto pode praticar acto de gestão pública como de gestão privada. 7) No exercício da condução, estava subordinado às mesmas regras que vigoravam, e continuam a vigorar, para qualquer pessoa que, naquele local, conduza um veículo de circulação terrestre. 8) Logo, temos que concluir que o arguido praticava um acto de gestão privada. 9) A factualidade constante das alíneas j) e k) das conclusões da recorrente não constam do elenco dos factos dados como provados na sentença, nem dela teriam que constar dado não terem sido objecto de alegação na contestação quer pelo Estado, quer pelo arguido. 10) A obrigação do pagamento das despesas do funeral deriva do disposto no n.º 1 do art.º 495 ° do C. Civil. 11) O crédito pelas despesas do funeral não se confunde, nem é enquadrável, no subsídio por morte pago pelo ISS-IP/CNP, o qual, tem como objectivo a protecção dos trabalhadores e respectivas famílias nas situações, de falta ou diminuição da capacidade para o trabalho, de desemprego involuntário e de morte, e garante a compensação de encargos familiares. 12) O facto do ISS IP/CNP ter adiantado à viúva uma quantia a título de subsídio por morte, não isenta o estado do pagamento das despesas do funeral suportadas pela demandante. 13) O disposto no art.° 494 ° não é aplicável à responsabilidade pelo risco. 14) A condenação do recorrente Estado Português funda-se precisamente na responsabilidade pelo risco, nomeadamente no disposto no art.° 503.°, n.° 1 e 3, do C Civil. 15) Mesmo que o Tribunal não tivesse dado como provado factos donde pudesse concluir pela culpabilidade do arguido na produção do acidente, sempre o Estado, ora recorrente, seria obrigado a indemnizar as demandantes na medida em que não resultou provado que o acidente tenha resultado de acção ou omissão da própria vítima ou que o mesmo tenha resultado de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. É o que resulta das disposições conjugadas dos artigos 500°, 501.°, 503.° n° 1 e 3, 505.° e 570.° todos do Cód. Civil. # Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer. Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte: -- Factos provados: 1 – No dia 11 de Abril de 2006, pelas 13 horas e 15 minutos, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ---, circulando pela Estrada Municipal dos Baldios, no sentido de marcha Baldios - E.N. 380, área da comarca de Montemor-o-Novo; 2 – Naquele veículo seguia como passageiro, sentado no banco ao lado do condutor, JS; 3 – No local, a via possuía a largura total de 7,50 metros e era constituída por duas vias de circulação sem marcações no pavimento, uma no sentido Baldios - EN 380 e outra de sentido oposto; 4 – As faixas de rodagem eram de terra batida e não se encontravam delimitadas por bermas; 5 – O tempo estava bom e o piso da via encontrava-se seco, plano e em bom estado de conservação; 6 – Os órgãos de travagem, direcção e sinalização acústica do veículo apresentavam-se em bom estado; 7 – Ao chegar ao local da via assinalado no croquis de fls. 49 e nas fotografias de fls. 108 a 115, que dista 3,900 da EN 380, onde existia uma curva ligeira para a direita, com boa visibilidade, o arguido, por circular distraído e alheio às características da via e do piso (estrada estreita, em terra batida), não adequando a velocidade do veículo a tais circunstancias, perdeu o controlo deste e entrou em despiste, indo embater num talude em terra batida com cerca de 50 cm de altura, existente no limite direito da faixa de rodagem de sentido Baldios - EN 380; 8 – Na tentativa de retomar novamente a via e como manobra evasiva, o arguido guinou bruscamente o volante do veículo para a esquerda, o que originou que a viatura rodasse sobre o seu eixo, derrapando lateralmente e despistando-se para fora da via, pelo lado esquerdo desta, capotando por várias vezes e acabando por se imobilizar num talude ali existente, com um desnível desfavorável de aproximadamente oito metros; 9 – Em consequência do acidente resultaram para o ocupante da viatura, JS, as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 14 a 18, nomeadamente contusão pulmonar bilateral, devido a traumatismo torácico fechado, as quais foram causa necessária e directa da sua morte, ocorrida no próprio dia 11.04.2006; 10 – Agiu o arguido com imprudência e inobservância pelas mais elementares regras estradais, circulando distraído e imprimindo ao veículo que conduzia um movimento que não pôde controlar e que era manifestamente inadequado às características da via e do piso em que seguia; 11 – Foi este comportamento do arguido que deu causa directa e necessária ao acidente verificado e às lesões que, em consequência, sobrevieram na pessoa de JS; 12 – O arguido sabia e podia conduzir o referido veículo automóvel com o cuidado, atenção e perícia adequadas e necessárias a evitar o acidente mas não o fez; 13 – O arguido estava ciente de que a sua conduta era proibida por lei; 14 – O arguido era funcionário da Direcção-Geral dos Recursos Florestais e no dia, hora e local referidos em 1) encontrava-se no exercício de funções públicas; 15 – O veículo que conduzia – ligeiro de passageiros tipo jipe – com a matrícula ---era propriedade do Estado Português, encontrando-se distribuído à Direcção-Geral de Recursos Florestais; 16 – O veículo possuía o certificado de isenção de seguro nº26742 emitido em 31.03.1998; 17 – JS nasceu em 30.12.1935; 18 – JS era casado com G. com quem vivia há trinta e nove anos; 19 – JS era um homem saudável e bastante activo; 20 – E era uma pessoa muito alegre, sempre bem disposta e amigo de conviver; 21 – Tinha paixão pela caça, actividade que exercia todas as quintas-feiras, fins-de-semana e feriados; 22 – Era um marido extremoso e atencioso e um bom pai; 23 – A. e I. eram as suas únicas filhas; 24 – Entre elas e o falecido JS existia uma grande ligação afectiva; 25 – G., A., I. e o falecido JS viviam todos debaixo do mesmo tecto em franca harmonia, constituindo uma família muito unida; 26 – Em consequência do acidente ficaram as demandantes bruscamente privadas do convívio, do carinho e da protecção do seu marido e pai, respectivamente; 27 – Sofreram um choque brutal ao receberem a notícia da morte do seu ente querido; 28 – Ficaram afectadas psicologicamente sendo enorme o vazio e o desgosto que sentem pela perda do marido e pai, respectivamente; 29 – Com o funeral do seu marido, G. despendeu a quantia de €1.599,03 sendo €1.100,00 de despesas com o serviço prestado pela agência funerária, €110,00 pelo aluguer da capela e serviço religioso e €389,03 de taxas camarárias por utilização do cemitério; 30 – JS era beneficiário nº----; 31 – Em 08.2006 com base no falecimento de JS em consequência do acidente, foram requeridas ao ISS-IP/CNP por G. as prestações por morte, as quais foram deferidas; 32 – O ISS-IP/CNP pagou a quantia de €7.236,19 (sete mil duzentos e trinta e seis euros e dezanove cêntimos) correspondente a subsídio por morte no montante de €2.315, 40 (dois mil trezentos e quinze euros e quarenta cêntimos) e pensões de sobrevivência no período de 2006.05 a 2008.05 no total de €4.920,79 (quatro mil novecentos e vinte euros e setenta e nove cêntimos); 33 – O CNP paga mensalmente e actualmente €174,63 (cento e setenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos) de pensão de sobrevivência a G.; 34 - O arguido é casado e tem 2 filhos de 16 e 4 anos de idade que dependem economicamente dele; 35 – O arguido aufere mensalmente cerca de €890,00 da sua actividade profissional; 36 – O arguido tem o bacharelato em Engenharia Florestal; 37 – O arguido não tem antecedentes criminais. -- Factos não provados: Não existem factos não provados. # Fundamentação da convicção: Saliente-se, em primeiro lugar, que toda a prova produzida na audiência de julgamento se encontra gravada. Essa gravação, permitindo a ulterior reprodução de toda a referida prova e, assim, um rigoroso controle dos meios de prova com base nos quais o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, legitima uma mais sucinta fundamentação desta convicção e torna desnecessário tudo o que vá para além disso. Para formar a convicção do tribunal, quanto à matéria dada como provada, foram determinantes as declarações das testemunhas PP, PM, CP, JV, LL, GL e MF que explicaram os factos de forma que se afigurou credível. A testemunha PP agente da G.N.R., explicou o que viu quando chegou ao local do acidente no exercício das suas funções bem como descreveu a via e o tempo que fazia. Explicou que viu rastos de derrapagem à direita e depois para a esquerda. O pavimento é em terra batida com pó – uma estrada normal. Perante o pavimento onde ocorreu o acidente, a testemunha aconselha a que se circule mais à direita e que se adapte a velocidade do veículo às características da via mas não se deve circular a mais que 50 km/hora. Mais explicou que a largura da estrada permite que dois veículos pesados se cruzem ao mesmo tempo. A testemunha lembra-se de ver o veículo que o arguido conduzia que estava bastante danificado mas não se recorda de ver qualquer pneu rebentado. A testemunha PM sendo bombeiro explicou o que viu quando foi ao local do acidente. No local do acidente, esta testemunha viu um carro semi-capotado com um indivíduo do sexo masculino fora da viatura e outro dentro do carro encarcerado pelo que os bombeiros tiveram que cortar o tejadilho para o retirarem e assistirem. Na altura, o indivíduo que estava dentro do veículo não estava preso ao cinto de segurança mas não pode afirmar se esteve com o cinto antes nem reparou se o cinto estava partido. A testemunha CP explicou que circulava na estrada na sua mota e que ao chegar à barreira/talude viu o jipe ao fundo assim como viu uma pessoa a pedir ajuda pelo que foi pedir auxílio. CP circula na estrada diariamente e explica que tem que se circular com cuidado pois “não oferece condições para a gente ir depressa.” A testemunha JV, agente da G.N.R., explicou que foi ao local do acidente no dia em que ocorreu encontrando aí agentes da G.N.R.. Mais disse que observou a via tendo-a descrito como um “estradão” largo em terra batida com algumas irregularidades ou elevações – a testemunha tirou as fotografias de fls. 108 a 115. A testemunha explicou as medições que fez no local do acidente e que viu um pneu vazio do lado direito do veículo que o arguido conduziu. Foi claro ao afirmar que o pneu estava vazio e não rebentado e que podia ter sido do embate do veículo no talude do lado direito ou de ter capotado após o acidente por ter batido numa pedra. Atentos os rastos do veículo que observou, a testemunha explicou que houve distracção do arguido. Mais explicou as manobras que efectuou com despiste, bater à direita e guinar para a esquerda tendo deixado um rasto para este lado. A testemunha não viu indícios de travagem prévia. Explicou ainda que o pneu vaza gradualmente e tal sente-se na direcção do veículo. Disse ainda que a estrada estava em razoável estado de conservação para a estrada que é - via em terra batida com buracos mas sem profundidade “porque senão teria-os medido”. A testemunha explicou que atenta a via teria que se circular a cerca de 40 km/hora e como o veículo que o arguido conduzia é um jipe tem suspensão diferente e tem mais aderência em terra batida que um “carro normal”. A testemunha LL explicou que JS tinha setenta anos de idade à data do acidente sendo casado com G e pai de duas filhas. A testemunha namora com a filha de JS, de nome A., e explicou que aquele era uma pessoa saudável com grande ligação afectiva à esposa e às filhas pelo que estas tiveram um grande desgosto com a sua morte – ainda sentem desgosto. As testemunhas GL e MF eram amigos de JS sendo que a última também o acompanhava na caça e explicaram que o mesmo era casado com G e pai de duas filhas assim como era muito ligado a estas que ficaram muito perturbadas com a sua morte. A testemunha GS conhece a estrada onde ocorreu o acidente e explicou que com o carro em que circulava o arguido e com a via tem que se ter cuidado. Esta testemunha não mereceu credibilidade quando descreveu a via como de terra batida com “crateras” pois esta descrição exagerada está em oposição com as declarações da testemunha JV e com as fotografias tiradas ao local no dia do acidente que constam dos autos. A testemunha MR explicou que por conhecer a via em terra batida tem que se circular com muito cuidado e atenção. A testemunha AS explicou que já circulou em veículos conduzidos pelo arguido e que o mesmo fez uma condução cuidadosa. A testemunha AP explicou que o veículo tripulado pelo arguido no dia do acidente era instável. A testemunha FS explicou que a via onde ocorreu o acidente não estava asfaltada e tinha buracos. A testemunha RB explicou que conhecia a via onde ocorreu o acidente e descreveu-a. Afirmou que conduziu o veículo que o arguido tripulou no dia do acidente e que o mesmo não lhe inspirava confiança tendo-o conduzido antes do dia do acidente mas não fez qualquer reclamação quanto ao mesmo. O arguido explicou que passou duas vezes naquele dia do acidente pela estrada em causa para trabalho de identificação e verificação de placas sinaléticas de caça e outra de regresso a Évora. Mais explicou como foi fazer a vistoria a zonas de não caça na companhia de JS no veículo da sua entidade patronal. Explicou que no caminho de regresso, na segunda vez que passava no local naquele dia, indo para Évora deixar JS e com a estrada com buracos teve que “escolher o local” para circular mas que sentiu um estrondo e o jipe que tripulava foi bater num talude, deslocando-se para a esquerda. Tentou controlar o veículo mas não conseguiu e uma das rodas perdeu aderência e capotou. Quando acordou estava fora do veículo no solo. Sentiu que tinha as pernas partidas. Chamou várias vezes por JS mas não obteve resposta. Arrastou-se para junto da viatura e bateu com o relógio no jipe para pedir socorro. Lembra-se que chegou uma pessoa ao pé de si. O arguido explicou que o piso estava seco e conduzia o veículo na terceira velocidade. Mais disse que lhe explicaram que o veículo tinha um pneu vazio. O veículo que tripulou era conhecido como “bailarina” devido à insegurança mas o arguido explicou que até à altura do acidente não sentiu nada de anormal no mesmo. O arguido disse que ouviu um barulho que vinha do exterior do carro que tripulava e que associou ao pneu mas explicou que antes não sentiu o carro a “fugir”. Esclareceu, ainda, as suas condições económicas e familiares. Atendeu-se aos documentos de fls. 10 a 11 (participação de acidente), 14 a 18 (relatório de autópsia), 25 a 118 (inquérito da G.N.R.), 174 a 176 (certidão de assento de casamento), 177 a 179 (certidão de assento de nascimento), 180 a 182 (certidão de assento de nascimento), 183 (factura), 184 (recibo), 185 a 186 (facturas), 187 (factura), 322 a 323 (requerimento de prestações por morte), 324 (certidão), 430 (certificado de registo criminal), 432 (certidão), 446 (certidão), 450 (certidão) e 457 (certidão). III De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer. De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes: -- Postas pelo arguido ML: 1.ª – Que, nos termos dos art.º 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1 al.ª a), a sentença recorrida é nula, por inexistência de exame crítico das provas produzidas em audiência; 2.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova testemunhal produzida em julgamento que o tribunal a quo deu como provado que o arguido praticou o crime pelo qual depois o condenou; 3.ª – Que o tribunal "a quo" violou o princípio "in dubio pro reo"; e 4.ª – Que se encontra extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional relativo à contra-ordenação pela qual foi condenado. -- Postas pelo Estado Português – Direcção-Geral dos Recursos Florestais: 1.ª – Que não se fez prova em julgamento de que o acidente ocorreu por o arguido ter agido de forma negligente ou, então, a sentença recorrida padece do vício enunciado no art.º 410.º, n.º 2 al.ª a) [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada]; 2.ª – Que ao condenar o Estado Português, a sentença recorrida violou o disposto no art.º 2.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48051, de 21-11-1967; 3.ª – Que o Estado Português não devia ter sido condenado a pagar à demandante G. a quantia de 1.599,03 € relativa a despesas com o funeral da vítima, uma vez que a viúva já havia recebido do ISS-IP/CNP a quantia de 2.315,40 € a título de subsídio por morte, subsídio este que se destina a ressarcir este tipo de despesas e que excede o valor das despesas de funeral efectivamente suportadas pela demandante G.; 4.ª – Que são excessivos os montantes de 35.000,00 € fixada pelo tribunal "a quo" como indemnização pela perda do direito à vida e o de 25.000,00 € como indemnização por danos morais. Vejamos: No tocante à 1.ª das questões postas pelo arguido ML, a de que, nos termos dos art.º 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1 al.ª a), a sentença recorrida é nula, por inexistência de exame crítico das provas produzidas em audiência: No pretérito dia 16-5-2008 o tribunal "a quo" publicou uma 1ª sentença, da qual na altura recorreram os também agora recorrentes ML e o Estado Português, tendo na altura esta Relação de Évora proferido um acórdão no qual, conhecendo oficiosamente do assunto, nos termos do disposto nos art.º 379.º, n.º 1 al.ª a) e 2 e 374.º, n.º 2, anulou a sentença recorrida por falta de exame crítico da prova. Regressados à 1.ª Instância, o tribunal "a quo" refez a sentença naquela parte e publicou-a de novo em 11-2-2010. Agora é o arguido ML que levanta a mesma questão da omissão de exame crítico da prova, aventando que o mesmo não se mostra afinal feito e que o tribunal "a quo" não cumpriu o decidido por esta Relação. Ora bem. O exame crítico das provas a que alude o art.º 374.º, n.º 2, tem como escopo impor que o julgador esclareça "quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra" (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1-3-00, Boletim do Ministério da Justiça n.º 495-290). Com esta ponderação crítica da prova pretende-se que se demonstre que se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo, pois, uma decisão ilógica, contraditória, arbitrária ou violadora das regras de experiência comum na apreciação da prova (cfr. art.º 127.° do Código de Processo Penal). Apesar do texto da lei não definir como se deve operar e descrever o exame crítico das provas, deixando ao julgador uma larga margem de critério, deve considerar-se cumprida essa exigência, nos casos em que ainda que de forma simplificada, conste da sentença de forma suficientemente explícita a explicação de porque se aceitou como revelador da verdade histórica determinado elemento probatório e/ou se rejeitou outro, dando-o como afastado dessa verdade. Assim, a motivação da decisão de facto (n.º 2 do art.º 374.° do Código de Processo Penal) não pode constituir um substituto do princípio da oralidade e da imediação, no que tange à actividade da produção de prova, transformando-a em documentação da oralidade da audiência, nem tão-pouco se destina a reflectir exaustivamente todos os factores probatórios, argumentos, intenções, etc., que fundamentam a convicção ou o resultado probatório. «A lei não exige que, em relação a cada facto, se autonomize e substancie a razão de decidir e também não reclama que, em relação a cada fonte de prova, se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível, devendo também não ser esquecido que o convencimento é o de cada um dos juízes (artigo 365.°, n.º 3, do Código de Processo Penal)» – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-6-99, Boletim do Ministério da Justiça 488-272. Ora e retornando ao caso dos autos, o exame crítico das provas produzidas em audiência efectuado na sentença recorrida (e nessa parte no entretanto refeita por força do anterior acórdão desta Relação) não é um paradigma na matéria; mas também não se pode dizer que inexista ou não tenha sido feito. Na verdade, não é por na fundamentação da convicção de uma sentença não aparecer uma epígrafe expressamente chamada de «exame crítico das provas produzidas em audiência» que esse exame se deve dar por inexistente. Há várias maneiras de fazer esse exame, umas mais explícitas e inspiradas do que outras, não sendo exigível ao Juiz "a quo" que deixe os destinatários da sentença extasiados com a qualidade literária e a argúcia com que explica como descobriu o crime. No caso da sentença sob recurso, o exame crítico foi sendo feito em simbiose com a descrição do contributo – ou da falta dele – que a Senhora Juiz recorrida entendeu ter sido dado pelo depoimento de cada uma das testemunhas para a formação da sua convicção, aferido de acordo com o que as regras da experiência da vida normalmente permitem extrair do teor das declarações relatadas. Além disso, vamos lá a ver: se os factos provados e não provados consignados numa sentença estiverem sã e escorreitamente fixados, não será um menos conseguido exame crítico das provas produzidas em audiência que irá impedir o alcançar da solução justa para o caso. Ao invés, o exame crítico das provas poderá aparentar estar em abstracto bem feito, mas se, tendo os recorrentes impugnado a matéria de facto, se vier a verificar que os factos provados não têm correspondência com a prova efectivamente produzida, então por mais bonito que aparente estar o exame, isso não obstará à alteração da matéria de facto. Ora, tendo quer o arguido, quer o demandado cível recorrido e impugnado a matéria de facto assente como provada e não provada, esta Relação irá, independentemente da maior ou menor qualidade técnica do exame crítico das provas constante da sentença, aferir se os factos impugnados – e são só esses os que interessa considerar – estão ou não correctamente apurados, o que nos levará necessariamente à aferição da justeza das soluções jurídicas encontradas pela 1.ª Instância para o caso, nas vertentes questionadas pelos recorrentes. E é isto o que interessa. # No tocante à 2.ª das questões postas pelo arguido ML, a de que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal a quo deu como provado que o arguido praticou o crime pelo qual depois o condenou: Temos pois que ir ouvir as gravações da prova produzida em julgamento, designadamente a indicada pelo recorrente, para aferir o que se passou. Não olvidando o ensinamento de Germano Marques da Silva, in Fórum Justitiae, Ano 1, n.º 0, pág. 22, de que «o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância». Acreditar num depoente e não acreditar noutro é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita naquele e já não acredita no outro seja racional e tenha lógica. E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova. Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. Aliás, segundo recentes pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação presencial, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder – vide Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14. Ora se a audição de uma gravação permite fruir com fidelidade aqueles 7% de capacidade de influência exercida através da palavra e ainda, mas nem sempre, os 38% referentes ao tom de voz, sobram os 55% referentes à fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, a que o tribunal de 2.ª Instância nunca terá acesso. É que há sempre coisas que os juízes de julgamento viram enquanto ouviam e não ficaram na gravação e das quais, por isso, o tribunal de recurso nunca se aperceberá, sendo por vezes precisamente essas que fazem a diferença e levam o tribunal a quo a tombar para o lado do provado em vez do não provado ou vice-versa. Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a oralidade e a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal. A prova testemunhal não é, pois, para ser avaliada aritmeticamente. Ou como se o depoimento de uma testemunha fosse para ser considerada com o rigor de uma escritura de um notário. Por isso é que o art.º 127.º, do Código de Processo Penal, dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente; salvo quando a lei dispuser diferentemente, o que não é o caso. Conforme refere o Prof. Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II-27) as regras ou normas da experiência "são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto, sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade” e a livre convicção "é um meio da descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores". Certo que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objectivável e motivável – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-11-98, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201. Mas quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum – acórdãos do STJ de 6-3-02, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.002, II-44 e da Relação de Évora de 25-5-04, Colectânea de Jurisprudência, 2.004, III-258. No caso dos autos e em última análise, o que o recorrente pretende é substituir a convicção do tribunal pela sua. E embora o recorrente desenvolva um quadro argumentativo com o qual pretende demonstrar, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade, não logrou convencer-nos disso, ou seja, de que a decisão do tribunal "a quo" em matéria de facto não é possível ou não é plausível. Os segmentos da matéria de facto assente como provada na sentença recorrida que o recorrente ML põe em causa são os seguintes: 5 – (…) o piso da via encontrava-se (…) plano e em bom estado de conservação; 6 – Os órgãos de travagem, direcção e sinalização acústica do veículo apresentavam-se em bom estado; 7 – (…) o arguido, por circular distraído e alheio às características da via e do piso (estrada estreita, em terra batida), não adequando a velocidade do veículo a tais circunstancias, perdeu o controlo deste e entrou em despiste,(…); 10 – Agiu o arguido com imprudência e inobservância pelas mais elementares regras estradais, circulando distraído e imprimindo ao veículo que conduzia um movimento que não pôde controlar e que era manifestamente inadequado às características da via e do piso em que seguia; 11 – Foi este comportamento do arguido que deu causa directa e necessária ao acidente verificado e às lesões que, em consequência, sobrevieram na pessoa de JS; Com a impugnação dos factos vertidos como provados no ponto 5 da matéria de facto (o piso da via encontrava-se (…) plano e em bom estado de conservação), pretende o recorrente, arguido e condutor do veículo acidentado provar que o acidente se deu sem culpa sua mas antes por motivo para si súbito e imprevisível, qual seja o da irregularidade e mau estado do piso, bem como deficiências na viatura que conduzia. Sobre o estado do piso se pronunciaram algumas testemunhas ouvidas em julgamento, constatando-se dos seus depoimentos que o mau estado e o tamanho e profundidade das crateras alegadamente existentes no piso aumentaram exponencialmente quando se passou à audição das testemunhas de defesa oferecidas pelo arguido ML. No entanto, o que se segue é que no próprio dia em que ocorreu o acidente, o piso do estradão foi examinado, designadamente no trecho aonde ocorreu o despiste, pela testemunha JV, Cabo da Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana, e colhidas as fotografias constantes de fls. 108 a 110, aonde se descreve e constata a existência de um estradão com piso «em regular estado, plano e bastante duro», consoante consta de fls. 39-40, embora que com algumas das irregularidades ou elevações comuns a todas as demais estradas de terra batida, também assinaladas pela mesma testemunha quando prestou depoimento em audiência de julgamento. Daí que, entre a fria e desapaixonada descrição efectuada pelo Cabo JV e constante sobretudo das fotografias e a gongórica descrição de crateras quase lunares feita pelo arguido e condutor ML e pelas suas testemunhas de defesa, nada se possa criticar na opção feita pela Senhora Juiz recorrida para fundar a sua convicção. De resto, não pode proceder a pretensão do recorrente de que o acidente se ficou a dever a motivo para si súbito e imprevisível, subjacente à invocação do mau piso, porque, sendo o arguido funcionário da Direcção-Geral dos Recursos Florestais e bacharel em Engenharia Florestal, não está o arguido habituado e experimentado a outra coisa senão conduzir e ser conduzido em estradões de terra batida e outros caminhos bem piores, uma vez que as florestas não ficam em jardins ladeados de calçada portuguesa. De mais a mais, era a segunda vez que o arguido passava naquele dia no local do acidente, de regresso de funções de verificação de placas cinegéticas; daí que a invocada irregularidade e mau estado do piso não fossem para si um factor súbito e imprevisível; o arguido já sabia em que estado estava o piso e a circunstância de ainda assim, ter imprimido ao veículo que conduzia uma velocidade que não lhe permitiu controlá-lo na curva em que se despistou só agrava a sua culpa no acidente. O arguido atribui as culpas do acidente ao estradão como se fosse a conduzir descansado numa auto-estrada e de repente lhe aparecessem uma sucessão de inesperados buracos e desníveis de piso acabados de acontecer. Mas quem já conduziu ou conduz habitualmente em estradões de terra batida – e o arguido, como funcionário da Direcção-Geral dos Recursos Florestais, circulava neles amiúde e, repete-se, era a segunda vez que naquele dia ali passava a conduzir – sabe perfeitamente que só se pode imprimir ao veículo uma velocidade muito moderada, sob risco evidente de acontecer o que aconteceu. Assim, toda a discussão que no julgamento se gerou à volta do estado em que o estradão estava é irrelevante, pois que esse estado era do conhecimento do arguido, o qual só tinha era que adequar a velocidade do veículo a esse conhecimento que detinha daquele estado. Depois, pretende o arguido que não se fez prova de que 6 – Os órgãos de travagem, direcção e sinalização acústica do veículo apresentavam-se em bom estado; Mas não é bem assim. A fls. 41 está um exame no qual se conclui que aqueles órgãos do veículo acidentado aparentavam estar em boas condições. De resto, no seu afã de denegrir agora o desempenho do veículo (ao bocado era o estradão), arguido e suas testemunhas chegam a apelidá-lo de… “bailarina”! Não obstante, estamos a falar de um Land Rover Discovery 300 TDI, seguramente que um dos melhores jipes do mercado, adquirido em Janeiro de 1998 (fls. 35), tinha portanto 8 anos à data do acidente, dotado de suspensão dianteira e traseira independente tipo MacPherson, ABS (fls. 41), e as demais mordomias tecnológicas de segurança passiva e activa de série no modelo, que quatro meses antes, com 196.283 km, passara com distinção, isto é, sem deficiências a assinalar, a inspecção técnica periódica obrigatória (fls. 36) e que tinha 207.693 km percorridos à data do acidente (fls. 114), ou seja apenas mais 11.410 km do que aquando daquela inspecção, e do qual no entretanto ninguém no serviço se queixou de forma adequada à hierarquia de que tenha mudado de género, para “bailarina”. Nada pois há a criticar ao consignado no ponto 6 dos factos provados. Por outro lado, pretende o arguido que a vítima mortal, JS, não levava o cinto de segurança no momento do acidente e que essa circunstância contribuiu decisivamente para a sua morte. Este assunto, invocado pelo arguido ML, interessa apenas na parte criminal da questão, isto é, quanto à condenação do recorrente pelo crime de homicídio por negligência, e não na vertente prevista pelo art.º 570.º, n.º 1, do Código Civil[1], que diz respeito apenas ao demandado cível Estado Português. Mas trata-se de dois pressupostos que não ficaram provados. E bem. Só o arguido referiu em audiência que a vítima não levava o cinto de segurança. O bombeiro PM, que mais de perto a socorreu, afirmou que quando chegou a ela, a vítima não estava realmente presa com o cinto, mas não pôde afirmar se isso se devia a ela não o ter posto ou a o ter no entretanto retirado ou a o cinto se ter partido. De qualquer forma, mais duvidoso seria dar como provado que a falta de cinto contribuiu decisivamente para a sua morte. Há uma multiplicidade de hipóteses susceptíveis de ocorrência que obstam à simplicidade deste argumento do arguido, como sejam a localização das lesões, a natureza, modo e local da sua produção, a dinâmica dos corpos em embate livre ou direccionado ou condicionado pela colocação do cinto de segurança. Aliás, o arguido diz que também ele não levava o cinto de segurança colocado e, no entanto, não morreu. Assim (e passando agora a também adiantar alguns subsídios quanto à 1.ª parte da 1 .ª questão posta pelo outro recorrente, o Estado Português, de que não se fez prova em julgamento de que o acidente ocorreu por o arguido ter agido de forma negligente), se a saída de estrada e o capotamento do veículo não se deveu a avaria ou mau funcionamento dos órgãos do veículo ou ao surgimento de uma deformidade no estradão que o condutor não pudesse ter previsto, o acidente só pode ter acontecido por o arguido, tal como consta dos ponto 7, 10 e 11 dos factos provados, circular distraído e alheio às características da via e do piso, não adequando a velocidade do veículo a tais circunstâncias, a ter agido com imprudência e inobservância de elementares regras estradais, circulando distraído e imprimindo ao veículo que conduzia um movimento que não pôde controlar e que era manifestamente inadequado às características da via e do piso em que seguia; e ter sido este comportamento que deu causa directa e necessária ao acidente verificado e às lesões que, em consequência, sobrevieram na pessoa de JS. Na verdade, o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto provando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta, só por si, conduzir à sua convicção. Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei, de acordo com o art.º 125.º, do Código de Processo Penal; e o art.º 349.º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351.º, do Código Civil). Depois, as presunções simples ou naturais (como o são as aqui em causa) são simples meios de convicção e encontram-se na base de qualquer juízo, pois são o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. Por outro lado, é inteiramente lógico pensar e concluir que as pessoas nas omissões ou actos que praticam, obedecem às suas potencialidades volitivas, escolhendo, directa ou indirectamente, os resultados da sua actividade ou mantendo-se por incúria indiferentes à produção de tais resultados. Essa faculdade de opção, que pressupõe o homem como ser autónomo e livre, informa como substrato essencial e necessário o conteúdo de todas as normas jurídicas. Daí que se tenha de aceitar que quando um condutor perde o domínio da marcha da viatura e se despista para fora da faixa de rodagem, ressalvada a intervenção de forças ou condicionalismos estranhos e insuperáveis, negligência os seus deveres funcionais, tornando-se por isso alvo de justa censura, mormente quando cause danos irreparáveis. E quando não se logra no caso concreto explicar o facto pela aparição de tais circunstâncias superiores à capacidade do condutor por recurso às regras da experiência normal (quod pleurumque accidit) poderá então filiar-se o evento na deficiência ocasional do próprio homem – o qual dispõe dos meios suficientes para dominar a realidade circundante quando quer pagar o preço da prudência e da atenção perseverantes no manejo das máquinas postas ao seu serviço pela civilização. O acto de conduzir viaturas é um facto voluntário, sendo a forma de condução normalmente o resultado directo ou indirecto da vontade do condutor; só assim não acontecerá se intervier um facto anormal, excepcional, desligado dessa vontade. Portanto, o facto de conduzir acarreta a ilação de que o que se passa na condução do veículo, designadamente as infracções às regras legais de trânsito ou de mera prudência, derivou de uma acção ou omissão dependentes daquela vontade – presunção judicial que a lei admite como meio de prova: art.° 349.° e 351.° do Código Civil. O que significa que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas. De resto – e como recorda o acórdão da Relação de Lisboa de 11-5-2005, processo n.º 9359/2004-3, acessível em www.dgsi.pt – há muito que a jurisprudência sedimentou o entendimento de que o condutor que se despista e (ou) derrapa, assim provocando um acidente de viação, é criminal e civilmente responsável pelos resultados, a título de culpa efectiva, por violação dos deveres de cuidado inerentes v.g. à norma que proíbe a "velocidade excessiva", excepto se provar que o facto se deu por causa imprevisível, estranha a uma condução normal (cfr. Acs. do STJ, de 16-3-66, BMJ n.º 155-266, de 28-5-74, BMJ n.º 237-231, de 14-5-81, BMJ n.º 307-191, e de 6-1-87, BMJ n.º 363-488; e ainda da Rel. de Coimbra, de 21-5-85, CJ 85, III-81, de 20-5-86, BMJ n.º 357-497, de 4-4-89, CJ 89, IV-63, e da Rel. Porto, de 2-2-82, CJ 82, I- 268, e de 7-3-85, CJ 85, II-212). É o que resulta das regras de experiência comum (cfr. art.º 349.º e 351.º, do Código Civil), uma vez que, prendendo-se as causas e efeitos da derrapagem e do despiste, normalmente, com a velocidade, a força e o peso do veículo (cfr. Antunes Varela, RLJ n.º 118, pág. 209 e ss.), é lícito presumir, sendo as duas últimas variáveis relativamente constantes em cada automóvel, que a mesma se deve, em princípio, a "excesso de velocidade". Compreende-se, assim, que o despiste, tal como a derrapagem, seja por muitos chamada de atestado de imprudência e imperícia. Apenas perante fenómenos repentinos, absolutamente inesperados e imprevisíveis para o condutor, está arredada a sua culpa. É certo que as presunções naturais cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto (Cavaleiro Ferreira, Processo Penal, II, 315). Mas, in casu, não se vislumbra na factualidade provada qualquer circunstância que razoavelmente justifique tal dúvida. Do mesmo modo, é patente que os factos provados não evidenciam, e nem sequer sugerem, qualquer justificação para tal conduta, objectivamente contra-ordenacional (cfr. art.º 24.º, n.º 1, do Código da Estrada). # No tocante à 3.ª das questões postas pelo arguido ML, a de que o tribunal "a quo" violou o princípio "in dubio pro reo": A violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratado como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-3-99, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1999, I-247; ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, esta resultar evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência, ou seja, quando é verificável que a dúvida só não é reconhecida em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal – acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3-3-1999 e 4-10-2006, ambos acessíveis em www.dgsi.pt e ainda da Relação de Évora de 30-1-2007, no mesmo sítio da Internet. Como é sabido, o princípio do in dúbio pro reo é um corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no art.º 32.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. art.º 18.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; 11.°, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.°, n.º 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14.°, n.º 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos). Com efeito, enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. O que quer significar que só a prova de todos os elementos constitutivos de uma infracção permite a sua punição. Mas esse é um problema de direito probatório em processo penal. Como acentua Hans Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal”, Parte General, 4.ª ed., pág. 127 e segs., tal princípio "serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do Direito que surjam numa situação probatória incerta". Vem tudo isto a propósito de que da leitura da fundamentação da decisão recorrida, resulta que o Tribunal a quo não teve dúvidas sobre os factos que deu como assentes, dúvidas que este Tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, também não tem, pois que só se a fundamentação revelasse que o tribunal a quo, face a algum ou alguns factos, tivesse ficado em dúvida "patentemente insuperável", como se referiu no Ac. do STJ de 15-6-00, publicado na Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.000, II-228, ou se, embora o tribunal "a quo" não reconhecesse o estado de dúvida, ele resultasse do texto da decisão recorrida só por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, só não sendo declarada pelo tribunal "a quo" por força de erro notório na apreciação da prova, é que se podia afirmar que havia sido postergado o princípio in dubio pro reo, que sendo um corolário da presunção de inocência, só vale até ser, como foi, elidida em julgamento. A fundamentação da decisão de facto da sentença recorrida não evidencia qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido. Em face da prova, resultou a certeza da prática pelo arguido do ilícito pelo qual foi condenado, não tendo havido qualquer violação do princípio in dubio pro reo. # No tocante à 4.ª das questões postas pelo arguido ML, a de que se encontra extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional relativo à contra-ordenação pela qual foi condenado: O comportamento contra-ordenacional imputado ao arguido é de 11-4-2006. A contra-ordenação, prevista pelos art.º 24.º, n.º 1 e 3, 133.º, 138.º e 145.º, n.º 1 al.ª e), do Código da Estrada, é punida com coima de 120 a 600 € e sanção acessória de inibição de conduzir veículos com motor de um mês a um ano. À contra-ordenação em causa é aplicável o prazo prescricional de 2 anos – art.º 188.º do Código da Estrada. E o art.º 28.º, n.º 3, do mencionado Regime Geral das Contra-Ordenações estabelece: «3 – A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade». Ora no caso dos autos não houve qualquer das causas previstas no art.º 27.º-A do Regime Geral das Contra-Ordenações de suspensão da prescrição do procedimento pela contra-ordenação, pelo que o aludido prazo de prescrição é de três anos. Que já decorreu. Nesta parte, o recurso é para proceder. ## No tocante à 1.ª das questões postas pelo demandado cível Estado Português, a de que não se fez prova em julgamento de que o acidente ocorreu por o arguido ter agido de forma negligente ou, então, a sentença recorrida padece do vício enunciado no art.º 410.º, n.º 2 al.ª a) [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada]: De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado. Tendo sido gravadas as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento, esta Relação, em princípio, poderia conhecer de facto e de direito (art.º 363° e 428°, do Código de Processo Penal). Todavia, o erro de julgamento e o consequente reexame da matéria de facto não é de conhecimento oficioso. Com efeito, quando o recorrente pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos prescritos no n.º 3 do art.º 412.º, do Código de Processo Penal, deve especificar: A) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; B) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e C) As provas que devem ser renovadas. Acrescenta o n.º 4 desse preceito que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Não se deve confundir o erro na apreciação da matéria de facto com o erro de julgamento, enquanto forma de impugnação ampla da matéria de facto. Como é sabido, constituem duas formas distintas de "atacar" a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes. Enquanto o erro na apreciação da matéria de facto constitui um vício intrínseco da sentença, e por isso, tem de resultar do respectivo texto (cfr. art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), o erro de julgamento não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação da matéria de facto, que todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art.º 412.°, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal. Ora, no caso concreto, resulta à evidência da leitura da minuta do recurso que o recorrente não invoca o erro de julgamento, não impugnando amplamente a matéria de facto, limitando-se à invocação da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício este previsto na al.ª a) do n.º 2 do art.º 410.°, do Código de Processo Penal. Com efeito, o recorrente embora identifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e que são os de se ter dado como provado que o arguido circulava distraído e alheio às características da via e do piso, não adequando a velocidade do veículo a tais circunstâncias, não aponta as provas factuais, concretas e individualizadas, que imponham decisão diversa. Assim, este tribunal só pode sindicar a decisão recorrida em matéria de facto no âmbito do art.º 410.°, n.º 2, do Código de Processo Penal, e não amplamente. Posto o que nos resta pois verificar se, como pretende o recorrente, a sentença recorrida padece do vício enunciado no art.º 410.º, n.º 2 al.ª a) [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada]. Vício que têm de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo. A insuficiência da matéria de facto provada para proferimento da respectiva decisão verifica-se quando há lacuna, deficiência ou omissão no apuramento e investigação daquela matéria. Podendo e devendo fazer-se uma total reconstrução dos factos com vista à sua subsunção na concreta previsão legal, houve uma falha naquela reconstrução, o que necessariamente se repercute na qualificação jurídica dos mesmos e/ou na medida da pena aplicada, acarretando a normal consequência de uma decisão viciada por falta de base factual. Este vício influencia e repercute-se na decisão proferida, a qual, por isso, não poderá ser a decisão justa que devia ter sido proferida. (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13-5-98, Colectânea de Jurisprudência dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, II-199, e de 25-9-97, Boletim do Ministério da Justiça 469-351; e acórdão da Relação de Coimbra, de 27-10-99, Colectânea de Jurisprudência, 1999, IV-68). Ora compulsada a decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos, como manda o corpo do n.º 2 do art.º 410.º, do Código de Processo Penal, não detectamos a existência deste vício. Os factos provados são claramente suficientes para a decisão justa da causa. # No tocante à 2.ª das questões postas pelo demandado cível Estado Português, a de que ao condenar o Estado Português, a sentença recorrida violou o disposto no art.º 2.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48051, de 21-11-1967: Diz o seguinte aquela norma: Art. 2.º - 1. O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício. A objecção do arguido funda-se em dois pressupostos. O primeiro, de que o arguido não agiu com culpa. O segundo, tem duas versões; a de fls. 3-§6.º, da motivação (fls. 820 dos autos), de acordo com o qual «não resultaram provados factos que permitam concluir que o arguido se encontrava no exercício das suas funções e por causa delas»; a do ponto i) das conclusões, segundo a qual «não se produziu prova de que o arguido estivesse no exercício das suas funções, ou por causa delas». Quanto à culpa do arguido ML no acidente, ela ficou estabelecida na resposta à 2.ª questão posta por esse mesmo arguido e acima tratada. Quanto ao outro pressuposto, o recorrente está outra vez a confundir duas maneiras distintas de impugnar a matéria de facto, cada uma delas sujeita a regimes processuais diferentes. Se o recorrente alega que «não resultaram provados factos que permitam concluir que o arguido se encontrava no exercício das suas funções e por causa delas» – parece estar a impugnar a matéria de facto invocando o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.º 410.º, n.º 2 al.ª a). Se o arguido alega antes que «não se produziu prova de que o arguido estivesse no exercício das suas funções, ou por causa delas» – parece que está a impugnar a matéria de facto assente como provada usando o mecanismo descrito no art.º 412.º, n.º 3 e 4. Mas a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que se refere o art.º 410.º, n.º 2 al.ª a), não se confunde com a insuficiência da prova para a matéria de facto dada como provada, a remediar mediante o uso do mecanismo processual contido no art.º 412.º, n.º 3, 4 e 6. Do que se trata na primeira, é de a matéria de facto provada não ser suficiente para decidir a causa de forma justa; na segunda, da insuficiência da prova produzida em julgamento para dar como provada a matéria de facto que se deu. O que se censura na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude o art.º 410.º, n.º 2 al.ª a), é o facto de o tribunal não ter investigado e apreciado todos os factos que podia e devia para poder decidir de forma justa; na insuficiência da prova, critica-se o tribunal por ter dado como provado factos sem prova suficiente. Que a decisão recorrida não padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude o art.º 410.º, n.º 2 al.ª a), já atrás vimos e ficou decidido que não padece. No mais, acontece que, devendo o recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, especificar as concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3 al.ª c)), o recorrente nenhuma indicou a tal propósito, além do diz que disse sem que se saiba quem, aonde e como o disse, constante das conclusões j) e k) ou fls. 3-4 da motivação, que impossibilita o exercício pelo tribunal "ad quem" do disposto no art.º 412.º, n.º 6, o de o tribunal proceder à audição das passagens indicadas – o que, correspondendo à ausência de motivação nessa parte do recurso, leva a que não se conheça do mesmo nesse particular aspecto. # No tocante à 3.ª das questões postas pelo demandado cível Estado Português, a de que o Estado Português não devia ter sido condenado a pagar à demandante G. a quantia de 1.599,03 € relativa a despesas com o funeral da vítima, uma vez que a viúva já havia recebido do ISS-IP/CNP a quantia de 2.315,40 € a título de subsídio por morte, subsídio este que se destina a ressarcir este tipo de despesas e que excede o valor das despesas de funeral efectivamente suportadas pela demandante G. A propósito do assunto, ficou provado que: 29 – Com o funeral do seu marido, G. despendeu a quantia de €1.599,03 (…) 32 – O ISS-IP/CNP pagou a quantia de €7.236,19 (sete mil duzentos e trinta e seis euros e dezanove cêntimos) correspondente a subsídio por morte no montante de €2.315, 40 (dois mil trezentos e quinze euros e quarenta cêntimos) e (…) Tendo, a final, decidido o tribunal "a quo": c) Condenar o demandado Estado Português – Direcção-Geral dos Recursos Florestais a pagar às demandantes G., A. e I.: (…) 3) a quantia de €1.599,03 (mil quinhentos e noventa e nove euros e três cêntimos) de despesas com o funeral a pagar a G. acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano a contar da citação, d) Condenar o Estado Português – Direcção-Geral dos Recursos Florestais a pagar ao Instituto da Segurança Social IP Centro Nacional de Pensões a quantia de €7.236,19 (sete mil duzentos e trinta e seis euros e dezanove cêntimos) como os respectivos juros de mora legais desde a data da citação até integral e efectivo pagamento, (…) A questão está pois em definir se o subsídio por morte no montante de 2.315,40 € pago pelo ISS-IP/CNP às demandantes cíveis se destina especificamente a pagar as despesas com o funeral no montante de 1.599,03 € que o Estado Português foi condenado a pagar às mesmas, ou seja, se as demandantes cíveis foram ressarcidas «a dobrar» pelas despesas com o funeral, ou se é uma prestação social independente das despesas com o funeral, que não se destina especificamente à satisfação da mesma e é independente do seu valor. A resposta está no Decreto-Lei n.º 322/90, de 18-10. De acordo com o disposto no art.º 4.º, n.º 2, deste Decreto-Lei, o subsídio por morte destina-se a compensar o acréscimo dos encargos decorrentes da morte do beneficiário, tendo em vista facilitar a reorganização da vida familiar. O art. 32.º fixa o montante do subsídio: O subsídio por morte é igual a seis vezes o valor da remuneração de referência calculada nos termos do artigo seguinte. Artigo seguinte no qual, sob a epígrafe «remuneração de referência», se estabelece: “1 - A remuneração de referência a considerar para o cálculo do subsídio é igual a 1/24 da remuneração global dos dois anos civis a que correspondem remunerações mais elevadas, dentro dos últimos cinco anos civis com entrada de contribuições em nome do beneficiário. 2 - No caso de a entrada de contribuições em nome do beneficiário corresponder a período inferior a dois anos, a remuneração de referência a considerar para o cálculo do subsídio é igual a 1/24 das remunerações registadas. 3 - Quando, após a passagem do beneficiário à situação de pensionista, se verifique a entrada de contribuições e a média das remunerações correspondentes, nos termos do n.º 1, for inferior à que resultaria da consideração das remunerações registadas anteriormente à data da atribuição da pensão, é este o valor da remuneração de referência. 4 - Em caso de morte de pensionista, a remuneração de referência calculada nos termos dos números anteriores será ajustada por aplicação do factor de actualização de salários vigente à data da morte. “ Por sua vez, o art.º 34.º fixa o valor mínimo de referência: “A remuneração de referência a considerar para o cálculo do subsídio por morte não pode ser inferior ao valor da remuneração mínima garantida à generalidade dos trabalhadores.” E, por fim, o art.º 35.º define quem recebe o subsídio e em que proporções: “1 - O subsídio por morte é atribuído aos titulares nos termos seguintes: a) Metade ao cônjuge e ex-cônjuge e metade aos descendentes, quando existam simultaneamente aqueles e estes; b) Por inteiro ao cônjuge, ao ex-cônjuge ou aos descendentes, conforme os casos, quando não se verifique a situação prevista na alínea a); c) Por inteiro aos ascendentes ou às pessoas referidas no n.º 3 do artigo 7.º 2 - O montante do subsídio por morte estabelecido nos termos do número anterior é repartido por igual entre os titulares do direito ao subsídio incluídos em cada um dos grupos definidos no artigo 7.º “ Ora da leitura destas disposições legais se constata que o subsídio por morte pago pela Segurança Social no montante de 2.315,40 € é uma prestação social que não tem coisa alguma a ver com o custo do funeral da vítima, que não se destina especificamente à satisfação do mesmo, nem é necessariamente recebido pela pessoa que tenha suportado as despesas do funeral, é independente do seu custo e cujo recebimento pelos respectivos titulares não obsta ao pagamento pelo responsável civil pelo acidente de todos os danos materiais que o acidente tenha ocasionado e nos quais se contam os resultantes do funeral da vítima. A não ser assim, então o recorrente também reclamaria que o que daqueles 2.315,40 € excedeu o custo do funeral fosse descontado nas demais indemnizações que o recorrente foi condenado a pagar… Pelo que, bem andou o tribunal "a quo" ao ter decidido a matéria como decidiu. # No tocante à 4.ª das questões postas pelo demandado cível Estado Português, a de que são excessivos os montantes de 35.000,00 € fixada pelo tribunal "a quo" como indemnização pela perda do direito à vida e o de 25.000,00 € como indemnização por danos morais: Vejamos: Estabelece o art.º 496.º, do Código Civil, citado apenas na parte que agora interessa ao caso: «1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. «... «3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º; ...» Art.º 494.º que diz: «Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.» A indemnização por danos não patrimoniais visa proporcionar ao lesado alegrias tanto quanto possível reparadoras dos danos sofridos. Não é, como adverte o Prof. Vaz Serra (in B.M.J. 83/83) uma verdadeira indemnização, no sentido de um equivalente do dano, isto é, um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão. Trata-se apenas de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de equivalente. A indemnização a este título constitui, assim, uma compensação por prejuízos espirituais ou morais e deve ser fixada equitativamente, tendo em atenção a gravidade desses prejuízos e atendendo ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso. Tal indemnização deve tender a viabilizar um lenitivo ao lesado, tendo um alcance significativo e não meramente simbólico (acórdãos do STJ de 16-12-93, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1993, III-181; de 11-9-94, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, III-89; e de 6-7-00, BMJ 499-309). O dano morte – perda do direito à vida – como dano não patrimonial próprio da vítima foi computado na 1ª instância em 35.000,00 €. Na determinação do seu quantum há que ter presente que o direito à vida é o primeiro entre todos, é “um direito essencial entre os essenciais (e) nenhum outro bem pode conceber-se separado dele” - Adriano de Cupis, “Os direitos da personalidade”, 64 e 67. Sendo que, actualmente, o mesmo tem vindo a ser consistentemente fixado em valores não inferiores a 50.000,00 €, como se pode constatar de, entre outros, os seguinte acórdãos: da Relação de Lisboa, de 7-7-2004, processo 4254/2004-3; do Supremo Tribunal de Justiça, de 8-6-2006, processo 06A1464; do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-11-2005, processo 05B3017; da Relação do Porto, de 6-10-2004, processo com o n.º convencional JTRP00037204; da Relação de Coimbra, de 9-12-2004; da Relação de Évora, de 23-3-2004, processo 2957/03-1 – todos consultáveis em www.dgsi.pt, sob os descritores *danos morais* e *danos não patrimoniais*. E ainda da Relação do Porto, de 11-4-2004, Colectânea de Jurisprudência, 2004, III-174. E até mais: 60 000,00 €, como se pode constatar de, entre outros: acórdão de 5-2-2009, proferido no processo 08B4093; acórdão de 5-7-2007, proferido no processo 07A1818; e até para o montante de 75 000,00 € – acórdão da Relação do Porto de 13-5-2009, proferido no processo 0848033[2]. Este quantum não pode ficar outra vez cristalizado no tempo, sob pena de em breve voltarmos às indemnizações “miserabilistas” de há poucos anos atrás. Assim, se o montante de 35.000,00 € fixado pela 1.ª Instância como indemnização pela perda do direito à vida merece reparo é antes pela sua relativa modéstia. No tocante aos danos não patrimoniais sofridos pela viúva e pelas filhas do casal, a indemnização por estes danos não patrimoniais tem por finalidade compensar desgostos e sofrimentos suportados e a suportar por estas pessoas, de modo a suavizar-lhe as agruras da nova vida diária que terão de enfrentar, a proporcionar-lhe uma melhor qualidade de vida e a fazer desabrochar um novo optimismo no modo de encarar a situação que lhes foi causada. Tudo visto e ponderado, tem-se por justo e adequado o montante da indemnização pelos danos não patrimoniais fixados pela 1.ª Instância. IV Termos em que se decide: 1.º - Declarar extinta, por prescrição, a contra-ordenação grave p. e p. pelos art.º 24.º, n.º 1 e 3, 133.º, 138.º e 145.º, n.º 1 al.ª e), do Código da Estrada. 2.º - Manter, no mais, a decisão recorrida. 3.º - Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, que é individual, em cinco UC (art.º 87.º, n.º 1 al.ª b), do Código das Custas Judiciais). Évora, 20-01-2011 (elaborado e revisto pelo relator) João Martinho de Sousa Cardoso (relator) António João Latas (adjunto) __________________________________________________ [1] Art.º 570.º, n.º 1, do Código Civil: «Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída». [2] Acessíveis no sítio www.dgsi.pt, sob o descritor *danos não patrimoniais* | ||
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Decisão Texto Integral: |