| Acórdão do Tribunal da Relação de  Évora | |||
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| Relator: | ANA BARATA BRITO | ||
| Descritores: | PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVAS | ||
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| Data do Acordão: | 05/10/2016 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
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| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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| Sumário: | I - A assistente não pode, em recurso, impugnar a matéria de facto com apelo a provas do inquérito deixadas fora do contraditório do julgamento, quando, tendo tido a possibilidade de reagir ao encerramento da audiência e de requerer que essas provas ali fossem examinadas, nada fez. II - A sua inatividade processual em julgamento, esperando pelo recurso para levantar questões que ali devia ter suscitado, preclude irremediavelmente o conhecimento, na ausência de deteção de violação ao princípio da investigação, de nulidade ou de vício de sentença. [1] | ||
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| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal: 1. No processo comum singular/colectivo nº 2248/13.9GBABF, da Comarca de Faro, foi proferida sentença em que se decidiu absolver o arguido/demandado A. da prática dos crimes de ofensa à integridade física simples do artigo 143º, nº1, do Código Penal e de injúria do art. 181º, nº1, do CP, de que vinha acusado, e do pedido cível contra si formulado pela assistente B., no montante de € 10.000,00. Inconformado com o decidido, recorreu a assistente, concluindo: “I. O presente recurso vem interposto na sequência da decisão absolutória proferida nos presentes autos, na qual se determinou igualmente a improcedência do pedido de indemnização cível feito pela recorrente. II. Inconformada com estas decisões e com a matéria de facto tida em sentença como não provada, sufraga a recorrente essencialmente que, no decurso da audiência de discussão e julgamento, e na própria confrontação das declarações prestadas pelo arguido nesta e aquelas prestadas em sede de inquérito, revelaram-se diversas incoerências quanto aos factos, que não podiam deixar de ser atendidas pelo Tribunal a quo, III. Entendendo assim a recorrente que o Tribunal a quo fez uma valoração deficiente dos factos, sustentando ainda que esse Tribunal se quedou, em diversos momentos, aquém no que respeita à averiguação desses mesmos factos. IV. Sustenta ainda a recorrente que, perante as discrepâncias reveladas pelo arguido na sua descrição dos factos, deveria o Tribunal a quo ter pronunciado como provados os factos por si invocados, V. Sendo que, em consequência de se terem provados os factos subjacentes à prática dos crimes de que o arguido vinha acusado, necessário seria obter-se uma decisão diferente daquela proferida nos autos, ou seja, VI. O Tribunal a quo deveria ter optado pela condenação do arguido por esses factos, com a consequente condenação do mesmo no pagamento da indemnização cível peticionada nestes autos. VII. Em virtude de não atender à prova feita nesta processo na sua globalidade, ou seja, desde o início do processo até à prolação da sentença, revela-se que o Tribunal a quo não atendeu devidamente ao princípio do inquisitório, consagrada no artigo 411.º do Código de Processo Civil e com correspondência processual penal no artigo 340.º do Código de Processo Penal. VIII. Motivando o Tribunal a quo a sua decisão de direito por aplicação dos princípios do in dúbio pro reo e da presunção inocência, o que lhe é lícito, deveria ainda assim esse Tribunal ter pugnado pela produção e avaliação de toda a prova que lhe era lícito conhecer, o que não fez. IX. Por exemplo, no tocante às já referidas discrepâncias evidenciadas pelas declarações do arguido em sede de inquérito, deveria o Tribunal ao abrigo do princípio do inquisitório e do princípio da imediação, ter determinado a reprodução ou a leitura dessas declarações, nos termos do n.º 1 do artigo 355.º e da alínea b) do n.º 3 do artigo 356.º do Código de Processo Penal. X. Pelo exposto, importa modificar a decisão obtida em primeira instância por uma outra que condene o arguido nestes autos pela prática dos factos de que vinha acusado. XI. Não obstante, há ainda que salientar que com a referida motivação incorreu o Tribunal a quo no vício estabelecido nos termos da alínea c), do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, XII. O que, salvo melhor entendimento, determina o reenvio do processo para novo julgamento para o Tribunal a quo, por força do disposto no n.º 1 do artigo 426.º do Código de Processo Penal. XIII. Assim, pelo supra exposto, caso não se entenda proferir uma decisão condenatória contra o arguido, o que se concebe sem conceder, deverá ser determinada o reenvio do processo para novo julgamento, restringindo-se este à concreta apuração dos factos que se encontram contraditados pelo próprio arguido, factos cujo conhecimento revela-se necessário em ordem à decisão justa e adequada a proferir. XIV. Quanto ao pedido de indemnização cível indeferido na sentença recorrida, importa mencionar que, a ter-se como provados os factos contraditados, revela-se esse pedido justificadamente fundado, não subsistindo razões para que não seja o mesmo deferido. XV. Ainda, caso não se entenda alterar a decisão proferida, desta feita no sentido de se condenar o arguido pela prática dos factos de que vinha acusado, sustenta a recorrente que deverá tomar-se em conta o disposto no n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal e, XVI. Pela aplicação dessa disposição legal, reiteramos, ainda que não se condene o arguido pelos factos de que vem acusado, revelando-se o pedido de indemnização cível fundado, poderá o Tribunal determinar a condenação do arguido nesse mesmo pedido.” O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se também no sentido da confirmação da sentença. Na resposta ao parecer a recorrente reiterou as suas razões, concluindo que “o Sr. Procurador-geral Adjunto não levou em devida consideração o recuso por si interposto e os elementos da sentença recorrida colocados por aquele em crise” Colhidos os vistos, teve lugar a conferência. 2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados: “1. No dia 18.10.13, cerca das 12h20m, o arguido estava no interior da sua loja sita na Urbanização da Corcovada, …, área desta cidade de Albufeira. 2. Nessa data, a assistente, acompanhada da sua filha Andreia, dirigiu-se ao referido local para pedir satisfações ao arguido relativamente a um contacto telefónico entre ambos no 11.10.13, relativo a um possível de arrendamento de uma loja que o arguido tinha para esse fim naquela urbanização. 3. Nesse local, iniciou-se uma discussão entre ambos, tendo o arguido dito: “ponha-se daqui para fora”. 4. Como a assistente não saiu, o arguido segurou o braço da mesma e conduziu-a ao exterior da loja, fechando a porta à chave. 5. De seguida, quando o arguido abandonava a loja, retomou-se a discussão entre arguido e assistente que, nessa sequência, se confrontaram fisicamente em moldes não concretamente apurados. 6. Tal confronto terminou com a intervenção do filho da assistente, M, que ali surgiu, tendo entretanto, a assistente e os filhos abandonado o local. 7. Nesse dia, pelas 16h48m, a assistente apresentava “traumas em braço direito, costas, coxa esquerda, apresentando hematomas, não feridas, só ligeiras escoriações no ombro direito”. 8. Tais lesões demandaram assistência médica e sete dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho profissional e sem afectação da capacidade do trabalho em geral. (da acusação particular) 9. No dia 11.10.13, o arguido contactou telefonicamente a assistente, para saber qual a decisão acerca do arrendamento da loja, referido em 2. e como a assistente lhe comunicou que havia perdido o interesse na loja, após uma troca de palavras, o arguido desligou a chamada. … 10. O arguido não tem antecedentes criminais. 11. O arguido encontra-se desempregado, beneficiando de apoio económico dos pais; vive em casa própria; tem dois veículos ligeiros e um motociclo; como habilitações literárias tem o 9º ano de escolaridade. Foram considerados como não provados os factos seguintes: “(da acusação pública) 12. Nas circunstâncias descritas em 3., o arguido desferiu um empurrão na assistente e agarrou-lhe o braço, que apertou, arrastando-a para fora da loja, tendo a mesma que se agarrar à ombreira da porta para não cair – tendo-se provado apenas o descrito em 4.. 13. O arguido desferiu-lhe um pontapé, atingindo-a na coxa esquerda. 14. Desferiu-lhe ainda outro empurrão, fazendo a ofendida cair no chão e magoar-se nos cotovelos. 15. Continuando a discussão, no seguimento da mesma, o arguido ainda desferiu pontapés em número não apurado na assistente, atingindo-a no seu corpo, nomeadamente nos membros inferiores. 16. O arguido causou na assistente as lesões descritas em 7. 17. O filho da assistente, M, circulava de motociclo naquela zona e parou no local por ouvir os gritos da mãe. 18. Quando a assistente e os filhos abandonavam o local o arguido dirigiu-se àquele, com o fito de os amedrontar, gritando: “Agora que a minha elite vem aí é que vocês se vão embora? Isto não vai ficar por aqui. Vocês não sabem com quem se meteram”. 19. E dirigindo-se concretamente a M. proferiu as seguintes palavras: “Filho da puta. Cabrão. Estás fodido. A mota não vai durar muito tempo. Vais ficar sem ela”. 20. E, ainda, dirigindo-se à assistente em tom alto e agressivo, para que esta se sentisse humilhada diante das pessoas que por ali circulavam, através das seguintes expressões: “Puta! Filha da puta! Puta de merda! Estás fodida!”. 21. O arguido quis atingir e atingiu o corpo da assistente, bem sabendo que ao actuar daquela forma a iria molestar fisicamente. 22. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era vedada e proibida pela lei penal. (da acusação particular) 23. Nas circunstâncias descritas em 9., o arguido respondeu à assistente: “então vai para o caralho”. 24. A assistente ligou de volta e o arguido reiterou: “vai para o caralho, sua puta”. 25. A assistente sentiu-se profundamente ofendida na sua honra e dignidade, vexada, humilhada e triste. 26. A assistente é muito considerada no meio onde vive e por todos quantos com ela privam. 27. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, quis denegrir a imagem da assistente perante os seus filhos e demais cidadãos, como efectivamente sucedeu, tendo consciência de que as palavras por si proferidas eram aptas a lesar a honra e consideração da assistente. (do pedido cível) 28. A demandante é pessoa bem-educada, cordial e sensata. 29. A conduta do arguido causou enorme sofrimento moral, ansiedade, nervosismo e revolta à demandante. 30. As expressões proferidas pelo demandado perturbaram de forma constante e quase incontrolável o espírito de tranquilidade e bem-estar sentido pela demandante junto da sua família, no decurso daquele dia e nos dias subsequentes. 31. A demandante sentiu-se envergonhada, desrespeitada, rebaixada. 32. Tem sentimento de revolta, mágoa e vergonha, que ainda hoje se mantém, a ponto de se sentir constrangida de falar sobre isto com os filhos. 33. A demandante sentiu forte perturbação que se reflectiu, de forma acentuada, no seu equilíbrio físico e psíquico e no seio da sua família. 34. A demandante sofreu escoriações no crânio e no membro superior direito (segundo dedo da mão do lado direito) e no membro superior esquerdo (o primeiro dedo da mão esquerda apresenta escoriações e crosta). 35. A demandante passou muitas noites sem conseguir dormir e a chorar, em virtude das dores e medo sofridos. 36. Em consequência das agressões em apreço, a demandante sofreu e sofre fortes dores quer na coxa esquerda quer nas costas, o que lhe dificulta a sua movimentação e desempenho pessoal e profissional. O exame crítico da prova tem o seguinte teor: Nos termos dos artigos 125º e 355º, a contrario, Código de Processo Penal, a convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da análise crítica e conjugada da prova produzida e/ou examinada em audiência de julgamento, à luz das regras da lógica e da experiência comum e atendendo ao princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º Código de Processo Penal. Nas declarações do arguido, fundou o tribunal a sua convicção para dar como provados os factos relativos às suas condições socioeconómicas, porquanto as suas declarações se afiguraram, a este propósito, sérias e credíveis. Com base no Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 341, deu o tribunal como provada a ausência de antecedentes criminais. No mais, quanto aos factos que vinham imputados ao arguido, e que se encontram, essencialmente, vertidos nos factos não provados (12. a 16., 18. a 20., 23., 24.,), cumpre referir que a prova produzida se revelou contraditória, apresentando arguido e assistente versões opostas do sucedido, nas quais foram secundados, de forma integral ou meramente parcial, mais ou menos clara, pelas testemunhas da defesa e da acusação, respectivamente. O arguido prestou declarações que se mostraram, no essencial, espontâneas, revelando efectivo constrangimento pela sua situação processual e pela factualidade que lhe vem imputada, negando, em suma, tal factualidade, admitindo apenas o telefonema à assistente e o encontro entre os dois na sua loja, seguido de discussão e confronto físico, cujo início imputou à assistente. Apesar do nervosismo inicial, que associamos ao aludido constrangimento revelado, o arguido apresentou relato fluido e consistente dos factos, quer quando em discurso “livre” quer quando “instado” a pormenorizar. Referiu-se, inicialmente, ao conteúdo do telefonema feito à assistente, em 11.10.13, para indagar da decisão acerca do arrendamento que a mesma pretendia fazer da sua loja, admitindo ter desligado a chamada quando percebeu que a assistente não pretendia celebrar o contrato, tendo, ainda, “rejeitado” ou não atendido a chamada que, logo de seguida, a assistente lhe dirigiu. De forma espontânea, o arguido aludido à possibilidade de confirmação do seu relato pelos registos de chamadas do seu telefone. A este propósito, a assistente prestou declarações lacónicas e pouco verosímeis, não circunstanciando a conversa mantida entre ambos, afirmando apenas que o arguido lhe telefonou, perguntando qual a decisão da assistente a propósito do arrendamento e, como esta lhe tivesse respondido que não estava interessada, o arguido lhe disse, sem mais: “então vai para o caralho”, desligando a chamada, e tendo a assistente, de seguida, por duvidar que o arguido se lhe estivesse a dirigir, efectuado nova chamada, que o arguido atendeu, dizendo: “vai para o caralho, sua puta”. Ora, não se nos afigura verosímil - de acordo com as regras da experiência comum e considerando a “simplicidade” da questão que “dividia” arguido e assistente - nem consistente com a postura e discurso serenos que observamos no arguido durante a audiência de julgamento, que, como pretendeu fazer crer a assistente, o mesmo, interessado em arrendar uma loja à assistente, tenha dirigido à mesma, telefonicamente, as expressões referidas, assim que percebeu que a mesma perdera interesse no negócio, sem sequer se ter, previamente, intensificado a discussão entre ambos. Também não se nos afigurou minimamente lógica a afirmação da assistente de que ligou de volta apenas para esclarecer a situação por ter ficado com dúvidas sobre se o arguido se dirigia a si com aquela expressão. Não é lógico que tenha considerado a hipótese de o arguido, estando a manter consigo uma conversa telefónica e estando desagradado com a perda de interesse da mesma no negócio, estivesse a dirigir a aludida expressão a um terceiro e, ato contínuo, desligasse a chamada que mantinha consigo. Menos lógico é que, ficando com essa dúvida, a assistente tenha efectuado nova chamada ao arguido, só com o propósito de esclarecer a situação. Nessa sequência, pouco credível, designadamente porque pouco consentânea com a atitude que denotamos no arguido e porque, novamente, sem precedência de qualquer discussão, se mostrou a afirmação da assistente de que, tendo efectuado nova chamada, logo de seguida, o arguido lhe respondeu: “vai para o caralho, sua puta”. Por contraposição à referência que o arguido fez, de modo “confortável”, à possibilidade de confirmação do seu relato pelos registos de chamadas do telemóvel, a assistente, quando instada sobre a simples circunstância de ter efectuado a segunda chamada ao arguido do mesmo número de telemóvel através do qual manteve a primeira conversa, mostrou-se surpreendida e hesitante, afirmando pensar que tinha usado o mesmo número mas não saber se tinha usado outro. Apesar da importância relativa deste pormenor, denotamos o nervosismo da assistente quando instada sobre pormenores laterais do sucedido, que era expectável que recordasse espontaneamente uma vez que recordava suficientemente a “dinâmica” da chamada telefónica. Assim se deu como provado o descrito em 9. e não provado o descrito em 23. a 27.. No que respeita aos factos ocorridos no dia 18.10.13, resultou apurado, com a segurança exigível, apenas o vertido em 1. a 6., por ter sido a factualidade retirada da globalidade da prova produzida, ficando por apurar os concretos termos do confronto físico entre assistente e arguido, já que a versão da acusação, pelos motivos que referiremos infra, não se provou, e das declarações do arguido resultou, efectivamente, um confronto físico entre ambos, na sequência da actuação da assistente, juntamente com a filha, sendo que o arguido não logrou concretizar os precisos termos em que foi agredido por cada uma delas, admitindo ter reagido com empurrões e movimentos dos braços para as afastar e libertar, não sabendo também precisar, pela confusão gerada e pela fluidez dos acontecimentos, os concretos termos em que atingiu cada uma delas. O arguido descreveu as circunstâncias em que se encontrava no interior da loja, acompanhado de indivíduo que sumariamente identificou, e foi abordado pela assistente, acompanhada de uma jovem que depois percebeu tratar-se da filha, estando a assistente exaltada e confrontando-o com o facto de o mesmo ter interrompido bruscamente a conversa telefónica que tinham mantido uns dias antes. Admitiu que, depois de lhe ter dito para sair da loja e não tendo a mesma saído, conduziu-a, segurando-a pelo braço, ao exterior da loja, negando ter apertado o braço ou empurrado a assistente para o exterior da loja. Afirmou que, logrando conduzir a assistente ao exterior da loja, fechou a porta à chave, ficando no interior com o referido indivíduo, e a assistente e a filha no exterior, tendo sido novamente abordado pelas mesmas quando, momentos depois, saiu da loja para ir embora. O arguido descreveu, de modo claro e consistente, a abordagem verbal e mesmo fisicamente agressiva da assistente, acompanhada da filha, que se aproximaram de si, gritando, de modo exaltado, e procurando atingi-lo, e atingindo, com as mãos, provocando-lhe, designadamente, um pequena ferida na zona do pescoço. Não negou, como vimos, o arguido que se tivesse confrontado fisicamente com a assistente mas referiu que tal confronto ocorreu na sequência da aproximação física da assistente e contacto promovido por esta, tentando o mesmo afastá-la e libertar-se, o que originou que ambos se agarrassem e afastassem mutuamente, admitindo o arguido a hipótese de a assistente ter caído na sequência disso. Admitiu, ainda, ter dito “palavrões”, enquanto afastava a assistente e a filha, e lhes dizia para irem embora, mas negou que tivesse insultado a assistente com as expressões que lhe vinham imputadas na acusação particular. O arguido não se inibiu, ainda, de identificar as pessoas que estariam nas imediações e que teriam assistido, total ou parcialmente, ao sucedido, ciente de que apenas duas delas tinham sido arroladas por si e as demais – a pessoa que estaria consigo no interior da loja, e a pessoa, de nome Nuno, que estaria na imobiliária, vizinha da loja do arguido – podiam, como sucedeu quanto a este último, ser chamadas pelo tribunal a prestar depoimento. Aludiu, por fim, ao facto de ter anotado a matrícula do veículo onde a assistente se ausentou do local, e que a indicou quando apresentou queixa, permitindo e completa identificação das pessoas em causa, o que resulta, efectivamente, do “auto de denúncia” de fls. 41 e ss. (elaborado ao fim da tarde do próprio dia dos factos, em virtude, segundo as declarações do arguido, de se ter deslocado primeiro ao Centro de Saúde). Além da espontaneidade, serenidade e coerência das declarações do arguido as mesmas são, assim, consistentes com a prova documental, designadamente com o referido auto de denúncia, mas também com o relatório de episódio de urgência de fls. 59 e ss., donde resulta assistência médica prestada ao arguido, ao início da tarde desse mesmo dia, por “agressão”, com dor de grau 4 na escala de 0-10, apresentando ligeira escoriação retroarticular esquerda mas referindo traumas, com ligeira dor, noutras zonas do corpo (peito, costa, pescoço, região occipital). A assistente, por sua vez, a propósito do episódio das agressões, prestou declarações que não se nos afiguraram espontâneas e fluidas, num relato excessivamente marcado por pormenores laterais, contrastando com uma descrição rápida e repetitiva dos concretos factos sob julgamento, e pela verbalização constante de um intenso constrangimento com a situação e as expressões proferidas que - sem que se ponha, obviamente, em causa os padrões de educação e moralidade da assistente – se nos afigurou pouco espontâneo e desmesurado face à gravidade objectiva da situação, à idade da assistente e ao meio social em que se insere. A descrição feita pela própria assistente, de que se dirigiu à loja apenas para chamar o arguido “à razão” por força do telefonema ocorrido alguns dias antes, de que perante a recusa deste em falar consigo não saiu da loja e pediu ao arguido o número de telefone do seu irmão para que este “repreendesse” o arguido e de que, estando este a agarrar no braço da assistente para a fazer sair da loja, a mesma se agarrou à ombreira da porta para não cair, não é consentâneo com as regras da lógica e experiência comum, com os padrões de normalidade da actuação humana e, mais uma vez, não concluímos que as características pessoais da assistente justificassem tais desvios aos padrões de normalidade e experiência comum. De facto, se a assistente ficara, como disse, tão ofendida e chocada com as expressões e a agressividade do arguido no telefonema, e tendo perdido o interesse no negócio de arrendamento da loja, expectável seria que, não pertencendo o mesmo ao grupo das suas relações sociais, de amizade ou profissionais, evitasse simplesmente qualquer novo contacto com o mesmo. Se entendesse, apresentaria queixa por tais factos, procedendo, como acabou por fazer, judicialmente por eles. Não se afigura verosímil é que, perante tal dinâmica de acontecimentos, propiciasse novos contactos com o arguido, na loja deste, fazendo-se acompanhar apenas da sua filha, com cerca de 20 anos, a fim de chamar o arguido “à razão” e menos ainda que, sendo confrontada, como referiu, com nova atitude agressiva e de oposição do arguido, agora presencialmente e estando este acompanhado de outro indivíduo, a assistente mantivesse firme esse propósito de “repreender” o arguido, exigindo que este lhe desse o número do irmão, para que a assistente pudesse falar com ele sobre o sucedido (não já sobre a loja na qual não tinha interesse). Toda a actuação da assistente é, assim, mais conforme à versão do arguido de que a assistente se lhe apresentou exaltada, tirando satisfações, desforço, do facto de o arguido lhe ter desligado o telefone quando falavam sobre a questão do arrendamento. A dinâmica de movimento relatada pela assistente, de saída da loja, também não é consentânea com o descrito pela mesma, já que se esta estava a ser conduzida, pela força, pelo arguido, ao exterior da loja, não se vê por que razão se agarraria à ombreira da porta, contrariando o movimento feito pelo arguido, potenciando, assim, com a força exercida em sentido contrário, a possibilidade de se magoar. Tal movimento é, mais uma vez, mais adequado à versão do arguido de que a assistente teimava em não sair da loja e forçava o contacto com o arguido, que a conduzia, sem agarrar com força e sem “arrastar”, ao exterior. Além do que já referimos a propósito das declarações do arguido e da postura do mesmo, por um lado, e das declarações da assistente, por outro, além da relevância do assunto que os “dividia”, não ficou o Tribunal convencido da versão apresentada pela assistente de que, após breve troca de palavras, o arguido, na via pública, à luz do dia e perante várias pessoas, agredisse com a brutalidade descrita a assistente, designadamente com pontapés, inclusive estando a mesma no chão, e que, além disso, nenhuma das pessoas presentes se aproximasse, na altura, em auxílio da assistente (acompanhada, inicialmente, apenas pela sua filha) e se dispusesse, mais tarde, a testemunhar as agressões. A passividade dos presentes é, mais uma vez - de acordo com as regras da lógica e da experiência comum acerca do comportamento do cidadão comum colocado em tais circunstâncias - mais consentânea com a situação de muito menor gravidade e intensidade relatada pelo arguido e estando a assistente, acompanhada da sua filha, a dirigir-se, de forma agressiva, ao arguido, e não o contrário. Continuando, não se revelou igualmente credível o relato da assistente de que o arguido continuou as agressões mesmo na presença do seu filho, que entretanto chegara em auxílio e agarrara o arguido, continuando o arguido a investir contra a assistente, numa altura em que estava em clara inferioridade física e numérica. Aliás, não colheu qualquer credibilidade junto do Tribunal a forma inopinada e fortuita como a assistente quis fazer crer que o seu filho se apresentou no local, já que a mesma relatou, de modo pouco lógico e coerente, que se encontrava a ser agredida pelo arguido quando ouviu o barulho da mota do seu filho a aproximar-se e, como tal, se abeirou da estrada, gritou e fez sinal ao mesmo para que parasse, continuando, depois, a ser agredida pelo arguido, até que o seu filho conseguiu fazer cessar as agressões. A este propósito, M, o filho da assistente, confirmou que circulava de mota e viu a mãe na beira da estrada a fazer sinal para que parasse. De modo pouco consentâneo com o carácter fortuito dessa chegada e com a aflição da assistente – que tornavam expectável que parasse a mota logo ali, mesmo que em cima do passeio - afirmou que continuou a circular até estacionar a cerca de 150 metros do local, aproximando-se depois a pé. Esta testemunha descreveu, inicialmente, a situação de modo vago e genérico, referindo-se a empurrões, chapadas, insultos e, quando instado a pormenorizar, disse que sabia que “tinha havido chapadas”, que estavam ambos “agarrados” e “envolvidos”, remetendo para um confronto mútuo e recíproco, e que até viu a mãe desferir uma chapada no arguido, não tendo visto o mesmo desferir pontapés, descrevendo, desta feita, um quadro substancialmente diferente do apresentado pela sua mãe e irmã. Só durante a inquirição pela Ilustre advogada da assistente a testemunha conformou o discurso e referiu que a mãe tentava unicamente defender-se dos ataques do arguido. Embora a assistente e os dois filhos tenham referido diversas tentativas de chamada da GNR ao local, afirmaram ora que ninguém atendeu, que não telefonaram porque outro deles iria chamar, ora que não tinham “saldo” nos respectivos telemóveis, sendo certo que, como é do conhecimento do cidadão médio, a chamada para o número de emergência não exige qualquer “saldo”. De forma pouco convincente, e em contradição com o descrito pela testemunha M, a assistente e a testemunha Andreia referiram que a assistente erguera o braço para desferir uma chapada no arguido, não sabendo precisar se o chegou a atingir, o que, pelo menos no caso da assistente, tratando-se de actuação deliberada, não é minimamente crível que não se recordasse, sendo que, de todo o modo, negou peremptoriamente que o arguido tivesse ficado ferido, o que resulta contrariado pelo relatório de episódio de urgência a que já fizemos referência. A testemunha Andreia, depois de se referir às circunstâncias em que se deslocou à loja do arguido, acompanhando a sua mãe, afirmou, secundando a versão desta - que, pelos motivos enunciados supra, não se nos afigurou credível - que o arguido desferiu pontapés e empurrões até a sua mãe cair e mais pontapés depois de esta se encontrar no chão, fazendo-o porque não conseguia que a mesma saísse da loja. O seu depoimento afigurou-se calmo mas hesitante, com períodos de silêncio que denotaram pouca espontaneidade, utilizando frequentemente as expressões “acho” e “penso”, acabando por dizer que tinha a certeza quando expressamente perguntada sobre se tinha dúvidas acerca do sucedido. Por fim, apenas quando expressamente perguntada a testemunha confirmou ter o arguido proferido a expressão “filha da puta”, dirigindo-se à sua mãe. À excepção das expressões proferidas aquando da chamada telefónica, a assistente não descreveu espontaneamente insultos que o arguido lhe tivesse dirigido, referindo-se, quando especificamente perguntada, a tais insultos, ocorridos na situação ocorrida junto da loja, de modo genérico e pouco assertivo. Já a testemunha M afirmou ter ouvido insultos, provindos do arguido, designadamente “puta” e “vaca de merda”, quando se aproximava do local. Além das imprecisões nas declarações da assistente e depoimentos das testemunhas referidas, adensando as dúvidas acerca da real dinâmica dos factos, as testemunhas indicadas pela defesa e mesmo a inquirida ao abrigo do art. 340º, CPP, prestaram depoimento revelando conhecimento restrito, é certo, sobre o sucedido, mas deram conta de uma atitude especialmente exaltada por parte da assistente, confrontando o arguido, e procurando atingi-lo ou chegando mesmo a fazê-lo, em contradição com a dinâmica genericamente descrita pela assistente e pelos seus filhos e pela condição de vítima que reservaram àquela. CA, que trabalha em loja situada em frente à loja do arguido, do outro lado da estrada, prestou depoimento claro e descomprometido, afirmando ter ouvido gritos, estando três pessoas em torno do arguido, tendo observado que o mesmo estava a ser empurrado. Embora não tenha logrado precisar o que diziam as pessoas e os pormenores do que faziam – uma vez que se encontrava do outro lado da estrada e não se aproximou porque viu um casal da loja ao lado aproximar-se - foi assertiva ao descrever a situação como estando o arguido a ser abordado por três pessoas, sendo a senhora, mais velha, aquela que se apresentava mais exaltada e permanecendo o arguido numa posição passiva e de clara inferioridade. A testemunha AM, além da relação próxima com o arguido (namorada do irmão), prestou depoimento marcado por algum nervosismo. Contudo, referiu ter visto, igualmente do outro lado da estrada, o arguido ser agredido com empurrões, pontapés e com as mãos, estando perante o arguido duas mulheres e um homem, com um capacete na mão. Esclareceu, de modo coerente e espontâneo, a razão de não se ter aproximado na altura, embora tivesse percebido que se tratava do irmão do namorado. Totalmente desinteressado do desfecho dos autos se revelou o depoimento da testemunha César, que cultivou amizade com o arguido apenas após os factos, uma vez que, estando presente, assistiu, ainda que parcialmente, ao sucedido, se aproximou do arguido e lhe ofereceu ajuda. Esta testemunha relatou, de modo objectivo e claro, as circunstâncias em que, estando do lado oposto, viu que, junto à loja do arguido, este era abordado e batido por uma mulher e uma jovem, até ter chegado um jovem, rapaz, que agarrou o arguido, tendo acalmado a situação e as três pessoas que abordaram o arguido deixado o local, sendo que só nesta altura a testemunha se aproximou e oferecendo ajuda, estando o arguido a chorar e apresentando um pequeno corte no pescoço. Já NF, inquirido ao abrigo do art. 340º, CPP, prestou depoimento fluido mas marcado por alguma falta de memória para o sucedido e pela circunstância de não ter assistido ao início da contenda. Contudo, afirmou, clara e firmemente, que, não tendo presenciado agressões, apenas viu o arguido com ferida na cara, não tendo visto mais ninguém ferido ou caído no chão e estando a senhora mais velha que se confrontava com o arguido com a atitude mais agressiva e exaltada. A assistente apresentava, inequivocamente, no dia dos factos, à tarde, as lesões descritas em 7. e 8., conforme resulta do relatório do episódio de urgência de fls. 120 e ss., e documentam as fotografias de fls. 70 e ss., lesões que tiveram para a assistente as consequências descritas no relatório médico-legal de fls. 181 e ss. e, como ali se refere, terão resultado de traumatismo de natureza contundente. Contudo, de tais elementos clínicos não podemos extrair qualquer conclusão acerca da concreta origem das lesões, já que, face à demais prova produzida, como referimos, não ficou demonstrado que decorressem directamente da actuação do arguido, mas apenas que surgiram na sequência do confronto físico descrito, ocorrido em moldes não concretamente determinados, já que o traumatismo de natureza contundente pode ocorrer na sequência de agressão seguida de retorsão, de agressões recíprocas ou de agressão e respectivos movimentos de defesa, não sendo as lesões incompatíveis, em termos de gravidade e localização, com o quadro descrito pelo arguido. Se é certo que não podemos extrair qualquer conclusão do comportamento processual do arguido e da assistente, por si só, não podemos igualmente desconsiderar a circunstância de que enquanto o arguido se deslocou logo após os factos ao Centro de Saúde e apresentou queixa nesse mesmo dia, ao final da tarde, na GNR, indicando a matrícula do veículo onde avistou a assistente abandonar o local, a assistente foi ao final da tarde ao Centro de Saúde e apresentou queixa contra o arguido apenas cerca de dois meses depois, na sequência do interrogatório da assistente e dos seus filhos como arguidos, em virtude da queixa apresentada pelo arguido, não se afigurando plausível que, tendo o arguido sido o único agressor, fosse colher a matrícula do veículo e, logo de seguida, apresentar a dita queixa, sem que a assistente o tivesse feito, chamando a atenção das autoridades para a ocorrência da qual não tinham tido, até então, conhecimento. Da prova assim produzida e valorada em audiência de julgamento resultou, como referimos, com segurança, apenas aquilo que se colheu de seguro do conjunto dessa e que se mostra vertido em 1. a 6., sendo que, no mais, a prova revelou-se contraditória e manifestamente frágil e insuficiente para considerar demonstrados os factos imputados ao arguido nas acusações pública e particular. De todo o modo, considerando o grau de certeza exigível em processo penal e o contexto de desentendimento e conflito gerado, sempre a prova, eivada das incoerências supra descritas, teria que se considerar apta a criar ao Tribunal dúvida objectiva e séria quanto à prática efectiva, por parte do arguido, dos factos nos termos em que vinha acusado. De facto, perante um non liquet probatório, quando o Tribunal se depara com a dúvida insanável, razoável e objectivável, sobre factos determinantes para a decisão da causa, o princípio in dubio pro reo, constitucionalmente plasmado, enquanto emanação e corolário da garantia constitucional da presunção de inocência, determina que a valoração da prova seja feita em benefício do arguido. Com efeito, a materialização de tal princípio, dirigido à apreciação dos factos objeto do processo penal, implica, desde logo, que o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram um ilícito criminal cabe a quem acusa e, por outro lado, que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal deve decidir a favor do arguido. Em suma, porque a versão da acusação não resultou corroborada, de modo claro e eficiente, pela prova produzida, e das declarações do arguido, conjugadas com a restante prova, mais não resultou senão o que vem descrito em 1. a 6., impõe-se, face ao que ficou dito, considerar os demais factos imputados ao arguido como não provados. Em consequência, foram igualmente dados como não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo e à consciência da ilicitude, bem como ao nexo das lesões da assistente com a actuação do arguido e não provadas, igualmente, as consequências pessoais alegadas no pedido cível que se afiguravam, aliás, desconformes com a gravidade objectiva da factualidade imputada e sempre requereriam, pela intensidade alegada, uma prova circunstanciada e não meras considerações de carácter vago e genérico. Sobre o descrito em 34., não foi produzida qualquer prova. Nos termos e com os fundamentos supra expostos se deu a matéria de facto provada e não provada, expurgada daquilo que se nos afigurou conclusivo, irrelevante, repetitivo ou contendo conceitos de Direito.” 3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar respeita à impugnação da matéria de facto. Na verdade, embora a recorrente conclua com um pedido de condenação - em pena, pela prática do crime, e em indemnização por, no seu entender, o pedido cível se apresentar como fundado ainda que se não condene o arguido pelo crime -, a impugnação em matéria de direito surge, em ambos os casos, enunciada no recurso sempre na estrita e mera decorrência da procedência do recurso em matéria de facto. A improcedência do recurso da decisão de facto ditará a desnecessidade de apreciação de qualquer outra questão, pois o reconhecimento da responsabilidade criminal exigiria uma alteração na matéria de facto, assim sucedendo também com a responsabilidade civil que não dispensaria a demonstração de um dano como resultado da conduta do arguido. A recorrente pretende, pois, ver alterada a decisão de facto da sentença, insurgindo-se contra o juízo de não provado formado relativamente aos factos considerados como tal. É o que ainda se consegue retirar do recurso, embora não se proceda ali a uma clara e concreta especificação dos “pontos de facto”. Na verdade, atendendo a que a presente impugnação se pretende processar por via do recurso amplo da matéria de facto – uma vez que a recorrente não se limita a pedir a análise do texto da sentença, peticionando a sindicância deste por referência a provas gravadas e a provas materializadas no processo – cumpria-lhe cumprir os ónus de especificação impostos pelo art. 412º, nº 3 do CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto na sentença pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada (interessa agora o erro notório na apreciação da prova), e por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP. O sujeito processual que discorda da “sentença de facto” e dela recorre pode optar pela invocação ou de um erro notório de facto, que é o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida ou de um erro não notório (de facto) que a sentença, por si só, não demonstre. No primeiro caso, a discordância deve traduzir-se na invocação de um vício da sentença e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de se socorrer de provas produzidas ou examinadas em audiência. Mas quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (cf. AFJ nº 3/2012). O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º nº 3, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto. Mais do que de uma eventual penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma verdadeira impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso. No presente caso, e independentemente do cumprimento rigoroso dos ónus de especificação, é ainda possível, apesar de tudo, perceber o sentido e conferir utilidade ao recurso da assistente. Recorda-se que erro notório na apreciação da prova teria de ser um erro evidente, facilmente detectado, resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. O erro notório consiste em considerar provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74). Da análise do texto da sentença constata-se facilmente que todos os enunciados nela descritos como “factos provados” resultam da leitura das provas que ali se referem como tendo sido produzidas ou examinadas em julgamento. Estas provas mostram-se avaliadas correctamente segundo um princípio da livre apreciação (art. 127º do CPP). A matéria de facto provada (a sua demonstração) encontra-se nitidamente explicada na sentença, ou seja, do texto da decisão retira-se, com toda a facilidade, como chegou o tribunal à formação da convicção de “provado” relativamente a todos os factos considerados como tal. De referir até que este exame crítico da prova constitui um bom exemplo de como bem motivar. O rigor e a análise detalhada de cada uma das provas e, depois, de todas elas no seu conjunto é tão evidente que dispensa maiores explicações. Basta ler. Assim, resulta meridiano do exame crítico das provas que a prova dos factos relativos ao desenrolar de todo o episódio de vida em apreciação, que o tribunal revela, na sentença, ter devidamente apreendido, insiste-se, consistiu essencialmente (mas não exclusivamente e também nisso o tribunal atentou) nas declarações do arguido e da assistente. O sentido dessas declarações foi antinómico, tendo arguido e assistente apresentado versões opostas do desenrolar do episódio de vida no que respeita a factos essenciais. Desta prova, as declarações do arguido apresentaram-se ao tribunal como mais sérias e credíveis, por razões que a sentença também explicita, por contraposição às declarações da ofendida, sendo também ali explicada a razão porque mereceram estas menor credibilidade. Sendo certo que, abstractamente, nada impediria que a prova por declarações da vítima pudesse ter conduzido à condenação, mesmo que desacompanhada de prova corroborante e em sentido oposto à versão do arguido, para que assim sucedesse o tribunal teria de explicar - de ter conseguido explicar - por que razão a versão da assistente se teria apresentado em julgamento como a mais verosímil. Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125 do CPP) e inexiste, in casu, proibição legal que impeça que a “prova da culpa” assente no depoimento de vítima. Mas daqui não resulta que a vítima beneficie de algum estatuto especial que se repercuta na maior credibilidade das suas declarações. Assim como as declarações do arguido não se apresentam ao tribunal como “suspeitas”, apenas por serem declarações do acusado. No confronto entre prova oral de sinal contrário – declarações de arguido versus as declarações de vítima, como sucedia no caso e quanto a factos essenciais -, o tribunal, em caso de condenação, teria de explicara a maior força do depoimento de vítima no confronto da prova antagónica. E esta explicação teria de ser duplamente acrescida, na medida em que, por um lado, à semelhança do que sucede com o arguido, também a vítima pode ter um interesse particular no desfecho do processo e, pelo outro, por força do princípio do in dubio pro reo o ónus da prova está sempre do lado do acusador. Foi isso que o tribunal não conseguiu fazer pois as declarações da assistente e a versão que apresentou, no confronto com as declarações do arguido, não adquiriram a consistência necessária e suficiente para “condenar”. A justificação encontra-se na sentença, sendo desnecessário, fastidioso até, repetir por outras palavras o que ali se explicou tão bem. Mas o presente recurso não visa apenas o exame do texto da sentença, como se disse. A recorrente socorre-se das provas para procurar evidenciar o erro de julgamento. Também aqui a sua pretensão será de desatender. Na verdade, argumenta socorrendo-se de provas produzidas, não em julgamento, mas em inquérito. Após proceder, na motivação do recurso, à análise comparada das declarações do arguido (que pretende desacreditar) versus declarações da assistente (cuja credibilidade pretende ver reconhecida), faz apelo a prova produzida na fase de inquérito, com insistência nas declarações (anteriores) do arguido. Assim, conclui: “Em virtude de não atender à prova feita neste processo na sua globalidade, ou seja, desde o início do processo até à prolação da sentença, revela-se que o Tribunal a quo não atendeu devidamente ao princípio do inquisitório, consagrada no artigo 411.º do Código de Processo Civil e com correspondência processual penal no artigo 340.º do Código de Processo Penal. Motivando o Tribunal a quo a sua decisão de direito por aplicação dos princípios do in dúbio pro reo e da presunção inocência, o que lhe é lícito, deveria ainda assim esse Tribunal ter pugnado pela produção e avaliação de toda a prova que lhe era lícito conhecer, o que não fez. Por exemplo, no tocante às já referidas discrepâncias evidenciadas pelas declarações do arguido em sede de inquérito, deveria o Tribunal ao abrigo do princípio do inquisitório e do princípio da imediação, ter determinado a reprodução ou a leitura dessas declarações, nos termos do n.º 1 do artigo 355.º e da alínea b) do n.º 3 do artigo 356.º do Código de Processo Penal. Pelo exposto, importa modificar a decisão obtida em primeira instância por uma outra que condene o arguido nestes autos pela prática dos factos de que vinha acusado.” É evidente que o recurso está também, nesta parte, condenado ao insucesso. Na verdade, o art. 355º, nº 1, do CPP, sob a epígrafe “Proibição de valoração de provas”, determina que, para o efeito de formação da convicção do tribunal, não valem em julgamento quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Depois, o nº2, ressalva as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos dos artigos seguintes. Nos arts 356º e 357º do CPP disciplina-se, depois, “a leitura permitida de autos e declarações”, dizendo respeito ao arguido o art. 357º. A regra é, pois, a de que, para o efeito de formação da convicção do tribunal, valem as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Em julgamento, rege o princípio do contraditório (art. 32º, nº5 da CRP), que visa fazer preceder a decisão judicial da audição dos sujeitos processuais que nela forem interessados, estando também os meios de prova apresentados no decurso da audiência submetidos ao contraditório, mesmo quando tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal (art. 327º do CPP). Assim, todas as provas que hão-de ser objecto de apreciação têm de ser discutidas em contraditório na audiência de julgamento. Acusação e defesa oferecem as suas provas, controlam as provas contra si oferecidas e discutem o valor e resultado de todas elas. Como refere Damião da Cunha (O regime processual de leitura de declarações, RPCC, ano 7, 3º, p. 442), “o CPP, como não poderia deixar de ser num processo de estrutura acusatória, parte do princípio de que o lugar natural, electivo, para o debate sobre a produção e a valoração da prova é a audiência de julgamento. As excepções à produção de prova em audiência de julgamento (quando estejam em causa declarações de intervenientes processuais) são, pois, pontuais e limitadas e, além disso, reguladas por uma ideia de concordância prática com os princípios fundamentais da prova (o contraditório e a oralidade são, tanto quanto possíveis, salvaguardados) ”. Acompanhamo-lo também quando afirma que “estando em causa declarações de sujeitos processuais (ou meros participantes processuais) – no fundo a forma de actuação (o tipo de actos processuais) mais importante no processo penal -, tais princípios terão de vigorar na íntegra”. O que significa que “toda a derrogação a qualquer um destes princípios só poderá vigorar como excepção, justificada por um determinado circunstancialismo (no qual deva intervir um outro valor – princípio conflituante) e regulada segundo um princípio de concordância prática” (loc. cit. p. 406) O princípio do contraditório (art. 327º do CPP) tem tutela constitucional expressa para o julgamento (art. 32º, nº5 CRP). Os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao contraditório e a contraditoriedade abrange tanto a produção como a valoração de todas as provas. Acusação e defesa podem oferecer as suas provas, controlar as provas contra si oferecidas e discutir o valor e o resultado de todas elas. As provas que hão-de ser objecto de apreciação têm, assim, de ser discutidas no contraditório da audiência de julgamento e só estas valem para a decisão (art. 355º do CPP). Nenhum reparo pode merecer a sentença ao ter omitido, na apreciação da prova, declarações prestadas em inquérito, e ao ter-se concentrado na análise das provas produzidas em audiência. O art. 340º do CPP consagra o princípio da investigação, e o nº 1 estipula que “o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa”. Recai realmente sobre o julgador o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento, não sendo a actividade investigatória do tribunal limitada pela contribuição das partes. Assim, quando se lhe afigure necessário, o tribunal não está impedido de, oficiosamente e uma vez presente a previsão dos arts 356º ou 357º do CPP, aceder a declarações anteriormente prestadas no inquérito, trazendo-as ao contraditório do julgamento por essa via. No caso presente, tal não se afigurou, porém, necessário ao tribunal, e não resulta da sentença que devesse ter sido de modo diferente. A regra é sempre a do art. 355º do CPP e não se retira do julgamento e da sentença que o elenco das provas devesse ter sido alargado oficiosamente, nos termos agora pretendido pela recorrente. Mas se esta o entendeu diferentemente, poderia (e deveria) ter agido em conformidade. A assistente nunca esteve impedida de reagir ao encerramento da audiência antes de se proceder ali, a requerimento seu, à leitura de declarações anteriores ou ao eventual confronto do arguido ou testemunhas com as declarações prestadas em inquérito, no caso de ocorrência da previsão das normas que o permitem. O que a assistente não pode é agora, em recurso, impugnar a matéria de facto com recurso a provas de inquérito deixadas fora do contraditório do julgamento. A sua inactividade processual em julgamento, esperando pelo recurso para levantar questões que ali devia ter suscitado, preclude o seu conhecimento, uma vez que não é detectável violação ao princípio da investigação. Refere Damião da Cunha (O regime processual de leitura de declarações, RPCC, ano 7, 3º, p. 442) que “o CPP, como não poderia deixar de ser num processo de estrutura acusatória, parte do princípio de que o lugar natural, electivo, para o debate sobre a produção e a valoração da prova é a audiência de julgamento. As excepções à produção de prova em audiência de julgamento (quando estejam em causa declarações de intervenientes processuais) são, pois, pontuais e limitadas e, além disso, reguladas por uma ideia de concordância prática com os princípios fundamentais da prova (o contraditório e a oralidade são, tanto quanto possíveis, salvaguardados) ”. Acompanhamo-lo também quando afirma que “estando em causa declarações de sujeitos processuais (ou meros participantes processuais) – no fundo a forma de actuação (o tipo de actos processuais) mais importante no processo penal -, tais princípios terão de vigorar na íntegra”. O que significa que “toda a derrogação a qualquer um destes princípios só poderá vigorar como excepção, justificada por um determinado circunstancialismo (no qual deva intervir um outro valor – princípio conflituante) e regulada segundo um princípio de concordância prática” (loc. cit. p. 406) No caso presente, insiste-se, não se vislumbra que o tribunal devesse ter oficiosamente agido do modo como a recorrente pretende. E tendo-lhe estado assegurada a possibilidade de intervir no contraditório da audiência do modo que agora pretende, e não o tendo feito, apresenta-se como ilegal o acesso às provas do inquérito, especificadas em recurso. Assim sendo, e na parte restante, falece a argumentação desenvolvida. Para concluir, reitera-se que os recursos são remédios jurídicos, que visam detectar e corrigir erros de julgamento. E constatando-se que não são detectáveis desconformidades entre a prova produzida e a percepção que dela foi feita, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente, na sentença, as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de um modo sempre racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão da matéria de facto e a sentença 4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em: Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela recorrente que se fixam em 4UC (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/5 e Tab. III RCP). Évora, 10.05.2016 Ana Maria Barata de Brito Maria Leonor Vasconcelos Esteves __________________________________________________ [1] - Sumário da relatora |