Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
82/14.8 GGBJA.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: ARMA PROIBIDA
Data do Acordão: 04/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Decisão: DEFERIDA
Sumário:
I – Na semântica legal usada para a caracterização de um instrumento como arma de agressão, a palavra “agressão” apenas é suscetível de designar ofensa à integridade física de pessoas e não de animais.

II - Do que flui da consignação como provado que o bastão se destina unicamente a agredir e causar ferimentos é, desde logo, facto notoriamente errado que afronta as mais elementares regras da experiência, não só por desprezar o facto notório de que é construído com a finalidade de vergastar animais, o que não pode considerar-se finalidade agressiva no significado legal da palavra, como também por desprezar a sua finalidade decorativa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:

I

[i] No âmbito do processo especial sumário, com intervenção do Tribunal Singular, nº 82/14.8 GGBJA, da Comarca de Beja, Instância Local de Beja, Secção Criminal, J1, foi submetido a julgamento, mediante acusação do Digno Magistrado do Ministério Público, o arguido J.---, e por sentença proferida e depositada em 23.07.2014 [cfr. fls.55 a 57], foi o mesmo condenado pela prática, como autor material, de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artigos 3º, nº 2, alínea g), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006 de 23.02, na redacção conferida pela Lei nº 12/2011, de 27.10, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos).

[ii] Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, formulando pedido no sentido da sua absolvição, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:
1) A caracterização de um objecto como arma tem a ver com as suas características e com a utilização ou afectação normal.

2) O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir para o definir como arma proibida.

3) O objecto em questão (bastão artesanal ou chicote, a que vulgarmente se chama picha de boi) tem uma funcionalidade específica. Foi originariamente criado para vergastar o lombo dos animais na condução dos mesmos pelos campos. E ainda hoje é utilizado nas quintas com cavalos e nas escolas equestres. Sendo igualmente utilizado como objecto de decoração.

4) O arguido justificou a sua posse por razões decorativas. Pretendia colocá-lo numa parede juntamente com outros objectos utilizados na agricultura. Como se encontrava em mau estado de conservação pretendia levá-lo a um sapateiro para que este o restaurasse.

5) Nunca o pretendeu utilizar como arma para fazer face a uma ameaça nem o local onde o mesmo se encontrava (na parte inferior da bagageira) permitia tal utilização.

6) O facto de o arguido ter encontrado à venda, numa feira (aberta ao público e vigiada pelas autoridades), objecto idêntico gerou no arguido a convicção de que não se tratava de arma proibida.

7) Não pode ser considerado arma proibida um objecto que, podendo embora ser utilizado para praticar uma agressão, não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal.

8) Foram violados os artigos 3º, nº 2, alínea g), 4º, nº 1 e 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 12/2011, de 27 de Abril.

Nestes termos e nos que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser o arguido absolvido do crime de detenção de arma proibida, como é de JUSTIÇA.”.

[iii] Admitido o recurso [cfr. fls. 67 dos autos], e notificados os devidos sujeitos processuais, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou articulado de resposta ao recurso interposto, pugnando pela respectiva improcedência, concluindo nos seguintes termos:

1 - O arguido foi condenado pela prática de 1 (um) crime de Detenção de Arma Proibida, p. e p. pelos arts. 3º, nº 2, al. g), 4º, n.º 1 e 86º, n.º 1, al. d) do R.J.A.M. (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02 com as alterações que lhe foram introduzidas posteriormente), na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o total de € 520,00 (quinhentos e vinte euros).

2 – Veio o arguido recorrer da sentença condenatória, por considerar que a caracterização de um objecto como arma não pode ter a ver com as suas características e utilização ou afectação normal, nem com o uso indevido em relação à finalidade para que foi fabricado. Justificou a sua posse e o propósito com que o detinha, estando convicto de que se tratava de um objecto cuja detenção é legalmente permitida, em virtude de já ter visto à venda, em feiras, outros de idênticas características.

3 - O que é decisivo para a verificação do crime p. e p. pelo art. 86º, n.º 1, al. d) do ´R.J.A.M. é que da matéria de facto provada resulte demonstrada que a posse da “arma” pelo arguido não é legítima, que essa posse não está justificada face ao uso que normalmente é dado a tal “arma”, pelo arguido ou por qualquer outra pessoa.

4 - Da matéria de facto provada resulta que o arguido transportava o referido chicote ou “picha de bói”, escondido, no interior da bagageira do veículo automóvel (táxi) que diariamente conduz no exercício da sua actividade profissional, bem sabendo que não podia ter em seu poder um objecto com aquelas características, que se destina a ser utilizado como arma de agressão.

5 - Independentemente da alegação que o arguido apresentou (em boa verdade, destituída de credibilidade), o certo é que a detenção de um chicote ou “picha de bói“, cujas características o arguido bem conhecia, nas circunstâncias em que o mesmo o detinha, conjugada com as regras da experiência comum e aliado ao facto do mesmo não exercer qualquer actividade profissional relacionada com o seu uso, permitem-nos concluir, sem qualquer margem de hesitação, que se tratava de um objecto que o arguido transportava consigo com o intuito exclusivo de o usar como meio de agressão, caso fosse necessário (sabendo nós da perigosidade inerente ao exercício da profissão de taxista).

6 – Se esta finalidade é inequívoca, então está mais que não justificada a sua posse, pelo que o arguido incorreu, sem margem para dúvida, na prática do crime de Detenção de Arma Proibida do art. 86º, n.º 1, al. d) do R.J.A.M.

7 - Pelo exposto, a sentença recorrida deverá ser integralmente mantida e o recurso interposto julgado improcedente.

Assim decidindo, farão V. Exªs a costumada Justiça!”.

[iv] Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Évora, aqui, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando, em síntese, que “(…) tal objecto é (…) instrumento utilizado na condução de animais e também como objecto decorativo, pelo que não pode ser considerado como algo que teria sido construído “exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão (…)”, pelo que não integra a previsão do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea d) do Regime Jurídico da Armas Proibidas.

Em consequência, conclui que o recurso merece provimento.

[v] Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta por banda do recorrente.

[vi] Efectuado o exame preliminar, entendeu-se ser de proferir decisão sumária [cfr. fls. 101 a 104 dos presentes autos] que é do seguinte teor, na parte relevante:

“(…)
Ressalvado o muito e devido respeito por diferente entendimento, nomeadamente o expresso pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta instância, que não vislumbrou qualquer obstáculo à procedência do recurso, não podemos deixar de considerar que o resultado pretendido não pode ser alcançado.

Senão vejamos.
Consta da decisão recorrida a seguinte factualidade provada, no que importa ao objecto do recurso:

No dia 6 de Julho de 2014, cerca das 4.55horas, na Rua …, na Cabeça Gorda, Beja o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, táxi, com a matrícula ..-IF-..

No interior da viatura o arguido trazia consigo um bastão artesanal, com o comprimento de um metro.

O referido bastão tem designação de “picha de boi” e destina-se unicamente a ser usado para agredir e provocar ferimentos.

O arguido conhecia as características do bastão e sabia que lhe era proibida a sua detenção, mas apesar disso tinha-o consigo.

Actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável da sua conduta.”.

Ora, esta factualidade integra o segmento normativo do artigo 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006 quando se refere a “engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão”, porque efectivamente se deu como provado esse facto objectivo e a correspondente factualidade subjectiva. Ou seja, os factos provados integram, sem qualquer dúvida, a prática do crime por que o arguido foi condenado na 1ª instância.

O arguido pretende, porém, que estaria em causa o segmento normativo do mesmo preceito que se refere a “engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse” e que, no caso tal previsão, não estaria preenchida a tipicidade do crime de detenção de arma proibida porque o objecto tem aplicação definida e também o arguido justificou a sua posse.

Invoca, pois, factos diferentes dos constantes como provados da decisão recorrida que permitiriam concluir pela inexistência do imputado crime.

Porém, o resultado pretendido, que necessariamente passaria por diferente formulação da factualidade assente, apenas poderia ser obtido mediante impugnação da matéria de facto provada nos termos previstos no artigo 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, pois só assim estaria este Tribunal ad quem habilitado a alterar a factualidade sedimentada na 1ª instância e efectuar nova qualificação, não consentida, no caso, sem tal alteração.

Outra via de eventual obtenção do mesmo resultado (alteração da matéria de facto) seria a invocação dos vícios a que se refere o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, meio recursivo também não usado pelo recorrente. Tratando-se, porém, de matéria do conhecimento oficioso sempre se dirá que não se vislumbra que a sentença recorrida padeça de qualquer deles.

Encontrando-se a matéria de facto provada constante da decisão recorrida definitivamente assente porque o recorrente a não impugnou pela forma legalmente prescrita, e integrando esta a prática do crime por que foi condenado, ao próprio se deve a impossibilidade de este Tribunal reponderar o decidido e de eventualmente acolher a sua pretensão.

Em suma, de tudo o que se deixa exposto, somos, pois, do entendimento que a decisão recorrida não pode ser objecto de censura e o recurso interposto é manifestamente improcedente posto que expressa pretensão que imediatamente se verifica não ser passível de acolhimento por não ter usado do meio recursivo necessário e adequado, o que conduz à sua rejeição, nos termos do disposto no artigo 420º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal. Com efeito, a rejeição por manifesta improcedência, visa as situações em que, face às conclusões da motivação e a letra da lei, o recurso, por razões processuais ou de mérito, está votado ao insucesso, como sucede no presente caso – cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2005, proferido no processo nº 05P2886 e de 06.04.2006, proferido no processo nº 06P1181, ambos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj.
(…)
Decisão
Nestes termos, ao abrigo disposto nos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nºs 1, alínea a) e 3, do Código de Processo Penal, decide-se:

A) – Rejeitar o recurso interposto, dada a sua manifesta improcedência.
B) – Condenar o recorrente no pagamento de 4 (quatro) unidades de conta.
Notifique-se.
(…).”.

[vii] Desta decisão reclamaram para a Conferência o arguido/recorrente e o Exmº Procurador-Geral Adjunto.

» O arguido/recorrente fundamenta a sua reclamação nos seguintes termos:

1. Na douta decisão sumária refere-se que consta da decisão recorrida a seguinte factualidade: "No dia 6 de Julho de 2014, cerca das 4.55horas, na Rua ---, na Cabeça Gorda, Beja o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, táxi, com a matrícula -IF--. No interior da viatura o arguido trazia consigo um bastão artesanal, com o comprimento de um metro. O referido bastão tem designação de "picha de boi" e destina-se unicamente a ser usado para agredir e provocar ferimentos. O arguido conhecia as características do bastão e sabia que lhe era proibida a sua detenção, mas apesar disso tinha-o consigo. Actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável da sua conduta".

2. Com base nesta factualidade, entende a douta decisão sumária que a mesma integra o segmento normativo do artigo 86°, nº 1, alínea d) da Lei nº 5/2006 quando se refere a "engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão".

3. Tendo o arguido invocado que estaria em causa o segmento normativo do mesmo preceito que se refere a "engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse", entende a douta decisão recorrida que a apreciação dessa matéria apenas poderia acontecer mediante impugnação da matéria de facto, pelo que o recurso foi rejeitado.

4. Ora, como resulta das alegações de recurso, tendo havido registo áudio, deveriam ser consignados na ata o início e o termo da gravação de cada depoimento, por força do disposto no artigo 364º, nº 2 do Código de Processo Penal. Só assim seria possível dar cumprimento ao disposto no artigo 412°, nº 4 do Código de Processo Penal. Uma vez que tais elementos não constam na ata, os mesmos foram obtidos através de cópia da gravação junta com as alegações. Quer na parte relativa ao depoimento do arguido quer na relativa ao depoimento da testemunha de acusação, nas alegações foram indicadas as passagens da gravação de ambos os depoimentos.

5. Mas ainda que se entendesse não ter havido impugnação da matéria de facto, com todo o respeito e a mais subida vénia, entende o recorrente que o recurso é admissível e fundado. Com efeito, dizer-se que o objecto em questão se "destina unicamente a ser usado para agredir e provocar ferimentos" é mera conclusão que não tem qualquer fundamento. Ou seja, nesta matéria não podemos sequer entender que estamos a apreciar matéria de facto.

6. Um bastão artesanal ou chicote, constituído por tiras de couro e preso a um cabo, a que vulgarmente se chama "picha de boi" não pode ser tido como arma já que tem uma funcionalidade específica que não aquela que resulta da douta decisão recorrida. Foi originariamente criado para vergastar o lombo dos animais na condução dos mesmos pelos campos. E ainda hoje é utilizado nas quintas com cavalos e nas escolas equestres. Sendo igualmente utilizado como objecto de decoração, podendo ser adquirido em muitas feiras de artesanato. Estes são factos públicos e notórios que não necessitam de ser comprovados. São factos do conhecimento geral. Logo, para que possam ser apreciados, não era necessário que o recorrente impugnasse a matéria de facto.

7. Não pode ser considerada arma proibida um objecto que, podendo embora ser utilizado para praticar uma agressão, não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal. Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Dezembro de 2008 e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28 de Setembro de 2011.

8. Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser admitido o recurso.”.

» O Exmº Procurador-Geral Adjunto fundamenta a sua reclamação nos termos seguintes:

Notificado da douta decisão sumária proferida a fls. 101 e seguintes dos autos supra referenciados e dela discordando, vem o Ministério Público apresentar RECLAMAÇÃO para a Conferência, o que faz ao abrigo do disposto no art. 417º nº 8° do CPP e com os seguintes fundamentos:

Baseou-se a decisão sumária no disposto no art. 417º, nº 6 al. b) do CPP. Ou seja entendeu-se que o recurso deve ser rejeitado.

E, embora não o refira expressamente, parece-nos, que no entendimento de V. Exª., o recurso deveria ser rejeitado nos termos do disposto no art. 420º, nº 1 al. a) do CPP. Ou seja, porque ser manifesta a sua improcedência.

Finalmente esta manifesta improcedência decorreria da circunstância de, integrando a matéria dada como provada "o segmento normativo do art. 86º, nº 1 alínea d) da Lei 5/2006", o arguido não a ter impugnado nos termos do disposto no art. 412° do CPP, acrescendo que, também na opinião de V. Exª., não ocorre qualquer dos vícios a que se refere o art. 410°, nº 2 do CPP que, como bem se refere na decisão sumária, são de conhecimento oficioso deste Venerando Tribunal da Relação.

Ora, salvo o muito e devido respeito por diferente entendimento, para além da decisão sumária não explicitar porque entende não existirem os vícios a que se reporta o art. 410º nº 2 do CPP, parece-nos que, ao contrário, tais vícios efectivamente existem e, por isso mesmo, a decisão da primeira instância deve ser revogada.

Aliás, embora não se reporte expressamente ao mencionado artigo (como também não menciona o art. 412º nºs 3 e 4 do mesmo diploma legal... ) parece-­nos que o Recorrente argumentou por referência à alínea e) do nº 2 desse art. 410º e, agora também noutro registo ( al. b) do nº 2 do art. 410º), também o signatário o fez no seu modesto parecer.

Passaremos seguidamente a explicar porque assim entendemos, impondo-se contudo previamente sublinhar que, como resulta dos autos, o arguido foi condenado por o Tribunal a quo ter considerado que o objecto que lhe foi apreendido era enquadrável na al. g) do nº 2 do art. 3 da "Lei das Armas" que tem o seguinte redacção:

"2. São armas, munições e acessórias da classe A:
( ... )

g) Quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão" (sublinhado nosso)

O ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
"O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão por provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos: trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta à vista aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto provada ou excluindo dela facto essencial. Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta na decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em raciocínios ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram as regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis" (Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, pág. 74)

O erro notório na apreciação da prova inclui "evidentemente as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-á, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum. Todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente, ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada." (in Código de Processo Penal anotado de António Henriques Gaspar e outros, pág, 1359)

Ora, no caso dos autos, a decisão proferida na primeira instância incorreu em erro notório porquanto, depois de considerar assente que o bastão apreendido ao arguido tem a designação de "picha de boi", não podia a seguir dar como provado que tal obiecto "destina-se exclusivamente a ser usado para agredir e provocar ferimentos" porquanto tal conclusão contraria notoriamente a experiência comum".

Com efeito, é da experiência comum que tal bastão (também muitas vezes denominado bengala ou chicote) foi concebido para ser "usado pelos lavradores precisamente para fustigarem os animais. E era usado, e ainda é, nas quintas com cavalos, nas escolas equestres, aqui já não, normalmente, para fustigar os animais." (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/9/2011, cujo sumário foi por nós transcrito a fls. 91)

Aliás, também neste sentido e a propósito de igual objecto já se pronunciou este Venerando Tribunal da Relação de Évora, através de decisão proferida, por unanimidade, a 16/12/2008 e cujo sumário é o seguinte:

"Uma bengala feita de "fibra animal", que se sabe ter sido originariamente criada para vergastar o lombo dos animais na condução dos mesmos pelos campos e ainda como amparo ao caminhar do pastor (tal como a sua homónima de pau ou o cajado), mas a qual, pela curiosidade do material de que é feita e o aspecto que tem, foi sendo também progressivamente erigida como curioso objecto de artesanato característico de algumas zonas sobretudo do interior centro e norte do país continental e até objecto de decoração (independentemente do bom ou mau gosto da mesma, com o qual ninguém tem nada a ver) - o que justifica a respectiva posse -, podendo embora ser utilizada como meio de agressão, não pode ser havida como arma." (in www.dgsi.pt)

Neste douto acórdão ainda se escreveu, com interesse para o caso em apreço, que há que ter um especial cuidado nesta tipificação sob pena de «todo e qualquer objecto se poder transformar em arma. A caracterização de um objecto como arma terá a ver com as suas características e com a utilização ou afectação normal delas, com a idoneidade dessa utilização ou afectação normal como meio de agressão. Mas o uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma. Um cinto, podendo embora ser brandido de forma a com ele se infringirem danos físicos severos, decerto ninguém o considerará uma arma. Mesmo uma navalhinha de bolso, daquelas de descascar maçãs, não é "promovida" a arma por haver a possibilidade de ser utilizada como instrumento ofensivo. E um guarda-chuva, pode ser aproveitado como instrumento de agressão, quiçá mortal, se utilizada a sua ponteira metálica, sem que seguramente ninguém defenda que é uma arma ... arma não é (talvez seja preferível, definir o conceito negativamente, por exclusão) o objecto que, podendo excepcionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão, não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal.

Posto isto, entendemos que uma bengala feita de "picha de boi" que se sabe ter sido originariamente criada para vergastar o lombo dos animais na condução dos mesmos pelos campos e ainda como amparo ao caminhar do pastor (tal como a sua homónima de pau ou o cajado), mas a qual, pela curiosidade do material de que é feita e o aspecto que tem, foi sendo também progressivamente erigida como curioso objecto de artesanato característico de algumas zonas sobretudo do interior centro e norte do país continental e até objecto de decoração (independentemente do bom ou mau gosto da mesma, com o qual ninguém tem nada a ver) - o que justifica a respectiva posse -, podendo embora ser utilizada como meio de agressão, não pode ser havida como arma».

Em conclusão, para a generalidade dos cidadãos é evidente que o bastão referenciado como "picha de boi" (e que, sem querer esgrimir com tal documento, se encontra fotografado a fls.11) não é uma arma, encontrando-se conclusão contrária completamente divorciada da realidade das coisas e, por isso mesmo, constituindo algo não compreensível pelo povo em nome de quem se administra a Justiça.

CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
Porém e como também assinalámos no nosso parecer a fls. 90, a decisão do tribunal a quo também incorre no vício de contradição insanável da fundamentação que se encontra previsto na al. b) do nº 2 do art. 410º do CPP e que é igualmente de conhecimento oficioso.

Com efeito e como já referimos inicialmente, o Mmº Juíz a quo condenou o arguido por entender (ao citar o disposto na al. g) do nº 2 do art. 3 da Lei das Armas) que o bastão que lhe foi apreendido foi construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão.

Porém, ao fundamentar a sua decisão, o Mmº Juíz a quo explicitamente referiu que para o condenar ponderou designadamente o facto de o arguido (cfr. cd anexo): "(...) não ter qualquer profissão relacionada com o gado, logo a utilização de acordo com a sua profissão como taxista , aquele objecto no seu veículo essencialmente visava a sua segurança, ou seja afastar qualquer força ameaçadora que lhe aparecesse caso assim fosse necessário" (sic)

Ou seja, com esta motivação o Mmº Juiz a quo está desde logo e claramente a reconhecer que o bastão serve para a condução de gado, sendo essa a única justificação para referir, negativamente, que a profissão do arguido não está relacionada com o gado iá que o mesmo é taxista.

Acresce ainda que, na mesma motivação, o Mmº Juíz a quo refere também que o arguido trazia o aludido bastão no seu veículo para," essencialmente", assegurar a sua segurança.

Porém e nos termos da lei, o que era necessário concluir para condenar o arguido era que o bastão tinha sido concebido exclusivamente para ser usado como arma de agressão, o que o tribunal a quo fez ao consignar a matéria dada.

NOTA FINAL
Concluindo, entende-se que a decisão do tribunal a quo incorreu nos vícios acima referidos e, por isso mesmo, ao assim não entender e dado que aqueles vícios são de conhecimento oficioso, a decisão sumária parece-nos censurável e, assim sendo, merecedora da presente reclamação.”.

[viii] As reclamações foram admitidas [cfr. fls. 118 destes autos].

[ix] Corridos os vistos legais, foi realizada Conferência.

II
Cumpre apreciar e decidir as reclamações e, sendo ambas ou alguma delas procedente, apreciar e decidir o recurso.

Apreciando a reclamação do arguido/recorrente:

A reclamação apresentada pelo arguido/recorrente assenta, em primeiro lugar, na sua discordância em relação ao segmento da decisão sumária que considerou não ter impugnado a matéria de facto nos termos legalmente prescritos.

Na sua tese apenas poderia dar cumprimento ao disposto no artigo 412º, nº 4, do Código de Processo Penal se na acta se tivesse consignado o início e o termo da gravação de cada depoimento, mesmo assim tendo indicado nas alegações as passagens da gravação dos depoimentos invocados.

Mais alega que, ainda que se entenda não ter havido impugnação de facto, o recurso é admissível e fundado porque dizer-se que o objecto em questão se destina unicamente a ser usado para agredir e provocar ferimentos é mera conclusão que não tem qualquer fundamento (não enquadrando legalmente esta argumentação).

Pugna pela admissão do recurso.

No que respeita à impugnação da matéria de facto e respectivos requisitos constantes do artigo 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal:

O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em segunda instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.

Assim: impõe-se-lhe a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado; impõe-se-lhe a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação por transcrição do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa. Isto é, impõe-se ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado. E, sendo caso, impõe-se-lhe a especificação das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.

No fundo, o que está em causa e se exige quando o recorrente pretende proceder à impugnação ampla da matéria de facto, é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto constante da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Ora, no caso em apreço, o recorrente começa por não indicar qual a factualidade provada cuja impugnação pretende, ou seja, qual deveria ser a decisão de facto em alternativa à que foi tomada pelo Tribunal a quo, omissão que tanto ocorre nas conclusões como no corpo da motivação. Do mesmo modo, omite o recorrente a indicação das concretas provas que imporiam decisão diversa. Isto é, em lado algum daquela peça, o recorrente indica o conteúdo específico dos meios de prova, por declarações e/ou por depoimento, que imporiam diferente decisão, mais exactamente, no tocante às declarações e depoimentos prestados em audiência, não procede à transcrição de tais passagens e, porque assim, também não explícita o motivo ou razão porque tal conteúdo específico do meio de prova imporia outra decisão.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012, publicado no DR, Iª Série de 18.04.2012, é bem especifico no sentido de que a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, impõem decisão diversa da recorrida deve ser efectuada por transcrição do respectivo conteúdo.

E não se vislumbra como a falta de consignação na acta do início e do fim das declarações impediria o recorrente de proceder a tal transcrição, possibilidade que apenas depende da audição dos suportes de gravação, como não se vislumbra que o mesmo facto tivesse impedido o recorrente de dar cumprimento à restante especificação em falta.

Do exposto flui que, como o recorrente não cumpriu cabalmente, quer na motivação, quer nas conclusões, aqueles aludidos ónus de especificação, este Tribunal ad quem não pode conhecer da impugnação alargada da matéria de facto, nem reapreciar a prova gravada, impondo-se, neste ponto, manter o que se consignou na decisão sumária.

O segundo fundamento da reclamação do recorrente, a que não atribui nomen juris será apreciado conjuntamente com a reclamação do Digno Magistrado do Ministério Público.

Apreciando a reclamação do Ministério Público:

A tese do Exmº Procurador-Geral Adjunto, que já havia defendido no seu douto parecer, é no sentido de que, ao contrário do consignado na decisão sumária, a sentença recorrida padece dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável de fundamentação, do conhecimento oficioso, pelo que devia o recurso ter sido apreciado dentro desse poder de conhecimento oficioso, não obstante a falta de alegação do recorrente nesse sentido.

Coincide, neste conspecto, o conhecimento da reclamação e do recurso pelo que passamos a consignar os fundamentos de facto da decisão recorrida.

Constam da sentença recorrida os seguintes factos provados:

No que concerne aos factos dados como provados o Tribunal dá como provados os factos constantes da acusação para os quais se remete”, a saber [introdução nossa, daqueles que são os constantes da acusação, para cabal entendimento]:

No dia 6 de Julho de 2014, cerca das 4.55horas, na Rua…, na Cabeça Gorda, Beja o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, táxi, com a matrícula --IF--.
No interior da viatura o arguido trazia consigo um bastão artesanal, com o comprimento de um metro.

O referido bastão tem designação de “picha de boi” e destina-se unicamente a ser usado para agredir e provocar ferimentos.

O arguido conhecia as características do bastão e sabia que lhe era proibida a sua detenção, mas apesar disso tinha-o consigo.

Actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável da sua conduta.”.

O Tribunal dá ainda como provado as condições económicas do arguido, que o mesmo exerce a profissão de taxista, auferindo uma quantia de 400 a 300 euros, que a esposa é doméstica, que tem duas filhas desempregadas as quais ajuda economicamente, que tem ainda prestações a pagar no montante de 750 euros, que a casa é própria e que tem escolaridade correspondente à 4ª classe.

O Tribunal dá como provado a ausência de antecedentes criminais.”.

Consta da sentença recorrida a seguinte motivação da convicção do Tribunal de primeira instância:

No que concerne à motivação probatória, aos factos objectivos, ou seja, a detenção no dia 6 de Julho, o Tribunal dá como provados tais factos atentas as declarações prestadas pelo arguido as quais admitiram os factos constantes da acusação.

No que concerne aos factos subjectivos, o Tribunal entende que, efectivamente, o arguido conhecia as características do bastão e sabia que era uma arma proibida e que era proibida a sua utilização a sua detenção e mesmo assim … o Tribunal ponderou o facto do mesmo ter o tal objecto no veículo automóvel, na bagageira, o facto de se encontrar escondido, de não ter qualquer profissão relacionada com gado, logo a utilização de acordo com a sua profissão de taxista àquele objecto no seu veículo essencialmente visava a sua segurança, ou seja afastar qualquer força ameaçadora que lhe aparecesse caso assim fosse necessário.

Em face disto e ponderadas as regras de experiência comum não é normal que condutores de veículos detenham esse objecto nos seus veículos, logo, entende o Tribunal que com a detenção o arguido sabia que aquela arma que aquele objecto podia ser uma arma e que certamente o utilizaria como uma arma de agressão caso fosse necessário.

No que concerne às condições económicas, o Tribunal pondera claramente as declarações prestadas pelo arguido, bem como a prova documental constante dos autos.”.

Vejamos:
Como se havia exposto na decisão sumária, dada a impossibilidade de conhecer da impugnação alargada da matéria de facto, a alteração da factualidade assente na primeira instância só poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma.

Impõe-se afirmar que, em comum aos três vícios, o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871 e Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª Edição, pág. 71 a 82.

Alega o Digno reclamante a existência de erro notório na apreciação da prova.

Sabido é que este vício, a que alude a alínea c), do mencionado artigo 410º, nº 2, do citado compêndio legal, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, na ob. e loc. supra citados, constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.”.

Sob este prisma verificamos que na sentença recorrida se consigna que “O referido bastão tem designação de “picha de boi” e destina-se unicamente a ser usado para agredir e provocar ferimentos.

Estando o arguido acusado da prática de um crime de detenção de arma proibida por referência ao segmento normativo do artigo 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006, quando se refere a “engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão” o que interessava apurar e consignar como provado ou não provado era se o bastão em causa consistia em instrumento construído exclusivamente para agredir, o que pode não ter coincidência com o destino exclusivo para agredir.

O bastão designado de “picha de boi” é pela generalidade das pessoas conhecido como objecto que primitivamente era construído para vergastar animais e ainda é construído com essa finalidade e como objecto decorativo. Aqui reconhecemos a primeira aporia que nos escapou na abordagem sumária.

Na semântica legal a palavra “agressão” apenas é susceptível de designar ofensa à integridade física de pessoas e não de animais.

Do que flui que a consignação como provado que o bastão se destina unicamente a agredir e causar ferimentos é, desde logo, facto notoriamente errado que afronta as mais elementares regras da experiência, não só por desprezar o facto notório de que é construído com a finalidade de vergastar animais, o que não pode considerar-se finalidade agressiva no significado legal da palavra, como também por desprezar a sua finalidade decorativa.

E, se esse facto objectivo provado está notoriamente errado, por consequência, também os factos subjectivos no sentido de que o arguido conhecia a natureza proibida e reprovável da conduta padecem de idêntico erro, posto que o arguido não podia ter agido com o conhecimento de uma proibição inexistente nos termos imputados.

Perante o exposto, despiciendo se torna analisar o também invocado vício de contradição insanável de fundamentação, dado que, pela via do erro notório da apreciação da prova, já se impõe revogar a decisão sumária proferida.

Aliás, esta é a segunda via “inominada” de reclamação do recorrente.

Está, neste caso, o Tribunal de recurso habilitado a alterar a matéria de facto provada no sentido de eliminar os apontados erros notórios na apreciação da prova, posto que tal não depende do conteúdo concreto da prova oral, mas apenas das características do objecto em causa que são do conhecimento geral - cfr. artigos 426º, nº 1 e 431º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

Posto o que precede, a matéria de facto da decisão recorrida passa a ter a seguinte redacção:

Factos Provados:

No dia 6 de Julho de 2014, cerca das 4.55 horas, na Rua …, na Cabeça Gorda, Beja o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, táxi, com a matrícula -IF--.

No interior da viatura o arguido trazia consigo um bastão artesanal, com o comprimento de um metro.

O referido bastão tem designação de “picha de boi”.

O arguido conhecia as características do bastão.

Actuou de forma livre, voluntária e consciente.

Factos não Provados:

- que o referido bastão se destine unicamente a ser usado para agredir e provocar ferimentos;

- que o arguido soubesse que lhe era proibida a sua detenção, mas apesar disso o tivesse consigo;

- que o arguido conhecesse o carácter reprovável da sua conduta.

Perante esta alteração factual resta concluir pela evidência de que os factos provados não são susceptíveis de integrar os elementos objectivos (detenção de objecto construído exclusivamente com o fim de ser usado como arma de agressão) e subjectivos do imputado crime de detenção de arma proibida, importando proferir decisão absolutória.

III

Decisão
Nestes termos acordam em:

A) - Deferir as reclamações apresentadas pelo arguido/recorrente J. e pelo Digno Magistrado do Ministério Público e conhecer do recurso interposto;

B) - Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, alterar a matéria de facto constante da sentença recorrida nos termos acima consignados, revogar o seu dispositivo condenatório e absolver o arguido J. da imputada comissão de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artigos 3º, nº 2, alínea g), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006 de 23.02, na redacção conferida pela Lei nº 12/2011, de 27.10.

C) - Não há lugar a tributação em razão das reclamações e do recurso.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora, 26-04-2016

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

Fernando Paiva Gomes Monteiro Pina