Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1534/12.0TBBJ-M.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
LISTA DE CREDORES
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - A alteração da morada do Administrador de Insolvência que foi indicada no processo no decurso do prazo para a reclamação de créditos, não poderia prejudicar os credores que, no decurso daquele prazo, remetessem a reclamação do seu crédito para a morada indicada na sentença e publicitada, já que nenhum dever processual lhes exigiria a consulta do processo para verificar se teria existido alguma alteração de morada.
II - Tendo-se provado que a reclamação de créditos dirigida ao Senhor Administrador foi efectivamente recepcionada, à semelhança do que ocorreria se estivéssemos perante um requerimento apresentado intempestivamente ao processo, sobre o qual sempre teria que existir despacho judicial, impunha-se ao Senhor Administrador que respondesse à reclamante, nem que fosse a declarar a respectiva extemporaneidade e a devolver a reclamação à apresentante, permitindo-lhe, por exemplo, acautelar o respectivo direito por via da possibilidade que o artigo 146.º, n.º 1, do CIRE, lhe conferia.
III - A lei não restringe o conhecimento do Administrador aos créditos que tenham sido reclamados tempestivamente e aos que resultem da contabilidade da insolvente, referindo expressamente não só esses, como os que sejam por outra forma do seu conhecimento.
IV - O Senhor Administrador da Insolvência, nada fez no momento processual referido em II. e, aquando da elaboração da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, pura e simplesmente omitiu o crédito invocado pela reclamante, razão pela qual não existiu a respectiva notificação nos termos do artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, a qual deve ser obrigatoriamente dirigida aos credores não reconhecidos.
V - Se quando o Senhor Administrador apresentou a lista dos créditos que reconheceu e não reconheceu, o fez incumprindo o prazo de 15 dias que a lei lhe assinala para o efeito, e claramente depois de ultrapassado o prazo para a credora em questão intentar acção de verificação ulterior de créditos, tendo conhecimento de que a ora recorrente se arrogava a qualidade de credora, a omissão do aviso previsto no referido artigo 129.º, n.º 4, que possibilitaria à credora deduzir impugnação nos termos legalmente previstos, assume um carácter essencial, nas concretas circunstâncias do caso.
VI - De facto, não podendo já a credora reclamar o respectivo crédito por via do preceituado no artigo 146.º, n.º 1, do CIRE, face ao decurso do prazo assinalado no n.º 2, alínea b), sem que o Administrador Judicial apresentasse as listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos, com a omissão de tal aviso ficou prejudicada a possibilidade de a Recorrente discutir neste processo a qualidade de credora que se arroga.
VII - Assim, a referida omissão configura uma violação do princípio do contraditório, com possíveis consequências do ponto de vista material na definição do universo dos credores cujos créditos o presente processo de insolvência visa satisfazer, e com as consequências processuais decorrentes da classificação de tal omissão como nulidade, já que a mesma pode efectivamente influir na decisão da causa (artigo 195.º, n.º 1, do CPC).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I – RELATÓRIO
1. Por sentença proferida em 27-03-2013, transitada em julgado, foi decretada a insolvência de AA, Lda., tendo sido declarado aberto concurso de credores, pelo prazo de 30 (trinta) dias.

2. Em 10-01-2014, o Sr. Administrador de Insolvência veio apresentar a relação de créditos a que alude o artigo 129.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2].

3. Em 13-03-2014, BB apresentou requerimento arguindo a nulidade da lista de créditos apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência alegando, em síntese, ter deduzido reclamação de créditos junto do Sr. Administrador de Insolvência, mostrando-se o mesmo omisso na lista por aquele apresentada; ainda que não o tivesse feito, sempre o seu crédito deveria ser reconhecido por resultar dos elementos de contabilidade da insolvente, sendo dever do Sr. Administrador de Insolvência o seu reconhecimento; não o tendo este feito e verificando-se a omissão da notificação prevista no artigo 129.º, n.º 4 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, a lista de credores mostra-se ferida de nulidade, o que influi na decisão da causa, determinando a nulidade de todo o processado posterior, nos termos do disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil[3].

4. O credor CC e o Sr. Administrador de Insolvência responderam ao requerimento apresentado, pugnado pela sua improcedência.

5. No despacho saneador lavrado em 20-06-2016 nos termos do artigo 595.º, n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil, foi proferida decisão quanto ao aludido requerimento, considerando-se o mesmo como impugnação à lista de credores, «julgando-se improcedente a impugnação deduzida, pelo que não se reconhece o crédito invocado pela impugnante» e, considerando-se ter ficado «prejudicada a apreciação da alegada nulidade por preterição da notificação prevista no artigo 129.º, n.º 4 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas».

6. Não se conformando com a decisão proferida, BB interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com extensas conclusões[4], onde aduz, em síntese, que:
- Reclamou créditos, através de carta registada com aviso de recepção dirigida ao Sr. Administrador de Insolvência;
- A recorrente não pode ser prejudicada por qualquer alteração de morada do Senhor Administrador;
- Contudo, o dito Administrador comunicou à reclamante que a mesma não havia reclamado qualquer crédito no Processo de Insolvência à margem identificado, pelo que, a ora recorrente através de requerimento aos autos, arguiu a nulidade de tal acto, bem como, a nulidade decorrente da violação do disposto no artigo 129.º n.º 4 do CIRE;
- Esta nulidade traduz-se na omissão de um acto processual e configura uma irregularidade que influi na decisão da causa;
- E viola o princípio do contraditório;
- O AI, mesmo que não reconhecesse o crédito conforme requerido pela reclamante, tinha a obrigação de notificar a credora reclamante acerca dos motivos do não reconhecimento, impedindo com tal omissão que a mesma reagisse ao não reconhecimento do seu crédito;
- O tribunal considerou prejudicada a discussão da alegada nulidade não se pronunciando quanto à mesma.
- A reclamação não é no caso essencial para o reconhecimento do seu crédito, dado que o Sr. Administrador de Insolvência tem o dever de reconhecer, não apenas os créditos reclamados, mas também os que constam da contabilidade do devedor ou que sejam por outra forma do seu conhecimento (artigo 129.º n.º 1, parte final do CIRE);
- Nos livros de escrituração da insolvente consta que a hipoteca não se encontra expurgada, pelo que, a requerente é, obviamente credora daquela;
- Com efeito, apesar da ora Requerente ter a posse da fracção autónoma, desta nunca foi expurgada a hipoteca na mesma registada;
- Veio o Tribunal Ad quo decidir que, pese embora, a reclamação de créditos efectuada ao Sr. Administrador de Insolvência ter sido extemporânea, a mesma não constitui óbice ao reconhecimento do crédito pelo administrador, na medida em que este, independentemente de reclamação, sempre poderia reconhecê-lo com base em elementos que chegassem ao seu conhecimento;
- Contudo, conclui não ser este o caso do crédito da ora recorrente, considerando que a existência do crédito não resulta dos elementos da contabilidade da insolvente;
- No caso em apreço houve, tradição da coisa, pois que, a fracção D do prédio descrito sob o número 1879, foi entregue pela insolvente à credora reclamante;
- Desde a data da entrega da fracção D à reclamante sempre esta usufruiu da mesma de forma contínua e ininterruptamente;
- Ao não expurgar a hipoteca a insolvente incumpriu o estipulado no contrato de permuta de modo objectivo e reiterado;
- Face ao supra exposto a reclamante goza do direito de retenção previsto no artigo 755º n.º 1 alínea f) do CC, posto que, este não se aplica apenas no caso de promessa de compra e venda mas também à permuta.
Termina invocando que a omissão do administrador de insolvência da formalidade legal prevista no artigo 129.º, n.º 4 do C.I.R.E., influiu, como influi, na decisão da causa, pelo que se impunha, como se impõe, à luz do disposto nos 750º e 751.º, 334º do Código Civil, 20º da CRP, 129.º, n.º 4 e 130.º do C.I.R.E. e 195.º do Código de Processo Civil, uma decisão diversa da que foi proferida pela Mm.º Juiz “a quo” no despacho recorrido, a qual deveria ter julgado procedente a nulidade invocada pela aqui Recorrente nos autos.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[5], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Ora, desde logo verificamos que a recorrente aceita que não apresentou tempestivamente a reclamação do crédito que entende assistir-lhe. Assim, as questões submetidas a apreciação no presente recurso, pela sua ordem lógica, são as de saber se se verifica a invocada nulidade com influência na decisão da causa; e em caso negativo, se devia ou não ter sido reconhecido o crédito que a Recorrente se arroga possuir.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
No despacho recorrido foram considerados com interesse para a decisão os seguintes factos:
«1. Por sentença de 27 de Março de 2013 foi declarada a insolvência de AA, Lda, fixando-se, ainda, o prazo de 30 (trinta) dias para apresentação das eventuais reclamações de créditos, decorrido que fosse o prazo de 5 (cinco) dias de éditos após a data da sua publicação.
2. A referida sentença foi publicitada no portal Citius a 1 de Abril de 2013.
3. Em 14.05.2013, BB, através de Mandatário, remeteu ao Sr. Administrador de Insolvência, para a morada Av. …, n.º ….º-A, ….º Dto, Miraflores, Algés, reclamação de créditos.
4. A carta referida em 3. foi recepcionada em 15.05.2013.
5. Na sentença referida em 1. consta a morada indicada em 3.
6. Em 08.04.2013, o Sr. Administrador de Insolvência dirigiu requerimento aos autos principais de insolvência comunicando os seus dados, constando no rodapé do requerimento a morada Av. …, n.º …-A, …º Dto, Miraflores, Algés».
Dos documentos constantes do processo principal, cuja junção a ora Relatora determinou aos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do CPC, importa ainda considerar que:
7. Por carta datada de 26-02-2014, dirigida pelo Senhor Administrador de Insolvência ao Ilustre Mandatário da ora Recorrente em resposta a missiva deste, com vista à opção que invocou assistir àquele de cumprir o contrato, o Senhor Administrador, referiu que a ora Recorrente não reclamou qualquer crédito, e aduziu que, tratando-se de um contrato de permuta, e não de promessa de permuta, o mesmo foi cumprido em Maio de 2009, não lhe cabendo optar pelo cumprimento, e não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 102.º do CIRE quanto aos negócios em curso.
8. Com a reclamação de créditos referida em 2. a credora invocou ter celebrado com a insolvente um contrato de permuta, de acordo com o qual aquela se obrigou a transmitir-lhe o imóvel que identificou, livre de quaisquer ónus ou encargos. Porém, decorrido o prazo de 12 meses acordado entre ambos para a insolvente expurgar a hipoteca que incidia sobre o imóvel cuja aquisição a Recorrente registou a seu favor após a escritura, a mesma não o fez, apesar de instada para o efeito. Mais invocou que a posse do imóvel lhe foi transmitida, assistindo-lhe direito de retenção sobre o mesmo, até à satisfação do crédito correspondente ao valor daquele ónus. Juntou documentos tendentes a comprovar o alegado.
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III.2. – O mérito do recurso
Invoca a Recorrente que o seu crédito deveria ter sido reconhecido, mesmo que não tivesse sido tempestivamente deduzido porquanto a reclamação de créditos foi remetida para o escritório do Senhor Administrador da Insolvência que se encontrava indicado na sentença que decretou a insolvência, não podendo ser prejudicada pela subsequente alteração da morada, tanto mais que a sua reclamação foi recebida.
Assim, se aquele entendia que não era de reconhecer o indicado crédito, devia o Senhor Administrador tê-lo incluído na lista dos créditos não reconhecidos, e dar cumprimento ao disposto no artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, para que a ora Recorrente pudesse proceder à impugnação da lista. Não o tendo feito, omitiu formalidade legal com influência na decisão da causa, que devia ter sido decretada pelo tribunal.
Nestes termos, diz a Recorrente, tendo a decisão recorrida considerado prejudicada esta questão, é a mesma nula, devendo ser revogada.
Na decisão recorrida, depois de se ter pronunciado pela intempestividade da reclamação de créditos deduzida pela ora Recorrente, expendeu-se a seguinte argumentação:
«Em processo de insolvência a apresentação, fora de prazo, de uma reclamação de créditos não constitui óbice ao reconhecimento do crédito pelo administrador de insolvência, na medida em que este, independentemente de reclamação, sempre poderia reconhecê-lo com base em elementos que chegassem ao seu conhecimento.
Este entendimento em nada belisca a utilidade do regime instituído no artigo 146.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, que terá pleno funcionamento quanto a crédito não oportunamente reclamado nem incluído na relação de créditos reconhecidos pelo administrador, ao abrigo da parte final do n.º 1 do artigo 129.º do mesmo Código.
No entanto, pese embora o dever do Sr. Administrador de Insolvência reconhecer os créditos que considere existirem sobre a insolvente, independentemente de terem ou não sido reclamados, tal dever só existe se e quando tais créditos constem dos elementos de contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento (artigo 129.º, n.º 1, parte final, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas).
Ora, o crédito de que a impugnante se arroga titular terá a sua origem no alegado incumprimento de contrato de permuta celebrado entre a impugnante e a insolvente, onde terá sido acordado que o imóvel era entregue à impugnante livre de ónus e encargos, o que não viria a suceder uma vez que a hipoteca nunca foi expurgada.
Tratar-se-á, assim, de incumprimento contratual que carece de ser declarado, não resultando, por isso, dos elementos de contabilidade da insolvente.
Atento o exposto supra, fica prejudicada a apreciação da alegada nulidade por preterição da notificação prevista no artigo 129.º, n.º 4 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas».
Como vimos, não está em causa neste recurso a questão de saber se a ora Recorrente deduziu tempestivamente a respectiva reclamação, aceite que não o fez, mas sim saber se, pese embora tal facto, o Senhor Administrador da Insolvência se devia ter pronunciado quanto ao reconhecimento ou não reconhecimento do crédito que a mesma invocou possuir, notificando-a nos termos do artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, caso entendesse não reconhecer o mesmo.
Entendeu-se na sentença recorrida que como se trata de incumprimento contratual não estamos perante elementos que constassem da contabilidade da insolvente, e implicitamente, já que não o referiu, considerou que o Senhor Administrador de Insolvência não tinha que pronunciar-se sobre os mesmos, declarando seguidamente prejudicada a apreciação da invocada nulidade por preterição da referida notificação, e consequentemente, julgou não reconhecido o crédito reclamado.
Ora, cabe desde já referir que, na decisão proferida, o requerimento apresentado pela Recorrente e referido no ponto 3. do relatório, foi tratado como se configurasse uma impugnação de crédito não reconhecido, quando, como vimos, configurava um requerimento ao processo a arguir a nulidade decorrente da omissão da sobredita notificação.
E, partindo deste pressuposto, a julgadora terá considerado que a decisão sobre a questão de saber se o Senhor Administrador da Insolvência teria ou não que se pronunciar sobre o crédito, prejudicaria a decisão da nulidade arguida.
Porém, com os elementos disponíveis nestes autos, entendemos que partiu de pressuposto errado.
Efectivamente, em face da factualidade que foi considerada provada, não restam dúvidas que na sentença que decretou a insolvência foi indicada a morada para a qual deviam ser remetidas as reclamações de créditos dirigidas ao Senhor Administrador da Insolvência. Assim, a alteração da morada que foi pelo mesmo indicada no processo no decurso do prazo para a reclamação de créditos, não poderia prejudicar os credores que, no decurso daquele prazo, remetessem a reclamação do seu crédito para a morada indicada na sentença e publicitada, já que nenhum dever processual lhes exigiria a consulta do processo para verificar se teria existido alguma alteração de morada.
Ora, se é certo que a ora Recorrente, remeteu a reclamação de créditos para aquela morada indicada na sentença, já depois de ter decorrido o prazo assinalado na sentença para os credores reclamarem os seus créditos, as regras da experiência dizem-nos - até pelas funções profissionais que o Senhor Administrador de Insolvência exerce -, que pouco mais de um mês depois, certamente o mesmo continuaria a receber naquela morada correspondência relativa aos processos que acompanha. E tanto assim foi, que também ficou provado que a reclamação de créditos dirigida ao Senhor Administrador foi efectivamente recepcionada.
Assim, à semelhança do que ocorreria se estivéssemos perante um requerimento apresentado intempestivamente ao processo, sobre o qual sempre teria que existir despacho judicial, impunha-se ao Senhor Administrador que respondesse à reclamante, nem que fosse a declarar a respectiva extemporaneidade e a devolver a reclamação à apresentante, permitindo-lhe, por exemplo, acautelar o respectivo direito por via da possibilidade que o artigo 146.º, n.º 1, do CIRE, lhe conferia.
Ora, o Senhor Administrador da Insolvência, nada fez nesse momento processual e, aquando da elaboração da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, - que como resulta do ponto 2. foi remetida ao processo vários meses depois de a reclamante lhe ter dirigido a respectiva reclamação, com a relevância que melhor analisaremos -, pura e simplesmente omitiu o crédito invocado pela reclamante, razão pela qual não existiu a respectiva notificação nos termos do artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, a qual deve ser obrigatoriamente dirigida aos credores não reconhecidos.
Na missiva que referimos no ponto 7. da matéria de facto, o Senhor Administrador da Insolvência, afirmou que a ora Recorrente não reclamou qualquer crédito, - deve entender-se que quereria dizer, tempestivamente, já que, como vimos, a respectiva reclamação foi recebida -, e aduziu que, tratando-se de um contrato de permuta, e não de promessa de permuta, o mesmo foi cumprido em Maio de 2009, não lhe cabendo optar pelo cumprimento, e não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 102.º do CIRE quanto aos negócios em curso.
Salvo o devido respeito, esta - ou a que entendesse pertinente -, deveria ser a fundamentação a constar da carta registada que o Senhor Administrador devia ter dirigido à reclamante em cumprimento daquele preceito legal.
Efectivamente, a Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro que estabelece o estatuto do administrador judicial, estatui nos respectivos artigos 2.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, que o administrador judicial é a pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos actos integrantes do processo especial de revitalização, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os actos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei, e estando sujeito no exercício das funções que lhe estão legalmente cometidas aos impedimentos e suspeições aplicáveis aos juízes, bem como às regras gerais sobre incompatibilidades aplicáveis aos titulares de órgãos sociais das sociedades.
Tendo a lei atribuído a estes auxiliares da justiça um papel mais amplo do que o anteriormente cometido aos Administradores de Insolvência e um conjunto de direitos que o exercício desta actividade lhes confere, veio também reforçar os mecanismos de responsabilização dos administradores judiciais, exigindo-lhes responsabilidade acrescida no cumprimento das funções que lhes são confiadas.
Assim, no respectivo artigo 12.º, n.ºs 1 e 2, com a epígrafe Deveres, o Estatuto dos Administradores Judiciais, vem afirmar que os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se dignos da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes, devendo actuar no exercício das suas funções com absoluta independência e isenção, estando-lhes vedada a prática de quaisquer actos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados.
De facto, a alteração do Estatuto dos Administradores Judiciais, no fundo, harmonizou-se com o crescente papel que o legislador lhes foi atribuindo ao desjudicializar partes significativas do regime da insolvência, aproximando consequentemente os respectivos deveres aos que impendem sobre os juízes, exigindo-lhes isenção e imparcialidade no exercício das suas funções, e devendo considerar-se servidores da justiça e do direito.
Nestes termos, no exercício das respectivas funções devem os administradores judiciais observar, para além das normas legais aplicáveis, os princípios que regem o processo de insolvência e, subsidiariamente, o processo civil.
Ora, conforme resulta dos termos da própria formulação legal constante do artigo 1.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, “[o] processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.”[6].
Efectivamente, com a alteração introduzida pela reforma de 2012, é a finalidade de satisfação dos credores que norteia todo o processo, erigindo-se como verdadeira alternativa para esse efeito a recuperação da empresa e, só quando a mesma não se afigura possível, a liquidação do património do devedor. Quando esta é a possibilidade, tendo presente o carácter universal do processo de insolvência, e para que esta característica própria de execução universal seja assegurada, são legalmente consagrados vários procedimentos que visam acautelar o tratamento igualitário dos credores.
Precisamente por se tratar de um processo de execução universal, nele são chamados a concorrer todos os credores, porquanto são estes que o processo de insolvência visa tutelar, satisfazendo os mesmos, na medida do possível, com a repartição por eles do produto obtido com a liquidação do património do insolvente.
Assim, nos termos do n.º 3 do artigo 128.º do CIRE, que sob a epígrafe «reclamação de créditos» dá início ao título e capítulo dedicados à «verificação de créditos», a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento, à custa da massa insolvente, acrescentamos.
Ora, em face do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alíneas a) a e) do CIRE, no requerimento de reclamação de créditos - que atenta a inovação operada nesta matéria pelo referido código, é agora dirigido ao administrador da insolvência (n.º2) -, os credores devem mencionar, para além do mais, a proveniência do seu crédito, a sua natureza, a existência de garantias e a taxa de juros aplicável, em suma, devem fornecer ao administrador de insolvência todos os elementos necessários para caracterizar o crédito de que se arrogam titulares.
Para além disso, nos termos do corpo do citado n.º 1, devem apresentar tal requerimento «acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham», isto naturalmente para prova perante o administrador da insolvência do crédito que invocam ter, em todas as vertentes que relevam para a respectiva verificação e graduação.
Mas, precisamente pelo fim primeiro do processo de insolvência, quando nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo para apresentação das reclamações, o administrador da insolvência tem o dever de apresentar na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, diz-nos a lei que daquela fazem parte, para além dos que tenham deduzido reclamação nos termos sobreditos, também outros credores que sejam do conhecimento daquele (artigo 129.º, n.º 1, do CIRE).
Assim sendo, e salvo o devido respeito, a lei não restringe esse conhecimento do Administrador aos créditos que resultem da contabilidade da insolvente, referindo expressamente não só esses, como os que sejam por outra forma do seu conhecimento.
No caso dos autos, como resulta do relatório e dos factos supra, não restam dúvidas de que, quando o Senhor Administrador apresentou a lista dos créditos que reconheceu e não reconheceu, tinha conhecimento de que a ora recorrente se arrogava a qualidade de credora.
Ora, em face do preceituado no artigo 129.º, n.ºs 1 e 4, do CIRE, o administrador da insolvência toma posição sobre os créditos reclamados, bem como, sobre os que não tendo sido reclamados, incluindo os que o não foram tempestivamente, constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam, por outra forma, do seu conhecimento, devendo quanto aos credores não reconhecidos, e atento o n.º 3 do preceito, proceder à indicação dos motivos justificativos do não reconhecimento dos mesmos, isto é, aduzir as razões que o levaram a não reconhecer determinado crédito.
E isto porque, em conformidade com o disposto no artigo 130.º, n.º 1, do CIRE, as listas apresentadas podem ser impugnadas por qualquer interessado, através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos, cabendo resposta à impugnação, nos termos previstos no artigo 131.º do mesmo código.
Quanto aos meios de prova, rege o artigo 134.º, n.º 1, do CIRE, estatuindo que às impugnações e às respostas é aplicável o n.º 2 do artigo 25.º, de acordo com o qual, o requerente deve ainda oferecer todos os meios de prova de que disponha, ficando obrigado a apresentar as testemunhas arroladas (…).
Assim, daquela remissão decorre que tanto o credor impugnante como o respondente devem oferecer todos os meios de prova de que disponham com o requerimento dirigido ao juiz em que efectuam a impugnação.
A importância do cumprimento da tramitação processual estabelecida resulta desde logo do facto de, se for efectuada impugnação, e sempre que lhe seja deduzida resposta, o titular do crédito será notificado para comparecer à tentativa de conciliação prevista no artigo 136.º n.º 1, do CIRE e, se for o caso, seguir-se-á o despacho actualmente previsto nos artigos 595.º e 596.º do CPC e 136.º n.ºs 3 a 6 do CIRE.
Assim, caso o juiz entenda que existe matéria controvertida, necessitando consequentemente da produção de prova, nos termos do artigo 136.º do CIRE, elabora despacho saneador, o qual desempenha nos termos do indicado preceito duas tarefas: a selecção da matéria de facto controvertida; e a verificação e graduação dos créditos reconhecidos, com o valor de sentença, nos termos do n.º 6 do mesmo artigo, a não ser que a verificação de algum dos créditos necessite de produção de prova, caso em que a graduação de todos os créditos tem lugar na sentença final (n.º 7).
Havendo lugar a diligências probatórias a realizar antes da audiência de discussão e julgamento o juiz ordena as providências necessárias e, produzidas as provas - com a particularidade de aproveitarem a todos os interessados a prova produzida por qualquer deles (artigo 137.º do CIRE) -, o juiz marca a audiência de julgamento (artigo 138.º), na qual são observados os termos estabelecidos para o processo sumário, com as especialidades indicadas no artigo 139.º do CIRE.
Tudo para dizer que, sendo a reclamação de créditos uma fase do processo de insolvência de estrutura declarativa, e atenta a regra subsidiária prevista no artigo 17.º do CIRE, de acordo com a qual o processo de insolvência se rege pelo CPC em tudo o que não contrarie as disposições daquele código, a tal subsidiariedade cabe apelar para integrar a regulamentação do processo de insolvência, abrangendo quaisquer dos seus incidentes, apensos e recursos, só ficando a mesma excluída quando se verifique que a mesma é contrária a regra expressamente consagrada no CIRE.
Acresce ainda que, estatuindo o artigo 11.º do CIRE que “no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes”, dúvidas não devem existir que também antes de proferir sentença no apenso de graduação de créditos, o juiz possa convidar à prestação de esclarecimentos ou à junção de documentos quanto a factos alegados pelas partes.
Voltando à tramitação processual nos presentes autos, verificou-se que, tendo o Senhor Administrador de Insolvência equiparado a extemporaneidade da dedução da reclamação de créditos, à sua não dedução, não a considerou nas listas apresentadas, e quanto lhe foi solicitado a inclusão do crédito por via do preceituado no artigo 102.º do CIRE, respondeu informando que a credora não tinha o direito que se arrogava, não lhe cabendo aplicar o princípio geral quanto aos negócios ainda não cumpridos ali previsto, sem que cumprisse o preceituado no artigo 129.º, n.º 4, do CIRE.
Ora, desde logo, esta sua posição jurídica nem sequer é pacífica. Basta ver a interpretação que do preceito fazem Alexandre Soveral Martins citando ainda Maria Rosário Epifânio, no sentido de que «se uma das partes já cumpriu integralmente, há que ver se há alguma coisa a receber ou a entregar pela outra e verificar qual é o regime aplicável»[7]. Foi precisamente o que a credora invocou: que tendo celebrado com a ora insolvente um contrato de permuta, cumpriu integralmente a sua prestação, entregando o respectivo imóvel e recebendo daquela o acordado, sem que porém fosse integralmente cumprida a libertação do mesmo da hipoteca que sobre o imóvel incidia, conforme constava no acordo, ou seja, livre de quaisquer ónus ou encargos.
Não obstante, ainda que se venha a concluir não ser legalmente possível a consideração do negócio em causa no regime do artigo 102.º do CIRE, desde logo precisamente pelo seu n.º 1, do qual se pode retirar como requisito da respectiva aplicação a necessidade do não cumprimento total do contrato, por ambas as partes[8], o certo é que não sofre dúvidas a constatação de que o artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, constitui a consagração no âmbito do apenso de reclamação de créditos em processo de insolvência, de um princípio estruturante do processo civil que é o principio do contraditório, expresso no artigo 3.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, o qual é hoje comummente entendido como uma garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, quer relativamente às questões de facto, quer às questões de direito.
Assim, «o exercício e a concretização deste princípio, numa concreta situação, não está dependente ou sujeita a um qualquer e prévio julgamento incidente sobre a solidez ou consistência substancial do eventual direito que, com a sua consagração e em decorrência do seu cumprimento, se pretendeu salvaguardar ou exercer. (…)
Por isso, parece-nos inquestionável que, por mais profunda que seja a consistência das razões de facto e/ou de direito por que se possa entender que a um qualquer credor, na situação prevista no nº 4, do artigo 129, do CIRE, não assiste o direito de ver o seu crédito incluído na lista dos reconhecidos, de modo algum, com fundamento em tais razões, se poderá considerar justificada a omissão da efectuação da notificação prevista, nessa mesma disposição legal»[9].
Concordamos com esta posição, sendo manifesto no caso dos autos, que as consequências de tal omissão se reflectem na tramitação processual subsequente, que pura e simplesmente não existiu, mas foi considerada prejudicada pela julgadora, ao ter entendido que se tratava de um incumprimento contratual e, como tal tinha que ser declarado - pressupõe-se que em seu entender em acção declarativa autónoma -, olvidando as consequências da sentença que decreta a insolvência mesmo nas acções declarativas pendentes (e esta não fora sequer instaurada), e sobretudo a reduzida possibilidade que a partir daquele momento assiste ao credor de intentar acção contra a massa insolvente, a qual só é possível para verificação ulterior de créditos, nos termos do artigo 146.º e seguintes do CIRE, cumpridos alguns requisitos que no caso foram omitidos.
De facto, no caso em apreço a omissão do cumprimento do preceituado naquele artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, por banda do Senhor Administrador assume gravidade acrescida porquanto impediu que a credora reclamante lançasse mão da possibilidade que o artigo 146.º, n.º 1, lhe conferia, precisamente por não ter aquele cumprido o dever de apresentar as listas no prazo de 15 dias que a lei lhe assina para o efeito.
Efectivamente, permite este preceito que, findo o prazo das reclamações, seja possível reconhecer ainda outros créditos, … por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor.
Porém, em face do preceituado no n.º 2, alínea b), do referido artigo, a reclamação de outros créditos cuja constituição já exista à data da insolvência, como é o caso do crédito invocado nos presentes autos, nos termos do referido n.º 1, só pode ser apresentada nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência.
Ora, como é bom de ver, o prazo para as reclamações aludido na transcrita norma é o prazo fixado na sentença declaratória da insolvência nos termos do artigo 128, n.º 1, do CIRE). Assim, tendo a sentença que declarou a insolvência sido proferida em 27-03-2013 e publicitada no portal Citius em 01-04-2013, concedendo aos credores o prazo de 30 dias para reclamarem os respectivos créditos, decorrido o mesmo o Senhor Administrador da Insolvência não deu cumprimento à apresentação da lista no prazo assinalado no artigo 129.º, n.º 1, do CIRE, apresentando lista dos credores reconhecidos e a lista dos credores não reconhecidos somente em 10-01-2014, omitindo a credora reclamante nessa lista.
Assim, quando o Administrador de Insolvência apresentou a lista, há muito se encontrava esgotado o prazo de seis meses para que a credora pudesse ter intentado a acção de verificação ulterior de créditos ao abrigo do artigo 146.º do CIRE, atentas as limitações impostas no seu n.º 2.
Efectivamente, a razão de ser deste prazo de seis meses concedido ao credor não reconhecido para instaurar a acção com vista à verificação do respectivo crédito, tem como pressuposto que as premissas da respectiva admissão estejam verificadas, designada e precisamente que não tenha sido o credor avisado nos termos do artigo 129.º, nº. 4, do CIRE. No caso dos autos a credora não foi avisada. Só que o não foi porque a lista nem sequer havia sido apresentada e é este o cerne da essencialidade da omissão de tal notificação.
Na verdade, «a reserva que é feita na al. a) do art. 146º do CIRE relativamente aos credores notificados nos termos do art. 129º, apenas tem razão de ser se visar os créditos não reclamados ou não incluídos na relação de créditos, cujo vencimento tenha ocorrido até ao “terminus” do prazo da impugnação estabelecido no art. 130º do CIRE, pois nesse prazo poderiam reclamar contra a não inclusão mesmo oficiosa do crédito vencido e não reclamado»[10].
E foi a impossibilidade de a Recorrente actuar esta reclamação por não estar incluída na relação de créditos que a indicada omissão produziu, no caso com a consequência agravada de a não apresentação da lista no prazo assinado na lei, ter entretanto feito precludir a possibilidade de a mesma, confiando na inserção oficiosa do respectivo crédito na lista, não ter intentado tempestivamente a referida acção de verificação ulterior de créditos.
De facto, é na fase da verificação de créditos que deve ser decidido se os mesmos existem ou não, existindo para o efeito no processo de insolvência, a necessária tramitação.
Por isso que, a apresentação das listas de credores reconhecidos e não reconhecidos ou reconhecidos de forma diversa, por parte do administrador, seja um dos momentos essenciais para que o processo de insolvência atinga a finalidade que a lei lhe atribuiu, e para a qual o administrador de insolvência tem o determinante papel de trazer todos os créditos que, por alguma forma, sejam do seu conhecimento.
Efectivamente, no que tange concretamente à lista de credores não reconhecidos, «[o] regime fixado no n.º 4 [do artigo 129.º, do CIRE] visa a tutela dos credores não reconhecidos, daqueles cujos créditos foram reconhecidos sem terem sido reclamados e, ainda, dos titulares de créditos que foram reconhecidos em termos diferentes dos reclamados.
Embora por razões não coincidentes para todos estes credores, trata-se de lhes facultar a possibilidade de virem ao processo em defesa dos seus interesses, sustentando, quer que os seus créditos devem ser reconhecidos, quer que o devem ser em termos diferentes dos que constam na lista de credores reconhecidos.
Para tanto, os credores a que se refere a primeira parte do n.º 4 devem ser avisados pelo, administrador da insolvência do não reconhecimento dos seus créditos ou dos termos em que o reconhecimento foi feito, consoante o caso.
O aviso é feito por carta registada»[11].
Assim, caso esta tramitação quanto à apresentação da lista tivesse ocorrido no assinalado prazo de 15 dias, verificando a credora que não constava das mesmas, e não tendo sido avisada pelo Senhor Administrador nos termos do artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, podia instaurar a acção de verificação ulterior de créditos no indicado prazo de seis meses após o trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência.
Deste modo, se tal prazo tivesse sido cumprido, não tendo a credora reclamado tempestivamente o respectivo crédito, a omissão do cumprimento do disposto no artigo 124.º, não assumiria a essencialidade a que nos vimos referindo: a mesma tinha ainda a possibilidade de actuar o direito que se arroga por via da indicada acção e, consequentemente, se não o fizesse naquele prazo sibi imputet.
Porém, não tendo a ora Recorrente sido inserida pelo Senhor Administrador de Insolvência na lista de credores não reconhecidos, apresentada já depois de ter decorrido o prazo para a mesma instaurar a referida acção, e não tendo sido avisada, com a devida especificação dos motivos justificativos do não reconhecimento do invocado crédito, por carta registada com aviso de recepção, em conformidade com o que dispõem os n.ºs 3 e 4, do citado artigo 129.º, foi-lhe coarctada a possibilidade de impugnar as razões que levaram à sua não inclusão na lista, e bem assim, de aduzir os fundamentos de facto e de direito que contrariam, na sua perspectiva, a interpretação do Senhor Administrador, bem como, evidentemente, se for o caso, a de produzir prova e estar na tentativa de conciliação prevista no artigo 136.º, n.º 1 do CIRE.
Tal limitação viola as normas legais atinentes à tramitação processual do incidente de reclamação de créditos, designadamente, as que têm como escopo permitir que neste momento processual se defina quem são os credores cujos créditos devem ser reconhecidos, bem como a extensão destes e garantias, e em concreto, com a agravante de já não ser possível exercer o direito em questão por aqueloutra via.
Por isso, à Recorrente tem de ser efectivamente reconhecido o direito de discutir os aspectos que, em sua perspectiva, importam ao reconhecimento do seu crédito, designadamente aduzindo e vendo apreciada pelo tribunal a respectiva discordância sobre os aspectos jurídicos da posição do Senhor Administrador que terão levado, no caso, à não inclusão do respectivo crédito na lista, em obediência ao referido princípio do contraditório.
«E o exercício efectivo de um tal direito de modo algum pode ser impedido por mais notória, intensa ou ostensiva que se entenda ser a carência de fundamento pertinente, que a todos os títulos tornasse indubitável e imperiosa a conclusão de que à Recorrente não assiste, com qualquer fundamento válido e juridicamente sustentado e relevante, o direito de ver reconhecido o seu crédito nos termos por si pretendidos»[12], pois que tal significaria a violação do direito que lhe assiste a um processo equitativo, sabido que uma das vias da respectiva obtenção se mostra já precludida pelo decurso do prazo que expirou sem que o Senhor Administrador de Insolvência se pronunciasse quanto ao respectivo crédito.
Para o efeito, como dito, nas concretas circunstâncias do caso vertente, teria de ter sido dado cumprimento à notificação prevista no n.º 4, do artigo 129.º do CIRE, posto que, no momento em que as listas foram apresentadas, essa era já única possibilidade de à credora ser permitido demonstrar a existência do direito que pretende assistir-lhe.
Assim, tendo tal notificação sido omitida, temos de concluir que ficou prejudicada a possibilidade de a Recorrente discutir neste processo a qualidade de credora que se arroga, mostrando-se, assim, violado o princípio do contraditório, com possíveis consequências do ponto de vista material na definição do universo dos credores cujos créditos o presente processo de insolvência visa satisfazer, e com as consequências processuais decorrentes da classificação de tal omissão como nulidade, já que a mesma pode efectivamente influir na decisão da causa (artigo 195.º, n.º 1, do CPC).
Efectivamente, as nulidades de processo que importam a anulação do processado, decorrem de desvios do formalismo processual devido quer pela prática de um acto proibido, quer por via da omissão de um acto prescrito na lei e que tenha influência na decisão da causa[13].
Nestes termos, conclui-se que a pretensão da Recorrente quanto à arguição da nulidade decorrente de tal omissão deve proceder, com as consequências previstas no n.º 2 do artigo 195.º do CPC, in casu, a anulação da sentença de verificação e graduação de créditos.
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III.2.4. Síntese conclusiva:
I - A alteração da morada do Administrador de Insolvência que foi indicada no processo no decurso do prazo para a reclamação de créditos, não poderia prejudicar os credores que, no decurso daquele prazo, remetessem a reclamação do seu crédito para a morada indicada na sentença e publicitada, já que nenhum dever processual lhes exigiria a consulta do processo para verificar se teria existido alguma alteração de morada.
II - Tendo-se provado que a reclamação de créditos dirigida ao Senhor Administrador foi efectivamente recepcionada, à semelhança do que ocorreria se estivéssemos perante um requerimento apresentado intempestivamente ao processo, sobre o qual sempre teria que existir despacho judicial, impunha-se ao Senhor Administrador que respondesse à reclamante, nem que fosse a declarar a respectiva extemporaneidade e a devolver a reclamação à apresentante, permitindo-lhe, por exemplo, acautelar o respectivo direito por via da possibilidade que o artigo 146.º, n.º 1, do CIRE, lhe conferia.
III - A lei não restringe o conhecimento do Administrador aos créditos que tenham sido reclamados tempestivamente e aos que resultem da contabilidade da insolvente, referindo expressamente não só esses, como os que sejam por outra forma do seu conhecimento.
IV - O Senhor Administrador da Insolvência, nada fez no momento processual referido em II. e, aquando da elaboração da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, pura e simplesmente omitiu o crédito invocado pela reclamante, razão pela qual não existiu a respectiva notificação nos termos do artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, a qual deve ser obrigatoriamente dirigida aos credores não reconhecidos.
V - Se quando o Senhor Administrador apresentou a lista dos créditos que reconheceu e não reconheceu, o fez incumprindo o prazo de 15 dias que a lei lhe assinala para o efeito, e claramente depois de ultrapassado o prazo para a credora em questão intentar acção de verificação ulterior de créditos, tendo conhecimento de que a ora recorrente se arrogava a qualidade de credora, a omissão do aviso previsto no referido artigo 129.º, n.º 4, que possibilitaria à credora deduzir impugnação nos termos legalmente previstos, assume um carácter essencial, nas concretas circunstâncias do caso.
VI - De facto, não podendo já a credora reclamar o respectivo crédito por via do preceituado no artigo 146.º, n.º 1, do CIRE, face ao decurso do prazo assinalado no n.º 2, alínea b), sem que o Administrador Judicial apresentasse as listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos, com a omissão de tal aviso ficou prejudicada a possibilidade de a Recorrente discutir neste processo a qualidade de credora que se arroga.
VII - Assim, a referida omissão configura uma violação do princípio do contraditório, com possíveis consequências do ponto de vista material na definição do universo dos credores cujos créditos o presente processo de insolvência visa satisfazer, e com as consequências processuais decorrentes da classificação de tal omissão como nulidade, já que a mesma pode efectivamente influir na decisão da causa (artigo 195.º, n.º 1, do CPC).
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente o presente recurso de apelação, revogando a decisão recorrida, a cuja anulação se procede, determinando-se o cumprimento do disposto no artigo 129.º, n.º 4, do CIRE, relativamente à Recorrente, e o subsequente prosseguimento dos autos como for de direito.
Custas pela parte vencida a final.
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Évora, 20 de Outubro de 2016

Albertina Pedroso [14]
Maria João Sousa e Faro
Florbela Lança


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[1] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Maria João Sousa e Faro;
2.º Adjunto: Florbela Lança.
[2] Doravante abreviadamente designado CIRE.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
[4] De facto, apesar do convite dirigido à Recorrente para que as sintetizasse, a mesma reduziu o número das respectivas conclusões mas persiste em absolutamente desnecessária extensão (conclusões A) a HHH!), razão pela qual, se reproduz a parte relevante das respectivas conclusões, expurgando-as das inúmeras repetições da mesma questão em diversas versões, bem como das abundantes citações que neste lugar são deslocadas.
[5] Doravante abreviadamente designado CPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por estar em causa decisão recorrida posterior a 1 de Setembro de 2013 – cfr. artigos 5.º, 7.º, n.º 1 e 8.º.
[6] Na redacção vigente à data em que a insolvência foi declarada, a qual foi introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.
[7] Vd. Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina 2016, págs. 172 e 173.
[8] Cfr. neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris 2009, pág. 389.
[9] Cfr. Acórdão TRG, de 19-06-2014, proferido no processo n.º 141/13.4TBAVV-F.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Ac. desta Relação de 16-6-2011, proferido no Processo n.º 745/09.0, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris 2009, pág. 453.
[12] Cfr. citado Ac. TRG.
[13] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 176, e A. Varela/M. Bezerra/S. Nora, Manual de Processo Civil, 1985, p. 387.
[14] Texto elaborado e revisto pela Relatora.