Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | SÉRGIO CORVACHO | ||
Descritores: | PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO NULIDADE | ||
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Data do Acordão: | 03/17/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - A falta de comunicação, na notificação a que alude o artigo 50º do regime geral das contraordenações, de factos relativos ao elemento subjetivo da infração, não é causa de nulidade do processo administrativo. E a esta conclusão não obsta a doutrina fixada pelo S.T.J., no seu Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003 (publicado no DR, Série I-A, de 25-01-2003). II - É suficiente que seja comunicada ao arguido a conduta naturalística, que pode integrar infração ao direito de mera ordenação social, as sanções que lhe são abstratamente cominadas e o respetivo fundamento normativo. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I. Relatório No Processo de Contra-Ordenação nº 400023371370 do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, pelo Director Regional da Mobilidade e Transportes do Alentejo foi proferida em 19/2/14 decisão final, que condenou «LGDL, Lda.», pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo nº 1 do art. 3º do DL nº 257/07 de 16/7, numa coima de € 5.000. A arguida impugnou judicialmente, nos termos do art. 59º do Regime Geral das Contra-ordenações (doravante RGCO), aprovado pelo DL nº 433/82 de 27/10 e sucessivamente alterado, a decisão administrativa que a condenou. Na fase de impugnação judicial, os autos foram distribuídos ao Tribunal Judicial de Ourique e, em 1/4/11, foi proferida sentença pela Exmº Juiz desse Tribunal, a qual decidiu: Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida, mantendo-se, na íntegra, a decisão proferida pela autoridade administrativa. Da referida sentença a arguida veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões: A) Em causa no presente recurso está a questão concreta de saber se na fase administrativa do processo de contraordenação a entidade administrativa deu adequado cumprimento ao disposto no art.º 50.º do RGCO, i.e., se da notificação efetuada à arguida nos termos daquele preceito legal devia (e deve) constar, obrigatoriamente a referência à culpa do agente (referência ao cometimento da alegada infração a titulo de dolo ou de negligência) bem assim como os demais elementos referidos no art.º 18.º, n.º 1 do RGCO (gravidade da contraordenação, situação económica do agente e benefício económico retirado); B) No entender da sentença recorrida, é suficiente a comunicação da factualidade objetiva e da moldura abstrata da coima ao arguido para se mostrar cumprido o preceituado no art.º 50 do RGCO. No entender da recorrente, este preceito legal só se mostra cumprido quando para além da factualidade objetiva e moldura abstrata da coima a administração comunica ao arguido os demais elementos de que depende a determinação da medida da culpa indicados no art.º 18.º, n.º 1 do RGCO. C) Decorrendo do n.º 10 do art.º 32.º da CRP que a defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação, não cabe ao arguido adivinhar a acusação, não tem o arguido de se pronunciar e se defender do hipotético. O arguido terá apenas de se pronunciar e defender-se daquilo que concretamente lhe for imputado. D) Se na decisão final a entidade administrativa tem necessariamente de pronunciar-se sobre os factos imputados e de efetuar uma concreta ponderação dos elementos indicados no art.º 18.º, n.º 1 do RGCO, subsumindo os factos às normas e interpretando estas, para os direitos de audição e defesa poderem ser exercidos de forma efetiva, completa, esclarecida e substancial têm necessariamente de ser comunicados ao arguido, antes da decisão, senão o projeto de decisão final, pelo menos para além da factualidade objetiva e da moldura abstrata da coima, quais daqueles elementos indicados no art.º 18.º, n.º 1 do RGCO, que em termos concretos a administração está naquele momento a considerar ter em conta para a decisão final. E) Não é mais do que apenas razoável impor que na comunicação a que alude o art.º 50.º do RGCO ou em qualquer caso antes de proferir a decisão, a entidade administrativa deva dar a conhecer ao arguido: a) Os factos objetivos que definem a contraordenação; b) Os factos que constituem a imputação subjetiva da contraordenação; e c) Os elementos relevantes que (naquele momento) pensa tomar em conta para a dosimetria da sanção que irá ser imposta, pois só assim um arguido ficará em condições de forma efetiva, completa, esclarecida e substancial a sua defesa. F) Tem de se admitir que não faz sentido em qualquer processo do tipo sancionatório o arguido ser chamado a pronunciar-se sobre a moldura abstrata da sanção em vez de ser chamado a pronunciar-se sobre elementos que podem influir na sua fixação concreta. Fazendo-se a determinação da medida da coima tendo em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação (art.º 18.º n.º 1 do RGCO), é sobre estes aspetos concretos, suscetíveis de influir na aplicação (ou não aplicação) da coima e na medida desta que um arguido deve ser chamado a pronunciar-se e não apenas sobre a factualidade objetiva e sobre a moldura abstrata da coima aplicável. G) Não deixando a culpa do agente de ser o limite inultrapassável da medida da(s) sanção(ões) aplicáveis (art.ºs 1.º e 18.º, n.º 1 do RGCO), o art.º 50.º do RGCO só é devidamente cumprido quando a administração dá a conhecer a um arguido a sua ideia concreta (naquele momento) sobre culpa desse arguido no cometimento de uma determinada infração e sobre os demais elementos que o n.º 1 do art.º 18.º do RGCO manda ter em conta na determinação da medida da coima. H) O entendimento contrário leva a que o arguido seja obrigado a exercer uma pronúncia diabólica, a pronunciar-se sobre todas as hipóteses possíveis de culpa, sendo que tal não é exigível. A oportunidade da pronúncia do arguido passaria a depender da sua própria iniciativa, não como resposta a uma acusação mas antes como tentativa de demonstrar a sua não culpabilidade. É este o entendimento da sentença recorrida o qual viola os princípios da justiça (art.ºs 2.º e 266.º, n.º 2 da CRP), da presunção de inocência (art.º 32.º, n.º 2 da CRP) e sobretudo da boa fé a da transparência que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua atuação (artigo 266.º, n.º 2, da CRP). I) Uma vez que o procedimento administrativo conducente à aplicação de uma coima comporta uma fase de investigação, deve a entidade administrativa fazer uso dos poderes inquisitórios ao seu dispor e proceder às diligências que considere convenientes para determinar os agentes e a responsabilidade destes, descobrir e recolher as provas, em ordem a determinar os elementos de que depende a aplicação efetiva da coima, nomeadamente os indicados no n.º 1 do art.º 18.º do RGCO e comunicar posteriormente ao arguido nos termos do art.º 50.º do RGCO, todos aqueles elementos para que este fique a conhecer a totalidade dos aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito. J) Efetuada a notificação ao arguido com este conteúdo completo e pronunciando-se este sobre a imputação de facto e de direito que lhe foi efetuada, se a entidade administrativa vier a alterar algum dos aspetos da sua notificação (nomeadamente, relativamente à culpa do agente) em consequência da resposta do arguido (após a audição deste e/ou da instrução que efetuar), ter-se-á cumprido a finalidade garantias de audição e defesa consagradas no art.º 32.º, n.º 10 da CRP e concretizadas no art.º 50.º do RGCO. A administração não está vinculada na decisão final que aplica (ou não) a coima à culpa do agente que indicou ao agente na notificação efetuada nos termos do art.º 50.º do RGCO nem tal alteração na decisão final representa qualquer vício ou afetação das garantias do arguido. A sentença recorrida perfilha o entendimento contrário, o qual viola o disposto nos art.ºs 56.º do CPA, o art.º 262.º, n.º 1 do C.P.P. ex vi art.º 41 do RGCO, os art.ºs 50.º e 18.º n.º 1 do RGCO e o art.º 32.º, n.º 10 da CRP. K) Para a conformidade constitucional da atuação da administração no cumprimento do art.º 50.º do RGCO tem de se entender este e interpretar o assento 1/2003 num sentido amplo, consentâneo com os interesses em jogo e as necessidades de compressão dos direitos fundamentais do arguido segundo juízos de proporcionalidade e adequação. Com efeito, o legislador não pode, por um lado, estatuir sanções altamente gravosas (como no presente caso) e, por outro lado, não conceder aos visados as garantias de defesa adequadas a um sistema fortemente punitivo como já é atualmente o Direito Contra-Ordenacional. É certo que as garantias dos arguidos têm como reverso da medalha uma perda de eficácia da Administração (da Justiça), mas não pode deixar de ser assim, sob pena de nos aproximarmos de sistemas autoritários e de nos afastarmos da matriz democrática em que se funda a nossa Lei Fundamental. (…) Num Estado de Direito democrático os cidadãos e as pessoas coletivas devem poder contar com processos sancionatórios céleres e eficazes mas justos e pautados pela equidade. E devem, também, poder contar com uma atuação leal das autoridades judiciárias e administrativas. L) Ao assim não entender, a sentença recorrida violou os art.ºs 50.º e 18.º n.º 1 do RGCO e o art.º 32.º, n.º 10 e 18.º, n.º 2 da CRP. M) Nesta sede não pode colher também o argumento de quem pode punir a título de dolo pode prescindir de “ser completo” no cumprimento do art.º 50.º do RGCO se punir a título de negligência. (quem pode o mais pode o menos). A sentença recorrida ao defender claramente este argumento viola o princípio da boa fé e da transparência (art.º 266.º, n.º 2 da CRP) e do respeito pelos direitos do arguido (art.º 32.º, n.ºs 1 e 10 da CRP) e o princípio da presunção de inocência do arguido previsto no art.º 32.º, n.º 2 da CRP. Nestes termos e nos demais de Direito, deve ser julgado procedente o presente recurso e em consequência ser proferido acórdão que anule a decisão administrativa pelo vicio invocado na impugnação judicial da mesma apresentada pela arguida. O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo. O MP respondeu à motivação da recorrente, pugnando pela manutenção do decido, sem formular conclusões. O Digno Magistrado do MP junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, pronunciando-se no sentido da respectiva procedência. O parecer emitido foi notificado à recorrente, que não exerceu o seu direito de resposta. Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência. II. Fundamentação Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pela recorrente, as quais deixámos enunciadas supra. Tal princípio é extensivo aos recursos interpostos de sentenças proferidas sobre impugnações judiciais de decisões administrativas condenatórias, em processos de contra-ordenação, por força do disposto no nº 1 do art. 41º do RGCO, que manda aplicar a esses procedimentos, subsidiariamente, as regras do processo criminal. A sindicância da sentença recorrida, expressa pela arguida nas suas conclusões, centra-se exclusivamente na arguição da nulidade do processado decorrente da falta da comunicação à arguida, na notificação que lhe foi feita durante a fase administrativa do processo, nos termos e para o efeito previsto no art. 50º do RGCO, do nexo de imputação subjectiva (dolo ou negligência) da contra-ordenação pela qual foi acoimada e dos elementos relevantes para determinação da medida da coima, de acordo com o disposto no nº 1 do art. 18º do RGCO. Tal arguição de nulidade havia constituído já o fundamento exclusivo da impugnação judicial da decisão administrativa condenatória sobre a qual recaiu a sentença agora sob recurso. A recorrente invoca que o Tribunal «a quo», ao decidir como decidiu, violou várias disposições da Constituição da República e da lei ordinária, cujo teor a seguir deixamos transcrito: - Art. 2º da CRP A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. - Nº 2 do art. 18º da CRP A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. - Nº 2 do art. 32º da CRP Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. - Nº 10 do art. 32º da CRP Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa. - Nº 2 do art. 266º da CRP Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé. - Art. 1º do RGCO Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima. - Nº 1 do art. 18º do RGCO A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação. - Nº 1 do art. 41º do RGCO Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. - Art. 50º do RGCO Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre. A arguida alegou ainda que a sentença recorrida decidiu em contrário ao disposto nos arts. 56º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) que consagra o princípio do inquisitório nos processos administrativos, e 262º do CPP, que define o objecto e finalidade da fase processual de inquérito no processo criminal. Dado que o nº 1 do art. 41º do RGCO manda aplicar ao processo de contra-ordenação, mesmo na fase administrativa, as normas da lei processual penal, as disposições do CPA não vigoram em processos desta natureza, sendo o art. 262º do CPP, pelo seu objecto, totalmente estranho às questões que agora nos cumpre dirimir. A recorrente fez também apelo, em apoio da sua pretensão, ao Assento nº 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado em DR, Série I-A, de 25/1/03, o qual fixou a seguinte jurisprudência: Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.o do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa. Da arguição da nulidade processual feita pela arguida na impugnação judicial da decisão administrativa conheceu a sentença sob recurso, nos termos a seguir expostos (transcrição com tipo de letra diferente e itálicos do original): A questão essencial objecto do recurso é a de saber se o elemento do subjectivo da infracção deve constar, obrigatoriamente, da notificação a que alude o artigo 50º do RGCO (não obstante constar da decisão da autoridade administrativa). Trata-se de uma questão de direito, sendo certo que a arguida não colocou em causa, em momento algum, a prática dos factos. Cumpre, sim, saber se a autoridade administrativa, ao não fazer constar daquela notificação a descrição do elemento subjectivo da infracção, coarctou o direito de defesa da arguida. Entendemos que não. Dispõe o artigo 50º do RGCO que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes assegurar ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre. Garante-se neste normativo o direito de audição e defesa do arguido. O exercício do contraditório é, no nosso ordenamento jurídico, um princípio natural, uma exigência fundamental do Estado de Direito com consagração no artigo 32º, nº 10 da Constituição da República Portuguesa. Deste modo, um efectivo direito de defesa pressupõe o conhecimento pelo arguido, de todos os elementos relevantes, a saber, os factos que lhe são imputados e a sanção em que incorre. No caso em apreço, a autoridade administrativa notificou a arguida para, querendo, se pronunciar sobre os factos descritos no auto de notícia, tendo junto cópia do mesmo. Da notificação consta a identificação da infracção em causa e a moldura da coima. Constam, ainda, advertências e esclarecimentos acerca do modo como a arguida pode pagar a coima, o valor das custas e a faculdade de, pondo termo ao processo, poder beneficiar do pagamento da coima pelo limite mínimo. Por sua vez, do auto de notícia – que foi junto com a notificação - consta uma descrição dos factos, localizando-os no espaço e no tempo, o nome da arguida e do motorista, a matrícula da viatura e a infracção em causa. Julgamos, pois, que, com os elementos que foram indicados à arguida, esta estava em condições de conhecer a factualidade que lhe foi imputada e, deste modo, poder exercer um efectivo direito de defesa. Repare-se que, a exigir-se que a autoridade administrativa, naquele momento, fizesse constar o elemento subjectivo da notificação, de nada serviria o direito de defesa da arguida, uma vez que aquela já havia tomado uma decisão acerca da prática (ou não) dos factos imputados. Deste modo, nas infracções que são punidas a titulo de dolo e de negligência, como se pode exigir à autoridade administrativa que, naquele momento inicial do processos, já saiba se o (a) arguido (a) actuou com dolo ou com negligência? E o que aconteceria se, concluída a fase instrutória, mudasse de opinião? A fase instrutória e a possibilidade que é dada aos arguidos para, querendo, darem a sua versão acerca dos factos e indicar diligências de prova, permite à autoridade administrativa recolher elementos necessários à prolação de uma decisão, sendo esta a altura em que conclui pela prática (ou não) dos factos investigados e, em caso afirmativo, pelo preenchimento (ou não) do tipo subjectivo. Deste modo, se é de exigir (e bem!!) que o elemento subjectivo conste da decisão da autoridade administrativa, o mesmo já não acontece com a notificação a que alude o artigo 50º do RGCO, sendo de referir que, para aquela decisão, há norma que impõe tal menção (artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal ex vi artigo 41º do RGCO), o que já não acontece no caso desta notificação. Sobre esta questão, o Tribunal da Relação de Évora já teve oportunidade de se pronunciar, tendo decidido que “a falta de comunicação, na notificação a que alude o artº 50º do regime geral das contra-ordenações, de factos relativos ao elemento subjectivo da infracção, não é causa de nulidade do processo administrativo. E a esta conclusão não obsta a doutrina fixada pelo STJ, no seu Assento nº 1/2003, publicado no DR I série de 25/1/2003” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.05.2012, Proc. nº 105/11.2TBRMZ.E1, disponível nas bases de dados da dgsi). Pode-se ler neste acórdão: “as condutas contra-ordenacionais, em si mesmos – e ao contrário das criminais -, são axiologicamente neutras, pelo que a coima representa um “mal” que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, servindo apenas como mera “admonição”, como advertência ou reprimenda com vista à observância de certas proibições ou imposições legais. O referido Assento 1/2003 em nada obriga a que o elemento subjectivo surja expressamente do auto de notícia. Com os elementos constantes da notificação podia e deveria a arguida ter aproveitado para se defender, em detrimento de se escudar com um argumento formal, como se não percebesse aquilo que é óbvio que percebeu. Resulta assim, que da notificação constam os aspectos relevantes e necessários à sua defesa, tanto mais que sendo as contra-ordenações punidas a titulo de dolo ou negligência, a arguida foi condenada pelo “menos” legalmente admissível, isto é, a conduta negligente, pelo que consequentemente não foi omitida na notificação “nenhum aspecto relevante” para a decisão de facto e de direito de que veio a ser alvo. Também no sentido de que não viola o direito de audiência do arguido, nos termos do art. 50.º do RGCO, não lhe ser dado a conhecer na notificação o elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional, vide Ac. da Relação de Lisboa de 13.10.2004, proc. 7243/04.3. A ratio da notificação do art. 50.º do RGCO é dar a conhecer ao arguido as razões pelas quais lhe é imputada esta ou aquela contra-ordenação e, consequentemente, esta ou aquela sanção, de modo que este, lendo a notificação, se possa aperceber, de acordo com os critérios de normalidade de entendimento, das razões pelas quais lhe é imputado tal contra-ordenação e, assim, possa defender-se”. Por conseguinte, resta concluir que, não tendo o elemento subjectivo da infracção que constar da notificação a que alude o artigo 50º do RGCO, a sua omissão não determina a nulidade de todo o processado. Improcede o recurso da arguida. Antes de mais, cumpre verificar que o Assento nº 1/2003 não tratou especificamente da questão que a arguida veio suscitar, na impugnação judicial da decisão administrativa e no presente recurso, ou seja, quais os elementos que devem ser obrigatoriamente comunicados ao arguido, aquando da audição prescrita pelo art. 50º do RGCO, em termos de o habilitar a exercer plenamente o seu direito de defesa, na fase administrativa do processo. A questão dirimida pelo Supremo Tribunal de Justiça no identificado Aresto antes se resumiu à determinação da sanção jurídico-processual, na hipótese de a notificação feita ao arguido em obediência ao disposto no art. 50º do RGCO «não ter incluído todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito», tendo concluído pela nulidade sanável, a arguir, perante a autoridade administrativa, no prazo de 10 dias a contar da notificação, ou no recurso de impugnação judicial. No Assento nº 1/2003, o Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou (nem tinha de o fazer, pois não era essa a questão que lhe tinha saído colocada), ao nível decisório, sobre a medida de elementos de facto e de direito que têm de ser comunicados ao arguido para que este fique inteirado de todos os aspectos relevantes para a decisão, em termos de poder exercer com conhecimento de causa o seu direito de defesa. Na motivação do recurso «sub judice», a arguida censura à notificação que lhe foi feita na fase administrativa do processo, para o efeito previsto no art. 50º do RGCO, o não conter a menção, para além dos factos integradores o nexo de imputação subjectiva da contra-ordenação, dos elementos relevantes para a determinação da medida da coima, nos termos do nº 1 do art. 18º do mesmo diploma. Esta última questão não havia sido invocada pela arguida no recurso de impugnação judicial da decisão administrativa condenatória, pelo que a sentença agora recorrida dela não conheceu. Dado que, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Assento nº 1/2003, a deficiência da notificação levada a cabo para o efeito previsto no art. 50º do RGCO é geradora de nulidade sanável, que tem de ser arguida, o mais tardar, na impugnação judicial da decisão administrativa, não pode a arguida, no recurso que interpor para este Tribunal da Relação, aduzir «ex novo» outros fundamentos da arguição da nulidade do mesmo acto, não invocados anteriormente. Como tal, o objecto da cognição deste Tribunal cingir-se-á da arguição de nulidade feita na impugnação judicial, a saber a falta da comunicação à arguida dos factos integradores do nexo de imputação subjectiva (dolo ou negligência) da contra-ordenação por que foi acoimada. O nº 1 do art. 8º do RGCO estabelece, para o direito de mera ordenação social, um princípio da culpa, em termos idênticos aos do nº 1 do art. 13º do CP para o direito criminal, segundo o qual um facto só é punível quando praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos com negligência. Os conceitos de dolo e de negligência válidos para o direito das contra-ordenações são os definidos pelos arts. 14º e 15º do CP, por via do disposto no art. 32º que manda aplicar as normas deste Código na definição do regime substantivo daquelas infracções. O art. 14º do CP tipifica as diversas modalidades do dolo: 1 – Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2 – Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 – Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização. O art. 15º do CP define as diferentes formas que pode revestir a negligência: Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade da realização do facto. Relativamente à infracção pela qual a arguida foi acoimada, temos que o nº 2 do art. 22º do DL nº 257/07 de 16/7 estabelece a punibilidade a título de negligência das contra-ordenações previstas nesse diploma, sendo nessa circunstância reduzidos para metade os limites máximo e mínimo da coima aplicável. A notificação feita à arguida, cuja validade esta impugnou, fez referência a uma moldura sancionatória prevista no nº 1 do art. 23º do DL nº 547/07 de 16/7 para a contra-ordenação ao disposto no art. 3º do mesmo diploma, quando cometida a título de dolo, sem referência à atenuação prevista para a negligência. A decisão da autoridade administrativa sancionou a arguida com base na moldura cominada à contra-ordenação praticada com negligência, fixando a coima no valor correspondente ao limite mínimo aplicável à infracção dolosa. Embora as normas da lei processual penal sejam subsidiariamente aplicáveis ao processo de contra-ordenação, por via do art. 41º nº 1 do RGCO, importa não perder de vista que o processo administrativo de contra-ordenação reveste natureza e características distintas do processo criminal propriamente dito, pelo que os institutos próprios de um processo não podem mecanicamente transpostos para o outro. Em particular, e ao arrepio daquilo que parece propugnar a recorrente nas suas conclusões, a audição do arguido prevista no art. 50º do RGCO – a qual pode, inclusivamente, assumir a forma de uma audição pessoal não escrita – não tem satisfazer os requisitos formais e substanciais de uma acusação, mormente as menções prescritas no nº 3 do art. 283º do CPP. Pelo contrário, a peça processual que, no procedimento de contra-ordenação, se encontra vocacionada para exercer a função de uma acusação é a decisão administrativa condenatória, caso o processo deva chegar à fase judicial, conforme dispõe o nº 1 do art. 62º do RGCO. Neste contexto, o acto do processo penal com o qual o procedimento prescrito pelo art. 50º do RGCO apresenta maior analogia será, grosseiramente, o interrogatório do arguido em inquérito, a que se refere o nº 1 do art. 272º do CPP. Por conseguinte, a audição do arguido na fase administrativa do processo visa proporcionar-lhe, em termos práticos e sem formalismos pesados, a tomada de posição sobre a eventual contra-ordenação e as sanções, a que, por causa dela, poderá ser sujeito. Para concretizar tal desiderato, afigura-se-nos suficiente que seja comunicado ao arguido a conduta naturalística, que pode integrar infracção ao direito de mera ordenação social, as sanções que lhe são abstractamente cominadas e o respectivo fundamento normativo. Tais elementos foram contemplados na notificação efectuada nos autos e que a arguida pretende seja invalidada. Exigir-se, no contexto a que nos referimos, a comunicação de factos de natureza subjectiva, susceptíveis de integrar o nexo de imputação, equivaleria a transformar a audição prescrita pelo art. 5º do RJCO numa espécie de pré-acusação, senão mesmo de acusação pura e simples, que ela manifestamente não é. Não obsta à validade da notificação em apreço a circunstância de ter sido comunicada à arguida a moldura sancionatória correspondente à contra-ordenação dolosa e a decisão administrativa tê-la condenado com base na que é abstractamente aplicável à infracção cometida a título de negligência. Na verdade, a negligência constitui sempre um «minus» em relação ao dolo, tanto ao nível do juízo de censura como das sanções aplicáveis, não suscitando necessidades diferenciadas de defesa Como tal, teremos de concluir que a notificação controvertida equipou a arguida com as informações necessárias a que ela pudesse eficazmente da imputação da contra-ordenação pela qual veio a ser acoimada, pelo que não se mostra inquinada da nulidade invocada pela recorrente. A audição prevista no art. 50º do RGCO visa concretizar, na fase administrativa do procedimento de contra-ordenação, o direito de audiência e defesa consagrado no nº 10 do art. 32º da CRP. Admitimos sem dificuldade que tal direito se encontre necessariamente associado ao princípio do Estado de direito, contemplado no art. 2º da Lei Fundamental. Diferentemente, não vislumbramos que a questão de que vimos tratando possa, de algum modo, colidir com qualquer dos princípios tutelados pelas outras normas constitucionais, que a recorrente diz terem sido violadas pela sentença recorrida. De acordo com a posição que assumimos, a notificação, que a arguida veio impugnar, proporcionou-lhe na medida devida o exercício do seu direito de defesa, na fase do processo em que teve lugar, pelo que não contraria os comandos do nº 10 do art. 32º da CRP. Assim sendo, terá o recurso de improceder. III. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça. Notifique. Évora 17/3/15 (processado e revisto pelo relator) Sérgio Bruno Póvoas Corvacho João Manuel Monteiro Amaro |