Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1268/08.0GDSTB-A.E1
Relator:
ANA BACELAR
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
DESAPARECIMENTO DE PESSOA
Data do Acordão: 07/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO
Decisão: INDEFERIDO O PEDIDO
Sumário:
1. Existindo meios alternativos à quebra do sigilo – nomeadamente a obtenção de autorização de um dos titulares da conta bancária – para que possam ser satisfeitas as informações bancárias pretendidas pelo Ministério Público, ser não se justifica o recurso ao incidente deduzido.

2. A autorização contemplada no nº 1 do artigo 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito constitui a excepção primeira ao dever de sigilo bancário, em sintonia com a causa genérica de exclusão da ilicitude prevista no crime de violação de segredo do artigo 195.º do Código Penal e, como tal, entende-se que deve, sempre que possível, viável e não desadequada à finalidade, ser suscitada a sua aplicação previamente ao incidente de conflito de interesses que então se deparará. Tal procedimento só não deverá ter lugar se for, em concreto, de todo inconveniente à finalidade que se pretende prosseguir através da quebra do segredo, em função da natureza e da importância dos elementos que se pretendem face aos objectivos de perseguição criminal e administração da justiça visados.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


I. RELATÓRIO

No âmbito dos autos de inquérito que, com o n.º 1268/08.0GDSTB, correm termos nos Serviços do Ministério Público de Setúbal, onde se investiga o desaparecimento de A., no passado dia 8/9 de Novembro de 2008, com o propósito de apurar se o mesmo ocorreu por motivos alheios à sua vontade e que constituam a prática de crime, o titular do mesmo, pretendendo apurar a origem de diversos movimentos efectuados, no dia 9 de Dezembro de 2009, na conta bancária de que aquele é titular, solicitou ao BPI que informasse a identidade de quem efectuou tais movimentos bancários, em que conta foi depositada uma das quantias movimentada, a identificação dos funcionários que concretizaram tais movimentos, caso os mesmos tenham ocorrido ao balcão, e o envio de cópia dos extractos da mencionada conta, no período compreendido entre 11 de Dezembro de 2008 e Julho de 2009 [a indicação, no despacho de fls. 68, de “17.2009” é lapso de escrita evidente].

A mencionada instituição bancária recusou satisfazer o solicitado, invocando, para tanto, o dever de segredo bancário a que está obrigada.

Perante tal recusa, o Ministério Público, invocando o disposto nos artigos 182º, n.ºs 1 e 2, e 135º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e a necessidade de obter os referidos elementos, requereu ao Senhor Juiz de Instrução Criminal que suscitasse incidente com vista à quebra de sigilo bancário.

Do despacho certificado de fls. 75 a 77 dos autos resulta que o Senhor Juiz de Instrução Criminal suscitou a intervenção desta Relação, após concluir pelo interesse e necessidade das informações solicitadas ao BPI e pela legitimidade da recusa deste em prestá-las.

Neste Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da quebra do sigilo bancário se mostrar perfeitamente justificada e, por isso, dever ser concedida.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o incidente fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

A questão a decidir reconduz-se a determinar se se justifica que entidade bancária seja dispensada do segredo a que está obrigada por lei, relativamente a informação pretendida no âmbito de investigação criminal, por se entender que prevalece o interesse de realização da justiça.

O Regime Geral das Instituições de Crédito [1] impõe, no seu artigo 78º, que:

«1 – Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviço a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações destas com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

2 – Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e os seus movimentos e outras operações bancárias.

3 – O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.»

E de acordo com o disposto no artigo 84º do Regime Geral das Instituições de Crédito, a violação do dever de segredo, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, é punível nos termos do Código Penal.

O que nos remete para o disposto no artigo 195º do Código Penal, que se reporta à violação de segredo, nos seguintes termos:

«Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.»

O segredo imposto e cuja violação é punida, nos termos das disposições legais acabadas de enunciar, constitui manifestação de protecção da privacidade. Está em causa a divulgação indevida de factos atinentes à esfera individual, quando tal divulgação é levada a cabo por pessoa investida de determinada qualidade, função ou atributo, e sem o consentimento de quem, por ser com ela atingido, o pode prestar.

O segredo bancário, não é, todavia, um direito absoluto.

Efectivamente, deve ceder perante outros direitos assegurados pelo Estado, designadamente o de acesso, administração e realização da justiça.

O artigo 79º do Regime Geral das Instituições de Crédito reporta-se às excepções ao dever de segredo nos seguintes termos:

«1 – Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.

2 – Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
(...)
d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal;
(...)
f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.»

Antes de nos debruçarmos sobre a previsão do artigo 135º do Código de Processo Penal, importa referir que quando estão em causa crimes abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro [regime jurídico do cheque sem provisão], pelo artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro [tráfico de estupefacientes, de menor gravidade] e pela Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro [que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira], a mera solicitação da respectiva autoridade judiciária provoca, desde logo, a quebra do segredo profissional das instituições bancárias.

O disposto no artigo 135º do Código de Processo Penal, por força do preceituado no artigo 182º do mesmo diploma legal, é aplicável à apresentação de objectos ou de documentos.

O n.º 1 do referido artigo 135º reconhece a todos aqueles a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional – entre os quais se contam os membros das instituições de crédito –, a possibilidade de se escusarem a depor sobre factos abrangidos por tal segredo e de se recusarem a apresentar documentos que tenham em sua posse. Para tanto, devem invocar o segredo profissional.

Neste caso, é aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal.

E apresentada a escusa\recusa baseada em segredo profissional, três hipóteses podem ocorrer:

- existem dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa\recusa;
- a escusa\recusa é ilegítima, por manifestamente carecer de fundamento;
- a escusa\recusa é legítima, por se demonstrar fundamentada.

Ocorrendo a primeira hipótese, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado deve proceder às averiguações necessárias com vista a determinar em qual das duas outras hipóteses a escusa\recusa apresentada se deve incluir.

Ocorrendo a segunda hipótese, a autoridade judiciária ordena (Juiz) ou requer (MºPº) que seja ordenada a prestação de depoimento ou a apresentação de documentos ou objectos [cuja recusa, a persistir, pode configurar a prática de ilícito de natureza criminal].

Ocorrendo a terceira hipótese, e mantendo-se o interesse em obter o depoimento que não foi prestado ou os documentos ou objectos que não foram apresentados, a autoridade judiciária tem que suscitar a intervenção do Tribunal imediatamente superior para que este decida, após ponderação do interesse que deve prevalecer, se deve manter-se ou ser quebrado o dever de sigilo.

Neste sentido, o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência [2].

Importa, agora, regressar ao processo.

Constatado o desaparecimento de A. e comunicado o mesmo às autoridades policiais e ao Ministério Público, foram realizadas nos autos diversas diligências no sentido de apurar o seu paradeiro e de determinar se as circunstâncias do seu desaparecimento envolvem a pratica de crime.

Entre tais diligências, após se apurar que o desaparecido era titular de conta bancária, solicitou-se aos familiares do mesmo que apresentassem extractos de conta.

J., irmão do desaparecido e que figura como denunciante nos autos, foi notificado para indicar o número da conta bancária do A.

Satisfeito o solicitado, o J. foi ainda notificado para juntar cópia dos movimentos da conta bancária de que o desaparecido é titular no BPI, no período compreendido entre 1 de Novembro de 2008 e 9 de Junho de 2009 – cfr. fls. 57 a 59.

Veio, então, o J. satisfazer tal pedido, fornecendo extracto da conta, indicando o número da mesma e afirmando que tal conta é titulada por si próprio e pelo irmão desaparecido – cfr. fls. 60 a 67.

Na posse de tais elementos e tendo detectado movimentos bancários de quantias avultadas no dia 9 de Dezembro de 2008, o Ministério Público solicitou ao BPI as informações supra referidas e que motivaram recusa na sua apresentação, ao abrigo do dever de sigilo bancário.

Mas, aqui chegados, e não obstante a legitimidade da recusa do BPI em fornecer os aludidos elementos, face às regras que disciplinam a actividade bancária, supra mencionadas, afigura-se-nos que existem meios alternativos à quebra do sigilo bancário, que permitem a obtenção das informações pretendidas pelo Ministério Público.

Bastará solicitar ao J. – também titular da conta acima referida – a autorização a que alude o artigo 79º, nº 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito.

À quebra do sigilo bancário não deve, no nosso entender, lançar-se mão sem que se pondere a sua conveniência, de acordo com os critérios aludidos de proporcionalidade e necessidade, sabendo-se que naturalmente se desencadeará justificado conflito de interesses, em matéria de restrição de direitos concernentes à vida privada e que, como tal, deve ser tanto quanto possível preservada.

Ao que acresce que a autorização contemplada no nº 1 do artigo 79º do Regime Geral das Instituições de Crédito constitui a excepção primeira ao dever de sigilo bancário, em sintonia com a causa genérica de exclusão da ilicitude prevista no crime de violação de segredo do artigo 195º do Código Penal e, como tal, entende-se que deve, sempre que possível, viável e não desadequada à finalidade, ser suscitada a sua aplicação previamente ao incidente de conflito de interesses que então se deparará.

Tal procedimento só não deverá ter lugar se for, em concreto, de todo inconveniente à finalidade que se pretende prosseguir através da quebra do segredo, em função da natureza e da importância dos elementos que se pretendem face aos objectivos de perseguição criminal e administração da justiça visados.

Na situação em apreciação, é manifesto que não existiria obstáculo de qualquer relevo para o efectivar, sendo certo que a autorização do cliente, evitará os inconvenientes da forçada quebra do segredo profissional e deve, mesmo, ser vista como matéria de excepção prévia ao incidente, permitindo, além do mais, o adequado contraditório.

O que acaba de se dizer, embora sem justificar a não admissibilidade do incidente, pugna no sentido de não poder o mesmo proceder.

III. DECISÃO

Termos em que se decide não se justificar, no caso, a quebra do sigilo bancário.

Sem custas.

Évora, 2010 Julho 08

(processado em computador e revisto pela primeira signatária)
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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)


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(Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto)




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[1] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, e alterado pelos Decretos-Lei n.º 246/95, de 14 de Setembro, n.º 232/96, de 5 de Dezembro, n.º 222/99, de 22 de Junho, n.º 250/2000, de 13 de Outubro, n.º 285/2001, de 3 de Novembro, n.º 201/2002, de 26 de Setembro, n.º 319/2002, de 28 de Dezembro, n.º 252/2003, de 17 de Outubro, n.º 145/2006, de 31 de Julho, n.º 104/2007, de 3 de Abril, n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro, n.º 1/2008, de 3 de Janeiro, n.º 162/2009, de 20 de Julho, e pela Lei nº 94/2009, de 1 de Setembro.
[2] Acórdão nº 2/2008, de 13 de Fevereiro de 2008, in D.R., 1ª Série, nº 63, de 31 de Março de 2008.