Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
568/10.3PBOER.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: ÂMBITO DO RECURSO
Data do Acordão: 10/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – O recurso em matéria de facto não constitui um novo julgamento, mas apenas um remédio jurídico destinado a detectar e corrigir erros de julgamento, mormente aqueles que o recorrente tenha concretamente apontado. O tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal recorrido tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. Relatório

Na secção de competência genérica - J1, da instância local de Lagos da comarca de Faro, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi submetida a julgamento a arguida IS, também chamada IM, devidamente identificada nos autos, tendo no final sido proferida sentença que a condenou, pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º nºs 1 al. d) 3, e de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º nº 1, todos do C. Penal, nas penas parcelares de 1 ano e 10 meses de prisão e de 1 ano de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos de prisão, cuja execução foi suspensa.

Na procedência parcial do pedido de indemnização civil que Alípio Martins Barra deduziu contra ela, foi a mesma condenada a pagar ao demandante, a título de danos patrimoniais, a quantia de 2.800€, acrescida de juros calculados a partir da data da queixa (7/5/10), indo absolvida do mais peticionado.

Inconformada com a sentença, dela interpôs recurso a arguida, pretendendo que seja revogada e substituída por outra que a absolva em termos criminais e civis, para o que apresentou as seguintes conclusões:

I. Da análise de toda a prova produzida em audiência de julgamento logo se constata a sua Fragilidade e inconsistência, reveladoras de que o Tribunal a quo não apreciou crítica e racionalmente as provas.

II. A arguida desconhece por completo, a matéria que resultou provada nos pontos 5p, 6p., 9p (na parte que refere “à residência do filho do aludido AB, em”) porquanto não teve nem conhecimento nem intervenção nos mesmos, sendo completamente alheia a tais factos. A arguida não pode ser julgada e punida por factos que são alheios á sua pessoa e de que não teve intervenção. A arguida, quando foi buscar a viatura, estava convencida de que a mesma se encontrava na posse do companheiro da AC, desconhecendo pois os factos em 5p, 6p, e 9p.

III. Tal resulta dos depoimentos da arguida e da testemunha AC
Depoimento da arguida
Minuto 4.36

ARGUIDA: Eu nem sabia quem estava com o carro
Eu dirigia-me a ela, à Ana, para me pagar e ela dizia-me que o carro estava na oficina, que estava na oficina
Minuto 19.57: A senhora não contactou a pessoa que efectivamente andava com o carro, para trocar impressões, para por a pessoa ao corrente da situação (...) Não averiguou quem era a pessoa porque ?
Minuto 20:18
ARGUIDA: Porque eu falava com a senhora Ana e ela dizia-me que o carro estava na oficina.
(...)
Minuto 20.3
ARGUIDA: Eu pensei que o carro estava na posse do “ex-marido” da Ana, o senhor Amoz.

Depoimento da AC
Minuto 2.14
TESTEMUNHA: (..) o meu ex-marido disse que o levava para arranjar em Lisboa, que tinha lá uns amigos que conhecia(...)
Minuto 6.52
DEFENSOR DA ARGUIDA: A senhora (arguida) não lhe perguntava, de vez enquanto, onde estava o carro?
TESTEMUNHA: Ela perguntava
DEFENSOR DA ARGUIDA: E a senhora dizia o que?
TESTEMUNHA: Dizia que estava em Lisboa numa oficina.

IV. A matéria constante dos números 4p., 5p., 7p., 8p., 9p., e 10p.; não deveria merecer as respostas que mereceu, porque não resultam da prova produzida.

V. Resulta da prova produzida, que a Arguida estava convencida de que a viatura era dela, quer quando a registou em seu nome, quer quando a foi buscar a Oeiras.

VI. Era sua convicção de que estava a agir correctamente, uma vez que a viatura era dela. Ou seja, não estava a subtrair coisa alheia, mas própria.

VII. A própria decisão o refere, quando o Mtª Juiz a quo refere na “C - Ponderação e escolha da pena”: “A arguida raciocina dentro da lógica que a levou a guardar uma chave; “enquanto não me pagarem o carro é meu”, eis a sua lógica; a realidade técnico-jurídica não é essa (...) de que foi buscar o que lhe pertencia, de que não roubou nada e de que somente fez o que tinha legitimidade para fazer, de harmonia com os seus interesses”.

Vejamos a prova
Depoimento da arguida
Minuto 3.07
ARGUIDA: Comprei num “standart” em Beja
MTº JUIZ: E o que é que a senhora fez na conservatória
ARGUIDA: na Conservatória fui po-lo em meu nome. Fui buscar outra declaração de venda e “puse-o” em meu nome porque não via carro nem dinheiro e achei que estava a agir bem.
(...)
Minuto 4.47
ARGUIDA: Tinha três filhos pequenos e não tinha nem carro nem dinheiro, e como tinha outra chave, achei que devia ir busca-lo porque era meu. (..)
Minuto 11.05
MTº JUIZ: ficou com uma chave do carro
ARGUIDA: Tinha uma chave, porque só tinha entregue uma
MTº JUIZ: Explique-me lá porque é que ficou com uma chave do carro.
ARGUIDA: Porque foi o combinado assim
MTº JUIZ: com quem
ARGUIDA: Com a senhora Ana. Quando ela me pagasse o resto do carro eu entregava-lhe a chave. Como nunca me pagou nada, deu-me 250,00€.
Minuto 22.36
MTº JUIZ: a senhora é que foi buscar uma declaração de venda nova
ARGUIDA: como é que eles venderam o carro?
MTº JUIZ: e a foi apresentar à conservatória, quem fez isso foi a senhora
ARGUIDA: pois porque o carro era meu, …porque o carro era meu, porque eu é que o tinha comprado e estava a ver que ficava sem carro e sem dinheiro.

VIII. Quando foi buscar a viatura, a arguida estava convencida que a mesma ainda estava na posse da AC, mais concretamente do seu companheiro, pelo que, desconhecendo a existência das pessoas referidas na matéria provada sob, bem como dos referidos factos, em 5p, 6p., 9p ( na parte que refere “à residência do filho do aludido AB, em”) , não podendo ser acusada e condenada por tais factos.

Depoimento da arguida
Minuto 4.36
ARGUIDA: Eu nem sabia quem estava com o carro
Eu dirigia-me a ela, à Ana, para me pagar e ela dizia-me que o carro estava na oficina , que estava na oficina
Minuto 19.57: A senhora não contactou a pessoa que efectivamente andava com o carro, para trocar impressões, para por a pessoa ao corrente da situação (...) Não averiguou quem era a pessoa porque ?
Minuto 20:18
ARGUIDA: Porque eu falava com a senhora Ana e ela dizia-me que o carro estava na oficina.
(...)
Minuto 20.3
ARGUIDA: Eu pensei que o carro estava na posse do “ex-marido” da Ana, o senhor Amoz.
Depoimento da AC
Minuto 2.14
TESTEMUNHA: (..) o meu ex-marido disse que o levava para arranjar em Lisboa, que tinha lá uns amigos que conhecia(...)
Minuto 6.52
DEFENSOR DA ARGUIDA: A senhora (arguida) não lhe perguntava, de vez enquanto, onde estava o carro?
TESTEMUNHA: Ela perguntava
DEFENSOR DA ARGUIDA: E a senhora dizia o que?
TESTEMUNHA: Dizia que estava em Lisboa numa oficina.

IX. Por outro lado, a referida AC não vendeu a viatura. Nem sabia que ela tinha sido vendida. A venda foi feita pelo seu companheiro, sem sua autorização ou conhecimento. Assim a venda de Amoz a L. é nula e todas as que se seguiram.
Minuto 1.08

SENHOR PROCURADOR-ADJUNTO: Comprou o carro a quem?
TESTEMUNHA: à D. I.
SENHOR PROCURADOR-ADJUNTO: E depois acabou por o vender?
TESTEMUNHA: Eu não vendi carro nenhum! Simplesmente enquanto o carro esteve nas minhas mãos, avariou. Então o meu “ex-marido” disse que ia a Lisboa por o carro na oficina.
Minuto 2.14
TESTEMUNHA: (..) o meu ex-marido disse que o levava para arranjar em Lisboa, que tinha lá uns amigos que conhecia(...)
Minuto 6.52
DEFENSOR DA ARGUIDA: A senhora (arguida) não lhe perguntava, de vez enquanto, onde estava o carro?
TESTEMUNHA: Ela perguntava
DEFENSOR DA ARGUIDA: E a senhora dizia o que?
TESTEMUNHA: Dizia que estava em Lisboa numa oficina.
Depoimento da AC
Minuto 1.08
SENHOR PROCURADOR-ADJUNTO: Comprou o carro a quem?
TESTEMUNHA: à D. I.
SENHOR PROCURADOR-ADJUNTO: E depois acabou por o vender ?
TESTEMUNHA: Eu não vendi carro nenhum! Simplesmente enquanto o carro esteve nas minhas mãos, avariou. Então o meu “ex-marido” disse que ia a Lisboa por o carro na oficina.
Minuto 2.14
TESTEMUNHA: (..) o meu ex-marido disse que o levava para arranjar em Lisboa, que tinha lá uns amigos que conhecia(...)
Minuto 03.35
SENHOR PROCURADOR-ADJUNTO: A senhora não legalizou, mas depois vendeu, ou o seu companheiro...
TESTEMUNHA: Pelos vistos, se calhar ele vendeu, porque entretanto ao fim de meses eu separei-me dele, ... a partir daí é raro eu falar com ele, e não quis mais saber do carro. (...)
Minuto 3.57
TESTEMUNHA: Sei que o carro foi para Lisboa. Vendeu lá, não sei. Não faço a mínima.
(...)
Minuto 6.52
DEFENSOR DA ARGUIDA: A senhora (arguida) não lhe perguntava, de vez enquanto, onde estava o carro?
TESTEMUNHA: Ela perguntava
DEFENSOR DA ARGUIDA: E a senhora dizia o que?
TESTEMUNHA: Dizia que estava em Lisboa numa oficina.
Minuto 7.06
DEFENSOR DA ARGUIDA: A senhora não vendeu o carro.
TESTEMUNHA: Não, não vendi o carro.
(..)
Minuto 07.14
A senhora era mesmo casada com o seu marido ou eram só...
TESTEMUNHA: Não, era juntos.
DEFENSOR DA ARGUIDA: Eram juntos.
TESTEMUNHA: Sim

X. Os factos 4p., 5p., 7p., 8p., 9p., e 10p, deveriam ter merecido as seguintes respostas.

4p. Posteriormente, a arguida vendeu o veículo a AC pelo preço de 1.750,00 euros, sendo 250,00 com a entrega do veículo e os restantes 1.500,00 euros em seis prestações mensais e sucessivas de 250,00 euros, tomando a compradora posse imediata daquele.

5p. O companheiro da referida AC, Amoz, a quem aquela entregara o veículo, vendeu-o a JL por cerca de 2.000,00 euros, entregando-lhe o veículo, sem conhecimento ou autorização da referida AC.

7p. A arguida, dirigiu-se à Conservatória competente e, invocando extravio da documentação, solicitou em 28 de Fevereiro de 2010 a inscrição daquele em seu nome.

8.P A arguida agiu livre deliberada e conscientemente, convencida de que a viatura lhe pertencia, por não lhe ter sido pago o preço da venda.

9p. Depois de proceder à alteração do nome do proprietário a seu favor, a arguida dirigiu-se a Oeiras, e utilizou uma segunda chave, que sempre tivera em seu poder, pôs o automóvel em funcionamento e levou-o para sua casa.

10p. Assim procedendo, a arguida agiu de modo livre, deliberado e consciente, no propósito concretizado de se apoderar do veículo de matrícula 64-67-TO, agindo na convicção que o mesmo lhe pertencia.

XI. Face à matéria que resultou provada que, quando a arguida registou a viatura em seu nome e a foi buscar, esta era sua propriedade - faltando pois o elemento objectivo “coisa móvel alheia”. A sua intenção não era subtrair coisa móvel alheia, mas sim ir buscar coisa móvel própria. Inexiste, pois, o elemento objectivo do tipo, pois sendo seu o carro, não há subtracção de coisa móvel alheia, faltando o elemento objectivo “coisa móvel alheia”.

XII. Ainda que a conduta da arguida fosse na convicção errada de ter um direito sobre o veículo, excluiria o dolo nos termos do artº 16 nº 1.do C. Penal, isto porque há um erro sobre o elemento típico excludente do dolo, que se prende com o caracter próprio com que o agente representa a coisa de que se vem apropriar. É evidente que não cometeu um crime de furto. A arguida representou a coisa como sua, com caracter próprio, sendo evidente. E não praticou o crime, não só porque não tinha intenção de se apropriar, de coisa alheia mas também porque, justamente, se bem que de modo erróneo, estava convicto de que a viatura era sua. Logo, coisa própria e não alheia.

XIII. Se o agente está convencido erradamente que a coisa que leva para casa, consigo, é sua, mas ela é alheia, ele está em erro sobre um elemento tipico, excludente do dolo”[1]

XIV. ” Por exemplo, (...) não tem uma intenção ilegítima (...), nem o agente que, na qualidade de vendedor, subtrai uma coisa que o comprador já tem consigo, mas que não pagou.(...)” [2]

XV. Em ultima ratio, a situação em concreto configura uma “situação de erro sobre o elemento do tipo, que se prende com o caracter próprio com que o agente representa a coisa de que se vem apropriar.(...). É evidente que não cometeu um crime de furto. E não praticou, não só porque não tinha intenção de se apropriar, de coisa alheia mas também porque, justamente, se bem que de modo erróneo, estava convicto de que a caneta que metera na pasta era sua. Logo, coisa própria e não alheia”[3] negrito no original

XVI. Caindo o crime de furto, cai o crime de falsificação, pois a arguida tendo agido convicta de que era proprietária do veiculo, apenas praticou os actos necessários para proceder ao registo da viatura em seu nome, como fez, não tendo praticado qualquer crime

XVII. Quanto ao pedido cível, deve a demandada ser absolvida porquanto não se vislumbra qualquer fundamentação de facto ou de direito que leve a tal condenação. Não há qualquer analise da prova, qualquer fundamentação, qual a relação entre o valor do pedido e qualquer facto licito ou ilicito da arguida em relação ao AB. Não há qualquer valoração ou fundamentação no que tange a este, pelo que tal decisão, nesta parte, é nula.

XVIII. Face à prova produzida, não restam duvidas de que a Arguida deveria ter sido absolvida dos crimes de que vinha acusada, bem como do pedido de indemnização civil.

XIX. Foram violados os artigos 16º, 203º, 256º, do CP; 374º, 379º, 874 e 892 do Cod Civil

O recurso foi admitido.

O MºPº veio responder, tendo-se limitado a considerar que a sentença recorrida foi devidamente fundamentada, que inexiste qualquer falta de sintonia entre os factos apurados e a decisão e que foi feita correcta interpretação dos factos e adequada aplicação do direito, razões pelas quais entende não ser susceptível de qualquer reparo e dever ser confirmada, com a consequente improcedência do recurso.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual - considerando que ambos os tipos legais dos crimes que à recorrente foram imputados exigem o dolo e que das declarações por ela prestadas e do depoimento da testemunha AC parece resultar que a primeira agiu convicta de estar a exercer um direito, o qual consistia em recuperar o veículo que julgava continuar a ser sua propriedade uma vez que a compradora não tinha pago o valor total da venda ou, pelo menos se levanta uma dúvida sustentável, uma vez que não foi feita prova bastante de que o valor do veículo tenha sido integralmente pago, pelo que, a existir ilícito, o mesmo teria natureza cível e não criminal – se pronunciou no sentido da procedência do recurso, com a revogação da sentença recorrida na parte em que considera ter a arguida agido de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que o veículo não lhe pertencia e que, ao proceder ao registo em seu nome do veículo, pretendia causar “prejuízo do dono do automóvel e obtendo assim um benefício, a que não tinha direito”.

Foi cumprido o art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.


2. Fundamentação
Na decisão recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:

1p. AB entregou, em 21 de Fevereiro de 2009, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Rover, matrícula ----TO, a S. para venda.

2p. Na mesma data, o referido S. vendeu o veículo à arguida, que entrou na posse imediata do veículo.

3p. O dito AB assinou uma declaração de venda do veículo em 12 de Março de 2009.

4p. Posteriormente, a arguida vendeu o veículo a AC pelo preço de 1.750,00 euros, tomando a compradora posse imediata daquele.

5p. O companheiro da referida AC, Amoz, a quem aquela entregara o veículo, vendeu-o a JL por cerca de 2.000,00 euros, entregando-lhe o veículo.

6p. O referido JL vendeu o veículo, por sua vez, a VG, que o comprou para revenda, e de facto o vendeu em 1 de Março de 2010 a AB, para uso do filho deste, a quem o entregou de imediato, pelo preço de 2.800,00 euros.

7p. A arguida, não obstante saber que tinha vendido o automóvel, dirigiu-se à Conservatória competente e, invocando extravio da documentação, solicitou em 28 de Fevereiro de 2010 a inscrição daquele em seu nome.

8p. Assim procedendo, a arguida agiu de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que não tinha perdido os documentos e que declarava no modelo próprio um facto contrário à verdade, com prejuízo do dono do automóvel e obtendo assim um benefício, a que não tinha direito.

9p. Depois de proceder à alteração do nome do proprietário a seu favor, a arguida dirigiu-se à residência do filho do aludido AB, em Oeiras, e utilizou uma segunda chave, que sempre tivera em seu poder, pôs o automóvel em funcionamento e levou-o para sua casa, fazendo-o seu.

10p. Assim procedendo, a arguida agiu de modo livre, deliberado e consciente, no propósito concretizado de se apoderar do veículo de matrícula ---TO, que bem sabia não lhe pertencer, e sabendo que agiu sem o consentimento e contra a vontade do seu dono.

11p. Ao ter conhecimento da falta do carro, o dito AB ficou muito nervoso.

12p. A arguida, isenta de antecedentes criminais, percebe o RSI e vive com três filhos, um de 17 anos e dois gémeos com 9 anos de idade, não exercendo por agora qualquer profissão.

A motivação da decisão da matéria de facto foi assim explicada:

1 - A arguida confessou os factos, dizendo que vendera o veículo a AC, a prestações, ficando com uma chave a título de garantia; como a compradora não pagasse, afirmou, foi buscar o veículo, que considerou seu por ainda não ter sido pago, excepto uma entrada de 250,00 euros; apurou onde se encontrava o carro, obteve uma segunda declaração de venda e apresentou-se na Conservatória, onde alegou extravio de documentos (folhas 182 e verso), assim conseguindo a aceitação do seu requerimento de registo, e assim conseguindo o certificado de matrícula em seu nome (folhas 16 e 17); prestou declarações sobre as suas actuais condições de vida, nas quais o Tribunal fez fé.

2 – A testemunha JB declarou que comprou o veículo a VG por 2.800,00 euros, por meio duma declaração de venda assinada pelo titular do certificado de matrícula, Bergano; logo a seguir, o carro desapareceu, o que deixou seu pai, AB, que pagara o carro, muito nervoso; esta testemunha deixou de ter carro, por não foi negociado mais nenhum veículo para seu uso.

3 – A testemunha JL comprou, por sua vez, o veículo “a um rapaz brasileiro”, através de um anúncio, e depois vendeu-o a outra pessoa, de apelido M; todos estes negócios andam perto do valor de 2.000,00 euros, sempre com a mesma documentação passar de adquirente para adquirente.

4 – A testemunha AC confirma que comprou à arguida, pagando uma entrada de 250,00 euros e ficando de pagar mais seis prestações de outro tanto, no total, que afirma ter pago integralmente, de 1.750,00 euros; mais declara a testemunha que o veículo revelou desde logo problemas mecânicos, e que foi o seu companheiro, Amoz, quem ficou na sua posse para resolver o problema, pelo que a testemunha nunca mais o conduziu, acabando por lhe perder o rasto; é certamente este Amoz o “rapaz brasileiro” a que se refere a testemunha JL.

5 – A testemunha AM declarou que foi casado com a arguida e sabe somente que ela vendeu o veículo a AC, desconhecendo, porém, as respectivas vicissitudes.

6 – A testemunha AB declarou que nunca viu o automóvel, apenas disponibilizou a seu filho, JB, o dinheiro para o seu pagamento (“eu é que entrei com a massa”); declarou-se muito aborrecido com o desaparecimento do veículo, relatado pelo filho, mas mostrou-se convencido de que seu filho “teve de comprar outro carro” – mas não foi assim, pois o próprio afirmou que não fez tal coisa, e que simplesmente ficou apeado; a testemunha, inquirida por teleconferência a partir de Leiria, disse-se ainda “muito marcado”, assinalando “alguma falta de sono”; estas declarações, porém, prestou-as a instância, sempre preocupado em salientar que era quem “entrava com a massa” – expressão que usou várias vezes – e mostrando apenas a contrariedade que sempre se verifica em pessoas (todos nós, porventura) que se vêem despojadas de algo; daí que apenas o seu aborrecimento, que é genuíno e compreensível, tenha ficado provado; tudo o mais, falta de sono, etc, pode ter inúmeras causas, sendo esta porventura mais uma, mas sabe-se lá em que medida, dada a provecta idade da testemunha (82 anos, segundo seu filho JB, aqui ouvido).

7 – A testemunha VG, inquirida por teleconferência a partir de Cascais, declarou que comprou o veículo para revenda, por preço que não recorda, a um L – porventura a testemunha JL, embora este refira um certo Manso – e que vendeu a AB, de Oeiras; nada mais sabe, mas mesmo o que disse é exacto na medida que interessa a quem compra para revenda: sabe que o comprador é de Oeiras (e é certo, o dito JB disse que mora nesta zona), e que se chama AB, isto é, a testemunha genuinamente fixou o local de entrega do automóvel e o nome da pessoa inscrita como compradora, ou pelo menos como pagante.

8 – A testemunha Bergano, inquirida por teleconferência a partir de Beja, Declarou que comprou “ao Sérgio” um carro e deu o veículo dos autos “em troca, no ‘stand’”; assinou uma declaração de venda, mas depois teve de assinar outra, por ter passado o prazo; verosimilmente, nada mais sabe, apenas se mostrando muito contrariado, porque a arguida “não havia meio” de registar o veículo em seu nome.

9 – A testemunha SA, também inquirida por teleconferência a partir de Beja, confirmou que vendeu à arguida o carro pertencente ao dito Bergano, estando este muito contrariado, porque a arguida, compradora, demorou muito tempo a registar o veículo em seu nome; houve mesmo que obter do aludido Bergano uma segunda declaração de venda, porque passara o prazo da primeira.

10 – Estão juntos a folhas 8, 9, 16 a 20, 49 a 57 (onde se inclui a primeira declaração de venda a folhas 56), 88 e 89, 182 e verso (original do requerimento do registo agora em vigor) e 186 a 189, 197 (prova da transferência de 2.800,00 euros), 458 (certificado do registo criminal), e ainda, localizado no Citius posteriormente à audiência, o relatório social de 8 de Maio de 2014, documentos, pois, para os quais se remete e que suportam os factos dados como provados; de notar que o relatório social dá a arguida como estando a viver em Ferreira do Alentejo, tendo como cônjuge um cabo-chefe da GNR local; é de presumir que a arguida tenha omitido este último pormenor, por a ligação ter terminado; no mais, há os documentos já referidos a propósito, há o certificado do registo criminal, e mais uma série de documentação destinada a confirmar as declarações prestadas sobre as vicissitudes do veículo, designadamente que este andou de mão em mão, sem que ninguém o registasse em seu nome, até que a própria arguida o fez.

3. O Direito

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[4], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[5].

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:

- erro de julgamento quanto aos pontos 4p., 5p., 7p., 8p., 9p., e 10p. dos factos provados, falta de preenchimento do elemento objectivo coisa móvel alheia do crime de furto e erro sobre elemento típico excludente do dolo, com reflexos no crime de falsificação;

- nulidade da decisão na parte relativa ao pedido cível.

3.1. A recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto, sustentando que a prova produzida, em concreto as suas declarações e o depoimento prestado pela testemunha AC, devia ter determinado resposta diversa ao que foi vertido nos pontos 4p., 5p., 7p., 8p., 9p., e 10p dos factos provados. Em concreto, considera que não podia ter sido considerado como assente que se dirigiu à residência do filho de AB na medida em que, quando foi buscar a viatura, estava convencida de que a mesma se encontrava na posse do companheiro da AC, desconhecendo que ela tinha sido vendida. Estava, ademais, convencida de que a viatura era dela em virtude de ainda não lhe ter sido paga pela compradora, quer quando a registou em seu nome, quer quando a foi buscar a Oeiras. Por outro lado, não tendo a venda da viatura sido feita pela compradora AC, mas sim pelo companheiro desta, sem a autorização ou o consentimento dela, tal venda, tal como todas as que se seguiram, é nula. Defende, ainda, que não se mostra preenchido o elemento objectivo do tipo de furto “coisa móvel alheia” porque a viatura era sua quando a registou em seu nome e a foi buscar e, mesmo que o não fosse, ela representou-a como sua, verificando-se um erro sobre o elemento típico excludente do dolo. Por isso, defende que não praticou o crime de furto, não só porque não tinha intenção de se apropriar de coisa “alheia”, mas também porque, ainda que de modo erróneo, estava convicta de que a viatura era sua. Em decorrência, vista essa convicção e porque apenas praticou os actos necessários para proceder ao registo da viatura em seu nome, entende que também deve claudicar a condenação pelo crime de falsificação.

Tendo sido observados os requisitos formais indicados no nº 3 do art. 412º do C.P.P. para a impugnação ampla da matéria de facto, começamos por lembrar que, tal como vem sendo repetidamente frisado nas decisões dos tribunais superiores acerca do âmbito e finalidades do recurso da matéria de facto, que este não é um novo julgamento, mas apenas um remédio jurídico destinado a detectar e corrigir erros de julgamento, mormente aqueles que o recorrente tenha concretamente apontado, que “não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas”[6], que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”[7], que não serve como meio para substituir uma convicção plausível e com adequado suporte probatório por outra convicção, ainda que igualmente plausível e possível, que a existência de versões contraditórias, e até de contradições no seio da mesma versão não é necessariamente impeditiva da formação de uma convicção segura, nada impedindo que esta se firme numa delas ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível e só se justificando a aplicação do princípio in dubio pro reo quando e na estrita medida em que, após a produção de prova, subsistam dúvidas razoáveis ( não uma qualquer dúvida subjectiva ) e inultrapassáveis[8], e, enfim, que a decisão da matéria de facto só pode ser alterada nos casos em que tenha sido produzida prova que aponte inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância ( ou seja, quando a “impõe”, e já não quando apenas a “permite” ) e já não naqueles em que o tribunal recorrido, que beneficiou da imediação e da oralidade, alicerçou a sua convicção em meios de prova permitidos e explicitou devidamente o percurso seguido na sua formação sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1ª instância tem suporte na regra estabelecida no art. 127º do C.P.P.[9], escapando a qualquer censura.

À luz destas considerações gerais acerca dos limites da intervenção correctiva do tribunal de recurso, iremos então analisar as objecções apresentadas pela recorrente.

Antes, porém, há que fazer algumas observações no que concerne à forma como o tribunal recorrido fundamentou a convicção que formou.

Olhando em singelo para a motivação da decisão de facto (segmento D da sentença recorrida, sob a epígrafe de “Prova dos factos e sua análise”), verificamos que a mesma é muito lacónica (resume-se na prática ao último parágrafo desse segmento) e insuficiente quanto a pontos fulcrais (o que, de todo o modo, não impediria o tribunal de recurso de a completar quando se evidencie que, ainda assim, a decisão corresponda ao que resulta claro da prova produzida[10]), não contendo explicação congruente para a resposta de “provado” ao facto vertido no ponto 10., de acordo com o qual a recorrente “bem sabia não lhe pertencer” o veículo de matrícula ---TO que havia vendido a AC, como considerado como assente no ponto 4., pois aí até se refere que ela “afirmou [que] foi buscar o veículo, que considerou seu por ainda não ter sido pago, excepto uma entrada de 250,00 euros”, sem que venha esclarecida a credibilidade (ou falta dela) que tal afirmação mereceu ao julgador. O que se mostra relevante na medida em que, estando em causa a prática de um crime doloso (em concreto, o crime de furto), a afirmação do dolo depende da prova de que o respectivo agente conhecia todas as circunstâncias de facto e de direito que constituem o tipo de ilícito objectivo, entre elas o carácter “alheio” da coisa, como sucede nos crimes patrimoniais nos quais o crime em apreço se integra. Ora, ainda que no plano técnico-jurídico a venda se tivesse consumado e a propriedade do veículo se tivesse transmitido para a compradora, como foi afirmado em sede de qualificação jurídico-penal e adiante melhor se verá, sempre haveria que determinar se a recorrente sabia efectivamente que ele deixou de lhe pertencer ou se, erroneamente embora, agiu no convencimento de que continuava a ser seu até se mostrar integralmente pago o preço pelo qual o havia vendido. Assim, e porque a recorrente afirmou que considerava o veículo como seu, como se refere, importava explicar as razões pelas quais o julgador formou a convicção no sentido de que, contrariamente ao que por ela foi afirmado, a recorrente, ao praticar o facto descrito no ponto 9., sabia que o veículo já não lhe pertencia. E nenhuma explicação se encontra no segmento em análise, no qual apenas vem sumariado o teor das declarações e depoimentos prestados na audiência de julgamento, para além da enunciação da prova documental junta aos autos, que se afirmou suportar os factos dados como provados mas que nada esclarecem quanto à questão enunciada.

Aparentemente, pois, a decisão recorrida não contém, pelo menos na extensão adequada e necessária em função dos contornos do caso concreto, o exame crítico da prova[11], a que alude o nº 2 do art. 374º do C.P.P.

Sucede, no entanto, que, já em sede de “qualificação jurídico-penal”, a decisão recorrida acaba por fornecer a explicação em falta, evidenciando que, na parte relativa à afirmação de que estava convencida de que o veículo ainda era seu, as declarações da recorrente não foram merecedoras de credibilidade e indicando sucintamente as razões pelas quais que assim as valorou. Pois aí se escreve que “No plano da consciência da ilicitude, a arguida sempre soube que vendera o automóvel; e guardou uma chave para fazer justiça pelas suas próprias mãos; e a tal ponto sabia que vendera, que não hesitou em recorrer a um subterfúgio para obter uma segunda declaração de venda, que anulasse, de facto, os efeitos da primeira junto dos Serviços de Registo, permitindo-lhe, junto do vendedor, alegar que a primeira declaração estava fora de prazo, e junto daqueles Serviços que precisara duma nova declaração por extravio da primeira; isto sabendo, obviamente, que o vendedor não lhe daria nova declaração, e os Serviços não aceitariam o pedido de certificado de matrícula, se a arguida contasse que já vendera, que a compradora não lhe pagara, que tinha uma segunda chave em seu poder, à cautela, etc; a arguida estava ciente de que a remeteriam para o Tribunal, a fim de resolver problemas, que eram só seus; quem assim planeia, cuidadosamente, e assim executa o que planeou, não pode sequer pretender alegar que tudo fez inocentemente e de boa fé.” Temos, assim que, embora metodologicamente deslocada, a fundamentação da convicção formada pelo julgador acaba por se topar no seio da decisão recorrida.

E o que mais adiante se refere, já em sede de “Ponderação e escolha da pena”, em concreto que “A arguida raciocina dentro da lógica que a levou a guardar uma chave; “enquanto não me pagarem o carro é meu”, eis a sua lógica; a realidade técnico-jurídica não é essa, e a arguida bem o sabia, conforme já se deixou claro [sublinhado nosso]; esta ideia de que tudo isto é injusto, de que foi buscar o que lhe pertencia, de que não roubou nada e de que somente fez o que tinha legitimidade para fazer, de harmonia com os seus interesses, dá-nos uma personalidade algo propensa a procurar as suas próprias soluções, mesmo que aja ao arrepio da lei – isto é, alguém que não censura os seus próprios actos e que, por isso, ameaça pôr em perigo os interesses tutelados pela norma incriminadora, em suma, uma fonte de justificada preocupação no plano da prevenção, quer especial, quer geral” tem de ser entendido, na economia da decisão recorrida – e tendo também em conta que, no mesmo segmento se considera que “A arguida agiu com dolo directo, mas de particular intensidade, porque quis, de caso pensado, executar um procedimento, aliás algo complexo, para conseguir registar o automóvel em seu nome; e quis, feito isto, ir buscar um veículo, contra a vontade do seu dono, sabendo que já não era dona dele, a despeito da manigância obtida no registo, pois bem sabia que o vendera, e nem sabia já a quem realmente pertencia.” -, como a apreciação da personalidade da recorrente em função da forma como pretendeu “justificar” a sua conduta, em oposição à realidade técnico-jurídica (a sentença recorrida reporta-se ao segundo parágrafo da “Qualificação jurídico-penal”, onde considera que “No plano técnico-jurídico, a venda consumara-se com a manifestação de vontades, pois a arguida declarou vender e entregou, e a dita AC declarou comprar e recebeu o veículo; logo, e porque não sujeita a formalidade quoad subtantiam, a venda, aliás contrato de compra e venda de veículo automóvel, tornou-se perfeita com a dita declaração verbal, sendo certo que a chamada declaração de venda é exigida para efeitos de registo; logo, a arguida deixou de ser proprietária, e passou a sê-lo a AC, e depois os subsequentes, tudo “a cavalo” – passe a expressão – da primeira declaração de venda assinada pelo falado Bergano.” ) que se afirma ser do conhecimento da recorrente, tal como antes já se havia considerado.

Resultando, pois, claro que o tribunal recorrido não se convenceu da verosimilhança da versão apresentada pela recorrente no sentido de que foi buscar a viatura porque estava convicta de que continuava a ser sua até que o respectivo preço estivesse integralmente pago, restará determinar se a convicção formada tem adequado suporte probatório ou se, ao invés, a prova produzida impunha decisão diversa.

Ainda antes, porém, há que esclarecer se a propriedade do veículo, no momento em que a recorrente o foi buscar, ainda era sua, como a recorrente sustenta, questão que, a resolver-se de forma afirmativa, esvaziaria de sentido o apuramento das demais, porque logo o preenchimento integral dos elementos objectivos do crime de furto cairia por terra.

Mas, do regime instituído no C. Civil[12] – regra geral supletivamente no que concerne ao direito das obrigações, implicando, pois, a sua aplicação quando não tenha havido estipulação das partes em contrário - conclui-se claramente que a resposta não pode deixar de ser negativa, em consonância, aliás, com a apreciação que a respeito foi feita na decisão recorrida.

De facto, no art. 879º vêm indicados os efeitos essenciais do contrato de compra e venda, a saber, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço. No caso de não ter havido reserva de propriedade (art. 409º) ou estipulação em contrário, a transmissão da propriedade da coisa para o comprador dá-se por mero efeito do contrato, com a celebração deste, não dependendo nem da traditio, nem da posse simbólica, nem de qualquer formalidade externa, nem mesmo do pagamento do preço, podendo as partes livremente estipular o diferimento, parcial ou integral, do cumprimento desta obrigação. E, de acordo com o estabelecido no art. 886º, “Transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço.”, o que implica que, após a transferência da posse da coisa vendida, somente é possível ao vendedor assegurar a propriedade da mesma, com base no não recebimento do preço, se tiver sido convencionada uma cláusula de reserva do domínio ou de reserva de resolução do contrato, ou se uma das partes tiver perdido o interesse no cumprimento ou este se tornar impossível.

Considerando que, no caso, o veículo foi imediatamente entregue à compradora, que dele logo tomou posse, e nada tendo sido estipulado em contrário, é forçoso concluir que a propriedade do mesmo se transmitiu no momento da celebração do contrato para a compradora, AC, independentemente do que esta e a vendedora, a recorrente, acordaram com respeito à forma como seria efectuado o pagamento do preço.

Assente que o veículo era, indubitavelmente, “coisa móvel alheia” – fosse de quem fosse, a respectiva propriedade do mesmo deixou de pertencer à recorrente a partir do momento em que o vendeu à AC - quando ela o registou e depois o foi buscar ao local onde o mesmo se encontrava, dele se apropriando, subsiste a questão da nulidade das vendas posteriores do veículo, com implicações na legitimidade do queixoso AB (dada a natureza semi-pública do crime de furto e o facto de este proteger a propriedade e a posse legítima), sustentado na afirmação da compradora AC, de que não foi ela, mas sim o seu então companheiro quem procedeu à venda do veículo a JL.

É certo que o art. 892º comina de nulidade a venda de bens alheios “sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar”. No entanto, não resulta demonstrado que a venda em causa tenha sido efectuada à revelia da AC, sem a sua autorização e contra a sua vontade ( e nem mesmo resulta claro que tenha sido ela a única adquirente do veículo, considerando que ao tempo da aquisição ela vivia em união de facto ). Esta testemunha afirmou que não foi ela quem vendeu o veículo, que o mesmo avariou quando o tinha em seu poder e que, por isso, o seu então companheiro (Amoz, que não foi ouvido em julgamento em virtude de, perante a dificuldade em o localizar, o MºPº ter prescindido da sua inquirição) o levou para arranjar em Lisboa. Mais afirmou que se separou meses depois e que o seu ex-companheiro “ficou com o carro”, desinteressando-se totalmente a partir de então do destino do mesmo (afirmou textualmente que “eu não quis mais saber do carro”). Perante estas declarações é dificilmente concebível que, pelo menos de forma tácita, ela não tenha concordado que o Amoz fizesse o que entendesse com o veículo, inclusivamente que o vendesse. Fica, assim, por demonstrar que o Amoz carecesse de legitimidade para realizar a venda do veículo, tudo apontando, ao invés, que ele o fez em representação e com o acordo da então proprietária do mesmo, a AC, na eventualidade de ele não ter sido adquirido por ambos quando ainda coabitavam. Não existe, pois, fundamento para crer que as vendas subsequentes estejam feridas de nulidade e, em concreto, que o último adquirente, AB, que ademais estava de boa fé, não possa e deva ser considerado como legítimo proprietário e também legítimo possuidor do veículo.

Aqui chegados, vamos agora analisar as restantes objecções que a recorrente dirige contra a forma como foram decididos os pontos objecto de impugnação.

Quanto ao ponto 4., como resulta do que acima dissemos, é para o caso irrelevante determinar se o preço do veículo foi, ou não, integralmente pago à recorrente. Não se trata de facto essencial, e apenas poderia servir como instrumental para dele se retirar a intenção subjacente à conduta da recorrente. Ainda que o pagamento integral não tenha sido efectuado (a recorrente afirmou que apenas lhe foram pagos os 250€ do sinal aquando da entrega do veículo, a AC afirmou que pagou o preço acordado, e a testemunha AM, que era companheiro da recorrente, afirmou que ele ainda não se encontrava totalmente pago quando se separou dela, pouco tempo após a venda) e mesmo dando de barato que assim tenha sucedido, a propriedade do veículo transmitiu-se para a compradora e o não pagamento, por si só, não permite concluir que a recorrente, embora de forma errónea, estivesse convicta de que ele continuava a ser seu até que se mostrasse integralmente pago. E razões existem, como adiante se verá, que permitem concluir, sem margem para dúvidas razoáveis – que o julgador não demonstrou ter tido e que também nada impunha que devessem ter subsistido -, que ela sabia perfeitamente que o veículo já não era seu.

Quanto ao ponto 5., também já resulta do que atrás se disse, que a prova produzida não permite afirmar que a venda do veículo pelo Amoz tenha sido efectuada sem o conhecimento ou autorização da AC., sendo no mínimo muito estranho, inexplicável até, que, a assim ter sucedido, ela não tivesse qualquer reacção contra tal facto.

Quanto ao ponto 7., é por demais evidente que, ao proceder ao registo do veículo em seu nome, a recorrente sabia perfeitamente que o tinha vendido em data anterior, até porque foi ela quem interveio no negócio.

Por outro lado, que a recorrente sabia que o veículo já não era seu e que não podia legalmente registá-lo em seu nome e apoderar-se do mesmo da forma como o fez, evidenciam-no os procedimentos que adoptou em ordem a consegui-lo: obteve do proprietário anterior, Bergano, nova declaração de venda a pretexto de que a anterior (que ela já não tinha porque a havia deixado no veículo quando o vendeu à AC) se encontrava fora de prazo, invocou extravio da documentação para conseguir, na Conservatória competente, a inscrição do veículo em seu nome, e foi buscá-lo ao local onde soube que se encontrava sem dar cavaco a ninguém e sem sequer se preocupar em se certificar se ele continuava a pertencer, ou não, à pessoa a quem o tinha vendido.

Estivesse ela convicta de que agia em conformidade com a lei, por que razão se teria valido de subterfúgios e de falsidades para fazer valer os direitos que se arroga? A resposta – a única, lógica e verosímil – que se encontra é a de que a recorrente, visando evitar uma acção judicial, com a inerente morosidade e desfecho incerto, resolveu tomar o assunto em mãos e conseguir de forma rápida, por vias travessas, recuperar o veículo, obtendo dessa forma um benefício a que não tinha direito, com o reverso do prejuízo para o proprietário do veículo, não ignorando certamente que, caso contasse o que havia sucedido – que tinha vendido o veículo e que a compradora não lho pagava – a Conservatória não efectuaria o registo em seu nome e remetê-la-ia para tribunal para resolver o litígio. As próprias declarações da recorrente acabam por suportar essa conclusão, ao afirmar que arranjou outra declaração de venda, pôs o veículo em seu nome e foi buscá-lo ao local onde apurou que se encontrava porque “não via o carro nem o dinheiro”, deitando de contas “que, ou carro ou dinheiro, alguma coisa hei-de ver algum dia”. Quem está certo e seguro de que tem a lei do seu lado, não procede da forma como a recorrente (que, embora de condição modesta, não evidenciou qualquer menoscabo intelectual) procedeu. Aliás, a própria recorrente reconheceu a posteriori que não estava a agir bem, que “se calhar hoje não o fazia”, deixando perceber que foi o desespero em não conseguir resolver a situação - já que a compradora não pagava, respondendo-lhe que o veículo estava numa oficina sempre que lhe perguntava por ele, e ela, subentende-se que pela situação económica difícil que vivenciava, “tinha tanta falta dele” - que a levou a agir. Assim, bem se compreende que os protestos da recorrente de que na altura “achou que estava a agir bem” não tenham convencido o julgador, que ademais beneficiou da imediação e da oralidade, levando-o a considerar como provada a factualidade vertida no ponto 10. e também no ponto 8., tudo com adequado suporte probatório, dentro dos limites consentidos pela livre apreciação da prova e sem atropelos das regras da experiência comum, nada impondo conclusão diferente.

Finalmente, no que concerne ao ponto 9., aceita-se que o mesmo, na parte em que afirma que “a arguida dirigiu-se à residência do filho do aludido AB” não corresponda exactamente ao que resulta da prova produzida. A recorrente afirmou que desconhecia as vendas posteriores de que o veículo foi objecto e que apenas se dirigiu ao local onde lhe disseram que ele se encontrava, inexistindo quaisquer elementos que permitam concluir diversamente. Assim, e embora sem relevo para a alteração da decisão de direito, o ponto em questão deve ser alterado de forma a ficar com a seguinte redacção:

“Depois de proceder à alteração do nome do proprietário a seu favor, a arguida dirigiu-se ao local onde apurou que o veículo se encontrava, sito em Oeiras, junto à residência do filho do aludido AB, e utilizou uma segunda chave, que sempre tivera em seu poder, pôs o automóvel em funcionamento e levou-o para sua casa, fazendo-o seu.”

Em decorrência do exposto, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto apenas com a excepção assinalada e que se revela de irrelevante para a decisão de direito, temos de concluir que a mesma preenche integralmente os elementos típicos quer do crime de furto quer do de falsificação pelos quais a recorrente foi condenada, dispensando-se mais alongadas considerações a este respeito dado que, resolvida no plano factual, no plano jurídico a questão não se mostra controversa.

3.2. Finalmente, e no que concerne ao pedido cível, a recorrente argúi a nulidade da decisão condenatória por a mesma não se mostrar fundamentada de facto e de direito, não se vislumbrando qual a relação entre a indemnização arbitrada e a prática por ela de qualquer facto, lícito ou ilícito, em relação ao demandante, AB.

A obrigação de indemnizar depende do preenchimento de todos os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil extracontratual, indicados no nº 1 do art. 483º do C. Civil. ( o facto voluntário do agente; a ilicitude do facto; o nexo de imputação do facto ao agente; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano). Estando em causa danos não patrimoniais, são atendíveis na fixação da indemnização quando, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o montante da indemnização fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias relevantes que no caso se verifiquem ( nºs 1 e 3 do art. 496º do C.Civil ).

Refira-se, antes de mais, que no caso é admissível recurso autónomo da parte cível uma vez que preenchidos se mostram os requisitos cumulativos estabelecidos no nº 2 do art. 400º do C.P.P., em concreto que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido vigente à data da dedução do mesmo (no caso, é de 5.000€ para os tribunais da 1ª instância, e como decorre do art. 24º nº 1 da Lei nº 3/99, na redacção do DL nº 303/2007 de 24/8, valor que, aliás, foi mantido no art. 44º nº 1 da Lei nº 62/2013 de 26/8, e o valor do pedido deduzido a fls. 219-221 é de 13.500€ ), e que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade daquela alçada ( no caso a recorrente foi condenado no pagamento de 2.800€, acrescidos de juros ).

O pedido deduzido por AB fundamentou-se na violação do seu direito de propriedade sobre o veículo em causa, que havia adquirido por 2.800 €, e nos danos que, em consequência desapossamento pela requerida, alegou ter suportado.

Na sentença recorrida, a fundamentação atinente ao pedido indemnizatório resumiu-se às escassas linhas a seguir transcritas:

Procede parcialmente o pedido cível, apenas no respeitante aos danos patrimoniais, pelo que a demandada irá condenada em conformidade, pagando ao demandante a quantia pedida nessa parte, mais os juros, de harmonia com os artigos 483º, 804º, 805º, 806º e 559º do Código Civil.

Embora telegráfica, a decisão contém fundamentação mínima, por remissão para as normas legais expressamente citadas, e, considerando estas e a materialidade fáctica provada e pertinente, nela não se vislumbra qualquer incorrecção quanto ao acerto do que foi decidido.

De facto, mostram-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil a que já aludimos: a recorrente praticou facto voluntário e ilícito – a subtracção e apropriação de coisa móvel alheia -, dessa forma causando danos a quem nessa altura era o seu legítimo proprietário (o demandante AB), - sendo indiferente que a recorrente soubesse quem ele era, bastando o conhecimento de que a coisa não era sua e que actuava sem o consentimento e contra a vontade do respectivo dono (quem quer que ele fosse), como a sua conduta claramente demonstra - danos esses que o tribunal considerou como circunscritos ao valor do veículo, reportado àquele que o lesado comprovadamente havia pago pela sua aquisição, acrescidos de juros à taxa legal, que também foram peticionados, e que se determinou serem contados a partir da data em que foi apresentada queixa (mas que o poderiam ser da data da prática do furto, anterior àquela, atento o disposto no art. 805º nº 2 al. b) do C. Civil).

Inexiste, pois, fundamento, para alterar a condenação da recorrente no que concerne ao pedido indemnizatório.

4. Decisão

Por todo o exposto, e não obstante a alteração ao ponto 9 dos factos provados nos termos acima discriminados, julgam improcedente o recurso e mantêm a sentença recorrida.

Vai a recorrente condenada em 4 UC de taxa de justiça.

Évora, 11 de Outubro de 2016

Maria Leonor Esteves

Carlos Berguete Coelho

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[1] Dr. Paulo Pinto de Albuquerque “comentário do código penal a luz da constituição da rep e da convenção europeia dos direitos do homem”, Universidade Católica Portuguesa, 2º edição actualizada pág. 632, nota 22

[2] Dr. Paulo Pinto de Albuquerque “comentário do código penal a luz da constituição da rep e da convenção europeia dos direitos do homem”, Universidade Católica Portuguesa, 2º edição actualizada pág. 632, nota 25

[3] Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Tomo 2, pág. 47, §62 nota ao crime de furto.

[4] ( cfr. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).

[5] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.

[6] cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763.

[7] cfr. Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28

[8] Há que ter em devida conta que o princípio dubio pro reo não implica que todas as dúvidas devam ser resolvidas em favor do arguido; de facto, a imposição que dele dimana não cobre qualquer dúvida subjectiva, mas única e exclusivamente as dúvidas insanáveis, razoáveis e objectiváveis.

Conforme faz notar Cruz Bucho, “Notas sobre o princípio “in dubio pro reo”, CEJ, Comunicação apresentada em 6/5/98, numa sessão de Direito judiciário subordinada ao tema “A produção e valoração da prova”, a págs. 11 e 16, “A dúvida deve ser insanável, irredutível, irreparável, inultrapassável, invencível. Quer isto dizer que a falha no esclarecimento definitivo dos factos não pode ficar a dever-se a uma deficiente procura dos meios de prova (…) a dúvida só pode considerar-se razoável se for “a doubt for which reasons can be given”.

Também Cristina Líbano Monteiro, “Perigosidade de Inimputáveis e ‘In Dubio Pro Reo”, pág. 51, afirma que “a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir ‘pro reo’ tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária”.

[9] O princípio acolhido nesta norma implica que no processo penal, em regra (com algumas excepções, nomeadamente as que respeitam aos arts. 84º, 169º, 163º e 344º do C.P.P., integradas no princípio da prova legal ou tarifada), o julgador não se encontra vinculado à valoração das provas de acordo com regras rígidas, sendo livre de eleger aquelas às quais reconheça relevância e credibilidade para alicerçar a sua convicção, contanto que na respectiva apreciação tenha na devida conta as regras da experiência comum. Mas, como faz notar Maia Gonçalves ( CPP anot., 17ª ed., pág. 354 ), dando conta da orientação uniforme da doutrina ( e seguida igualmente pela jurisprudência ), a livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.

Assim, se a apreciação da prova é discricionária, esta discricionariedade tem limites, decorrentes do dever de perseguir a chamada "verdade material", de tal sorte que a apreciação há-de ser racional, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.

A efectivação desse controlo implica que a apreciação da prova esteja sujeita ao dever de fundamentação que, no âmbito do processo penal, constitui uma das garantias constitucionais de defesa do arguido consagradas no nº 1 do art. 32º da C.R.P., e que é acrescido em relação ao dever geral estabelecido no nº 5 do art. 97º do C.P.P., encontrando-se concretizados na norma do nº 2 do art. 374º deste diploma os conteúdos exigidos para a fundamentação da sentença penal.

[10] Assim, o Ac. RE 13/9/16 (ainda não publicado e em que a ora relatora interveio como adjunta), proc. nº 97/15.9PACTX.E1, do qual se transcrevem as seguintes considerações: “(…) o recurso efectivo da matéria de facto apresenta a virtualidade de permitir também preservar a sentença nos casos em que o juiz de julgamento não soube exprimir-se devidamente. Ou seja, preservá-la tanto nas situações em que a primeira instância julgou bem (de facto) mas fundamentou deficientemente a convicção (de facto), completando-se então essa fundamentação, como nos casos em que não julgou bem de facto, procedendo então à correcção da matéria de facto.

A Relação, porque também em contacto com as provas, pode hoje superar as deficiências de fundamentação da sentença, confirmando a boa decisão (de fundo) apesar das eventuais deficiências (de forma), ou proceder desde logo à correcção da matéria de facto porque o acesso às provas assim o permite. Oportunidade que esvazia em muito as valências da nulidade de sentença decorrente de um imperfeito exame crítico da prova (arts 379º, n º1-a) e 379º, nº 2 do CPP).

Como se nota no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2011 (Rel. Manuel Braz), “a partir da revisão de 98 do CPP, a consagração plena de um duplo grau efectivo de jurisdição em matéria de facto, torna muito menos valiosas as razões que levaram o legislador a instituir um sistema de motivação da decisão proferida sobre matéria de facto de modo a possibilitar o seu efectivo controlo. Estando ao alcance dos recorrentes o recurso amplo em matéria de facto, o que verdadeiramente relevará é verificar se ocorreu ou não um erro de julgamento da matéria de facto e já não tanto a apreciação da correcção formal da explicitação da convicção adquirida pelo tribunal”.”

[11] O qual não exige que o tribunal de julgamento, num esforço inglório e desnecessário, proceda à reprodução das declarações e depoimentos produzidos em audiência (porque para isso serve a documentação das declarações), nem que esmiúce detalhadamente cada meio de prova quando tal não se mostre necessário para apreender o seu conteúdo e o que dele se pode deduzir porque também nas decisões judiciais é recomendável alguma racionalidade na gestão dos meios, não fazendo sentido desperdiçar tempo e esforços em explicações muito pormenorizadas acerca daquilo que é facilmente inferível, inquestionável ou por demais óbvio. A norma em causa fala numa “exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa”, o que, no que concerne às provas que serviram para formar a convicção do tribunal, significa que ao julgador se exige que, a partir das mesmas e consoante o que tenha verificação no caso concreto, proceda à enunciação das razões de ciência das testemunhas e ao esclarecimento cabal e claro, ainda que breve, dos motivos que o levaram a optar por uma das versões em confronto, quando as houver, dos motivos pelos quais conferiu, ou não, credibilidade a determinados declarações e depoimentos, das razões pelas quais documentos ou exames contribuíram ou foram determinantes para que se concluísse num ou noutro sentido, tudo por forma a permitir a reconstituição e conferência do percurso lógico que seguiu na determinação dos factos como provados ou não provados e, assim, possibilitar aos destinatários da decisão, à comunidade jurídica em geral e às instâncias de recurso que sejam chamadas a fiscalizar e controlar a actividade decisória, a apreensão e compreensão dos juízos valorativos que lhe subjazeram. A exigência legal basta-se, pois, com a exteriorização clara e inequívoca do raciocínio seguido pelo tribunal na formação da convicção, de forma adequada a demonstrar que a ponderação das provas não foi arbitrária, ilógica, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.
[12] Diploma ao qual pertencerão os preceitos adiante citados a propósito da apreciação desta questão.