Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ALBERTO BORGES | ||
Descritores: | AUTO DE NOTÍCIA VALOR PROBATÓRIO FÉ EM JUÍZO | ||
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Data do Acordão: | 11/02/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I. O valor probatório atribuído ao auto de notícia pelo artigo 6 n.º 1 do DL 17/91, de 10.01, tem como pressuposto uma constatação imediata do facto e a identificação do seu autor pela autoridade ou funcionário público, no exercício das suas funções, dispensando qualquer investigação prévia; - - II. Não faz fé em juízo, quanto à autoria da infracção, o auto levantado pelo agente ou funcionário que não identificou o infractor no momento da prática do facto e o vem a identificar, posteriormente, após diligências de investigação para identificar o autor do - - III. O auto assim levantado (relativamente a uma infracção em que o agente não foi identificado no momento da infracção) não pode valer como acusação, impondo-se a sua remessa ao Ministério Público para deduzir acusação. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora: 1. No Tribunal Judicial da Comarca de Alcácer do Sal correu termos o Processo de Transgressão n.º 313/03.0TBASL, no qual, por sentença de 26.02.2004 (fol.ªs 34 e 35), foi julgada procedente a acusação e o arguido A (melhor identificado a fol.ªs 34) condenado, pela prática de uma transgressão ao disposto na Base XVIII, anexa ao DL 294/97, de 24.10, e 4 n.ºs 2 e 4 do DL 130/93, de 22.04, na multa de 140 (cento e quarenta) euros. 2. Inconformado com tal decisão, recorreu o arguido, concluindo a motivação do seu recurso com as seguintes conclusões:
b) O n.º 1 do art.º 6 do DL 17/91 é inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do acusatório (art.º 32 n.ºs 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa). c) Independentemente deste vício, o referido auto de notícia não é, em concreto, fidedigno, por ter sido lavrado mais de seis meses após a data a que se refere a ocorrência. d) Nenhuma prova foi produzida em suporte da acusação. e) Deve o presente recurso ser provido, revogada a sentença recorrida e o recorrente absolvido.
b) Não foi produzida qualquer prova que pusesse em causa o constante do auto. c) O valor probatório conferido ao auto de notícia não é inconstitucional nem colide com qualquer princípio do nosso ordenamento jurídico, nomeadamente com os princípios do acusatório e in dubio pro reo. d) A douta sentença impugnada não padece de quaisquer vícios, devendo ser inteiramente confirmada, negando-se provimento ao recurso. 5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais, procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal (art.º 423 do CPP). Cumpre, pois, decidir. 6. Constam como provado, na sentença recorrida, o seguinte facto: “No dia …, …, na portagem da A2 de …, o arguido A, conduzindo o veículo de matrícula…, com registo de propriedade a favor de B, parou na barreira da portagem e recusou-se a pagar a taxa de portagem devida, no montante de 11,40 euros”. Para fundamentar a sua convicção o tribunal – consta da sentença – “baseou-se no auto de notícia de fol.ªs 4, o qual faz fé em juízo até prova em contrário (cfr. Artigo 6 n.º 1 do DL 17/91, de 10.01), sendo certo que nenhuma prova em sentido contrário foi feita”. 7. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal). Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso. Este tribunal conhece de facto e de direito (art.º 428 n.º 1 do CPP), sendo que a prova em que o tribunal recorrido se baseou para condenar o arguido foi – apenas – o auto de notícia de fol.ªs 4 (prova documental), por considerar que aquele faz fé em juízo até prova em contrário. A única questão que se coloca é, pois, a de saber se o auto de notícia de fol.ªs 4, em que o tribunal se baseou para dar como provados os factos pelos quais condenou o arguido, faz prova plena dos factos que dele constam – concretamente quanto à autoria da infracção - e, na afirmativa, se é inconstitucional o art.º 6 n.º 1 do DL 17/91, de 10.01. --- 7.1. Estabelece o art.º 6 n.º 1 do DL 17791, de 10.01, que “o auto de notícia levantado nos termos do n.º 1 do art.º 3 faz fé em juízo até prova em contrário”. Por sua vez, estabelece o art.º 3 daquele diploma: “1 – Quando qualquer autoridade, agente da autoridade ou funcionário público, no exercício das suas funções, presenciar ou verificar contravenção ou transgressão, levanta ou manda levantar auto de notícia que mencionará os factos que constituem a infracção, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome, a qualidade e residência da autoridade, agente da autoridade ou funcionário público que a presenciou e, se possível, os nomes, estado, profissão e residência, ou outros sinais que as possam identificar, de duas testemunhas que possam depor sobre os factos. 2 – O auto de notícia é assinado pela autoridade, agente da autoridade ou funcionário público que o levantou ou mandou levantar, pelas testemunhas, quando possível, e pelo infractor, se quiser assinar, devendo ser lavrada certidão no caso de recusa”. A propósito do valor probatório do auto de notícia escreve-se no preâmbulo daquele diploma: “... É razoável que tais autos, quando levantados por autoridade ou agente de autoridade policial que, no exercício das suas funções, presencie ou verifique contravenção ou transgressão, devam merecer fé em juízo, a qual se refere aos factos pelos mesmos presenciados, não sendo extensível à culpabilidade do agente...”. 7.2. O valor probatório atribuído ao auto de notícia pelo art.º 6 n.º 1 do DL 17/91, de 10.01, tem como pressuposto, pois, uma constatação imediata do facto e do seu agente pela autoridade, agente de autoridade ou funcionário público, no exercício das suas funções, dispensando, portanto, qualquer investigação prévia. Por isso, decorrido o prazo para pagamento voluntário da multa (nos casos em que a infracção é sancionada apenas com multa), e caso a mesma não seja paga, é o auto enviado ao tribunal, equivalendo tal remessa a acusação (é o que resulta dos art.ºs 4, 6 e 7 do citado diploma) – a razão de ser de tal entendimento justifica-se porque, sendo o arguido surpreendido a cometer a infracção (cujo auto deve ser por si assinado, se quiser assinar, devendo ser lavrada certidão em caso de recusa, face ao disposto no art.º 3 n.º 3 do citado diploma), ele fica desde logo conhecedor da “acusação” que lhe é imputada e, portanto, razões de celeridade processual, eficácia, imediatismo e economia processual justificam a dispensa de uma acusação formal pelo Ministério Público. Daqui resulta: primeiro, que o auto de notícia apenas faz fé em juízo quanto aos factos presenciados pela autoridade ou funcionário público (os factos materiais objectivos que constituem a infracção), depois, porque esses factos foram necessariamente praticados por um agente – imputação subjectiva – o agente terá que ser identificado no momento da infracção, sob pena do auto não poder fazer prova plena quanto à autoria da infracção, ou seja, quanto à constatação do agente de autoridade ou funcionário público de que a infracção foi praticada por aquele agente (a necessidade de o auto ser assinado pelo infractor ou de ser lavrada certidão da recusa – o que resulta do n.º 3 do art.º 3 do referido diploma - supõe, como é bom de ver, que o auto é levantado na presença do infractor, que a este é dado conhecimento do seu conteúdo e que, portanto, não se suscitam dúvidas quanto à pessoa que cometeu aquela infracção). 7.3. No caso em apreço, e como se vê dos autos, o agente autuante que presenciou os factos, não identificou o infractor no momento da infracção. Os factos ocorreram em 19.12.2002 e no momento da infracção não foi possível identificar o infractor. Foram, por isso, efectuadas várias diligências para identificar o infractor, vindo a apurar-se que naquela data o veículo com o qual foi cometida a infracção estaria alugado a A, tendo então sido elaborado o auto de notícia de fol.ªs 4, em 3.07.2003, no qual é imputada àquele arguido a prática dos factos que do auto de notícia constam. Estas diligências posteriores, que levaram à identificação do suposto infractor, contra o qual foi levantado o auto de notícia, permitem concluir, com toda a certeza, que o autuante não constatou quem cometeu a infracção, constatação que supunha a sua identificação no momento (se assim fosse não seria necessário proceder às diligências posteriores para apurar quem teria conduzido aquele veículo no momento da infracção, concluindo, pelas informações que colheu, que era o arguido), ou seja, uma vez que o arguido não foi identificado no momento da infracção pelo autuante, não pode dizer-se que o auto faça fé em juízo quanto à autoria da infracção Por conseguinte, não podia o tribunal, com base naquela prova – apenas naquela prova – concluir que a infracção foi praticada pelo arguido e, por conseguinte, condenar o arguido pela prática de tal infracção. 7.4. Mas uma outra questão se suscita, em face desta conclusão – de que o auto de notícia não faz prova plena de que os factos foram cometidos pelo arguido, cuja identificação não foi efectuada no momento da infracção. É que, a ser assim, como entendemos que é, então tal auto de notícia não pode valer como acusação (art.º n.º 1 e 7 n.ºs 1 e 3 do DL 17/91, de 10.01), pelo que deveria ser dado cumprimento ao disposto no art.º 7 n.º 3 do citado diploma, deduzindo o Ministério Público, se assim o entendesse, a respectiva acusação. Como não o fez, estamos perante uma nulidade processual insanável – a falta de promoção pelo Ministério Público - de conhecimento oficioso em qualquer estado do processo e cuja consequência é a de tornar inválido o acto (a remessa dos autos a tribunal sem ter sido deduzida acusação) e os todos os termos posteriores do processo que daquele dependem (art.ºs 119 al.ª b) e 122 n.º 1, ambos do CPP). 8. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, declarando nulo todo o processado a partir da remessa dos autos a juízo para marcação, ordenam a sua devolução ao Ministério Público, nos termos a para os efeitos do art.º 7 n.º 3 do DL 17791, de 10.01. --- Sem tributação. (Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado) Évora, 2/11/04 Alberto Borges Fernanda Palma Fernando Cardoso |