Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2090/11.9TBLLE.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
COMINAÇÃO
IRREGULARIDADE
SANAÇÃO
Data do Acordão: 12/20/2011
Votação: MAIORIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: PROVIDO O RECURSO
Sumário: I – Está afectada de irregularidade a decisão judicial que determina o aperfeiçoamento da impugnação judicial da decisão administrativa sem indicação expressa da cominação para o não cumprimento.
II – A irregularidade de que padece o despacho de aperfeiçoamento em apreço afecta o valor do acto subsequentemente praticado de rejeição da impugnação judicial e é de conhecimento oficioso, sendo consequentemente irrelevante que a arguida recorrente não a tenha alegado em prazo.

III – O acto irregular em causa violou o princípio da confiança derivado do direito a processo equitativo, posto que omite efeito cominatório cujo conhecimento cabal a quem se dirige é essencial, em consciência, à decisão de o acatar ou não, redundando a sua prolação nos termos efectuados pelo Tribunal a quo na negação de uma tutela jurisdicional efectiva que impõe a prevalência da justiça material sobre a justiça formal.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

Nos autos de recurso de contra-ordenação nº 2090/10.9 TBLLE, procedentes do Tribunal Judicial de Loulé, a arguida “(…), Ldª”, foi condenada pela Câmara Municipal de Loulé, no pagamento de uma coima de € 5 000,00 (cinco mil euros), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 4º, nº 1, 62º, nº 2, 80º, nº 1 e 98º, nºs 1, alínea d) e 4, do Decreto-Lei nº 555/99, de 16.12, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 177/01, de 04.07.---

A arguida impugnou judicialmente aquela decisão.---

Por despacho judicial datado de 30.09.2010, a arguida foi notificada, em 21.10.2010, para, além do mais, no prazo de 10 (dez) dias, apresentar as conclusões da impugnação judicial da decisão administrativa.---

Por despacho datado de 23.02.2011, porque a arguida nada disse ante tal convite, foi rejeitada a impugnação judicial da decisão administrativa.---

A arguida interpôs recurso desta decisão judicial, encerrando a minuta com as seguintes conclusões:---

“(…)

1. Tendo sido omitida no despacho que notifica para apresentar conclusões quer a obrigatoriedade das mesmas quer a cominação legal para a falta de cumprimento, onde deveria obrigatoriamente constar que perante a falta de resposta da arguida no aperfeiçoamento das conclusões de recurso o mesmo seria rejeitado, verifica-se uma irregularidade que comina a nulidade do acto.

2. Não poderia no despacho que agora se recorre ser o recurso rejeitado com o fundamento de inobservância da forma legal, mas antes deveria ser ao acto repetido em observância ao que preceitua o artigo 122 n.º 2 do Código de Processo Penal.

3. Ou, em alternativa, ser decidido o recurso em audiência, obstando assim a uma clara violação do direito de defesa da arguida.

4. A decisão judicial de que se recorre é, assim, inconstitucional por violação do disposto no artº 32º da CRP.

5. Como inconstitucional é a norma em causa (Artº 417, nº 3 do CPC) quando interpretada no sentido de que o recurso pode ser rejeitado quando, faltando conclusões, não seja o arguido recorrente convidado a aperfeiçoar com a expressa cominação de rejeição caso não dê cumprimento.

i) Normas Jurídicas Violadas:

a) Artigo 32 da Constituição da República Portuguesa.

b) Artigo 414 n.º 2 do Código de Processo Penal

c) Artigo 417 n.º 3 do Código do Processo Penal.

d) 122 n.º 2 do Código de Processo Penal

ii) Sentido em que deveriam ser interpretadas as normas indicadas pelo Tribunal que fundamentam o despacho de rejeição do recurso:

Faltando a cominação legal perante a falta de resposta da arguida no convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso contra-ordenacional, seria de esperar do meritíssimo juiz a quo despacho mandando repetir o acto com a devida menção da cominação legal perante a eventual inobservância do convite ao aperfeiçoamento pela arguida; ou, em alternativa, ser o recurso julgado em audiência já que, na sua essência decorrem da redacção daquele recurso as conclusões que a arguida faz da coima que lhe foi aplicada pela autoridade administrativa.

ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”.---

A Digna Magistrada do Ministério Público, em primeira instância, respondeu ao recurso, defendendo que este não merece provimento. Extrai da resposta apresentada as seguintes conclusões:---

“(…)

1. Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 41º, nº 1, 74º, nº 4, e 63º, nº 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, é o regime dos recursos estatuído no Código de Processo Penal, com as especialidades naqueles previstas, o que deve aplicar-se.

2. O recurso deve constar de alegações e conclusões (art. 59º, nº 3, do citado Regime Geral das Contra-Ordenações.

3. O recurso interposto não contém conclusões, motivo por que foi ordenada a notificação da recorrente para as apresentar.

4. A recorrente entendeu não apresentar conclusões.

5. Nos termos dos arts. 59º, nº 3, e 63º, nº 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, foi o recurso rejeitado.

6. O despacho recorrido não padece de qualquer nulidade ou, sequer, de irregulaidade.---

7. A consequência da apresentação de um recurso “sem respeito pelas exigências de forma” acha-se prevista na lei, não dependendo de qualquer “cominação”.

8. Por tudo o exposto, deve o despacho recorrido ser confirmado e, em consequência, negar-se provimento ao recurso.

No entanto, Vossas Excelências ponderarão e farão, como sempre, justiça.”.---

O recurso foi admitido e os autos foram continuados a este Tribunal.---

O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos termos seguintes, que se transcrevem:---

“(…)

Às lacunas do regime processual das contra-ordenações aplicam-se as disposições do Código de Processo Penal - art° 41° do DL 433/82, de 27/10.

Não contendo conclusões (como o exige o nº 3 do art.º 59º do DL 433/82), o recurso que a ora recorrente interpôs da decisão administrativa, que a condenou na coima de 5.000€, por infracção ao disposto nos art. 4.º, 1 e 62.º do DL 555/99, de 16/12, com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001, de 4/6, o Tribunal a quo notificou-a, e bem, para no prazo de 10 dias colmatar tal lacuna.- Fls. 33.

Todavia, tendo-a notificado de acordo com o disposto no Código de Processo Penal deveria, em nosso juízo, notificá-la nos exactos termos da disposição aplicável ao caso, ou seja, do art° 417°, 3, daquele diploma legal, isto é, com a cominação nele expressa - sob pena de o recurso ser rejeitado, caso não apresente conclusões.

A omissão verificada, porque não incluída no elenco das nulidades dos art°s 119° e 120.° do CPP traduz-se, a meu ver, numa mera irregularidade. - art° 118°, 2, do CPP -que terá de ser arguida no prazo estipulado no art.º 123°, 1, do mesmo diploma legal, ou seja, e porque a arguida não esteve presente no acto, no prazo de 3 dias seguintes a contar da data em que foi notificada do despacho.

Ora, tendo sido notificada desse despacho em 21.10.2010 - fls.36 e 52 e vº - e o seu ilustre Mandatário em 08.10.2011 - fls. 35 - e a arguição da irregularidade só ocorreu em 17.03.2011 com a apresentação, em juízo, da motivação do recurso interposto do despacho de fls. 89, ter-se-à, a meu ver, por sanada a irregularidade ocorrida.

E sendo assim, o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, apresentado pela ora/recorrente, não contem conclusões, como o exige o nº 3º do art.º 59.º do DL 433/82, pelo que, terá de ser rejeitado, como o foi, por inobservância de exigências de forma, nos termos do n.º 1 do art° 63° do mesmo diploma legal.

E daí que, em nosso parecer, não possa proceder o recurso, ora em apreço.”.---

Cumprido o artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, a arguida não replicou.---

Foram colhidos os vistos legais.---

Foi realizada a conferência.---

Cumpre apreciar e decidir.---

II

Os poderes cognitivos deste Tribunal ad quem confinam-se à matéria de direito, nos termos prevenidos no artigo 75º, nº 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro e actualizado pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro e pela Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro e doravante designado por R.G.C.O.), e sem prejuízo do preceituado no nº 2, do supra referido preceito legal.---

As conclusões da motivação demarcam, no essencial, o objecto do recurso – cfr. artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, ex vi do disposto no artigo 74º, nº 4, do R.G.C.O..---

Vistas as conclusões de recurso, as questões aportadas pela arguida recorrente são as seguintes:---

i) Da “irregularidade que comina de nulidade” a falta de indicação, no despacho que convidou a recorrente ao aperfeiçoamento da impugnação judicial da decisão administrativa, das consequências legais do seu não acatamento;---

ii) E, em consequência, a substituição da decisão ora recorrida por despacho que ordene a repetição daquele convite, com menção das legais consequências,---

iii) Ou a substituição da decisão recorrida por despacho que por ordene que o recurso seja “decidido em audiência” posto que “na sua essência decorrem da redacção daquele recurso as conclusões”.---

III

Para conhecimento das supra indicadas questões importa, antes do mais, ter presentes os seguintes elementos constantes do processo:---

1) A impugnação judicial da decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal de Loulé e apresentada pela arguida, tem o seguinte teor (cfr. fls. 25 e 26):---

“(…)

Exmo Senhor

Dr. Juiz de Direito

Alegações e conclusões que apresenta a recorrente (…):

Alegações:

1- A Arguida não executou quaisquer obras no Armazém em causa.

2- O referido Imóvel não é propriedade da Arguida.

3- A Arguida depositou ali alguns bens.

4- Mas não mais do que isso.

5- A Arguida não labora no dito local.

6- Aliás a actividade da Arguida é executada exclusivamente nos estabelecimentos dos seus clientes.

7- São falsos os factos constantes do auto de notícia e da douta decisão recorrida.

8- No dia 5 de Novembro de 2007 a Arguida não se encontrava a laboral no Armazém sito em Monte João Preto, freguesia de Boliqueime.

Conclusões:

Termos em que deverá V. Exa revogar a decisão recorrida, absolvendo a arguida da prática da contra ordenação que lhe foi imputada.

Prova: (…)

Requer-se a tomada de declarações ao legal representante da Arguida,

(…)”.---

2) O despacho de convite ao aperfeiçoamento da apresentada impugnação judicial, supra transcrita, datado de 30.09.2010, mostra-se exarado, na parte pertinente, nos seguintes termos (cfr. fls. 33):---

“ I - Registe, distribua e autue como recurso de impugnação judicial de decisão administrativa.

II - (…)

III - Por uma questão de economia e celeridade processuais, notifique à arguida/recorrente e ao Ilustre Causídico signatário para que seja junto aos autos procuração, com ratificação do processado caso seja necessário ou comprovar que a mesma já se encontra junta aos autos, sob pena de o recurso interposto ser rejeitado por falta de legitimidade do subscritor.

Notifique ainda para apresentar conclusões de recurso.

Prazo: 10 (dez) dias.

(…)”.---

3) Este despacho foi notificado o Exmº Mandatário da arguida recorrente em 08.10.2010 (cfr. fls. 35), e a esta, pessoalmente, em 21.10.2010 (cfr. fls. 82 e verso).---

4) O despacho recorrido, proferido em 23.02.2011, que rejeitou a impugnação judicial da arguida recorrente, por inobservância da forma legal, tem o seguinte teor, que se transcreve (cfr. fls. 89):---

“Por despacho proferido em 30.09.2010 (fls. 33 dos autos), devidamente notificado, foi o recorrente convidado a apresentar novo requerimento de interposição de recurso, no prazo de 10 dias, devidamente motivado com as respectivas conclusões, em conformidade com as exigências constitucionais de proporcionalidade, com afloramentos nos artigos 18°, n.º 1 e 266º, n.º 2, ambos da C.R.P.

Mostra-se decorrido o prazo concedido e o recorrente não apresentou novo requerimento corrigido.

Ora, dispõe o artigo 59°, n.º 3, do Regime Geral das Contra-Ordenações (aprovado pelo DL 433/82, de 27.10, na redacção introduzida pelo DL 244/95, de 14.9) que: “O recurso é feito por escrito e apresentado à entidade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 10 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões”.

Por seu turno, dispõe o artigo 63°, n.º 1, do citado diploma legal que: “O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma”.

Verifica-se in casu que o presente recurso não obedece às exigências legais de forma.

Termos em que, e ao abrigo dos invocados preceitos legais, rejeito o recurso apresentado com fundamento em inobservância da forma legal.

Custas pelo recorrente que se fixam cm 2 UC (artigos 87°, n.º 1, c) e 97º do C.C.J.).

Notifique.

(…)”.---

IV

Como acima se deixou editado, a primeira questão [(i)] em que se centra o objecto do presente recurso é a de saber se o despacho que convidou a arguida a aperfeiçoar a impugnação judicial padece de alguma invalidade.---

Para tanto importa ter presente que nos termos do preceituado no artigo 41º, nº 1, do R.G.C.O., “Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo penal.”.---

Vale o exposto por se afirmar que, as normas de processo penal são sempre aplicáveis desde que o contrário não resulte daquele diploma, devendo também ser aplicadas as normas para as quais remetam por sua vez as normas de processo penal.---

Nos termos do disposto no artigo 59º, nº 3, do R.G.C.O., “O recurso é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões.”.---

E, de harmonia com o estatuído no artigo 63º, nº 1, do R.G.C.O. “O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora de prazo ou sem respeito pelas exigências de forma”.---

Sabido é que, por força do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 265/2001, de 19.06.2001, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos a impugnação judicial de decisão administrativa que não contenha conclusões deve ser objecto de despacho de aperfeiçoamento. Aquele Acórdão declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que resulta das disposições conjugadas constantes do nº 3, do artigo 59º e do nº 1, do artigo 63º, ambos do R.G.C.O., na dimensão interpretativa segundo a qual a falta de formulação de conclusões na motivação de recurso, por via do qual se tenta impugnar a decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima, implica a rejeição do recurso, sem que o recorrente seja previamente convidado a efectuar tal formulação.---

A consagração dessa exigência de aperfeiçoamento veio, aliás, a ser expressamente acolhida no processo penal em razão da redacção dada pela Lei nº 48/2007, de 29.08, ao nº 3, do artigo 417º, do Código de Processo Penal, (que dispõe que “Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nº 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.”), e, por conseguinte, também no processo contra-ordenacional.---

Assim, como decorre do parecer do Exmº Procurador Geral-Adjunto junto deste Tribunal ad quem, dúvidas não se nos suscitam que, ante o teor da impugnação judicial em causa nestes autos (e supra transcrita), se impunha ao julgador o convite ao seu aperfeiçoamento, já que tal impugnação constando de alegações, é completamente omissa em conclusões. Quer entendamos, ou não, que às exigências de forma a que alude o artigo 59º, nº 3, do R.G.C.O. se aplicam as prevenidas no artigo 412º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, certo é que, in casu, a arguida recorrente confunde o pedido com as conclusões. Fundando-se a presente impugnação na alegação de que a arguida não praticou os factos cujo cometimento lhe é imputado, as conclusões apenas tinham que resumir tal alegação. Como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, Editora Rei dos Livros, pág. 107, “por conclusões entende-se um apanhado conciso de quanto se desenvolveu no corpo da motivação”, isto é, tal como o legislador o refere – cfr. artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal – as conclusões são o resumo das razões do pedido e têm como função delimitarem o objecto do recurso.---

Ora, ante o que se deixa expendido, e atentando uma vez mais, no parecer do Exmº Procurador Geral-Adjunto, também dúvidas não se nos suscitam que o despacho de convite ao aperfeiçoamento proferido pelo Tribunal a quo deveria ter expressamente mencionado a cominação adveniente do não acatamento de tal convite de aperfeiçoamento, nele se fazendo constar a cominação expressa no artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal, aplicável por força do preceituado no já mencionado artigo 41º, nº 1, do R.G.C.O..---

Não o tendo feito, como devia, de que invalidade ou vício padece tal despacho? ---

Não é de nulidade, seja ela insanável ou dependente de arguição (sanável), porque não se encontra entre as causas elencadas nos artigos 119º e 120º, do Código de Processo Penal, geradoras de tal vício, sendo certo que o nosso Código de Processo Penal se consagrou um sistema de nulidades taxativas – cfr. artigo 118º, daquele Código.---

Por conseguinte, aquele acto ilegal é irregular, nos termos do estatuído no artigo 118º, nº 2, do Código de Processo Penal, de acordo com o qual “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.”.---

Assim sendo, estamos, pois, perante uma irregularidade, cujo regime se encontra disciplinado no artigo 123º, do citado Código.---

Dispõe o nº 1 deste preceito que, “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.”.---

A arguida recorrente não arguiu tal irregularidade em prazo. Foi notificada, como acima se consignou, do despacho de aperfeiçoamento, a própria, em 21.10.2010 e o seu Exmº Mandatário, em 08.10.2010, sendo que a alegação de tal irregularidade só é trazida ao conhecimento do Tribunal aquando da apresentação do presente recurso, em 17.05.2011 (cfr. fls. 96).---

Porém, de harmonia com o disposto no nº 2, do mencionado artigo 123º, do Código de Processo Penal, “Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.”.---

O que se questiona, agora, é pois saber se este Tribunal ad quem deve conhecer oficiosamente da irregularidade detectada, suposto que a arguida recorrente alegou o vício fora do prazo legal que lhe era concedido para o efeito.---

Como refere Maia Gonçalves em anotação ao artigo 123º, do Código de Processo Penal, in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 15ª edição-2005, Almedina, pág. 306, “Apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que não se exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.

Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos nºs 1 e 2, que vai desde o considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do acto inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afectar, passando-se pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador, com muita ponderação pelos interesses em equação, maxime as premências de celeridade e de economia processual e os direitos dos interessados.”.---

E a este propósito importa recordar o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2006, proferido no processo nº 06P1934, disponível in www.dgsi.pt/jstj., onde se lê a propósito do domínio das irregularidades, o seguinte: “(…) Estamos, assim, perante a questão da natureza difusiva da invalidade. Neste plano são configuráveis duas posições extremas e antagónicas: uma, parte da indivisibilidade do processo penal, compreendido como um conjunto de actos em estreita interdependência, para sustentar a invalidade de todo o processo, ainda que só um acto esteja viciado. A segunda, arranca do carácter fragmentário do processo penal, agora entendido com um conjunto de peças que encaixam, mas que conservam a sua autonomia, para restringir a invalidade apenas ao acto viciado.

Só que, conforme Conde Correia (obra citada pág. 125 [“Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais”]), a escolha de uma daquelas soluções, na sua pureza original, contenderia com valores fundamentais dos ordenamentos processuais penais. A extensão da invalidade a todo o processo choca com a economia processual. A restrição da invalidade ao acto viciado atinge, no seu âmago, a garantia de legalidade do procedimento e os interesses individuais e colectivos que a conformam. Por isso mesmo, em geral, a solução encontrada procura conciliar aqueles interesses, evitando os inconvenientes da sua exasperação e alargando as vantagens incitas em cada um deles. Por um lado, negando a extensão automática da invalidade a todos os actos anteriores, contemporâneos ou posteriores, de alguma forma conexionados com o acto inválido. Por outro lado, reconhecendo que estes têm influência sobre o procedimento, podendo contaminá-lo com os germens da invalidade. Esta posição intermédia, normalmente adoptada pelos legisladores, caracteriza-se, portanto, por estender a invalidade apenas a determinados actos, em particular aqueles que, sejam anteriores, coevos ou sucessivos, dependem do acto viciado. O elemento fundamental e também mais debatido das noções de invalidade sucessiva e derivada é, assim, a ideia de dependência. Não é suficiente uma simples relação acidental ou ocasional, nem a mera ligação cronológica. Pelo contrário, exige-se uma dependência real e efectiva. O acto inválido deve ser uma premissa lógica e jurídica do acto posterior, de tal forma que, faltando aquele, a validade deste fica, em definitivo, abalada. Mutatis mutandis o acto sucessivo deve ser consequência necessária do acto antecedente ou contemporâneo, de modo que, com a sua invalidade, este torna-se incapaz de cumprir a sua função.

A este propósito Franco Cordero distingue entre actos propulsores do processo, que constituem elementos necessários ao seu desenvolvimento e actos de aquisição probatória, que são meros componentes do processo, com carácter eventual ou acidental. Aqueles comunicam a invalidade que os afecte aos restantes (devido ao nexo de dependência necessária existente entre eles) pelo que o remédio consiste no retorno do processo ao ponto onde foi praticado o acto imperfeito. Estes já não estão ligados aos subsequentes por um nexo de dependência efectiva, ficando excluída a propagação automática da invalidade. (…).

Para Creus torna-se essencial uma relação de conexão entre o acto inválido e aquele que pode ser afectado por extensão. Precisando, afirma o mesmo processualista que se trata de actos que, apesar de serem anteriores ou concomitantes na sequência procedimental em relação ao acto defeituoso, concretizam-se processualmente através da realização deste. A relação de conexão que se estende aos actos abrangidos pelos efeitos anulatórios como que se manifesta numa integridade conceptual em que se unifica indissoluvelmente o destino dos actos plurais anulados.(…).”.---

Posto isto, salvo devido respeito por melhor opinião, o acto irregular em apreço porque prévio à decidida rejeição, tem implicações na própria solução que o caso mereça, na medida em que o despacho recorrido surge como consequência daquele e fundamentado no incumprimento pelo recorrente do despacho de aperfeiçoamento para oferecimento de nova peça na qual suprisse a apontada deficiência de falta de conclusões, sem que lhe fosse dado a conhecer expressamente que do não acatamento de tal despacho de aperfeiçoamento da impugnação judicial da decisão administrativa que lhe aplicou uma coima decorria a rejeição da mesma, com a consequente preclusão de conhecimento do mérito, cuja discussão pretendia ver apreciado judicialmente, tanto mais quanto a defesa se centra na alegação e demonstração por banda da arguida recorrente que não praticou os factos que integram a infracção.---

Qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória está sujeito à exigência constitucional de ser um processo equitativo – cfr. artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa – o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o Tribunal, se movam dentro de valores como a lealdade e a confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transpareçam do processo – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.---

Assim, somos do entendimento de que a irregularidade de que padece o despacho de aperfeiçoamento em apreço afecta o valor do acto subsequentemente praticado de rejeição da impugnação judicial e é de conhecimento oficioso, sendo consequentemente irrelevante que a arguida recorrente não a tenha alegado em prazo. O acto irregular em causa violou o princípio da confiança derivado do direito a processo equitativo, posto que omite efeito cominatório cujo conhecimento cabal a quem se dirige é essencial, em consciência, à decisão de o acatar ou não, redundando a sua prolação nos termos efectuados pelo Tribunal a quo na negação de uma tutela jurisdicional efectiva que impõe a prevalência da justiça material sobre a justiça formal.---

E, se ao Tribunal ad quem, nos termos do artigo 410º, nº 3, do Código de Processo Penal se impõe o conhecimento da “inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”, por identidade de razão se imporá o de irregularidade de conhecimento oficioso, isto é, de irregularidade que não deva considerar-se sanada, tanto mais que a sua verificação bule, como se demonstrou, com a violação de direitos constitucionalmente consagrados.---

Flui de tudo o que se deixa expendido que, ao abrigo do disposto nos artigos 410º, nº 3, do Código de Processo Penal e 75º, nºs 1 e 2, alínea b), do R.G.C.O., somos do entendimento que os autos devem baixar à 1ª instância, declarando-se irregular, nos termos do estatuído nos artigos 118º, nº 2 e 123º, do Código de Processo Penal, o despacho de convite ao aperfeiçoamento da impugnação judicial sem expressa menção da respectiva cominação (e constante de fls. 33) e, consequentemente inválidos os ulteriores termos do processo, mais precisamente o despacho recorrido que rejeitou a impugnação judicial da decisão administrativa apresentada pela arguida recorrente (constante de fls. 89), que deverão ser substituídos por outro que a convide ao aperfeiçoamento, por falta de conclusões da impugnação judicial que apresentou, no qual expressamente se consigne que, se a arguida recorrente não acatar tal convite de aperfeiçoamento, a impugnação judicial será rejeitada, tudo conforme estatuído nos artigos 59º, nº 2, 63º, nº 1, do R.G.CO. e 417º, nº 3, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41º, nº 1, do primeiro diploma citado.---

Fica precludido o conhecimento da questão supra enunciada sob o ponto iii) de fls. 6 do presente aresto.---

V

Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em:---

A) Conceder provimento ao recurso interposto pela arguida recorrente, declarando irregular o despacho de convite ao aperfeiçoamento da impugnação judicial sem expressa menção da respectiva cominação (e constante de fls. 33) e, consequentemente inválidos os ulteriores termos do processo, mais precisamente o despacho recorrido que rejeitou a impugnação judicial da decisão administrativa apresentada pela arguida recorrente (constante de fls. 89), devendo serem substituídos por outro que a convide ao aperfeiçoamento, por falta de conclusões da impugnação judicial que apresentou, no qual expressamente se consigne que, se a arguida recorrente não acatar tal convite de aperfeiçoamento, a impugnação judicial será rejeitada, tudo conforme estatuído nos artigos 59º, nº 2, 63º, nº 1, do R.G.CO. e 417º, nº 3, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41º, nº 1, do primeiro diploma citado.---

B) Não serem devidas custas.---

(Texto processado e integralmente revisto pela relatora)

Évora, 20 de Dezembro de 2011

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares (relatora)

António Manuel Clemente Lima (Presidente da Secção)

Alberto João Borges (adjunto) – vencido, segue declaração de voto.

Votei vencido, pois negaria provimento ao recurso.

De facto, sem questionar a existência de uma irregularidade processual, como na decisão que fez vencimento se decidiu, essa irregularidade encontra-se sanada, porque não tempestivamente arguida.

De facto, a recorrente dela tomou conhecimento, quer aquando da notificação, quer quando lhe foi notificada a decisão recorrida, sendo que só em sede de recurso a vem arguir, bem para além do prazo estabelecido no art. 123.º do CPP.

Por outro lado, trata-se de formalidade estabelecida em benefício do recorrente, para obviar à rejeição do recurso por questões meramente formais, que ele pode usar ou não como bem entender, seja acolhendo o convite que lhe é endereçado, seja arguindo a irregularidade da notificação ou suscitando quaisquer dúvidas que a mesma lhe suscite, seja ficando indiferente a tal convite, arcando com as consequências da sua inércia, consequências que resultam expressamente da lei e que ele, enquanto recorrente, não pode deixar de conhecer. Trata-se de opção sua, em fiunçãoi da sua estratégia de defesa, que o tribunal não tem que questionar.

Acresce que o dever de boa fé processual e da lealdade não ´+e um exclusivo do tribunal, vinculando também os sujeitos processuais, que – perante qualquer irregularidade ou nulidade processual de que tenham conhecimento, ou devam ter, usando dos deveres de diligência exigíveis, enquanto interessados – devem reagir, desde que a considerem relevante, não podendo escudar-se na sua própria negligência ou descuido para vir depois, quando lhe pareça conveniente ou oportuno, usar a mesma para destruir o processado e, quiçá, retardar o desfecho do processo e o consequente julgamento, com os benefícios que daí possa retirar (veja-se neste sentido o acórdão do STJ de 29.04.2009, Proc. 77/00.9GAMUR.S1, in www.dgsi.pt).

Considerando, por isso, sanada tal irregularidade, confirmaria a decisão recorrida

(Alberto João Borges)