Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MOISÉS SILVA | ||
| Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO ACIDENTE IN ITINERE | ||
| Data do Acordão: | 04/26/2018 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Sumário: | i) o que releva na interrupção do trajeto para regressar à residência para almoçar é que se destine a satisfazer necessidades pessoais atendíveis da trabalhadora, não se exigindo que sejam urgentes. ii) o acidente ocorrido durante a interrupção, pela trabalhadora, do trajeto de regresso à sua residência para almoço a partir do momento em que saiu do seu posto de trabalho na peixaria para efetuar compras de bens no supermercado onde trabalha e depois prosseguir o seu percurso, tendo em conta a natureza dos bens vendidos no supermercado, consubstancia a compra de bens para a satisfação de necessidades pessoais atendíveis, pelo que o evento deve ser considerado como acidente de trabalho. (Sumário do relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 2477/15.0T8PTM.E1 Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora I - RELATÓRIO Apelante: CC, SA (ré). Apelada: BB (autora) Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo do Trabalho de Portimão, J2. 1. A A. veio propor a ação especial emergente de acidente de trabalho contra Companhia de Seguros CC, SA, e DD, SA, pedindo que as rés sejam condenadas a reconhecer o evento descrito nos autos como acidente de trabalho, a transferência de responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do mesmo em função da retribuição auferida pela autora, no valor anual de € 9 449,60 e, em função disso, a condenação da ré CC no pagamento à autora da “pensão anual e vitalícia de € 7.559,68, devida desde 09.01.2015, acrescida do montante de € 944,96 enquanto se verificar a existência de pessoas a cargo”, do “montante de € 10 168,03 a título de indemnização legal devida por incapacidade temporária”, e do “montante de € 5 533,70 a título de subsídio por situações de elevada incapacidade”. Pede, igualmente, a condenação da ré CC no pagamento de juros de mora sobre as referidas prestações, à taxa legal anual, vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento. Subsidiariamente, para o caso de se vir a entender não estar validamente transferida a responsabilidade da empregadora, peticiona a condenação desta última a indemnizá-la, pagando as quantias referidas, acrescidas de juros de mora. Alega, para tanto e em síntese, que no dia 09 de julho de 2013, quando exercia, sob as ordens, direção e fiscalização da ré DD, SA, a atividade profissional de operadora ajudante, no momento em que abandonava o local de trabalho para ir almoçar a casa, escorregou no pavimento e caiu, sofrendo traumatismo do 2.º dedo da mão esquerda, lesão que lhe provocou incapacidade temporária absoluta entre a data do acidente e 09.01.2015 (data em que se completaram 30 meses sobre aquela data), pelo que deve aquela incapacidade considerar-se convertida em incapacidade permanente absoluta – e, por isso, reclama o pagamento das prestações acima referidas. Citadas as rés, veio a ré Companhia de Seguros CC, SA contestar, alegando desconhecer as circunstâncias em que ocorreu o acidente invocado pela autora, por não lhe ter sido participado, mas aduzindo que, a ter-se verificado como alegado pela autora, não pode ser considerado acidente de trabalho, na medida em que aquela se desviou do seu trajeto normal, pelo que o evento em questão escapa à noção de acidente in itinere. E, nesta conformidade, entende a ré seguradora que afastada está a possibilidade de ser responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pela autora. Discorda, ainda, aquela ré do grau de incapacidade atribuído à autora – designadamente, que decorridos 30 meses sobre a data do acidente a autora se encontrasse em situação de incapacidade temporária absoluta – e, por isso, entende que não são devidas à autora as prestações reclamadas. Também a ré DD, SA apresentou contestação, alegando, por um lado, ter acionado o seu seguro de responsabilidade civil, por se ter tratado de uma queda em loja – tendo ocorrido, por via dessa circunstância, o ressarcimento dos prejuízos sofridos pela autora. E, por outro lado, reproduz os fundamentos invocados pela ré seguradora para recusar a atribuição das prestações reclamadas pela autora – quer quanto à classificação do evento enquanto acidente de trabalho, quer quanto ao grau de incapacidade de que a autora se achava afetada decorridos 30 meses sobre o acidente. Conclui pedindo a sua absolvição do pedido. Foi proferido despacho saneador a fls. 297 e seguintes, tendo-se procedido ao desdobramento do processo e abertura de incidente para fixação da incapacidade, no qual já foi proferida decisão. Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, tendo-se respondido à matéria de facto contemplada na base instrutória nos termos que constam da ata de fls. 415 e seguintes, com reclamação por parte da ré seguradora, totalmente desatendida. 2. Nessa sequência, foi proferida sentença com a seguinte decisão: Nos termos expostos e em conformidade com as disposições legais citadas, julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência, julga-se a sinistrada BB, por via do acidente de trabalho de que foi vítima a 09.07.2013, afetada de 10.07.2013 até 05.12.2014 e de 25.07.2015 até 25.08.2015 de uma ITA (incapacidade temporária absoluta), de 06.12.2014 a 24.07.2015 de uma ITP (incapacidade temporária parcial) de 50%, de 26.08.2015 a 21.10.2015 de uma ITP de 20% e afetada, a partir de 21.10.2015, de um grau de incapacidade permanente parcial (IPP) de 10%, sendo as sequelas físicas de que ficou a padecer subsumíveis ao item 8.1.5.2.a) lado passivo, do Capítulo I da Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, e, por via disso: a) Condena-se a ré Companhia de Seguros CC, SA (atualmente, CC, S.), a pagar à sinistrada B o capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia de € 661,47 (seiscentos e sessenta e um euros e quarenta e sete cêntimos), devida desde 22.10.2015; b) Mais se condena a ré Companhia de Seguros CC, SA a pagar à sinistrada BB a quantia de € 12 387,52 (doze mil, trezentos e oitenta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos) a título de indemnização devida pelos períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial; c) A ré Companhia de Seguros CC, SA vai também condenada no pagamento de juros de mora sobre as prestações pecuniárias em atraso, à taxa anual de 4%. A ré DD, SA vai absolvida dos pedidos contra ela formulados atendendo a que se demonstrou a total transferência da responsabilidade infortunística pela reparação de acidentes de trabalho ocorridos com a autora para a ré seguradora. Custas pela ré seguradora, que ficou vencida (cf. artigo 527.º do Código de Processo Civil). Fixa-se à ação o valor de € 21 689,77 (cf. artigo 120.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e Tabela anexa à Portaria n.º 11/2000, de 13 de janeiro). 3. Inconformada, veio a ré seguradora interpor recurso de apelação, que motivou e apresentou as seguintes conclusões: a) A sentença recorrida deu como provado que “No dia 09 de julho de 2013, pelas 12h50, a autora saiu do seu local de trabalho (secção de peixaria da referida loja “DD”) para ir almoçar na sua residência” e “Nessa altura, a autora aproveitou para, antes de ir para casa, efetuar a compra de alguns bens na loja “DD” onde exerce as suas funções profissionais” – Cfr. pontos 4 e 5 da sentença recorrida. b) Todavia, o Tribunal a quo entendeu desatender aos referidos factos provados para decidir que o local de trabalho da autora é o supermercado “DD”, local onde a autora adquirira alguns bens de que necessitava e de cujo espaço físico ainda não saíra. c) A acrescer, e uma vez miss em clara oposição de fundamento com a decisão, considerou o Tribunal a quo que, não pode sustentar-se que a aquisição de bens no supermercado que é o local de trabalho da autora não constitua a satisfação de uma necessidade atendível da mesma, ainda que se não considere demonstrado que adquirira apenas os bens necessários à confeção da refeição que ia tomar de seguida. d) Ora, se não ficou demonstrado que a autora adquirira bens necessários à confeção da refeição que ia tomar de seguida, não poderia o Tribunal a quo decidir que a aquisição de bens constituía uma necessidade atendível da autora; e) Muito menos para justificar que a atividade empreendida pela autora não configura um desvio de trajeto suscetível de afastar a qualificação do evento como acidente de trabalho. f) Ora, tendo-se dado como provado que a autora após ter saído do seu local de trabalho aproveitou para, antes de ir para casa tomar a sua refeição, adquirir alguns bens no estabelecimento do seu empregador, só nos resta concluir que a atividade empreendida pela autora configurou uma interrupção e/ou desvio de trajeto. g) Aliás, os fundamentos invocados pelo Tribunal a quo e aqui já elencados conduzem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto, ou seja, a atividade empreendida pela autora configurou um desvio de trajeto suscetível de afastar a qualificação do evento como acidente de trabalho, porque não ficou demonstrada que a aquisição de bens que motivaram a interrupção e/ou desvio de trajeto se trata-se de uma satisfação de necessidade atendíveis da autora, pelo que estamos perante uma nulidade da sentença nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável ex vi pelo artigo 1.º n.º 2, al. a) do CPT; h) Por outro lado, existiu um erro no julgamento traduzido na subsunção dos factos e do direito, o que afeta e vicia a decisão, dado que a matéria de facto dada como provada impunha qualificação jurídica diversa da aplicada e, consequentemente, decisão oposta à proferida. i) Dando-se como provado que, “No dia 09 de julho de 2013, pelas 12h50, a autora saiu do seu local de trabalho (secção de peixaria da referida loja “DD”) para ir almoçar na sua residência” e “nessa altura, a autora aproveitou para, antes de ir para casa, efetuar a compra de alguns bens na loja “DD” onde exerce as suas funções profissionais, dúvidas não subsistem de que o trajeto do local de trabalho para o local de refeição sofreu uma interrupção e/ou desvio para compra de alguns bens. j) E não se entenda que, pelo facto do acidente ter ocorrido nas instalações do empregador, pode configurar-se como tendo ocorrido no seu local de trabalho, porquanto a autora não se encontrava naquele local em virtude do seu trabalho mas para tratar de assuntos particulares seus (compras) e não se encontrava, direta ou indiretamente sujeita ao controlo do seu empregador, pelo que o acidente ocorrido não se enquadra no conceito de acidente de trabalho estabelecido no artigo 8.º da Lei 98/2009. k) Com efeito, face aos factos dados como provados, a existir um acidente de trabalho tratar-se-ia de um acidente in itinere – Cfr. artigo 9.º do CPT; l) Nos termos do disposto no artigo 9.º n.º 3 da aludida Lei, “Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”. m) Reconduzindo-nos ao caso em apreço, do cotejo dos factos provados, temos que o acidente ocorreu quando a autora saiu do seu local de trabalho (secção da peixaria da loja pingo doce) com o intuito de ir para casa tomar a sua refeição, contudo, interrompeu e desviou-se do seu percurso habitual para fazer umas compras. n) Como ensina José Andrade Mesquita, “o desvio para ir fazer compras não se enquadra neste conceito, a não ser que a organização do dia de trabalho não permita ao trabalhador adquirir bens de primeira necessidade noutra ocasião”. o) Não tendo ficado demonstrado que a autora adquiriu apenas os bens necessários à confeção da refeição que iria tomar de seguida e que teve necessidade de fazer compras porque a organização do seu dia de trabalho não lhe permite adquirir bens de primeira necessidade noutra ocasião, por exemplo, em dias de folga, só nos resta concluir que a autora ao desviar-se do seu trajeto normal para fazer compras, fê-lo para a satisfação de necessidade privadas (atos da vida corrente do sinistrado e que, por isso, é alheia a qualquer missão ou função de caráter profissional) e a cujos perigos sempre se exporia, mesmo sem o trabalho, razão pela qual a sua entidade patronal optou por acionar o seguro para acidente com clientes – Cfr. parágrafo 5.º, página 2 da sentença recorrida. p) “A tónica delimitadora do que é acidente in itinere ou não passa necessariamente pela perda de controlo, ainda que meramente parcial, das condições e circunstâncias que afetam o espaço onde o trabalhador circula, quando se desloca a casa ou vice-versa, sujeitando-se assim aos perigos a que os locais públicos ou explorados pelo empregador ou clientes deste último estão expostos e que escapam, no todo ou em parte, ao seu domínio, vigilância e capacidade de modificação e reação” – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.10.2015, processo n.º 408/13.1TBV.L1-4, relator: José Eduardo Sapateiro, disponível em www.dgsi.pt. q) O acidente em apreço ocorreu fora do local de trabalho, ou seja, fora do lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e, em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador, tratando-se neste caso de um mero cliente como todos os outros que ali efetuam as suas compras, por dele se ter ausentado numa interrupção da sua jornada de trabalho, para tratar de assuntos particulares seus (compras), pelo que não é enquadrável no conceito de acidente de trabalho in itinere. r) Neste conspecto, tal acidente não é tutelado, por se situar numa esfera de risco do próprio trabalhador, para satisfação das suas necessidades privadas e a cujos perigos sempre se exporia, mesmo sem o trabalho. s) Face ao exposto, mostra-se afastada a tutela infortunístico-laboral do acidente ocorrido, pelo que deve a ré ser absolvida do pedido. Termos em que, atentos os fundamentos de facto e direito supradescritos, deve a sentença em crise ser declarada nula, nos termos do disposto no art.º 615.º n.º 1, alínea c), do CPC, aplicável ex vi por força do artigo 1.º n.º 2, al. a), do CPT; B. Deve o erro de julgamento da sentença recorrida ser suprido e, consequentemente, ser a recorrente absolvida do pedido; C. Deve a sentença em crise ser revogada, substituindo-se por outra que absolva a ré do pedido. 4. A autora, patrocinada pelo Ministério Público, respondeu com as conclusões seguintes: 1. Não se conformando com a douta sentença proferida nos autos, veio a ré CC, SA interpor recurso, requerendo a revogação daquela decisão e a sua substituição por outra que absolva a ré do pedido. 2. No essencial, a recorrente não concorda que tenha sido decidido que o acidente sofrido pela sinistrada BB foi um acidente de trabalho uma vez que o mesmo não ocorreu quando a sinistrada se encontrava a trabalhar mas sim quando, antes de ir almoçar, resolveu fazer algumas compras. 3. De acordo com a recorrente, o Tribunal devia ter considerado que a circunstância de a sinistrada ter efetuado as referidas compras constituiu uma interrupção e/ou desvio do trajeto do local de trabalho para o local de refeição, pelo que o acidente que sofreu não devia ter sido classificado como um acidente de trabalho. 4. Ao invés do que sustenta a recorrente, a autora/sinistrada concorda com a douta sentença recorrida, designadamente quando considerou que não pode “sustentar-se que a aquisição de bens no supermercado que é o local de trabalho da autora não constitua a satisfação de uma necessidade atendível da mesma, ainda que se não considere demonstrado que adquirira apenas os bens necessários à confeção da refeição que iria tomar de seguida”. 5. Na alínea a) do n.º1 e o n.º 2 do art.º 9.º da LAT prevê-se a extensão do conceito de acidente de trabalho para os casos em que o acidente ocorre no trajeto de ida ou de regresso para o local de trabalho, normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador em diversas situações e, entre elas, entre o local de trabalho e o local de refeição (cf. alínea e) do n.º 2). 6. O requisito de habitualidade do trajeto deve contudo ser interpretado de acordo com o n.º 3 do mesmo art.º 9.º, no qual consta que: “Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”. 7. Tal como resulta da matéria de facto dada como provada, no dia 09 de julho de 2013, pelas 12h50, a autora saiu do seu local de trabalho (secção de peixaria da loja “DD”) para ir almoçar na sua residência. Nessa altura, a autora aproveitou para, antes de ir para casa, efetuar a compra de alguns bens na loja “DD” onde exerce as suas funções profissionais, e, quando se deslocava para a caixa para pagar os produtos que pretendia adquirir, escorregou no pavimento, que se encontrava molhado, e caiu. 8. Apesar de o acidente ter ocorrido quando a trabalhadora ainda se encontrava no seu local de trabalho, aceita-se que o Tribunal tenha tratado o sinistro como um acidente “in itinere” pois em rigor, depois de deixar a peixaria do supermercado onde estava a exercer funções, a sinistrada iniciou o trajeto para o seu local de refeição, “desviando” para fazer as referidas compras (ainda que o tenha feito no mesmo estabelecimento onde trabalhava). 9. Porém, ao contrário do que sustenta a seguradora recorrente, a autora/sinistrada entende que foi vítima de um acidente de trabalho, não só porque o acidente ocorreu quando ainda estava no interior do seu local de trabalho, 10. Mas principalmente porque, considerando-se que já tinha iniciado o trajeto para a sua residência onde pretendia ir almoçar, o desvio para adquirir alguns bens para o seu almoço, devem considerar-se como “satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador” (n.º 3 do art.º 9.º da LAT). 11. Consequentemente, entende-se que não assiste razão à recorrente e que o sinistro sofrido pela autora está coberto pela tutela infortunístico-laboral por se situar na esfera de risco prevista na lei como extensão do conceito de acidente de trabalho. 12. Considera-se, assim, que o Tribunal não violou qualquer norma jurídica, não fez deficiente interpretação e aplicação do direito, nem procedeu a incorreta apreciação dos elementos de prova que constam nos autos, razão pela qual a douta sentença objeto do presente recurso não merece qualquer reparo ou censura, devendo ser mantida nos seus precisos termos uma vez que o Tribunal decidiu em conformidade com a prova recolhida e com o direito aplicável. Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela recorrente CC, SA, confirmando-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos. 5. O tribunal recorrido sustentou a sentença e concluiu pela inexistência da nulidade arguida pela apelante. 6. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre apreciar e decidir. 7. Objeto do recurso O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso. A questão a decidir consiste em apurar se: 1. A sentença é nula. 2. Existe acidente de trabalho e respetivas consequências. II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença recorrida considerou provada a seguinte a matéria de facto, que se transcreve: 1. Em julho de 2013 a autora trabalhava como operadora ajudante (2.º ano) para a ré DD, SA, prestando serviço no estabelecimento daquela sociedade sito na Rua …, em Portimão, auferindo a retribuição anual de € 9 449,60 [(€ 535,00 × 14) + (€ 118,00 × 11) + (€ 54,40 × 12)]. (alínea A) da matéria assente) 2. Em 09 de julho de 2013, a ré DD, SA tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a ré Companhia de Seguros CC, SA, pela totalidade da retribuição inicial da sinistrada (€ 9 449,60), através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º … (alínea B) da matéria assente) 3. A ré DD, SA não participou o acidente ocorrido com a autora à Companhia de Seguros CC, SA, tendo optado por acionar o seguro para acidentes com clientes – apólice n.º … da “… Seguros, S.A.”. (alínea C) da matéria assente) 4. No dia 09 de julho de 2013, pelas 12h50, a autora saiu do seu local de trabalho (secção de peixaria da referida loja “DD”) para ir almoçar na sua residência. (1º da base instrutória) 5. Nessa altura, a autora aproveitou para, antes de ir para casa, efetuar a compra de alguns bens na loja “DD” onde exerce as suas funções profissionais. (2º da base instrutória) 6. E quando se deslocava para a caixa para pagar os produtos que pretendia adquirir, escorregou no pavimento, que se encontrava molhado, e caiu. (3º da base instrutória) 7. Em consequência dessa queda, a autora sofreu traumatismo do 2.º dedo da mão esquerda, com ferida inciso-contusa e lesão tendinosa e neurológica, com secção dos tendões flexores daquele dedo, provocado por uma garrafa de vidro que a mesma transportava e que se partiu na altura da sua queda. (4º da base instrutória) 8. Em consequência das lesões sofridas, a autora foi submetida a três cirurgias, em 10.07.2013 (tenorrafia do aparelho flexor do 2.º dedo da mão esquerda), 12.07.2014 (tenorrafia e tenólise de FDP de DII e reparação nervosa de colateral de DII com Neuragen) e 25.07.2015 (exploração cirúrgica, libertação de aderências do tendão flexor profundo do 2.º dedo da mão esquerda, reconstrução das poleias, reconstrução nervosa do nervo colateral de DII com Neuragen). (4º da base instrutória) 9. A autora esteve, como consequência das lesões supradescritas, com: a) Incapacidade temporária absoluta desde 10.07.2013 a 05.12.2014 e de 25.07.2015 a 25.08.2015; b) Incapacidade temporária parcial de 50% de 06.12.2014 a 24.07.2015; e c) Incapacidade temporária parcial de 20% de 26.08.2015 a 21.10.2015. (5º da base instrutória) 10. As lesões descritas determinaram que a sinistrada ficasse a padecer de sequelas permanentes, designadamente, défice de enrolamento e distensão do 2.º dedo da mão esquerda, dor residual do punho sem alterações da mobilidade articular e rigidez da articulação metacarpo falângica daquele dedo e anquilose em flexão da IFP e IFD dolorosa em todo o trajeto interno e hipoestesias da face externa e cicatriz em toda a extensão da face anterior do referido 2.º dedo da mão esquerda. (5º da base instrutória) 11. A partir de 21.10.2015 a sinistrada teve alta clínica e, em consequência das sequelas apresentadas no 2.º dedo da mão esquerda, tem uma incapacidade permanente parcial de 10%. (5º da base instrutória) 12. Em 09 de janeiro de 2015 a autora tinha a seu cargo, e ainda mantém, o seu filho menor …. (6º da base instrutória) 13. BB nasceu no dia … (cf. documento de fls. 3) B) APRECIAÇÃO B1) A nulidade da sentença A apelante conclui que a sentença é nula, em virtude da decisão estar em oposição com os factos provados. Entende que a sentença recorrida deu como provado que “No dia 09 de julho de 2013, pelas 12h50, a autora saiu do seu local de trabalho (secção de peixaria da referida loja DD) para ir almoçar na sua residência” e “Nessa altura, a autora aproveitou para, antes de ir para casa, efetuar a compra de alguns bens na loja DD onde exerce as suas funções profissionais”, todavia, o Tribunal a quo entendeu desatender aos referidos factos provados para decidir que o local de trabalho da autora é o supermercado “DD”, local onde a autora adquirira alguns bens de que necessitava e de cujo espaço físico ainda não saíra; Acrescer, e uma vez mais em clara oposição do fundamento com a decisão, considerou o Tribunal a quo que, não pode sustentar-se que a aquisição de bens no supermercado que é o local de trabalho da autora não constitua a satisfação de uma necessidade atendível da mesma, ainda que se não considere demonstrado que adquirira apenas os bens necessários à confeção da refeição que ia tomar de seguida; Conclui ainda a apelante que se não ficou demonstrado que a autora adquirira bens necessários à confeção da refeição que ia tomar de seguida, não poderia o Tribunal a quo decidir que a aquisição de bens constituía uma necessidade atendível da autora e muito menos para justificar que a atividade empreendida pela autora não configura um desvio de trajeto suscetível de afastar a qualificação do evento como acidente de trabalho, pelo que tendo-se dado como provado que a autora após ter saído do seu local de trabalho aproveitou para, antes de ir para casa tomar a sua refeição, adquirir alguns bens no estabelecimento do seu empregador, só nos resta concluir que a atividade empreendida pela autora configurou uma interrupção e/ou desvio de trajeto. Escreveu-se na sentença recorrida, com evidente interesse para decisão da nulidade arguida, o seguinte: “Com efeito, da matéria provada resulta que a autora, na ocasião em que ocorreu o sinistro em apreço, acabara de sair do seu posto de trabalho (que é no supermercado DD) para ir a casa tomar a sua refeição e que, precisamente porque trabalha num supermercado (de cujo espaço físico ainda não saíra), aproveitou para adquirir alguns bens de que necessitava – e foi nesse encadeamento de acontecimentos que se verificou o evento que produziu a lesão (queda e corte do 2.º dedo da mão esquerda pela garrafa de vidro partida). Não pode, em nosso entender, sustentar-se que a aquisição de bens no supermercado que é o local de trabalho da autora não constitua a satisfação de uma necessidade atendível da mesma, ainda que se não considere demonstrado que adquirira apenas os bens necessários à confeção da refeição que iria tomar de seguida. A atividade empreendida pela autora não configura, por isso, um desvio de trajeto suscetível de afastar a qualificação do evento como acidente de trabalho. Na verdade, se a autora se tivesse limitado a tropeçar quando se dirigia para a porta do estabelecimento, após abandonar o seu posto de trabalho, não se suscitariam quaisquer dúvidas de que se tratava de um acidente de trabalho, porque ocorrido no local de trabalho e no percurso que levaria a trabalhadora ao seu local de refeição. Não vemos razão para tratar diferentemente os acontecimentos descritos nos autos. Nesta conformidade, porque se apurou a ocorrência de um evento naturalístico (a queda da autora e subsequente quebra da garrafa de vidro que transportava), o qual produziu danos na integridade física da autora (os ferimentos no 2.º dedo da mão esquerda) e que se verificou quando a autora efetuava a deslocação do seu local de trabalho para o local de refeição (em rigor, ainda antes de abandonar as instalações do seu empregador), deve o mesmo ser considerado acidente de trabalho”. A sentença analisa os factos provados e pondera-os à luz do direito aplicável, sem qualquer contradição ou oposição entre aqueles e a decisão. A apelante seguradora discorda do entendimento sufragado na sentença e pretende que se considere que os factos provados não permitem concluir pela caraterização do acidente como sendo de trabalho. Contudo, não se trata de uma nulidade por oposição da decisão com os factos provados, mas sim da eventual existência de erro de julgamento na qualificação do evento como acidente de trabalho. É, aliás, a questão que a apelante coloca de seguida e que constitui a questão que se decidirá já a seguir. Assim, indefere-se a nulidade da sentença arguida pela apelante, por aquela não enfermar da apontada oposição entre os fundamentos de facto e a decisão proferida. B2) Apurar se existe acidente de trabalho e respetivas consequências O art.º 283.º n.º 1 do CT prescreve que o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional. O art.º 8.º n.º 1 da Lei nº 98/2009, de 04 de setembro, prescreve que é acidente, suscetível de ser qualificado como acidente de trabalho, aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte. No caso dos autos, em face da matéria de facto apurada, o acidente não ocorreu durante a prestação de trabalho, mas quando a sinistrada efetuava compras no estabelecimento da empregadora após terminar o trabalho com vista a regressar a casa. O art.º 9.º n.º 1, alínea a), do CT prescreve que se considera também acidente de trabalho o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte; O n.º 2, deste artigo prescreve que a alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho (alínea b); e entre o local de trabalho e o local da refeição (alínea e). E acrescenta o n.º 3 deste mesmo artigo que não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. A questão que se coloca é a de saber se a ida da trabalhadora às compras no estabelecimento da empregadora onde labora, um supermercado, imediatamente após o termo da prestação de trabalho, com vista a regressar à sua residência, pode considerar-se como estando coberta pelos riscos que as normas do art.º 9.º, que acabámos de citar, visam acautelar e se o acidente que sofreu no momento em que se dirigia à caixa para efetuar o pagamento constitui assim um acidente de trabalho. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 25.09.2014[1], entendeu-se que “deve considerar-se como acidente de trabalho indemnizável o acidente ocorrido no trajeto habitual entre a residência do trabalhador e o seu local de trabalho, quando o sinistrado se dirigia para esse local após uma interrupção de duração não determinada, motivada pelo almoço com o pai que se encontrava internado em estabelecimento situado naquele percurso”. Porque tem manifesto interesse para o caso dos autos, transcrevemos a seguinte passagem do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que já referimos e identificámos: “Situando-se a instituição onde se encontrava o pai do sinistrado num dos trajectos possíveis entre a sua residência e o seu local de trabalho, não pode afirmar-se, sem mais, que o sinistrado, quando saiu de casa, era para ir almoçar com o pai, uma vez que de, acordo com a matéria de facto dada como provada, na sequência do almoço o trajecto do sinistrado seria o do seu local de trabalho. É certo que a intenção de almoçar com o pai esteve seguramente presente no facto de ter saído de casa cerca de três horas antes do início do seu turno, mas a verdade é que após o almoço o trajecto que sinistrado tomou era aquele que o levava ao seu local de trabalho, onde veio a sofrer o acidente. Assim, a paragem que o sinistrado efectuava quando trabalhava no turno da tarde para habitualmente ir almoçar com o pai a essa instituição, não pode deixar de se considerar como uma interrupção do trajecto normal do sinistrado. Acresce que a lei não delimita o relevo das interrupções do trajecto em função da sua duração, mas dos motivos que as justificam. A circunstância de o sinistrado ir almoçar com o pai internado numa instituição deve considerar-se como satisfação de uma necessidade atendível, já que se prende intimamente com a sua vida familiar e com o complexo de valores em que a mesma assenta. Conforme refere JÚLIO GOMES, serão necessidades atendíveis, «desde logo, as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a nossa Lei, aliás, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível». Deste modo, ao tempo normal da deslocação há de acrescer forçosamente o tempo da interrupção do trajecto, uma vez que a interrupção do trajecto para satisfação de necessidades atendíveis reflecte-se sobre o tempo do percurso percorrido que é interrompido durante a satisfação da necessidade em causa. No caso dos autos não há quaisquer elementos que permitam concretizar no tempo a duração da interrupção, não resultando da matéria de facto a hora em que o sinistrado saiu da instituição para se dirigir ao seu local de trabalho, sabendo-se apenas a hora em que ocorreu o sinistro”. No caso concreto em apreciação neste recurso, está provado que a trabalhadora, no dia 09 de julho de 2013, pelas 12h50, saiu do seu local de trabalho (secção de peixaria da referida loja DD) para ir almoçar na sua residência; nessa altura, a autora aproveitou para, antes de ir para casa, efetuar a compra de alguns bens na loja DD, onde exerce as suas funções profissionais; e quando se deslocava para a caixa para pagar os produtos que pretendia adquirir, escorregou no pavimento, que se encontrava molhado, e caiu. Os factos provados mostram que a trabalhadora presta a sua atividade laboral no supermercado DD e que imediatamente após sair do seu posto de trabalho, mas ainda sem ter saído do estabelecimento para se dirigir à sua residência para almoçar, pretendeu efetuar a compra de bens no supermercado onde trabalha e ao dirigir-se à caixa para os pagar escorregou e caiu. Estes factos evidenciam que a trabalhadora decidiu interromper o trajeto de regresso à sua residência, iniciado no momento em que saiu do seu posto de trabalho na peixaria, para efetuar compras de bens no supermercado onde trabalha. Não estão identificados os bens que a trabalhadora pretendia adquirir. Nos termos do art.º 412.º n.º 1 do CPC, constitui um facto notório, por ser do conhecimento geral, que os supermercados DD vendem essencialmente produtos alimentares, bebidas e outros bens que estão conexionados com a economia familiar, necessários para a vida diária das famílias. Assim, a trabalhadora não pode ter querido adquirir bens que nada tivessem a ver com as suas necessidades familiares, face à natureza dos bens vendidos nas lojas DD. Não nos parece anormal, estranho, negligente, imprudente ou de alguma maneira ilegítima ou injustificável a compra de bens no estabelecimento onde se trabalha para satisfazer as necessidades pessoais. Antes pelo contrário, deixa entrever uma relação saudável entre empregadora e trabalhadora e, até pela manifesta proximidade e conforto, se revela adequada e normal a qualquer trabalhador colocado na posição da sinistrada. A interrupção do trajeto normal efetuada pela trabalhadora destinou-se a satisfazer necessidades atendíveis e enquadra-se na previsão do art.º 9.º n.º 3 da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro. Como se refere no acórdão do STJ que referimos, trata-se de compras que dizem respeito a necessidades atendíveis da trabalhadora, não se exigindo que sejam urgentes ou que se destinassem à confeção do almoço. Poderiam ser compras para o próprio dia e/ou para os dias seguintes. O que releva é que eram compras para satisfazer as suas necessidades pessoais. Nesta conformidade, decidimos julgar a apelação improcedente e conformar a douta sentença recorrida. Sumário: i) o que releva na interrupção do trajeto para regressar à residência para almoçar é que se destine a satisfazer necessidades pessoais atendíveis da trabalhadora, não se exigindo que sejam urgentes. ii) o acidente ocorrido durante a interrupção, pela trabalhadora, do trajeto de regresso à sua residência para almoço a partir do momento em que saiu do seu posto de trabalho na peixaria para efetuar compras de bens no supermercado onde trabalha e depois prosseguir o seu percurso, tendo em conta a natureza dos bens vendidos no supermercado, consubstancia a compra de bens para a satisfação de necessidades pessoais atendíveis, pelo que o evento deve ser considerado como acidente de trabalho. III - DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida. Custas pela apelante. Notifique. (Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator). Évora, 26 de abril de 2018. Moisés Silva (relator) João Luís Nunes Paula do Paço __________________________________________________ [1] Ac. STJ, de 15.09.2014, processo n.º 771/12.1TTSTB.E1.S1, www.dgsi.pt/jstj. |