Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
791/15.4T9ENT.E1
Relator: MARIA FERNANDA PALMA
Descritores: CRIME
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
DEMANDADO CIVIL
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – O bem jurídico protegido pela Lei nº 34/87 de 16 de Julho é o respeito pelas leis orçamentais, que se traduz “na transparência e legalidade das despesas públicas”.
II – Estando dois arguidos, Presidente e Tesoureiro de uma Junta de Freguesia, acusados pela prática, em co-autoria, na forma continuada e consumada, de um crime de violação de normas de execução orçamental, p. e p. pelo artigo 30º, nº 2, do Código Penal e artigo 14º, als. a) e d) da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, carecem de legitimidade passiva no que respeita a um eventual pedido de indemnização civil a formular ao abrigo do princípio da adesão, a que se refere o artigo 71º do Código de Processo Penal, e por força do estatuído no artigo 74º do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral: Processo nº 791/15.4T9ENT.E1


Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora


No Processo comum Singular nº 791/15.4T9ENT, da secção de competência genérica – J1, da Instância Local do Entroncamento, da Comarca de Santarém, datado de 07-09-2016, a Mmª Juiz proferiu o seguinte despacho:
“BB, Lda.”, melhor identificada nos autos, apresentou-se a deduzir pedido de indemnização civil contra os arguidos e contra o Estado Português (cfr. fls. 536 e ss.), pedindo a condenação solidária destes no pagamento da quantia global de € 30.761,81 (trinta mil, setecentos e sessenta e um euros e oitenta e um cêntimos). Em síntese estreita, sustenta o seu pedido na alegação de que dos comportamentos ilícitos imputados aos arguidos, “acabou por resultar a ofensa de direitos e interesses legalmente protegidos da ora demandante, estando esta até hoje prejudicada, face ao prejuízo que para si representa não ter logrado obter o pagamento de grande parte dos serviços prestados.” (sic - sublinhado nosso).
O co-arguido CC e o Estado Português, na qualidade de demandados, contestaram o referido pedido de indemnização (cfr. fls. 727 e ss. e fls. 795 e ss, respectivamente). Entre o mais e em súmula, ambos sustentam a defesa de que este não é o meio próprio para a demandante satisfazer a sua pretensão, nem os ora sujeitos processuais são as partes legítimas da mesma, carecendo de legitimidade passiva.
A fim de apreciar liminarmente a admissibilidade legal do pedido de indemnização em causa, cumpre, antes de mais, aferir da existência de conexão entre a responsabilidade penal imputada e a civil invocada, se a demandante, “BB, Lda.”, assume nos autos a figura de lesado, e caso entenda-se que sim, se os demandados carecem de legitimidade passiva.
Sob a epígrafe “Princípio de adesão”, dispõe o artigo 71.° do CPP que O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei. Por outro lado, dispõe o artigo 74.° do CPP, sob a epígrafe “Legitimidade e poderes processuais”, no que ora releva, que 1-O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente. (...).
A prática de uma infracção criminal é passível de fundamento de duas pretensões dirigidas contra os seus agentes, uma acção penal, para julgamento, e, em caso de condenação, aplicação das reacções criminais adequadas, e uma acção cível, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa. A unidade de causa impõe, pois, entre as duas acções uma estreita conexão. Assim, o lesado é aquele que sofreu prejuízo com a prática do crime, com a violação do bem jurídico tutelado pela norma penal.
Ora, no caso dos autos, aos arguidos é imputada a prática, em co-autoria material, na forma consumada e continuada, de um crime de violação de normas de execução orçamental, p. e p. pelo artigo 30º/2 do Código Penal e artigo 14.°, als. a) e d) da Lei n.° 34/87, de 16.07., pelo alegado facto de aqueles, nas funções que assumiam na Junta de Freguesia de …, terem comprometido a referida Junta de Freguesia a pagar os trabalhos de jardinagem e os fornecimentos de bens inerentes, solicitados à ora demandante civil e por esta prestados, sem autorização prévia da Assembleia de Freguesia ou do Tribunal de Contas e sem dotação orçamental, contraindo uma despesa não permitida por lei, e pagando-a com violação das regras da universalidade e especificação legalmente previstas. Por outro lado, o pedido de indemnização civil deduzido sustenta-se no alegado direito ao ressarcimento da parte do preço não paga como contrapartida daquele fornecimento e prestação de serviço realizado na área geográfica da Junta de Freguesia de …. Ora, para além de o direito invocado pela demandante civil não se fundar na prática da infracção criminal em causa, não visa o ressarcimento de eventuais danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados pela referida infracção.
Somos, pois, a concluir que o pedido da demandante não assume qualquer conexão com o crime imputado aos arguidos, não sendo este o meio adequado para a demandante fazer valer a sua pretensão, não assumindo esta, ademais, a qualidade de lesada do crime alegadamente perpetrado pelos arguidos, necessária à atribuição da legitimidade imposta pela norma processual contida no artigo 74º/1.
Nestes termos e nos mais de Direito, sem necessidade de outros considerandos, indefiro, liminarmente, o pedido de indemnização deduzido por “BB, Lda.
Custas a cargo da demandante civil, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal – artigo 527º/1 do CPC, ex vi artigo 523º do CPP.”

Inconformada com o decidido, recorreu a demandante civil BB, Ldª, nos termos da sua motivação constante de fls. 860 a 868, concluindo nos seguintes termos:
1 - Foi a Recorrente em 18-06-2015, quem no exercício do direito de ação ao abrigo do art° 41 n° l a) da Lei 34/87 de 16 de Julho, apresentou denúncia do crime de violação de normas de execução orçamental p. e p. pelo art° 14° als. a) e d) daquela Lei.
2 - Em sede de inquérito a Recorrente foi notificada para os termos do art° 75° C.P.Penal e, na denuncia por si apresentada, já havia expressamente alegado que, ao abrigo do disposto nos art°s 45°, 46°, 47° da Lei 34/87 de 16/7 e art° 9o n° 3 da Lei 8/2012, de 21/2, requeria ser indemnizada.
3 - O Digno M° P° formulou acusação pública pelos factos indiciados que haviam resultado da denúncia.
4 - Acusação que foi notificada à Recorrente em 29-03-2016 na qualidade de "lesado”.
5 - Foi deduzido pedido cível, no qual a Recorrente alegou nos art° 28° a 35 que o seu prejuízo também advém do facto de ser uma pequena empresa familiar, que durante os anos em que contratou com a Junta de Freguesia do …, representada pelos arguidos, desenvolveu com enorme dificuldades o objeto da sua actividade, atento os investimentos que fez em mão de obra e materiais, para poder cumprir a prestação de serviços a que se tinha obrigado com aquela Junta,
6 - e, se como se impunha, tivessem sido devidamente consagradas e respeitadas as regras legais de cabimentação e orçamentação dos trabalhos adjudicados á ora recorrente e não fosse a conduta ilícita dos arguidos, não teria a Recorrente sentido as dificuldades que quase levaram à sua extinção.
7 - A ora Recorrente sempre foi oposta a impossibilidade de vir a obter o pagamento, face às irregularidades que lhe foram sendo enunciadas e que resultarão da Lei.
8 - Pode e deve concluir-se, bem ao contrário do que vem decidido no despacho recorrido, que a ora Recorrente foi ofendida e é lesada pela conduta criminal dos arguidos. Logo
9 - Existe conexão entre a responsabilidade penal imputada aos arguidos e a responsabilidade civil, por força do disposto no art° 129° do C.Penal e do princípio de adesão plasmado no art° 71° do CP.Penal, os quais terão sido violados.
10 - Existe legitimidade passiva de todos os demandados, ao contrário do decidido no despacho recorrido, devendo ter-se em conta os art° 45° n° 1 e 2 e 47° da Lei 34/87 de 16 de Julho, que pelo despacho recorrido foram também violados.
11 - Também o art° 46° daquela lei foi violado, na medida em que, mesmo no caso de os arguidos serem absolvidos do crime, tal não extingue o dever de indemnizar não conexo com a responsabilidade criminal, nos termos gerais de direito.
12 - No que ao Estado Português diz respeito, em sede de julgamento, haverá que apurar se os arguidos, como seus órgãos ou agentes, actuaram de forma dolosa, para que responda aos termos do art° 22° da Const. República.
13 - Havendo também de questionar se a responsabilidade do Estado não será direta, tendo em conta ter existido falha grave do legislador, em face das alterações processadas nas regras relativas ás Autarquias Locais.
14 - Bem antes do despacho recorrido, proferido para apreciar liminarmente a admissibilidade do pedido de indemnização cível, já existia um anterior despacho liminar a admiti-lo, aquando da prolação do despacho de pronúncia, pelo anterior Sra. Juiz titular, datado de 23-02-2016, formando caso julgado formal. Pelo que foi violada a norma do art° 620° do C.P.Civil. e
15 - Deve a Recorrente ser absolvida da condenação nas custas fixadas despacho recorrido.
Termos em que, na procedência deste recurso, se espera que Vas Excias anulem a decisão recorrida, prosseguindo os autos para julgamento, incluído o pedido de indemnização cível deduzido pela ora Recorrente, e esta absolvida da condenação nas custas fixadas no despacho recorrido.

O demandado DD respondeu, nos termos que constam de fls. 1001 a 1002, concluindo pela manutenção da decisão recorrida.

Neste Tribunal da relação de Évora, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, no qual se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Como o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes nas respectivas motivações de recurso, nos termos preceituados nos artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, podendo o Tribunal de recurso conhecer de quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, cumprindo cingir-se, no entanto, ao objecto do recurso, e, ainda, dos vícios referidos no artigo 410º do referido Código de Processo Penal, - v. Ac. do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19 de Outubro - vejamos, pois, se assiste razão à recorrente BB, Ldª, no que respeita às questões que suscitou nas conclusões do presente recurso, as quais s prendem com a sua consideração como lesada nos presentes autos, ou não.

Vejamos, então:

Está em causa a prática por parte dos arguidos CC e DD, em co-autoria na forma continuada e consumada, de um crime de violação de normas de execução orçamental, p. e p. pelo artigo 30º, nº 2, do Código Penal e artigo 14º, als. a) e d) da Lei nº 34/87, de 16 de Julho.
Com efeito, o citado preceito da Lei nº 34/87, de 16/07, dispõe que: “O titular do cargo político a quem, por dever do seu cargo, incumba dar cumprimento a normas de execução orçamental e conscientemente as viole: a) Contraindo encargos não permitidos por lei; b) Autorizando pagamentos sem o visto do Tribunal de contas legalmente exigido; c) Autorizando ou promovendo operações de tesouraria ou alterações orçamentais proibidas por lei; d) Utilizando dotações ou fundos secretos, com violação das regras da universalidade e especificação legalmente previstas; será punido com prisão até um ano.”
Assim sendo, temos que o bem jurídico protegido pela aludida disposição da Lei nº 34/87 de 16 de Julho é o respeito pelas leis orçamentais, que se traduz “na transparência e legalidade das despesas públicas”, como bem refere o aresto proferido nos mesmos autos, a fls. 960, constando ainda do mesmo, e bem, “que a gravidade da falta de rigor na execução orçamental poderá colocar em causa o sistema financeiro e fiscal do Estado e, consequentemente, ser afetada a esperada “justiça social”, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza, a que se refere o artigo 103º/1 da CRP, o que poderia igualmente inviabilizar o cumprimento quer das tarefas fundamentais do Estado, quer das prioridades no âmbito económico e social”.
A requerente cível “BB, Lda.”, deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos e contra o Estado Português (cfr. fls. 536 e ss.), pedindo a condenação solidária destes no pagamento da quantia global de € 30.761,81 (trinta mil, setecentos e sessenta e um euros e oitenta e um cêntimos).
Funda tal pedido na circunstância de que dos comportamentos ilícitos imputados aos arguidos, “acabou por resultar a ofensa de direitos e interesses legalmente protegidos da ora demandante, estando esta até hoje prejudicada, face ao prejuízo que para si representa não ter logrado obter o pagamento de grande parte dos serviços prestados.”
Ora, sendo o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime em causa “o esperado correto funcionamento dos diferentes serviços públicos, assegurando-se que o titular do cargo politico que tem competência para gerir um orçamento e administrar dinheiros públicos, atue com fidelidade, rigor e transparência, zelando pelos interesses públicos patrimoniais, salvaguardando-se o erário público, por forma a merecer a confiança dos cidadãos” - aresto já citado a fls. 961, tem a qualidade de ofendido o Estado português (na vertente do poder autárquico), como representante constituído dos cidadãos portugueses, mormente dos cidadãos daquela localidade específica.
Por outro lado, os arguidos, encontram-se acusados de terem violado a dita norma jurídica, sendo que a mesma visa proteger tão só o interesse ou bem jurídico já aludido.
Como tal, os arguidos, enquanto Presidente da Junta de Freguesia de… e responsável pela elaboração do respetivo orçamento, e Tesoureiro da mesma entidade, respetivamente, carecem de legitimidade passiva no que respeita a um eventual pedido de indemnização civil a formular ao abrigo do princípio da adesão, a que se refere o artigo 71º do Código de Processo Penal, e por força do estatuído no artigo 74º do mesmo diploma legal.
Os arguidos serão responsáveis, sim, e eventualmente, perante a ora recorrente BB, Ldª, com fundamento no acordo verbal, ou supostamente incorreta e ilegalmente escrito em nome da Junta de Freguesia, e no consequente serviço que a mesma prestou àquela comunidade, efetivamente, mas isso noutra sede que não a do presente processo.
No que respeita às custas processuais, estas são devidas nos termos constantes da respetiva condenação e dos preceitos aí indicados, pois que a pretensão que formulou não foi atendida, constituindo tal um incidente estranho à normal tramitação processual, independentemente dos atos anteriores.
Como tal, entende-se que bem andou o Tribunal a quo ao decidir da forma por que o fez.

Assim, e pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s, com os legais acréscimos, e a procuradoria no mínimo.


Évora, 05 de junho de 2018
Maria Fernanda Palma (relatora)
Maria Isabel Duarte