Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1095/04-2
Relator: PEREIRA BATISTA
Descritores: MANDATÁRIO JUDICIAL
PODERES ESPECIAIS
Data do Acordão: 09/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A redução do pedido, configura-se como uma desistência parcial do mesmo, valendo como acto unilateral não receptício de extinção do direito.

II - Sendo assim, será de exigir, que o declarante que emite a manifestação de vontade de reduzir o pedido, seja o titular da relação substantiva respectiva.

III - Um mandatário judicial só pode emitir tal declaração de redução do pedido, quando tenha poderes especiais para o efeito, concedidos pelo titular da relação substantiva.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


Na acção ordinária que instaurou vs. “B”, pedindo a condenação deste no pagamento de 601.794.024$, acrescidos de juros vencidos (no montante de 65.164.219$) e vincendos, veio a autora “A”, em seguimento de efectivação de audiência preliminar, apresentar peça processual, em que conclui que “reduz o pedido à quantia de cento e sessenta e quatro milhões, duzentos e cinquenta e dois mil, oitocentos e oitenta e cinco escudos, acrescida de juros vincendos a partir de um de Outubro de 2001 – quantia esta que o Réu deve ser conde-nado a pagar logo no despacho saneador ou, quando assim se não entender, condenado no pagamento da quantia de oitenta milhões, novecentos e quarenta e um mil, duzentos e vinte e cinco escudos e juros contados desde a citação, relegando-se o restante para sentença final”.
Posteriormente – e sem que, entretanto, tivesse recaído qualquer apreciação judi-cial sobre a peça em questão, da qual fora dado conhecimento ao réu, que declarou que “regista a redução do pedido de capital de 691.994 para 80.941 contos” – veio a autora apresentar requerimento subscrito pelo mesmo mandatário, em que, após invocar a falta de poderes deste para desistir de parte do pedido sem estar munido de poderes especiais para tanto e a sua decisão de não ratificação da redução do pedido antes formulada, con-cluiu pela pretensão de se “dar sem efeito o requerimento de redução do pedido (...), mantendo-se assim o pedido inicial e proferindo-se despacho saneador, sem prejuízo de nos termos da alínea b) do nº1 do art. 510º do Código de Processo Civil se conhecer desde já da parte do pedido confessado”.
Após contraditório, foi proferido despacho judicial convidando a autora, “face ao incidente suscitado”, a “suprir a irregularidade de mandato ocorrida” (despacho que foi objecto de recurso autónomo), no seguimento do que, após se afirmar que “resulta cla-ramente dos autos que o mandatário da autora não tinha poderes especiais para desistir parcialmente do pedido”, foi decidido que “tal posição as-sumida sem poderes (pelo mandatário) não poderia surtir efeito em relação à autora”.

Inconforme, o réu apresentou-se a recorrer, mediante a produção das seguintes conclusões:

1 - Mostra-se violado, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art. 40° nos 2 e 3 do C.P.C., quando a decisão recorrida admitiu a ratificação do mandato, a re-querimento do A.;
2 - Mostra-se, também, violado, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no art. 273° do C.P.C., pelas razões acima expostas;
3 - Deve a decisão em recurso ser anulada e substituída por outra que mantenha a redução do pedido da A.;
4 - Não se decidindo pela manutenção da redução do pedido, deverão ser anula-dos todos os actos posteriores por erro essencial nos seus pressupostos.

Em contra-alegação, a autora sustenta que “deve ser negado provimento ao agravo, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido”.

Corridos estão os legais vistos.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclu-sões do recorrente, na medida em que - pela positiva (i. é, todas as questões delas cons-tantes) e pela negativa (i. é, apenas essas questões, ainda que, eventualmente, outras constem em alegação) - constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamen-tação expressa na alegação, sem embargo de o tribunal ad quem poder – ou dever – apreciar questões cujo conhecimento lhe cumpra ex officio [1] .
De outra via, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todas as razões, considerações ou argumentos produzidos pelas partes, mas apenas – e com liberdade no respeitante à perscrutação, exegese e aplicação das regras de direito – de todas as "questões" suscitadas e pertinentes, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função dos sujeitos, da pretensão e da causa petendi aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras [2] .
Ademais, enquanto meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novorum, i. é, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo [3] .
No caso sob espécie, a questão nuclear a decidir será – como, de resto, o recor-rente equaciona expressamente [4] – a de saber se o mandatário judicial, sem poderes espe-ciais para desistir, pode, no âmbito dos articulados, reduzir o pedido.
Estabelecida processualmente em termos, em princípio, irrestritos, quanto ao tem-pus e estado actual da instância e a aquiescência do réu [5] , a redução do pedido confi-gura-se, do ponto de vista dos seus efeitos materiais, como desistência parcial do pedido [6] , valendo, pois, tal desistência como acto unilateral não receptício de extinção do di-reito que se pretendia fazer valer, na medida correspondente [7] .
Ora, a forma não consiste em mero rito nem é um fim em si mesma, antes um veí-culo instrumental e ga-rantístico ao serviço do exercício do direito substantivo em juízo, através de actos e procedimentos que garantam o respeito dos princípios legalmente es-tabelecidos para actuação dos sujeitos processuais, enquanto titulares de direitos ou si-tuações jurídicas materialmente relevantes, e para sua realização.
I. é, à interpretação das normas de processo haverá sempre que presidir uma ló-gica que considere o seu carácter instrumental relativizado em função dos próprios fins que conduziram ao seu estabelecimento, fins esses que estarão, por natureza, para além da própria forma.
Assim, as diferenças formais que possam surpreender-se entre a redução e a desis-tência parcial do pedido terão sempre de ser perspectivadas nessa óptica de instrumenta-lidade e de garantia das partes a realizar através do processo.
Ora, mesmo formalmente, há identidade quanto ao carácter de expressão em uni-lateralidade de ambos os actos, sem necessidade de aceitação do réu, e, bem assim, afi-nal, do tempus em que possam ser actuados [8] , surgindo as diferenças, fundamental-mente, quanto ao modo documental de expressão e a (des)necessidade de homologação [9] .
Simplesmente, e em consonância com o seu carácter de desistência parcial do pe-dido, ou seja, enquanto declaração dotada de vontade de acção e vontade de resultado, com os consequentes efeitos extintivos, não só de reconformação da relação processual, mas também de direito material, será de exigir que, além do estatuto de parte na acção, o declarante que emite a manifestação de vontade de reduzir o pedido seja o titular da re-lação substantiva respectiva, legitimado materialmente a dela dispor e a produzir os cor-respondentes efeitos extintivos.
Vale isto por dizer que, quando a declaração de redução seja emitida por manda-tário judicial, para que possa ser válida e eficaz, terá de estar suportada em poderes bas-tantes para tal, i. é, haverá a parte de ter-lhe concedido poderes especiais para desistir [10] , sob pena de ficar sem efeito tudo o praticado pelo mesmo mandatário, se não houver posterior regularização da insuficiência de mandato e ratificação da parte, se não espon-taneamente, sob suscitação, designadamente, pelo tribunal [11] .
É certo que, em princípio, o mandatário vinculará a parte pelas afirmações ou con-fissões expressas de factos [12] , mas, exactamente porque se está no domínio confessório, essa vinculação respeita apenas a factos [13] , i. é, aos termos de configuração da lide, em termos de causa petendi ou de estruturação de bases da defesa, que não a poderes de disposição da situação jurídica litigada. E são, naturalmente, realidades diferentes – e em planos diversos se movendo – a confissão de factos que possam conduzir (ou não) a um juízo de improcedência e a própria disponibilidade abdicativa (e definitiva) do direito.
Por outro lado, nada obsta ao conhecimento oficioso da questão da falta ou insufi-ciência de poderes, por isso que, como emerge do já susodito, o tribunal pode – rectius, deve – suscitar a mesma questão “em qualquer altura[14] , sendo, pois, indiferente que o faça sob posterior suscitação da parte, por si mesma (que sempre poderia apresentar-se espontaneamente, e, no caso presente, sem qualquer viabilidade de se considerar tal conduta como venire contra factum proprium, pois, em rigor, não praticara anterior-mente, por si ou através de mandato bastante, qualquer acto processual ou materialmente autovinculante) ou por seu mandatário [15] .
Conseguintemente, a decisão recorrida não representa violação de lei, designada-mente dos preceitos enunciados pelo agravante, pelo que improcederão as suas conclu-sões ex adverso [16] .
De outra via:
A decisão recorrida não contém qualquer dispositivo extraindo consequências processuais sobre actos posteriores das partes que possa, eventualmente, ser reputado que dependem essencialmente da desconsideração da redução do pedido, de modo que tal matéria extravasa dos poderes de reapreciação desta instância, em conformidade com os termos acima sobreditos, ficando, assim, prejudicado o conhecimento de tal questão, tal como introduzida nesta via de recurso pelo recorrente [17] .
Pelo exposto, improcede o recurso.
Nesta conformidade, acorda-se, nesta Relação, em negar provimento ao agravo, subsistindo a decisão recorrida.
Custas pelo agravante.
Évora, 23 de Setembro de 2004




______________________________

[1] Cfr. art. 684º, nº 3, e 690º Cód. Proc. Civ.. Cfr., também, Col. Jur. STJ, I, 3, pp. 81 e pp. 84; e IV, 2, pp. 86.
[2] Cfr. art. 713º, nº 2, 660º, nº 2, e 664º Cód. Proc. Civ.; cfr., ainda, Rod. Bastos, Notas ao CPCiv., III, pp. 247; e STJ, 11.1.2000, BMJ, 493, pp. 385.
[3] Cfr., v. g., Col. Jur. STJ, I, 2, pp. 62; Col. Jur., XX, 5, pp. 98.
[4] Cfr. fls. 396 dos presentes autos..
[5] Cfr. art. 273º, nº 2, Cód. Proc. Civil.
[6]A redução tem de considerar-se equivalente à desistência parcial do pedido”: A. Varela e al., Manual Proc. Civ., 2ª ed., pp. 356.
[7] Cfr. J. A. dos Reis, Coment., III, pp. 95-96; Rel. Por., 9.3.2000, Col. Jur., XXV, t. II, pp. 190.
[8] Cfr., maxime, art. 273º, nº 2 e art. 293º, nº 1, Cód. Proc. Civil.
[9] Cfr., maxime, art. 300º Cód. Proc. Civil.
[10] Cfr. art. 37º, nº 2, Cód. Proc. Civil.
[11] Cfr. art. 40º Cód. Proc. Civil.
[12] Cfr. art. 38º Cód. Proc. Civil.
[13] Cfr. art. 341º e 352º Cód. Civil.
[14] Cfr. nº 1 do já cit. art. 40º Cód. Proc. Civil.
Cfr., embora relativamente a situação não exactamente coincidente, STJ, 8.1.2004, in www.dgsi.pt, nº documento SJ200401080023307.
[15] Estando a reacção quanto à actuação deste abrangida pelo plasmado no nº 2, parte final, e nº 3, do dito art. 40º.
[16] Cfr. conclusões 1ª a 3ª.
[17] Cfr. sua conclusão 4ª.