Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
971/07-2
Relator: ACÁCIO NEVES
Descritores: COMPRA E VENDA
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
I – Decorridos dois anos, não deparamos com a prescrição presuntiva do artigo 317º, alínea b), do C.C. se o crédito provém de uma transacção entre dois industriais, sendo o objecto destinado à indústria do devedor.

II – Já opera a prescrição presuntiva se o objecto transaccionado pelo credor industrial se destinou à actividade comercial do devedor.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 971/07 – 2
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A” intentou, em 30.06.2006, procedimento de injunção contra “B”, pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 8.053,22, acrescida de juros de mora vencidos, à taxa de 4%, no montante de € 1.008,83, e de € 22,25 de taxa de justiça paga, alegando para o feito que tal quantia é referente ao fornecimento de partidas de pão, conforme extractos de conta corrente juntos.
Citado, veio o réu deduzir oposição, invocando a prescrição do crédito, nos termos do art. 317°, al. b) do CC, e defendendo-se por impugnação, alegando em resumo que sempre pagou atempadamente as contas da compra do pão e que nada deve.
Ainda foi apresentada réplica. Todavia, por despacho de fls. 32 e 33 foi a mesma mandada desentranhar por se considerar ser a mesma legalmente inadmissível.
Seguidamente foi designada e teve lugar a audiência de julgamento, após o que veio a ser proferida sentença, nos termos da qual:
- se julgou improcedente a invocada excepção de prescrição;
- e se julgou a acção procedente, condenando-se o réu a pagar à autora a quantia de € 8.053,22, acrescida de juros de mora vencidos desde data das facturas, à taxa anual de 4% e da quantia de € 22,25 de taxa de justiça paga.

Inconformado, interpôs o réu o presente recurso de apelação, em cujas alegações, pedindo a revogação da sentença recorrida e a improcedência da acção, apresentou as seguintes conclusões:
1 - O Tribunal "a quo" não assumiu que a actividade exercida pela recorrida é uma actividade industrial e que foi nesse âmbito que efectuou contratos de compra e venda de partidas de pão ao apelante, sendo certo que o apelante é que dava às ditas partidas de pão o destino de comércio.
2 - No caso "sub judice" estamos perante um crédito de industrial por mercadorias fornecidas a quem é comerciante, sendo aplicável o prazo prescricional de dois anos, conforme alude o art. 317°, al. b) do C.C.
3 - Na verdade a presente acção foi intentada, pelo menos, de 2 anos depois da recorrida poder reclamar os créditos, tendo prescrito o pedido vertente da acção.

Contra-alegou a autora apelada, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Em face do conteúdo das conclusões das alegações do apelante, enquanto delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684°, n° 3 e 690°, nº 1 do CPC), a única questão de que cumpre conhecer consiste em saber se o crédito da autora apelada se mostra prescrito.

Factualidade assente, dada como provada na 1ª instância:
1) A autora é uma sociedade comercial cujo objecto social é a moagem de cereais, a panificação e qualquer outro ramo do comércio ou indústria, com excepção do bancário.
2) Para efeitos fiscais, a autora encontra-se registada actualmente sob o C.A.E. … - Moagem de Cereais.
3) O réu exerceu a actividade de comerciante, procedendo à venda ambulante de pão, que adquiria à autora, até ao dia 9 de Abril de 2004, data em que foi vítima de um acidente de viação, do qual resultou internamento hospitalar de longa duração.
4) Após a referida data, e durante certo lapso de tempo, a esposa do réu prosseguiu ainda o exercício da referida actividade, em nome do mesmo.
5) No âmbito das actividades referidas em 1), 3) e 4), a autora forneceu ao réu as partidas de pão descriminadas nas facturas nºs: 32739/101, de 16.06.2003, no valor de € 605,66; 33089/101, de 31.07.2003, no valor de € 386,42; 34208/101, de 31.12.2003, no valor de € 849,92; 34268/101, de 12.01.2004, no valor de € 962,21; 34546/101 de 16.02.2004, no valor de € 667,82; 346021101, de 23.02.2004, no valor de € 673,95; 34654/101, de 29.02.2004, no valor de € 754,30; 34711/101, de 08.03.2004, no valor de € 750,52; 34767/101, de 15.03.2004, no valor de € 769,70; 34821/101, de 22.03.2004, no valor de € 761,40; 34878/101, de 31.03.2004, no valor de € 1.083,43; 34929/101, de 05.04.2004, no valor de € 428,96; 34988/101, de 12.04.2004, no valor de € 649,35; 35062/101, de 19.04.2004, no valor de € 14,71.
6) Todo o pão identificado nas facturas era produzido pela própria autora.
7) Os valores referidos em 5), além de serem facturados à medida que os bens eram entregues ao réu, eram igualmente lançados na contabilidade da autora, na conta corrente aberta em nome daquele.
8) No âmbito das relações comerciais estabelecidas entre autora e réu, este, por vezes, pagava integralmente o montante facturado e outras vezes ia efectuando pagamentos por conta das mesmas.
9) O réu pagou, por conta da factura nº 34208/101, o montante de € 600,00; por conta da factura n° 34546/101, o montante de € 450,00; e por conta da factura nº 34988/101, o montante de € 171,01.
10) As restantes quantias tituladas pelas facturas descriminadas em 5) não foram pagas pelo réu.

Apreciando:
Conforme já acima referido, o tribunal julgou improcedente a invocada excepção de prescrição a que alude a al. b) do art. 317° do C. Civil.
Segundo a sentença, estando em causa uma presunção presuntiva, para que a mesma fosse aplicável, necessário se tomava: que as mercadorias vendidas ou fornecidas estejam relacionadas com o comércio ou a indústria de vendedor; que tenha decorrido o prazo de dois anos após a venda; que o devedor não seja comerciante ou industrial ou, sendo-o, não tenha destinado tais objectos ao seu comércio ou indústria estando assim excluídos os créditos de comerciantes para comércio ou indústria e os de industriais para indústria ou comércio.
Assim, e por considerar não se verificar o terceiro e último mencionado requisito, uma vez que foi o próprio réu a confessar que era comerciante (sendo errado o entendimento de que os créditos de industriais sobre comerciantes não estariam abrangidos na previsão da al. b) do art. 317° do CC), é que julgou não estar em causa tal prescrição.
Ainda segundo a sentença tal preceito, sobre a verificação da prescrição, exclui quer os créditos dos comerciantes para comércio e indústria, quer os créditos dos industriais para indústria ou comércio - sendo que ainda que assim se não entendesse, sempre se deveria considerar que a autora procedeu à venda do pão na qualidade de comerciante.
Todavia, segundo o réu apelante, estando em causa nos autos um crédito de um industrial por mercadorias fornecidas (que não comerciante) a quem é comerciante (que não industrial), haverá que considerar aplicável o prazo prescricional previsto na referida disposição legal, julgando-se prescrito o crédito invocado.
Nos termos do disposto no art. 317°, al, b) do C. Civil, "Prescrevem no prazo de dois anos: b) Os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor ".
Não podendo o réu, face à factualidade dada como provada (o que aliás nem sequer se questiona) ser considerado como industrial, afigura-se-nos todavia inequívoca a sua qualidade de comerciante - sendo ainda inequívoco que o pão adquirido era destinado ao seu comércio.
Com efeito, resultou expressamente provado que "o réu exerce a actividade de comerciante, procedendo à venda ambulante de pão, que adquiria à autora" - daí resultando não só que era comerciante (independentemente de ter ou não escrita organizada, sendo certo que, contrariamente ao que refere no corpo das alegações, nem sequer se provou que não tenha escrita), como também que o pão que adquiria à autora era destinado ao seu comércio (através da tal venda ambulante).
Importa assim verificar se a autora agiu na qualidade de industrial ou de comerciante e se, agindo naquela 1ª qualidade (industrial), pelo facto de o réu apelante não ser industrial, se verifica a prescrição em causa.
As prescrições presuntivas, conforme bem se salienta na sentença, respeitam às obrigações de curto prazo, em que não é usual a exigência de documento de quitação ou a sua conservação por muito tempo.
Com elas, visa a lei proteger o devedor contra o risco de, nessas circunstâncias, ter que pagar duas vezes (vide Vaz Serra, in BMJ, 106,45 e Almeida Costa in Direito das Obrigações, 5ª ed., pag. 964).
É certo que, conforme tem vindo a ser entendido na doutrina, o termo indústria deve ser entendido não no sentido restrito, enquanto actividade criadora de produtos através da transformação de matérias primas, mas sim em sentido amplo, ou seja, enquanto exercício de trabalhos ou gestão de negócios alheios ou como actividade económica produtora de riqueza (acs. do STJ de 09.04.2003 - proc. n° 03B3336, in www.gdsi.nt e da RE de 26.03.87, in BMJ, 366, 585 e P. Lima e A. Varela in C.C. Anotado, em anotação ao art. 317).
Todavia, o certo é que, em relação aos credores, conforme resulta da citada disposição, a lei distingue claramente os comerciantes dos industriais.
Conforme se refere no ac. da RG de 05.02.2003, in CJ, 2003, I, a fls. 287, "da simples leitura da disposição, vê-se que nela se prevêem duas situações que importa distinguir:
- por um lado, aquele prazo aplica-se aos créditos dos comerciantes, tomado este termo no seu sentido mais restrito, como sendo aqueles que apenas servem de intermediários na circulação dos bens de consumo, não exercendo qualquer actividade produtiva, pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou, sendo-o, os não destine ao seu comércio,
- e por outro também aos créditos daqueles que sendo comerciantes no sentido técnico-jurídico do termo, exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos ou execução de trabalhos, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor".
E, conforme ainda se saliente no mesmo aresto, enquanto que em relação aos credores comerciantes, a qualidade de não comerciante do devedor, ou o destino dos bens a fim diferente do seu comércio, constitui elemento da excepção de prescrição, no caso dos credores industriais apenas é impeditivo da prescrição o destino da prestação (destinada "ao exercício industrial do devedor").
Ficam assim de fora da prescrição os créditos relativos ao circuito comercial dos bens, enquanto se mantiverem nesse circuito, da mesma forma que de fora ficam os créditos inerentes ao circuito industrial, enquanto integrados no mesmo.
Sendo inquestionável (face ao que foi provado e à própria posição de ambas as partes) que o réu adquiria o pão em causa na sua qualidade de comerciante, para o vender em regime de venda ambulante, está assim, prima facie, em causa saber se a autora forneceu as diversas partidas de pão descriminadas nas facturas na qualidade de comerciante ou na qualidade de industrial.
Ora, face ao que acima se expôs, e em face da factualidade dada como provada, inequívoco se nos afigura que a autora, ao fornecer ao réu as partidas de pão em causa, certo é que o fez (para os efeitos ora em causa, previstos na al. b) do art. 317° do C. Civil) na qualidade de industrial e não de comerciante.
Com efeito, a autora não se limitou a agir como mera intermediária no fornecimento ou venda do pão, antes tendo sido ela a proceder à sua produção.
É o que (não sendo sequer questionado pelas partes) resulta da factualidade provada: sendo uma sociedade comercial cujo objecto social é, para além do mais, a moagem de cereais e a panificação (n° 1 da matéria de facto), foi no âmbito dessas actividades que a autora forneceu ao réu as partidas de pão em causa (nº 5), sendo que todo o pão identificado nas facturas era produzido pela própria autora (nº 6).
Por outro lado, a nosso ver, face ao que acima se expôs (contrariamente à tese defendida na sentença), estando em causa um crédito de industrial, para que se não verificasse a prescrição presuntiva em questão, necessário se tomava a prova de que o pão se destinava ao exercício industrial do réu - prova essa que não foi feita (aliás, nem tal foi sequer alegado), sendo irrelevante o facto de o réu destinar ou não o pão ao seu comércio.
Aliás, se o réu destinava o pão à venda ambulante, tal só pode significar que o não destinava à sua actividade industrial (a qual, de resto nem sequer foi alegada).
Em face de todo o exposto, e uma vez que (conforme bem se considerou na sentença - o que nem sequer foi questionado) se mostra decorrido o prazo prescricional em causa (2 anos), somos assim levados a concluir no sentido de se mostrar verificada a prescrição presuntiva a que alude o art. 317°, al. b) do C. Civil, invocada pelo réu prescrição essa que, enquanto excepção peremptória conduz à absolvição do pedido (art. 493°, n° 3 do CPC).
Procedem assim as conclusões do recurso.

Termos em que, concedendo-se provimento à apelação, se acorda em revogar a sentença recorrida e em julgar improcedente a acção, absolvendo-se o réu apelante do pedido.
Custas pela apelada.
Évora, 12.07.2007