Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | RIBEIRO CARDOSO | ||
| Descritores: | ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO CADUCIDADE DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO | ||
| Data do Acordão: | 02/24/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO CÍVEL | ||
| Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA | ||
| Sumário: | I - Face à formulação actual do art. 496° do Código de Processo Civil, impõe-se como regra geral, de que todas as excepções peremptórias são de conhecimento oficioso excepto se a lei impuser à parte o ónus da sua invocação (como impõe relativamente à prescrição - art. 303º do CC - e à caducidade, quando relativa a direitos disponíveis - art. 333º/2 do CC). Ora, não fazendo o art. 86º ou qualquer outra regra do RAU depender da alegação da parte o conhecimento da excepção prevista naquele preceito, impõe-se que a mesma é do conhecimento oficioso. II - O conhecimento oficioso apenas se impõe quando os factos provados integram a excepção em causa já que se tratará de mera aplicação das regras de direito aos factos. Quando esses factos não integram a matéria de excepção ou são insuficientes para a sua procedência, não está o tribunal obrigado a tomar posição expressa sobre tal questão, concluindo pela negativa, ou seja, pela sua não verificação. E só assim não será quando a parte tiver expressamente suscitado a questão porque o art. 6640/2, 1ª parte impõe tal pronunciamento. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA * “A” intentou acção de despejo, contra “B”, pedindo que se condene este a entregar-lhe o prédio livre e devoluto bem como a pagar-lhe o montante a apurar à data da entrega do prédio, referente às rendas que a A. teria direito a partir da citação, se o prédio tivesse sido colocado no mercado da habitação. Como fundamento alegou que é proprietária do prédio sito na R … n.º 53 R/C, em …, tendo sido celebrado um contrato de arrendamento sobre aquele imóvel entre os seus pais e os pais do R, há mais de 60 anos, sendo que estes já faleceram e o direito ao arrendamento não foi transmitido ao R, pois não vivia com eles à data da sua morte, mas a seu irmão entretanto falecido. Porém o R recusa-se a desocupar o imóvel continuando a depositar a renda mensal de 8,50 € que era a que o seu irmão pagava embora o valor do imóvel no mercado de arrendamento seja de 200,00 €. Citado, o R contestou pugnando pela improcedência da acção, alegando que foi a si e não a seu irmão que foi transmitido o direito ao arrendamento, pois vivia com o seu pai, quando ele faleceu e deduziu pedido reconvencional pedindo que fosse declarado arrendatário do referido prédio e a A. condenada no pagamento de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros), acrescido do montante mensal de € 150.00 (cento e cinquenta euros), pelos incómodos causados pela necessidade de carregar água de casa de amigos ou da irmã para a sua casa e pela humilhação que passou, em consequência da rescisão pela A. do contrato de fornecimento de água que ainda estava em nome do pai desta e apesar de saber da impossibilidade do R. de celebrar novo contrato de fornecimento pelo facto de não dispor de recibo de renda. A A. contestou a reconvenção alegando não ser o R. arrendatário do imóvel, para além de não ser obrigada a manter em nome de seu pai o contrato de fornecimento de água. Saneado o processo, seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença na qual se julgou a acção improcedente e parcialmente procedente a reconvenção, tendo-se declarado o R. arrendatário do imóvel e a A. condenada a reconhecê-lo como tal e a pagar-lhe a quantia de 500,00 € a título de danos não patrimoniais decorrentes da rescisão do contrato de fornecimento de água. Inconformada com esta decisão, interpôs a A. o presente recurso de apelação. O R. contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Formulou a apelante, nas alegações de recurso, as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o seu objecto [1] e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal: 1) O art. 86 do Rau deveria ter sido aplicado dado que, 2) O recorrido era proprietário à data da morte de seu pai, de uma fracção autónoma sita na mesma localidade. 3) A excepção insita no art. 86 do Rau é de conhecimento oficioso. 4) Não constitui uma das obrigações do locador requisitar ou manter requisitado em seu próprio nome o contador de água. 5) E deste modo, é chocante face às regras básicas de funcionamento social, a condenação de recorrente em 50,00 € mensais de indemnização ao recorrido pelo facto de ter posto fim a um contrato de fornecimento que tinha sido celebrado pelo anterior locador, seu pai. 6) A manter-se a douta sentença ora em análise, a recorrente pagaria ao recorrido quase 6 vezes o valor mensal da renda, por ter rescindido um contrato que não devia ter sido mantido há já muitos anos; 7) Se alguma ilicitude existia, ela configurava o facto de o referido contador não estar contratualizado pelos verdadeiros consumidores. ÂMBITO DO RECURSO - DELIMITAÇÃO Face às conclusões formuladas, as questões submetidas à nossa apreciação consistem em saber: 1- Se o tribunal pode conhecer oficiosamente da excepção prevista no art. 86° do RAU; 2- Se deve manter-se a condenação da A. na indemnização arbitrada por danos não patrimoniais decorrentes da sua rescisão do contrato de fornecimento de água. FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS Vêm provados os seguintes factos: 1. Acha-se inscrita no registo predial pela Ap. 47/970604, a aquisição a favor da A., por partilha da herança de “C” e mulher “D”, o prédio urbano sito na Rua … n,º 53 r/c, freguesia de …, em …, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de … sob o número 13053 e inscrito na matriz sob o artigo 14448. 2. De acordo com a certidão matricial de teor de prédio, o imóvel referido em 1 é um prédio urbano em propriedade total sem andares nem divisão susceptível de utilização independente, constituído por edifício em estrutura de betão armado e alvenaria de tijolo, com cobertura de telha, com um piso, destinado a comércio, composto por dois compartimentos com a área coberta de 33,28 m2 e logradouro com a área de 32 m2 afecto ao comércio e com valor patrimonial de € 6.600,34 (seis mil e seiscentos euros e trinta e quatro cêntimos) determinado no ano de 2006. 3. A A. é filha de “C” e mulher “D”. 4. O R. é filho de “E” e de “F”. 5. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Civil de …, sob o número 47, o assento de óbito de “F” no dia 14 de Janeiro de 1984, com última residência habitual na Rua … n.º 53 r/c, em … 6. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Civil de …, sob o número 44, o assento de óbito de “E” no dia 9 de Janeiro de 1992, com última residência habitual na Rua … n.º 53 r/c, em … 7. “G” é filho de “E” e de “F”. 8. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Civil de …, sob o número 1176 do ano de 2007, o assento de óbito de “G” no dia 9 de Dezembro de 2007, com última residência habitual na Rua … n.º 53 r/c, em … 9. No assento de nascimento do R., constante no registo n,º 1143 do ano de 1945 da Conservatória do Registo Civil de …, encontra-se averbada a dissolução do casamento, por divórcio decretado por sentença de 24 de Junho de 1987, proferida pelo 4.° Juízo, 2.a Secção do Tribunal Judicial de Setúbal. 10. Por ajuste verbal, os pais da A. e os pais do R. acordaram ceder o gozo e utilização do imóvel referido em 1 aos pais do R., para habitação, em data não determinada, mas há mais de 60 (sessenta) anos. 11. Nas datas referidas em 5 e 6, aquando da morte dos pais do R. “G”, irmão do R. vivia com “E” e “F”, seus pais, há mais de um ano. 12. O R. reside no imóvel referido em 1 há pelo menos 12 (doze) anos, na companhia do seu irmão até à data referida em 8 e sozinho desde então. 13. À data referida em 8 a renda mensal acordada era de € 8.50 (oito euros e cinquenta cêntimos). 14. Desde a data referida em 8 que o R. deposita a renda mensal de € 8.50 (oito euros e cinquenta cêntimos) na Caixa Geral de Depósitos. 15. O R. não entrega à A. o imóvel referido em A). 16. Em Janeiro de 2008, a A. fez cessar o contrato de fornecimento de água no imóvel referido em 1. 17. O R. foi viver para o imóvel referido em 1, entre os anos de 1987 e 1988, após a data referida em 9. 18. O R. vendeu a casa de morada de família sita na Rua da … n,º 9, 1.º dto, em … em 16 de Janeiro de 1992. 19. Na data referida em 6, o R. vivia no imóvel referido em 1, com o seu pai e o seu irmão mais novo. 20. A renda mensal de um imóvel com as características do imóvel referido em 1, e discriminadas em 2, é de pelo menos € 200.00 (duzentos euros). 21. Desde Janeiro a Novembro de 2008, o R. teve que carregar garrafões de água para o imóvel referido em 1, em virtude da actuação da A. referida em 16. 22. O R. teve que aquecer a água no fogão para poder tomar banho. 23. Outras vezes o R. teve que deslocar-se a casa da sua irmã para lavar-se com água quente. 24. O R. sentiu-se humilhado por estar privado do uso de água canalizada. O DIREITO Vejamos então de per si as referidas questões que constituem o objecto do recurso, não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas [2]. 1- Se o tribunal pode conhecer oficiosamente da excepção prevista no art. 86° do RAU. Compulsados os articulados constata-se que a recorrente apenas invoca na resposta à contestação o facto do recorrido ser proprietário de outro imóvel sito na mesma localidade mas fá-lo como achega à tese que alinhou na petição de que o recorrido não residia no imóvel com o seu pai e que, por esse facto, o arrendamento se transmitiu ao seu irmão “G” e não àquele. Efectivamente e apesar de confrontado com o pedido reconvencional pedindo o reconhecimento do R/ reconvinte como arrendatário por força da transmissão do arrendamento, nem subsidiariamente, na réplica arguiu aquela propriedade como consubstanciadora da excepção prevista no art. 86° do RAU, sendo certo que perante tal pedido bem andaria se, ao menos cautelarmente, o tivesse feito. É apenas em sede de recurso e perante o decesso da sua tese que vem arguir tal excepção, sendo embora certo que o faz no sentido de que era do conhecimento oficioso e, consequentemente, o tribunal a quo dela deveria conhecer. Nos termos do art. 496° do Código de Processo Civil "o tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado". É inquestionável, como correctamente refere o recorrido, que estamos perante uma excepção peremptória material ou de direito material, já que assenta em razões de direito substantivo ou, como a classifica A. dos Reis, "excepção peremptória de natureza substancial" [3]. Estabelece o art. 502°/1 do Código de Processo Civil que "a réplica serve para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção ... ", Por seu turno, estabelece o art. 264°/1 do mesmo diploma que "às partes cabe alegar os factos ... , em que se baseiam as excepções", cabendo-lhe ainda a respectiva prova (art. 342°/2 do CC). E no nº 2 "o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes ... ". Assim, sendo as excepções "meios de defesa indirecta do réu [no caso, do A. relativamente ao pedido reconvencional] em ordem a tornar ineficaz o pedido que o demandante formulou, devem ser suscitadas no tribunal e no processo por onde segue seus termos a causa principal" [4] como claramente resulta dos arts. 96°, 493°/3 e 489° do Código de Processo Civil. Determina o art. 660°/2 do Código de Processo Civil que na sentença o juiz "não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras". Ora, face à formulação actual do citado art. 496° do Código de Processo Civil, impõe-se a conclusão necessária e que constituirá a regra geral, de que todas as excepções peremptórias são de conhecimento oficioso excepto se a lei impuser à parte o ónus da sua invocação (como impõe relativamente à prescrição - art. 303º do CC - e à caducidade, quando relativa a direitos disponíveis - art. 333º/2 do CC). Ora, não fazendo o art. 86º ou qualquer outra regra do RAU depender da alegação da parte o conhecimento da excepção prevista naquele preceito, impõe-se a óbvia ilação, face à norma do art. 4960 do Código de.Processo Civil, que a mesma é do conhecimento oficioso, não sendo, sequer, necessário que a parte a qualifique como excepção ou invoque o art. 860 do RAU, até porque, como estabelece o art. 6640 do Código de Processo Civil "0 juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito". Mas se o referido é correcto quanto à verificação ou não da excepção em causa, já o juiz está limitado nesse conhecimento aos factos alegados pelas partes e apenas deles se pode servir (art. 6640 2a parte do Código de Processo Civil), com excepção dos factos notórios ou do conhecimento do tribunal por força das suas funções (arts. 2640 e 5140 do Código de Processo Civil) e dos instrumentais. Concluímos assim que a excepção peremptória material estabelecida no art. 860 do RAU é do conhecimento oficioso, devendo, consequentemente, o tribunal, mesmo que a parte a não tenha invocado, conhecer da mesma mas limitando-se aos factos alegados e provados ou de que possa conhecer oficiosamente, nos termos dos arts. 2640 e 5140 do Código de Processo Civil. Consequentemente, não tendo a questão sido directamente suscitada pela parte (e no caso não foi) o pronunciamento do tribunal quanto a tal questão apenas se impunha se os factos de que dispunha determinassem a sua procedência. O conhecimento oficioso apenas se impõe quando os factos provados integram a excepção em causa já que se tratará de mera aplicação das regras de direito aos factos. Quando esses factos não integram a matéria de excepção ou são insuficientes para a sua procedência, não está o tribunal obrigado a tomar posição expressa sobre tal questão, concluindo pela negativa, ou seja, pela sua não verificação. E só assim não será quando a parte tiver expressamente suscitado a questão porque o art. 6640/2, 1ª parte impõe tal pronunciamento. No caso, como referido, não tendo a parte invocado a excepção do art. 86° como impeditiva do direito que o R aduziu em reconvenção (transmissão para si do arrendamento) e porque os factos alegados e provados são insuficientes para conduzirem à sua verificação, não estava o tribunal a quo obrigado a conhecer da matéria da aludida excepção. E efectivamente os factos provados são insuficientes para integrarem a excepção em causa. Está apenas provado que o R. reside no imóvel ... há pelo menos 12 (doze) anos, na companhia do seu irmão, até 9 de Dezembro de 2007 e sozinho desde então para onde foi viver ... , entre os anos de 1987 e 1988, após a data referida em 24 de Junho de 1987, quando se divorciou. O R. vendeu a casa de morada de família sita na Rua … n.º 9, 1.º dto, em …, em 16 de Janeiro de 1992. Em 9 de Janeiro de 1992, data do óbito de “E”, pai do R., este vivia no imóvel referido ... com o seu pai e o seu irmão mais novo. Temos assim que, quando após 24 de Junho de 1987 (mas antes de 1988) foi morar para o imóvel dos autos, para junto do seu pai e do seu irmão “G”, o R/recorrido era co-proprietário (com a sua ex-cônjuge - cfr. certidão de fls. 116) de um primeiro andar destinado a habitação, fracção autónoma designada pela letra “G”, do prédio urbano situado na Rua … n.º 9, 1º dto, em …, casa esta que fora a casa de morada de família e manteve-se como proprietário até 16 de Janeiro de 1992, ou seja, até 7 dias depois do óbito do seu pai, anterior arrendatário. E serão estes factos suficientes para se considerar verificada a excepção do art. 86° do RAU? É óbvio que não. Estabelece este preceito: "o direito à transmissão ... não se verifica se o titular desse direito tiver residência ... na respectiva localidade ... à data da morte do primitivo arrendatário. " No caso, de acordo com os factos provados o recorrente era à data do óbito de seu pai co-proprietário de um imóvel destinado à habitação e que até 24 de Junho de 1987 era a casa de morada de família, sendo por isso de presumir, que tivesse todas as condições para satisfazer as necessidades do recorrente, agora sozinho em consequência do divórcio. Mas será este singelo facto suficiente para a verificação da aludida excepção? Não nos parece. Desde logo não foi alegado (e competia à recorrente fazê-lo) nem provado, se tal casa estava livre [5], se a co-proprietária permitia que o recorrido ali residisse, se o direito de habitação fora atribuído ao recorrente, à ex-cônjuge ou a nenhum deles. É certo que, como invoca a recorrente na fundamentação da decisão da matéria de facto, a Mmª Juíza refere que a “casa ficou desocupada durante esse período de tempo" ou seja, depois do divórcio e da altura em que o recorrente a desocupou até ser vendida. Porém, esta referência não pode ser considerada para os efeitos pretendidos pela recorrente. Desde logo, porque não se trata de facto provado mas apenas de referência ao conteúdo do depoimento daquela testemunha e para fundamentar a resposta que o tribunal deu à base instrutória e, por outro, porque não se tratando de facto alegado pelas partes e não sendo meramente instrumental de outros (inexistentes porque também não alegados), não pode o tribunal considerá-lo para fundamentar a sentença porque a tal obsta o art. 6640 do Código de Processo Civil). Mas sempre se dirá que, mesmo que pudesse ser atendido, e não pode, seria absolutamente inócuo já que também ali consta que os co-proprietários acordaram manter a casa desocupada para poder ser vendida, donde se infere que mesmo que o recorrido ali pretendesse fixar a sua residência a coproprietária não o permitiria, como se infere da seguinte referência também constante daquela fundamentação (fls. 131): "após o seu divórcio com o R., em 1987, ele ainda viveu na casa que foi a casa de morada de família durante alguns meses, mas não mais que isso, pois, como não chagavam a acordo quanto ao seu destino, resolveram colocá-la à venda numa imobiliária e que nenhum deles lá viveria até que a casa fosse vendida". Face a esta aridez dos factos alegados e provados, nem importa debruçarmo-nos sobre a polémica do que de deve entender-se por "residência" para efeitos do preceito em causa. Em conclusão: sendo embora excepção do conhecimento oficioso, os factos provados não integram a excepção do art. 86° do RAU e, estando provado que o recorrido era o filho mais velho e vivia com o seu pai, primitivo arrendatário, há mais de 1 ano à data da morte deste (desde 1987/1988 a 1992), bem decidiu o tribunal a quo ao julgar que o arrendamento se transmitiu ao recorrido e ao declará-lo arrendatário do locado. 2- Se deve manter-se a condenação da A. na indemnização arbitrada por danos não patrimoniais decorrentes da sua rescisão do contrato de fornecimento de água. Aqui temos que reconhecer razão à recorrente. Fundamentou o tribunal a quo a condenação da recorrente no pagamento da arbitrada indemnização por danos não patrimoniais, no entendimento de que a recorrente ao rescindir o contrato de fornecimento de água ao locado, violou a norma do art. 1031° do CC que impõe ao locador assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que se destina. Mas, com o devido respeito, não se nos afigura correcto este entendimento. O contrato de fornecimento de água não é inerente ao locado ou seja, não faz parte do gozo da coisa. O fornecimento da água é decorrente de um contrato celebrado entre a entidade fornecedora da água e o utilizador ou seja o locatário sendo o locador terceiro nessa relação contratual. No caso dos autos, embora não conste do elenco dos factos provados, estão as partes de acordo em que o contrato rescindido estava em nome do pai da A. aliás já falecido, sendo consequentemente, o recorrido terceiro nessa relação jurídica, ainda que o seu imediato beneficiário. Não se entende, aliás, como é que tantos anos após a morte do pai da recorrente, se mantinha o contrato em nome daquele. Por outro lado, como a mesma bem refere, é o outorgante no contrato o responsável pelo pagamento da água perante o fornecedor. Ora, a água era consumida não pelo interveniente no contrato (o pai da A/recorrente) mas por um terceiro, o R/recorrido. Em caso de não pagamento da água fornecida e consumida pelo R., como é evidente, a fornecedora exigiria do contraente (a recorrente dado que o outorgante seu pai era falecido) o pagamento em atraso de bem que não consumira. Ora, estando o contrato em nome do pai da recorrente e sendo esta a sua sucessora, tinha o direito de o rescindir sem que qualquer prévia autorização ou mera comunicação ao recorrido que não fora parte nesse contrato. Questão diversa seria se a recorrente ou o seu pai se tivessem obrigado perante o recorrido a manter o contrato de fornecimento de água inalterável. Neste caso, ao rescindir o contrato de fornecimento estaria a recorrente a violar esta norma contratual a que se obrigara ou em que sucedera. Porém, nada disto foi invocado e competia ao R/recorrido fazê-lo. O pedido e a decisão assentaram na violação da norma contratual que obrigava a A. a assegurar o gozo do locado e, como referimos, esta norma não foi violada com a apontada rescisão. Obrigação do locador será, por exemplo, o de manter as canalizações em correcto funcionamento de forma a que possa ser celebrado pelo locatário o contrato de fornecimento de água e a usufruir da água fornecida. Mas sempre se acrescentará, que não se entende a argumentação do recorrido quando invoca os danos objecto da indemnização decorrente do tempo em que esteve sem água, referindo que não lhe era possível (impossibilidade que alegou mas não provou nem foi objecto de prova) celebrar o contrato em seu nome por inexistência de recibo de renda (art. 22° da contestação/reconvenção). É que, como se vê do documento de fls. 108, o recorrido celebrou em Novembro de 2008 contrato de fornecimento de água em seu nome, apesar de nessa data e ainda actualmente, não dispor do alegadamente indispensável recibo de renda, o que demonstra não ser esse invocado facto impeditivo da celebração do contrato. Em suma, não podendo considerar-se o contrato de fornecimento da água, como integrante do contrato de arrendamento e nomeadamente da norma que obriga o locador a assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina, a não ser que as partes o tivessem expressamente contratado (e nada foi alegado nesse sentido), a rescisão do contrato de fornecimento de água celebrado pelo locador em seu nome, não viola qualquer cláusula contratual, não sendo, por conseguinte, fonte de responsabilidade contratual, não conferindo ao locatário o direito a ser indemnizado pelos danos que alegou ter sofrido. Pelas apontadas razões, o recurso merece, nesta parte, provimento com a consequente revogação parcial da sentença recorrida. DECISÃO Termos em que se acorda nesta Relação: 1. Em conceder provimento parcial ao recurso e revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a A/recorrente no pagamento ao R/recorrido da quantia de 500,00 € a título de indemnização por danos não patrimoniais, que assim se absolve; 2. Em confirmar, no mais, a sentença recorrida; 3. Em condenar a A/recorrente nas custas da acção em ambas as instâncias; 4. Em condenar ambas as partes e em partes iguais nas custas do pedido reconvencional em ambas as instâncias. Évora, 24.02.2010 __________________________________________________ [1] Cfr. arts. 684°, n.º 3 e 690°, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7°/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403°/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347°/477, Rodrigues Bastos, in "NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL", vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in "IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS", 2a ed., pág. 111. [2] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386°/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, VoI. III, pág. 247, ex vi dos arts. 713°, n.º 2 e 660°, n.º 2 do CPC. [3] Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, reimpressão, vol. III, pag. 75 [4] José dos Santos Silveira “Questões Subsuquentes em Processo Civil”, 1964, pag. 117. [5] Parece-nos inquestionável que nos casos em que o proprietário não pode legalmente dispor da casa, por força de qualquer vínculo jurídico nomeadamente arrendamento a terceiro ou por qualquer motivo de facto (por exemplo desapossamento por terceiro) não se poderá entender para efeitos do art. 86° do RAU que o titular do direito à transmissão dispõe de outra residência. |